cinema na internet. espaços informais de circulação, pirataria e cinefilia
Post on 17-Dec-2015
13 Views
Preview:
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
-
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL
ANGELA MARIA MEILI
CINEMA NA INTERNET. ESPAOS INFORMAIS DE
CIRCULAO, PIRATARIA E CINEFILIA
Porto Alegre
2015
-
ii
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL
ANGELA MARIA MEILI
CINEMA NA INTERNET. ESPAOS INFORMAIS DE
CIRCULAO, PIRATARIA E CINEFILIA
Prof. Dr. Joo Guilherme Barone Reis e Silva
Orientador
Tese apresentada como pr-requisito
parcial para a obteno do ttulo de
Doutor em Comunicao Social, no
Programa de Ps-Graduao em
Comunicao Social
Data da defesa: 31.03.2015
Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
-
iii
CATALOGAO NA FONTE
M513c Meili, Angela Maria
Cinema na internet. espaos informais de circulao,
pirataria e cinefilia / Angela Maria Meili. Porto Alegre, 2015.
255 f.
Tese (Doutorado) Faculdade de Comunicao Social,
Ps-Graduao em Comunicao Social. PUCRS.
Orientador: Prof. Dr. Joo Guilherme Barone Reis e
Silva.
1. Comunicao. 2. Cinema. 3. Pirataria. 4. Internet -
Crimes. 5. Cinefilia. 6. BitTorrent Protocolo. I. Silva, Joo Guilherme Barone Reis e. II.Ttulo.
CDD 791.43
Bibliotecria Responsvel
Ginamara de Oliveira Lima
CRB 10/1204
-
iv
ANGELA MARIA MEILI
CINEMA NA INTERNET. ESPAOS INFORMAIS DE
CIRCULAO, PIRATARIA E CINEFILIA
Tese de Doutorado em Comunicao Social
Data de aprovao: 31.03.2015
Banca Examinadora:
_________________________________________________________
Prof. Dr. Joo Guilherme Barone Reis e Silva
Orientador
_________________________________________________________
Prof. Dra. Miriam de Souza Rossini
_________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Tietzmann
_________________________________________________________
Prof. Dr. Tiago Coelho Ferreto
_________________________________________________________
Prof. Dr. Tiago Ricciardi Correa Lopes
Porto Alegre
2015
-
v
minha famlia, que apoiou e iluminou esta jornada acadmica.
Aos amigos que inspiraram e questionaram.
Aos professores e colegas, que apresentaram temas e novos campos de conhecimento na
Comunicao, Letras e Cincias Sociais.
Aos cineastas e artistas brasileiros, que lutam contra as adversidades materiais e polticas, pela
riqueza da expresso cultural humana.
Aos cinfilos, engajados no desenvolvimento das sensibilidades e do conhecimento sobre a
stima arte.
-
vi
Agradecimentos
Agradeo minha me Neuza Meili, meu irmo Lucas Meili e minha cunhada Patrcia Nagliati
pelo apoio incondicional. Ao meu orientador Dr. Joo Guilherme Barone Reis e Silva por ter se
engajado nas minhas ideias e estar aberto ao dilogo, auxiliando na conexo entre todos os pontos
com os quais trabalhamos na pesquisa. minha orientadora de Estgio Sanduche no Exterior,
Dra. Laura Rascaroli (University College of Cork, Irlanda), que acrescentou ideias essenciais para
a pesquisa, acreditando na capacidade inovadora do trabalho. Aos docentes da Pontifcia
Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) que, atravs de suas disciplinas, ofereceram conhecimento de grande utilidade
para a elaborao desse trabalho. Aos colegas do grupo UBITEC (PPGCom, PUCRS), que
proporcionaram excelentes discusses, aprendizado e experincia ao longo dos quatro anos de
formao deste doutorado. Agradeo, tambm, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior do Ministrio da Educao e Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do
Sul pelo suporte financeiro, elemento fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa.
-
vii
Resumo
Analisamos o fenmeno da circulao informal de cinema na internet, oferecendo uma
orientao sistemtica dentro do vasto universo das redes de distribuio que se
encontram s margens do mercado oficial. A pirataria estudada como uma atividade
cultural que corresponde a uma gama de interesses coletivos de dimenso global e se
relaciona com as polticas normativas, a crtica propriedade intelectual, a desobedincia
civil, o mercado, as inovaes tecnolgicas, a cultura participativa e as economias
informais. Fazemos um recorte no universo de circulao informal para analisar,
especificamente, a relao entre as redes BitTorrent, a distribuio de cinema e a
cibercinefilia, apontando para o carter hbrido dessas redes, onde meios informais e
formais convergem, elementos tcnicos combinam-se, nichos e culturas globais
dialogam, sensibilidades morais relativizam-se, discursos, prticas cotidianas e aes
polticas se desenvolvem e onde mercados se transformam. Demonstramos que, dentro
do espao no autorizado de circulao, podem ser encontrados centros especializados de
distribuio com dimenso simblica prpria, que manifestam sentidos sobre o cinema,
que se desenvolvem sob a influncia de um imaginrio cinfilo e multicultural.
Palavras-chave: Comunicao, Cinema, Circulao Informal, Internet, BitTorrent,
Pirataria, Cinefilia.
-
viii
Abstract
This research analyses the phenomenon of informal film circulation on Internet, building
a systematic orientation within the vast universe of distribution networks. Piracy is a
cultural activity that corresponds to a range of collective interests of global dimension
and relates to regulatory policies, critical intellectual property, civil disobedience, market,
technological innovations participatory culture and informal economies. This study
explores the relations between BitTorrent networks, cinema distribution and ciber-
cinephilia, pointing to networks with hybrid nature, where informal and formal media
converge, technical elements combine, niches and global cultures dialogue, moral
sensibilities-relativize, speeches, daily practices and political actions are developed and
where markets are transformed. We have shown that, within the space of unauthorized
circulation, specialized distribution hubs have their own symbolic dimension, which
manifest particular senses about cinema, under the influence of a movie buff and
multicultural imaginary.
Keywords: Communication, Cinema, informal circulation, Internet, BitTorrent, Piracy,
Cinephilia
]
-
ix
Lista de Tabelas
Tabela 1: Filmes mais Baixados da Semana de 19.01.2014 ....................................................... 18
Tabela 2: Percentual de Fluxo de Dados para Streaming. ........................................................... 45
Tabela 3: Indexadores BitTorrent mais Populares ...................................................................... 59
Tabela 4: Tipos de Sites Indexadores (elaborao do autor) ..................................................... 150
Tabela 5: Comunidades Privadas de Torrent ............................................................................ 158
Tabela 6: Top 20 filmes mais acessados MKO ......................................................................... 197
Tabela 7: Top 20 Filmes Mais Comentados no MKO .............................................................. 204
Tabela 8: Top 20 Filmes mais Antigos MKO ........................................................................... 224
-
x
Lista de Grficos
Grfico 1: Diagrama das variveis da circulao digital (elaborao do autor) .......................... 32
Grfico 2: Diagrama das variveis do Netflix (elaborao do autor) .......................................... 33
Grfico 3: Diagrama das variveis do YouTube (elaborao do autor) ...................................... 33
Grfico 4: Diagrama das variveis do Crackle (elaborao do autor) ......................................... 34
Grfico 5: Diagrama das variveis do Popcorn Time (elaborao do autor) .............................. 34
Grfico 6: Diagrama das variveis dos Bundles BitTorrent (elaborao do autor)..................... 35
Grfico 7: Aplicao do Diagrama da Circulao On-line para os GTPs ................................. 167
Grfico 8: Disponibilidade dos Filmes Brasileiros do MKO na Loja Amazon.com ................. 196
Grfico 9: Percentagem das reas de Formao dos Usurios do MKO .................................. 211
-
xi
Lista de Figuras
Figura 1: Diagrama da apropriao Tecnolgica na Circulao Informal de Filmes (elaborao
do autor) ...................................................................................................................................... 41
Figura 2: Logos do Google e do YouTube .................................................................................. 66
Figura 3: Logos da Apple e ITunes ............................................................................................. 66
Figura 4: Conjunto de Logos do Complexo Amazon .................................................................. 67
Figura 5: Capa de Suzy Q (1999) ................................................................................................ 79
Figura 6: Smbolo Sagrado e Slogan do Kopimismo. ............................................................... 129
Figura 7: Pgina referente s categorias de contedo de site de Torrent Aberto Kickass.to ..... 151
Figura 8: Pgina referente s categorias de contedo do site de Torrent Aberto Piratebay.se .. 152
Figura 9: Interface do Indexador e Buscador de Pginas de Torrent Torrent.to ....................... 153
Figura 10: Lista de Sites de Torrent Especializados em TV e Cinema no Indexador Torrents.to
................................................................................................................................................... 154
Figura 11: Pgina referente s categorias de filmes disponveis no site de Torrents Verificados
Take.fm ..................................................................................................................................... 155
Figura 12: Exibio The Pirate Cinema .................................................................................... 156
Figura 13: Tpicos do Frum de Convites Torrent-invites.com ............................................... 162
Figura 14: Nuvem de Palavras BitTorrent News ...................................................................... 163
Figura 15: Pgina Principal do Site de Convites Torrentinvitez.com ....................................... 165
Figura 16: Pgina Principal do Site de Convites Torrentinvitez.com (continuao) ................ 166
Figura 17: Categorias de Contedo e de Filmes do GTC KG ................................................... 169
Figura 18 Interface da Pgina Principal do MKO ..................................................................... 172
Figura 19: Gerador de Cdigos para a Postagem de Filmes no MKO ...................................... 176
Figura 20: Menu Principal de Tpicos do MKO ....................................................................... 178
Figura 21: Menu com Categorias de Temas Adicionais MKO ................................................. 179
Figura 22: Nuvem de Palavras Dirio MKO ............................................................................. 183
Figura 23: Frum de Pedidos do MKO ..................................................................................... 193
Figura 24: Pgina do Filme O Som Ao Redor no MKO ........................................................... 198
Figura 25: Pgina do Filme Febre do Rato no MKO ................................................................ 202
Figura 26: Pgina do Filme Estmago no MKO ....................................................................... 205
Figura 27: Pgina do Filme Lavoura Arcaica no MKO ............................................................ 208
Figura 28: Pgina do Filme Out 1: Spectre no MKO ................................................................ 218
Figura 29: Pgina do Out 1: Noli me Tangere no KG ............................................................... 219
-
xii
Lista de Abreviaes
ADSL: Asymmetric Digital Subscriber Line. Tecnologia de transmisso de dados atravs de
linhas telefnicas
CD: Compact Disc ou Disco Compacto. Mdia para armazenamento de 700 megabytes de dado
digital.
DivX: Codificador utilizado para a compactao de vdeo digital.
DVD: Digital Versatile Disc ou Disco Digital Verstil. Mdia para armazenamento de 5 a 10
gigagabytes de dado digital.
FTP: File Transfer Protocol. Protocolo de comunicao padro para a transferncia de arquivos
entre computadores sobre redes TCP.
GTP: Grupo de Torrent Privado
GTC: Grupo de Torrent Cinfilo
HTTP: Hypertext Transfer Protocol. Protocolo para a formao de sistemas de informao
hipermiditicos, que cria a ligao entre pontos contendo textos.
IP: Internet Protocol. Regras de comunicao de dados e identificao entre mquinas na rede.
IPTV: Televiso sobre IP. Transmisso de streaming atravs da internet diretamente para
aparelhos de televiso.
IRC: Internet Relay Chat. Protocolo de transmisso de mensagens de texto.
KG: Grupo de torrent cinfilo hngaro
MP3: Formato de digitalizao e compresso de udio.
MPEG-4: Formato de digitalizao e compresso de audiovisual.
MPAA: Motion Picture Association of America
MKO: Grupo de torrent cinfilo brasileiro
P2P: peer-to-peer. Qualquer tipo de troca de informao ou processamento ponto a ponto.
P2PTV: Televiso peer-to-peer. Mtodo de transmisso streaming atravs de redes peer-to-peer.
RIAA: Recording Industry Association of America
RSS: Really Simple Sindication. Tecnologia informacional que agrupa e sumariza atualizaes
de pginas da internet.
TCP: Transmission Control Protocol ou Protocolo de Controle de Informao. Um dos
protocolos de comunicao estruturantes da internet.
VPN: Virtual Private Network ou Rede Privada Virtual. Rede de comunicaes privada.
WWW: World Wide Web. Sistema de documentos integrados que compe a rede mundial de
computadores.
-
xiii
Glossrio
Blog: Tipo de site da internet que permite rpida atualizao a partir de artigos, com espao para
comentrios.
BitTorrent: Tecnologia de transferncia de dados peer-to-peer.
Browser: Programa de computador que permite o acesso a pginas da internet.
Byte: Unidade de medida para referir-se aos volumes de dados digitais (1 megabyte = 106 bytes;
1 gigabyte = 109 bytes.)
Chat: Qualquer soluo ou protocolo de comunicao digital que permita a troca de textos
simultnea entre dois ou mais usurios.
Cloud Computing: Computao em nuvem. Servios de processamento e armazenamento
remotos, na internet.
Download/Downstream: Recebimento de dados para um computador local a partir da rede
mundial de computadores ou de outro computador.
Embedded Content: Quando o contedo ou funcionalidade de uma pgina da internet integrada
em outra pgina.
Feed: Formato de dados que se atualizam constantemente em uma pgina.
Flash (Adobe): Tecnologia que permite executar animaes em navegadores da internet,
incluindo vdeos.
Frum: Tipo de site destinado a formao de comunidades e discusso.
Isohunt: Site indexador internacional aberto de BitTorrent, criado em 2003.
Leecher: Participante de uma transmisso BitTorrent que ainda no possui o arquivo completo
Link: Ligao entre pginas da internet.
Media Player: Programa de computador que reproduz de mdia digital.
Proxy: Servidor intermedirio na internet, que media a relao entre os computadores e outros
servidores.
Ratio: Proporo upload/download de um usurio BitTorrent
Screenshot: Foto retirada de um frame de vdeo ou filme a partir do que exibido na tela.
Seedbox: Espao utilizado em um servidor para a transferncia de arquivos remota.
Seeder: Participante de uma transmisso BitTorrent que j possui o arquivo completo
Set-top-box: Equipamento que conecta o aparelho de televiso a uma fonte externa de sinal
digital.
Smart TV: Aparelho de televiso hbrido que integra a televiso internet e outros dispositivos
digitais.
Spam: Envio de informaes em massa em qualquer aplicao ou protocolo de comunidao
digital.
Spyware: Programa que recolhe sorrateiramente informaes de computadores pessoais e as
envia pela internet para um servidor.
Swarm: Processo que resulta no conjunto de peers envolvidos emu ma transmisso BitTorrent.
The Pirate Bay: Site indexador internacional aberto de BitTorrent, criado na Sucia em 2003.
Tracker (BitTorrent): Servidor que auxilia na comunicao entre os pares na transferncia de
dados.
Upload/Upstream: Envio de dados de um computador local para a rede mundial de
computadores ou diretamente para outro computador.
-
xiv
SUMRIO
1. Introduo ........................................................................................................................................... 16
1.1. Objetivos ................................................................................................................................... 20
1.2. Justificativa ............................................................................................................................... 21
1.3. Metodologia .............................................................................................................................. 24
2. Ecologia das Janelas de Distribuio de Cinema na Internet ............................................................. 31
2.1. Fundamentos da Tecnologia Digital e Solues Para Circulao do Audiovisual na Internet .. 36
2.1.1. Streaming .............................................................................................................................. 44
2.1.2. Cyberlockers ......................................................................................................................... 46
2.1.3. Sites de Link ......................................................................................................................... 48
2.1.4. Peer-to-peer .......................................................................................................................... 48
2.1.5. BitTorrent ............................................................................................................................. 52
2.2. A Circulao Formal ................................................................................................................. 61
2.3. A Circulao Informal .............................................................................................................. 69
2.4. Convergncias entre a Circulao Formal e Informal ............................................................... 73
2.5. Pago vs. Grtis .......................................................................................................................... 79
2.6. A dimenso da legalidade ......................................................................................................... 86
3. Piratarias no plural: Discursos e Prticas. ........................................................................................... 88
3.1. Propriedade Intelectual e Pirataria ............................................................................................ 88
3.2. Pirataria: Discursos e Prticas ................................................................................................... 98
3.2.1. A Viso Criminalista e a Guerra Contra a Pirataria .............................................................. 99
3.2.2. O Papel da Pirataria no Mercado Informacional ................................................................. 111
3.2.3. A Pirataria e a Liberdade de Expresso .............................................................................. 114
3.2.4. Instabilidades da Noo de Autoria e o Impacto da Pirataria ............................................. 116
3.2.5. Resistncia Cultural e Poltica e a Desobedincia Civil ..................................................... 118
3.2.6. Pirataria como Meio de Acesso aos Bens Culturais, Aspectos Ps-Coloniais .................... 124
3.2.7. Pirataria e a Religio do Kopimismo .................................................................................. 127
3.3. Geopoltica da Circulao Informal ........................................................................................ 130
3.4. O Brasil e as Transformaes Regulatrias no Cenrio de Crescimento da Internet .............. 142
4. Cena BitTorrent e Cinefilia .............................................................................................................. 150
4.1. Os Grupos de Torrent Privados ............................................................................................... 157
4.2. Os Grupos de Torrent Cinfilos .............................................................................................. 167
4.3. Apresentao do GTC Brasileiro MKO .................................................................................. 171
4.4. Regras e Curadoria do MKO .................................................................................................. 183
4.5. O Cinema Nacional no MKO .................................................................................................. 194
4.5.1. 1 Filme brasileiro com maior acesso: O Som Ao Redor (Kleber Mendona Filho, 2012) 198
-
xv
4.5.2. 2 Filme brasileiro com maior acesso: Febre do Rato (Claudio Assis, 2011) ..................... 202
4.5.3. 1 Filme brasileiro mais comentado: Estmago (Marcos Jorge, 2007) ............................... 205
4.5.4. 2 Filme brasileiro mais comentado: Lavoura Arcaica (Luiz Fernando de Carvalho, 2001) 208
4.6. Formao Intelectual no MKO ............................................................................................... 210
4.7. A Produo de Legendas Exclusivas pela Comunidade do MKO .......................................... 213
4.8. Os GTCs e a Cibercinefilia ..................................................................................................... 214
4.9. Os Arquivos e o Esprito Colecionador .................................................................................. 224
5. Consideraes Finais ........................................................................................................................ 227
Bibliografia ............................................................................................................................................... 234
Lista de Filmes e Sries ............................................................................................................................ 245
ANEXO: Pgina de Regras do MKO ....................................................................................................... 252
-
16
1. Introduo
Dentro da trajetria da qual resulta esta pesquisa, desde o mestrado, temos o interesse em
explorar e refletir sobre as relaes entre as limitaes tecnolgicas e polticas das mdias,
as prticas desobedientes e informais de apropriao das tecnologias e o seu impacto na
dimenso cultural e simblica da sociedade. Na dissertao Pragmtica dos Enunciados
Televisivos: Um Estudo da Proibio e da Desobedincia Atravs dos Corpos Miditicos
(IEL/UNICAMP, 2008), partimos do vis da pragmtica lingustica para observar os
agenciamentos resultantes de uma postura ativa nas prticas de mdia desobediente,
analisando especificamente o caso de uma televiso livre, a TV Piolho (2006-2011,
Campinas, SP). Notamos que os condicionamentos polticos e tecnolgicos interferiam
diretamente na elaborao dos enunciados e percebemos que a prpria existncia da
enunciao dependia do domnio dessas ferramentas e de um posicionamento poltico
ativo dos enunciadores. Vimos que uma performance televisiva livre ou pirata resultava
em uma ampliao das possibilidades de produo de sentido atravs da viabilizao
tecnolgica do registro e da transmisso.
Com o desenvolvimento das redes BitTorrent e quase total substituio das mdias
analgicas pelas digitais, surgiu o interesse em prestar maior ateno nessas redes e
ampliar o nosso conhecimento sobre a pirataria na internet e as prticas miditicas
informais e desobedientes relacionadas ao audiovisual digital. Optamos, ento, por
abordar o tema da circulao informal do cinema na internet, desenvolvendo um olhar
sistemtico sobre a ecologia das janelas de distribuio, considerando elementos
fundamentais, como tecnologias, regulamentaes, instituies, mercado e pblico.
Exploramos, nesta tese, as dimenses discursivas e prticas da noo da pirataria a partir
de uma anlise crtica da propriedade intelectual e seus desdobramentos ideolgicos.
Aps um olhar geral sobre o fenmeno da circulao informal, analisamos manifestaes
especficas, partindo para a investigao das cibercinefilias no mbito das redes
BitTorrent, onde analisamos um grupo1 de torrent cinfilo (GTC) brasileiro (que ser
1 Optamos por utilizar o termo grupo pois ele representa um carter mais pragmtico da organizao do
que o termo comunidade, que tende a um carter mais amplo. Ainda, o grupo ir corresponder ao prprio
site que, por sua vez, refere-se ao tracker.
-
17
denominado MKO), o qual atua como um ncleo informal e especializado de distribuio
de cinema.
Notamos que o cenrio da circulao informal de cinema resultado de um conjunto de
ineficincias do mercado de distribuio, principalmente em pases perifricos, onde o
nmero de salas de exibio restrito e as mdias fsicas possuem valor inacessvel e com
lanamento limitado (BALZS e LAKATOS, 2012; CHIANG e ASSANE, 2008;
ALMEIDA e BUTCHER, 2003; BARONE, 2011). A circulao informal de cinema e
vdeo ocupa uma parte significativa do montante global consumido diariamente, pois a
sua resilincia a possibilita atuar como agente massivo de distribuio do cinema,
produzindo novas lgicas entre os setores envolvidos com a produo e distribuio desse
produto cultural (GALLIO e MARTINA, 2013).
Assim, a informalidade preenche espaos deixados pela distribuio formal, satisfazendo
demandas e servindo aos interesses dos consumidores, a partir de solues que so, muitas
vezes, ignoradas pela indstria (PONTE, 2008). A informalidade um ator competitivo
no mercado, pois cria estratgias eficientes de atingir o pblico (DENT, 2012) e acaba
representando uma ruptura de paradigmas na indstria cinematogrfica (IORDANOVA
e CUNNINGHAM, 2012). Mais do que uma prtica, ela cria um cenrio, um campo de
experincia com o vdeo, onde se formam audincias piratas (DE S, 2013), estas, alm
de consumirem, tambm produzem um sistema paralelo de distribuio.
A presena da pirataria de filmes nas redes digitais tornou-se expressiva somente a partir
de meados dos anos 2000, com a superao de limitaes tcnicas, como a pouca largura
de banda2, a falta de modelos eficientes de compresso (MP3, MPEG-4, DivX, etc.) e a
precariedade da experincia visual (tela, cores, velocidade, armazenamento)
(IORDANOVA e CUNNINGHAM, 2012). Ocorreu uma intensificao das cpias
domsticas a partir da criao das mdias digitais (CDs e DVDs), gravadores caseiros,
melhora das tecnologias de compresso de imagem e udio, seguidos da melhora da
internet, dos monitores (que passaram a ser chamados de telas) e da convergncia entre a
televiso e o computador.
2 Quantidade de dados suportada pela rede.
-
18
A informalidade est relacionada com o grau de independncia em relao s regulaes
dos governos ou corporaes (LOBATO, 2012), em sociedades mediadas por sistemas
legais, que conferem direitos e proibies sobre a produo e circulao do audiovisual e
tambm sobre o uso das tecnologias. Operadores informais criam redes complexas de
amplo espectro (LEMOS, 2005), que formam agregaes em torno de interesses
especficos (BOD e LAKATOS, 2012) e geram uma distribuio mais volumosa do que
a oficial, com maior agilidade e diversidade (CARTER, 2013).
Redes informais resultam da soma de um conhecimento coletivo e evidenciam claramente
o que foi idealizado pelos entusiastas da internet e da computao pessoal (SCHFER,
2011), um universo com muitas vias e muitos agentes contribuindo com a cultura da
participao (JENKINS, 2006). A possibilidade de trocar informao e interagir na
internet tambm abrangeu a mdia audiovisual e o cinema, que apareceram com maior
heterogeneidade e conectividade. A diversidade de contedos compreende uma srie de
nichos culturais, que so impulsionados pelas redes interativas (ANDERSON, 2006).
Ao mesmo tempo em que o cinema conquista novos territrios a partir das tecnologias
digitais e torna-se mais diversificado, interativo e independente (LIPOVETSKY e
SERROY, 2009), as redes digitais tambm reproduzem e amplificam a voz do mercado
do cinema impactadas pelo lanamento oficial dos filmes, por prmios, festivais e pela
disponibilidade em outras mdias.
Certamente, os meios tradicionais de distribuio e os circuitos dominantes do cinema
tm um impacto direto nas redes informais, que so dependentes e influenciadas pela
indstria. Se observarmos, na Tabela 1, os filmes mais baixados da semana do dia 19 de
janeiro de 20143, logo aps a nomeao dos concorrentes ao Oscar 2014, veremos que a
lista se divide entre grandes lanamentos recentes e filmes premiados ou indicados para
o prmio da Academia de Cinema (em destaque na tabela). V-se a predominncia de
filmes com maior visibilidade nas redes abertas de BitTorrent.
Tabela 1: Filmes mais Baixados da Semana de 19.01.2014
3 Torrent Freak. Top 10 Most Pirated Movies of the Week. 20.01.2014. Disponvel em
Consultado 10.07.2014.
1 O Lobo de Wallstreet (Martin Scorsese, 2013)
-
19
Fonte: Torrentfreak.com (consultado em 09.09.2014). Elaborao do autor.
Por outro lado, em escala nem tanto massiva, mas tambm vasta, grupos de torrent
privados compartilham e cultuam cinemas das mais diversas origens e pocas, os quais
no esto e, muitas vezes, nunca estiveram sob os holofotes da grande mdia. Dessa
forma, mesmo com a permanente desigualdade de foras no ramo cinematogrfico, existe
a oportunidade de rearranjo das relaes de poder a partir da hiperconexo, que estimula
novos laos e tambm multiplica os meios de chegada do contedo at o consumidor.
Ainda que no ocorra a eliminao dos oligoplios miditicos (CUNNINGHAM e
SILVER, 2013), possvel a entrada de novos competidores que experimentam o espao
emergente de distribuio on-line e tm a chance de interferir tambm nos imaginrios
culturais contemporneos. Nesse sentido, a distribuio (formal ou informal) um setor
determinante da cultura cinematogrfica, que define quais filmes, quando e onde sero ou
no vistos e isso tem um impacto profundo no imaginrio cultural e no mercado das
atenes, que molda o espao da recepo.
Devido dificuldade de adaptao das prticas tradicionais leis, regulamentaes e uma
srie de modelos de troca comercial ao desenvolvimento tecnolgico, a velocidade de
desenvolvimento da distribuio formal on-line relativamente lenta se comparada s
prticas informais, que prestam um servio demandado pelo consumidor: contedo digital
entregue a qualquer momento, de forma fcil, com baixo custo e variedade.
2 A Vida Secreta de Walter Mitty (Ben Stiller, 2013)
3 Capito Phillips (Paul Greengrass, 2013)
4 Frozen: Uma Aventura Congelante (Chris Buck e
Jennifer Lee, 2013)
5 ltima Viagem a Las Vegas (Jon Turteltaub, 2013)
6 Enders Game: O Jogo do Exterminador (Gavin Hood,
2013)
7 12 Anos de Escravido (Steve McQueen, 2013)
8 Jogos Vorazes: Em Chamas (Francis Lawrence, 2013)
9 O Grande Heri (Peter Berg, 2013)
10 Trapaa (David O. Russell, 2013)
-
20
Na disputa de foras entre o consumidor, com suas demandas, e a eficincia do mercado,
as ferramentas tecnolgicas passam a satisfazer a necessidade de acesso aos bens
culturais, criando e formando pblico, produzindo imaginrios e conhecimento
cinematogrfico, sem restringir-se cadeia econmica formal. A demanda do pblico
participa muito mais ativamente aps a ruptura causada pelas mdias digitais, forando a
existncia de meios mais eficientes de distribuio e engajando-se na informalidade, alm
de transitar no contexto dado pela indstria.
1.1. Objetivos
A elaborao dos objetivos foi motivada pelos seguintes questionamentos:
Como possvel definir e caracterizar o compartilhamento informal do cinema na
internet?
Quais os modos de se encarar a questo da pirataria e quais so suas consequncias
prticas?
Qual o impacto e a importncia das redes BitTorrent para a circulao do cinema?
Como ela ocorre?
Como situar os grupos de torrent cinfilos dentro de um cenrio de circulao
informal to vasto e diversificado?
Sendo fenmenos culturais, como esses grupos podem ser descritos? Como se
organizam e qual contedo oferecem?
Essas perguntas nos levaram a perceber a necessidade de, primeiramente, desenvolver
uma viso mais geral do problema (a circulao informal do cinema na internet), a qual
demanda por uma reviso estruturada acerca dos seus elementos fundamentais. A segunda
necessidade, seria observar as manifestaes mais particulares do fenmeno (redes
BitTorrent e cinema) e as suas correlaes com o contexto maior. Seguindo essas
necessidades, definimos o objetivo geral:
Explorar o fenmeno da circulao informal do cinema na internet,
desenvolvendo um estudo compreensivo que considere seus elementos
estruturantes (tecnologias, culturas, mercados, instituies e ideologias).
Tendo conscincia da larga escala do fenmeno, definimos quatro objetivos
especficos:
-
21
i) Desenvolver uma sistematizao do modo de olhar o universo da circulao
informal na internet;
ii) Oferecer uma abordagem mltipla sobre a pirataria, situando a problemtica a
partir de uma perspectiva crtica, que considere posicionamentos discursivos
e prticos heterogneos;
iii) Desvendar um fragmento particular do cenrio, a partir da observao e
anlise da circulao do cinema nas redes BitTorrent, especialmente os grupos
de torrent cinfilos (GTC);
iv) Compreender de que maneira os espaos informais podem se constituir
enquanto plataformas organizadas e especializadas de distribuio de cinema.
1.2. Justificativa
Dado o recente desenvolvimento do fenmeno e a sua expressividade em termos
quantitativos (MIZUKAMI, CASTRO, et al., 2011), considerando-se que, no Brasil,
cerca de 20 milhes de pessoas esto engajadas em consumo no autorizado de mdia em
redes informais (DE S, 2013), h a necessidade de pesquisas com estudos de exemplos
particulares, onde possam ser observados, com maior detalhe, os modelos adotados pela
circulao informal.
Em 2013, durante o perodo de bolsa do Programa de Doutorado Sanduche no Exterior
(Capes/PDSE) na University College of Cork (Irlanda), tivemos a oportunidade de
participar de dois eventos, os quais nos asseguraram sobre a relevncia da pesquisa, que
se insere em um campo de preocupaes relacionadas ao cinema na era digital, o qual
ainda requer maior explorao acadmica, devido ao seu alto impacto na cultura
cinematogrfica.
Paul McDonald, durante a European Film Cultures: An International Conference (Lund,
Sucia, 8 e 9 de novembro de 2013), conferncia organizada pela Associao Europeia
de Pesquisa e Ensino em Comunicao (ECREA), ressaltou a carncia de pesquisa
acadmica sobre o tema. Segundo ele, esse lento desenvolvimento consequncia de uma
dicotomia existente nas perspectivas analticas correntes e modelos de pesquisa:
Pesquisa administrativa: normalmente coordenada pelos donos de contedo,
com o objetivo de entender o ambiente virtual e o comportamento das pessoas
com relao pirataria e ao compartilhamento digital. A pesquisa, nesse caso,
-
22
uma ferramenta para criar solues lucrativas de mercado e sistemas
eficientes de proteo propriedade intelectual. J uma rea com algum
desenvolvimento devido aos altos investimentos da indstria do
entretenimento.
Pesquisa acadmica: os estudos sobre a distribuio e recepo de cinema na
academia, tradicionalmente, esto presos ao circuito oficial pr-internet, de
modo que os estudos sobre circulao digital e informal ainda no esto
suficientemente desenvolvidos. Esse campo de estudo necessrio pois
encorajaria o entendimento crtico sobre os novos tipos de relao que o
consumidor pode criar com o contedo cinematogrfico.
Nossa pesquisa justifica-se por contribuir para a segunda perspectiva, chamando a
ateno para a necessidade de se estudar a circulao informal do cinema e a sua relao
com o consumidor em formas variadas de recepo.
Durante o workshop World Cinema On Demand: Film Distribution and Education in the
Streaming Media Era (Belfast, Irlanda do Norte, 10.11.13), no qual fomos convidados a
apresentar nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de entrar em contato com outras
pesquisas que corroboravam com a nossa abordagem, especialmente no painel Torrent
Distribution and Online Piracy, com os trabalhos de Valentina Re (Universidade de
Veneza) e Virgnia Crisp (Middlesex University). A rede de pesquisas formada pelo
WCOD4 ressalta a necessidade de investigaes mais profundas no vasto territrio a ser
explorado da circulao digital do cinema, que reorganiza os modos de apreciao e
sensibilidade cinematogrfica, em consequncia das apropriaes tecnolgicas. Essas
experincias nos incentivaram a explorar o tema e encontrar, dentro de um recorte
especfico (as redes cinfilas BitTorrent), evidncias de um fenmeno cultural que
caracterstico das relaes entre o cinema e a sociedade da informao.
Autores apontam que as redes de circulao informal contribuem contra a maior ameaa
de muitas cinematografias, que a sua obscuridade (CARDOSO, CAETANO, et al.,
2012). A pesquisa sobre os GTCs acompanha a necessidade apontada por Bod e Lakatos
4 Para maiores informaes sobre o workshop, consultar relatrio de Kapka (2013).
-
23
(2012, p. 441) de se analisar o potencial de distribuio das redes peer-to-peer (p2p) para
cinematografias com menor potencial competitivo no mercado de cinema.
Sugerimos que pensar a circulao informal a partir do dualismo legal vs. ilegal deixa de
lado complexidades de relaes inerentes ao consumo cultural nos espaos digitais. A
pirataria pode ser vista como um mal a ser extirpado ou mesmo como uma bandeira a ser
levantada a qualquer custo; todavia, argumentos que somente servem a guerras de
interesse reduzem o entendimento de um fenmeno que bastante revelador da relao
do pblico com o consumo de cinema.
Quanto lei, nota-se a sua ineficincia em delinear as regras do jogo em uma sociedade
desterritorializada (ORTIZ, 1994), pois o crescente interesse pela circulao da
informao e a multiplicao da viabilidade tcnica tornaram os modos de legislao
atuais obsoletos (BENTLY, DAVIS e GINSBURG, 2010; OBERHOLZER-GEE e
STRUMPF, 2009). Os estudos que resumem o download de bens culturais ao mbito da
criminalidade negligenciam os aspectos macrossociolgicos envolvidos no tema, pois
apenas consideram como o indivduo se posiciona perante a lei e no as implicaes ou
relativizao da lei em um contexto histrico.
J com relao economia, mesmo que o direito de propriedade intelectual seja
necessrio para a existncia de um mercado, h ainda perspectivas que apontam para
novas formas de lidar com a circulao, que poderiam resultar em mercados inovadores
(LESSIG, 2004; MASON, 2009; ANDERSON, 2009 e 2006), desafiando modelos
tradicionais. Tanto na lei, como na economia, os estudos movem-se no sentido do
estabelecimento de agendas para a soluo do que considerado uma crise: a crise do
direito autoral.
Para alm da dualidade apresentada pelo aspecto da legalidade, nossa pesquisa justifica-
se pela necessidade de se analisar uma srie de outros fundamentos para o problema, que
precisam ser apontados, por exemplo, qual o tipo de contedo, onde e como ele circula e
como atuam os agentes promotores. necessrio analisar com detalhes essas
manifestaes culturais e que tipo de prticas desenvolvem, como por exemplo, a cultura
de nicho que se apresenta no pblico de cinematografias nacionais e o acervo que se forma
em curadorias colaborativas.
-
24
1.3. Metodologia
Grande parte do nosso estudo se desenvolveu via navegao imersiva (SANTAELLA,
2005) nas redes subterrneas, pelas quais deixamos poucos traos da nossa identidade.
Como pesquisadores, de certa maneira, pirateamos esses dados e, como princpio tico,
aqui formulando a nossa prpria tica pirata, preferimos nos referir ao objeto analisado
com nomes fictcios ou siglas. A responsabilidade de entrar nas redes de pirataria e coletar
os dados ali presentes para o seu estudo tambm requer princpios ticos, pois nossos
informantes so annimos e assim devem permanecer.
Todavia, no tratamos os personagens analisados como sujeitos individuais, mas como
usurios participantes de uma enunciao coletiva (SILVERMAN, 2011), dos quais
podemos apreender somente a informao deixada como um rastro, um registro nas redes
piratas. No se trata de construir um perfil etnogrfico do sujeito, mas de etnografar a
performance dos usurios especificamente no fenmeno/situao que nos interessa
observar (ATKINSON e COFFEY, 2011), de onde o pesquisador retira impresses e as
ordena a partir de um esquema interpretativo, que a prpria pesquisa.
Certamente, consideramos que os usurios so sujeitos sociais e histricos, sendo a sua
participao nas redes piratas um elemento que compe essa identidade, consequncia de
determinaes contextuais relativas a cada indivduo. Todavia, por ora, obedecemos
orientao metodolgica de considerar os usurios apenas no que deles podemos
apreender diretamente na nossa fonte de dados, que so as prprias redes, onde se
registram suas performances. Por isso, se consideramos que as redes so espaos de
enunciao, o sujeito-enunciador contextualizado, tomado pragmaticamente na situao
de sua ao enunciativa (AUSTIN, 1975; DERRIDA, 1973) e, para isso, nos basta
considerarmos o registro dessa performance e desenvolver a anlise do que for possvel
inferir a partir desses elementos.
Teoricamente, temos algumas perspectivas dos estudos de comunicao que devem ser
levadas em conta:
a) A discusso colocada pelos estudos da recepo (ECO, 2010; HALL, 1973;
2006) e suas consideraes crticas acerca da passividade do espectador, em
que o carter interpretativo (WHITE, 1998) dos atos de leitura sugere a
-
25
possibilidade de escolha, seleo e opinio sobre os contedos recebidos da
mdia de massa;
b) Os estudos da cibercultura (LEMOS, 2002; LEVY, 1993; SANTAELLA,
2005; 2010) que apontam para a viabilizao tcnica de emisso por parte do
receptor e a emergncia de uma cultura colaborativa (JENKINS, 2006;
NEGROPONTE, 1999);
c) A crtica cultural (ADORNO e HORKHEIMER, 1985 [1944]; 2002;
BENJAMIN, 1984) desenvolvida na apresentao da Indstria da Cultura
enquanto elemento atuante na formao da identidade moderna
(BOURDIEU, 1984; 1996; DELEUZE e GUATTARI, 1995; FOUCAULT,
1981; 1987);
d) A evidncia de uma cultura ps-massiva, que no rompe diretamente com
o capitalismo monopolista, mas radicaliza e torna mais complexa a sua lgica
(ANDERSON, 2009; 2006; ECO, 2008; LEMOS, 2007; LIPOVETSKY,
2010; MAFFESOLI, 1999; MASON, 2009; SILVA, 2012).
Temos o desafio de encontrar um caminho que no deixe de considerar essas
interpretaes, pelo fato de que o pirata ainda um receptor (considerado leitor
interpretante), por excelncia, dos contedos da indstria cinematogrfica, sofrendo um
impacto grande dos mecanismos tradicionais de distribuio (BOD e LAKATOS,
2012), mas atua, tambm, como emissor na esfera digital, que um espao rizomtico
(DELEUZE e GUATTARI, 1995) de multiplicidade interativa.
Trata-se de um tema que deve ser entendido como um fenmeno cultural inserido em um
contexto social e histrico. O compartilhamento miditico informal motivado pela
ineficincia dos mercados tradicionais centralizados (KOSNIK, 2012), pela insatisfao
das demandas, pela desigualdade de acesso aos bens de cultura devido a limitaes
socioeconmicas (CHIANG e ASSANE, 2008) e, consequentemente, so atividades
inerentemente sociais, originadas no pblico (BOD e LAKATOS, 2012).
No debate entre os modos de compreenso das estruturas polticas e econmicas nas
mdias e a nfase nas apropriaes culturais (economia poltica da comunicao vs.
estudos culturais), a questo principal no est na escolha entre um ou outro, mas no
-
26
questionamento de como os aspectos econmicos e polticos interferem na anlise do
consumo cultural (GROSSBERG, 1995). Assim, aproveitamos os aspectos de ambas as
abordagens para a formulao da nossa anlise, que so fundamentais para interpretar a
complexidade do objeto que se apresenta.
A economia poltica crtica tem no seu mais forte a explicao sobre
quem fala para quem e quais formas esses encontros simblicos
assumem nos espaos pblicos culturais majoritrios. Mas os estudos
culturais, no seu melhor, tm valor ao falar como o discurso e a
imaginao so organizados em padres de significados mutantes e
complexos e como esses significados so reproduzidos, negociados e
defendidos ao longo do fluxo cotidiano.5 (MURDOCK, 1995, p. 94)
Nossa pesquisa se insere em um cenrio de profundas transformaes, de multiplicadas
conexes, protocolos, linguagens, interfaces, aparelhos. As produes culturais no mais
desembocam em uma via central, mas se ramificam em diversos espectros de circulao:
os bytes passam por milhes de vias estruturadas e o movimento dos dados depende da
imprevisibilidade do usurio. O rudo6 no se aplicaria somente a uma falha do canal, mas
a um excesso, um paroxismo: fluxos assumem direes inesperadas, as origens e os
destinos so muito menos recuperveis, geram uma circulao entrpica, em escala
globalizada e mediada pelos sistemas de informao.
Consideramos que a dinmica das trocas apenas relativamente estvel e altera-se com o
tempo (STIEGLER, 1998), havendo uma interdependncia entre as transformaes da
cultura e da tecnologia. Por isso, quanto compreenso das redes, foi necessrio situar o
objeto de estudo dentro de uma ecologia complexa (SANTAELLA, 2010; LIPOVETSKY
e SERROY, 2009).
A anlise tomou uma perspectiva qualitativa7, compreendendo o fenmeno enquanto uma
materialidade textual a ser interpretada, composta por elementos lingusticos, semiticos
5 Critical political economy is at its strongest in explaining who gets to speak to whom and what forms
these symbolic encounters take in the major spaces of public culture. But cultural studies, at its best, has
much of value to say about how discourse and imagery are organized in complex and shifting patterns of
meaning and how these meanings are reproduced, negotiated, and struggled over in the flow and flux of
everyday life. [traduo nossa]
6 Na sistematizao da Teoria da Informao (SHANNON e WEAVER, 1949), o rudo est presente como
manifestao do canal, que distorce a mensagem.
7 Ainda assim, no deixamos de incluir uma srie de informaes quantitativas, mas que no representam
nosso foco principal.
-
27
e tambm tecnolgicos. Empreendemos uma interpretao das informaes encontradas
na plataforma, incluindo a sua arquitetura informacional, a interao entre os usurios e
a formao do arquivo.
Consideramos que grupos de torrent cinfilos so uma manifestao, entre outras, da
evoluo das tecnologias digitais e da sociedade em rede, conectada com a histria
cultural e os modelos anteriores de representao simblica, desde o texto escrito,
passando pela msica, pela fotografia e o cinema (MANOVICH, 2001). Ela tambm
estabelece relao com as outras mdias e modos de distribuio, sendo alimentada por
mltiplos canais.
A base de dados dos grupos de BitTorrent alimentada pelo trabalho humano voluntrio,
incluindo digitalizao ou cpia, seleo, traduo, categorizao, organizao e um
processo constante de formalizao do banco de dados e da interface do website. So
redes humanas, onde cada um, com seu computador, em sua casa ou grupo social, publica
comentrios, distribui convites, navega pela interface atravs do banco de dados e o
alimenta com filmes adquiridos em canais oficiais e no oficiais de distribuio, em
qualquer mdia disponvel.
O nosso objeto de anlise , por definio, simblico; uma agregao de significados
passvel de observao, cuja interpretao ir associ-la ao seu contexto histrico e
suporte tecnolgico. A interpretao feita a partir dos registros dos processos
sociointerativos que ocorrem nos sistemas e cuja temporalidade cumulativa as
interaes vo sendo registradas e acumuladas ao longo do tempo em pginas e fruns.
O papel da pesquisa identificar, no fenmeno, aspectos que tenham maior relevncia
para o entendimento da circulao do cinema nas redes digitais. Uma anlise qualitativa
do objeto requer no apenas considerar o que ele significa, ou seja, tentar desvelar ou
descobrir um significado essencial do fenmeno, mas considerar questes de linguagem,
representao e organizao social (SILVERMAN, 2011) de forma contextualizada.
No caso especfico desta pesquisa, adotamos a posio de observadores e tambm
usurios dos grupos. Os pesquisadores, alm de navegarem pelos tpicos das pginas,
lendo os debates, acessando o acervo e todas as informaes que esto abertas para o
usurio comum, tambm utilizam as ferramentas de download de torrents, pesquisa de
filmes, comentrios em tpicos e participam de encontros presenciais com a comunidade.
-
28
No utilizamos a tcnica da entrevista pois consideramos a quantidade de material
disponvel na rede suficiente para uma exaustiva leitura do fenmeno. A opo por no
utilizar essa tcnica justifica-se por estarmos interessados em tomar o usurio diretamente
no seu papel de enunciador nos tpicos especficos no contexto interativo do site; ou seja,
focamos a anlise em temas, questes e processos interativos que ocorreram atravs da
mediao das pginas, que o objeto de principal interesse.
Esta pesquisa de observao constitui uma atividade etnogrfica, no momento em que o
pesquisador produz um texto interpretativo, cuja origem a experincia perceptiva com
o objeto/fenmeno, o que se formaliza atravs de processos cognitivos, originados dessa
percepo em direo racionalizao sistemtica dos dados um processamento do
olhar. A etnografia, sendo uma metodologia, no apenas um instrumento de coleta de
dados, mas depende da interpretao do pesquisador, que sempre leva consigo traos de
influncias culturais (GOBO, 2011), sejam elas colonizadas ou ps-colonizadas.
Considera-se que todo tipo de observao participante, pois envolve a percepo e a
cognio de quem observa, sendo uma experincia de entrega sensorial (MERLEAU-
PONTY, 1999). Mesmo que o pesquisador no interfira diretamente no fenmeno
descrito, ele torna essa existncia vivel como registro histrico e cientfico a partir do
seu texto. A participao do pesquisador est no fato de que este tambm vive a
sistematicidade histrica e conceitual do fenmeno.
Navegamos no espao da circulao informal do audiovisual, nas redes de pirataria, nas
redes cinfilas, no mundo obscuro dos torrents privados, no somente analisando-os, mas
sendo tambm usurios-participantes. O pesquisador observador teve uma participao
discreta e direcionada por uma navegao motivada por interesses especficos da
pesquisa.
A etnografia da internet est condicionada especialmente por variveis tecnolgicas e
processos interativos/semiticos dinmicos. Os fenmenos digitais so manifestaes
discursivas, cujas textualidades dependem das condies de consumo e produo e
estabelecem uma densa rede referencial (contexto sociossimblico), alm de possurem
aspectos essencialmente formais (ATKINSON e COFFEY, 2011). Essa textualidade o
elemento atravs do qual a participao ocorre nas comunidades, por onde se manifesta
o engajamento do usurio no sentido de que o texto/discurso tambm ato, performance
(AUSTIN, 1975). O processo de construo de significado d-se com base em um
-
29
conjunto de atributos culturais inter-relacionados (CASTELLS, 1996); atores que
promovem associaes, movimentam mediaes e constroem sentidos.
A abordagem metodolgica para essa leitura enfatiza o aspecto do uso e da funo dos
enunciados e ferramentas da comunidade, observando como os documentos so recursos
utilizados por atores humanos dotados de propsitos, considerando o seu impacto em
esquemas de interao e organizao social (PRIOR, 2011).
Outra especificidade de uma metodologia de pesquisa da internet a anonimidade,
especialmente no caso do estudo da pirataria. Por isso, os enunciados so considerados
apenas quanto participao do usurio no contexto especfico, onde ele adota a
identidade virtual. Quanto comunidade analisada, a anonimidade no total, no sentido
de que h, ocasionalmente, encontros presenciais dos grupos, mas as identidades so
preservadas no mbito dessas subcomunidades (haja visto que a abrangncia da
comunidade virtual maior do que os subgrupos que se encontram presencialmente).
Tomamos o objeto de anlise enquanto um meio de comunicao e distribuio
geograficamente disperso, temporalmente malevel, annimo, multimodal (tecnologias,
recursos e interfaces), alm de uma construo social (MARKHAM, 2011).
Por fim, os meios de comunicao, ou as mediaes, no so um fenmeno a mais na
sociedade, um campo adicional nos estudos sociolgicos, mas afetam condies gerais
de possibilidade (GALLOWAY, THACKER e WARK, 2014) da vida humana e alteram
a prpria forma dos estudos sociais. Os recursos interpretativos precisam lidar com as
interaes tecnolgicas e simblicas dos media, que compem parte fundamental do
fenmeno social (seja nas suas formas estabilizadas ou as constantes revolues
provocadas por inovaes, ao longo da histria). Por isso, os media so objetos
conceituais (ibid.), que integram fenmenos de escala maior, mas que podem ser
particularmente lidos e objetivamente interpretados.
Levando em considerao essas observaes metodolgicas, estruturamos o estudo em
trs partes: i) estabelecimento de um olhar sistemtico sobre o cenrio da circulao
informal, considerando seus elementos estruturantes; ii) discusso sobre o tema da
pirataria, a partir de uma anlise crtica dos seus discursos e prticas; iii) observao e
anlise das relaes entre as redes BitTorrent e a circulao de cinema, a partir do recorte
especfico dos grupos de torrent cinfilos. O que resulta na seguinte estruturao da
pesquisa:
-
30
O captulo Ecologias das Janelas de Distribuio de Cinema na Internet oferece
estratgias para situar solues especficas de circulao informal dentro do
cenrio vasto e diversificado do fenmeno. Para isso, traz pesquisa bibliogrfica
e emprica sobre a circulao digital e descreve o espao a partir das variveis
informal/informal, grtis/pago, legal/ilegal e tecnologias.
O captulo Piratarias no Plural: Discursos e Prticas procura esclarecer as
diferenas entre uma srie de abordagens relacionadas pirataria, a partir de uma
reviso bibliogrfica e histrica da propriedade intelectual, da diversidade de
prticas piratas e dos posicionamentos institucionais, polticos e ideolgicos. O
objetivo desenvolver uma crtica viso estritamente criminalista da pirataria,
estabelecendo a conexo direta entre discursos e prticas, no sentido de que os
discursos tm uma funo prtica de inaugurar um estado de coisas (AUSTIN,
1975; FAIRCLOUGH, 1995). Nesse captulo, seguimos a classificao de Ramon
Lobato (2012) de faces da pirataria (como roubo, empresa, liberdade de
expresso, autoria, resistncia e acesso), fazendo um aprofundamento das
variveis propostas pelo autor e acrescentando a noo de pirataria como religio,
alm de especificaes geogrficas do tema.
O captulo Cena Torrent e Cinefilia apresenta a descrio e anlise de um GTC
especfico (MKO), localizando-o no cenrio dos GTPs, descrevendo esse modelo
de distribuio informal, da comunidade e a estruturao do site. So discutidas
as regras de curadoria, a forma de aparecimento do cinema brasileiro, a relao
entre o grupo, o fenmeno das cinefilias na internet (IORDANOVA e
CUNNINGHAM, 2012; ROSENBAUM, 2010), o modelo cineclubista e o acervo.
-
31
2. ECOLOGIA DAS JANELAS DE DISTRIBUIO DE
CINEMA NA INTERNET
O cinema, no sculo XXI, circula pelos mais variados ambientes e tecnologias, desde
salas de exibio (modo tradicional), festivais, locao e cpia de mdias fsicas, at a
transmisso televisiva e o ambiente digital, seja no mbito oficial (comercial) ou extra
oficial. A circulao do cinema muito mais ampla do que a sua distribuio, que uma
atividade profissional baseada na concesso de direitos sobre a explorao comercial de
um produto e corresponde a somente uma parte da complexa rede de circulao e
recepo nas diversas telas e mdias.
No ambiente digital, a circulao assume propores ainda maiores e participa da
ecologia das mdias (SANTAELLA, 2005), a qual podemos tambm nos referir como
ecologia das telas (LIPOVETSKY e SERROY, 2009) ou janelas de exibio.
A comunicao digital inclui vrios tipos de formatos culturais (MANOVICH, 2001),
signos hbridos, ambientes multidimensionais que so redes de interao social via
imagem tcnica. Esse tipo de interao sugere um modo de ser baseado em pactos
estticos e conexes (MAFFESOLI, 2009), em relaes menos institucionalizadas e de
contratos ticos fluidos e negociados.
A informalidade e a formalidade coexistem neste cenrio complexo, onde circulam
volumes gigantescos de dados, por inmeras vias. Pesquisas vm sendo feitas com a
inteno de mapear os territrios de circulao do cinema na internet, apontando para as
complexidades e incertezas do ambiente formal de circulao, em estgio inicial de
desenvolvimento enquanto indstria (CUNNINGHAM e SILVER, 2013), e para a
abrangncia e importncia das redes informais que satisfazem eficientemente uma parte
considervel da demanda (CARDOSO, CAETANO, et al., 2012; LOBATO, 2012;
IORDANOVA e CUNNINGHAM, 2012).
No consta, entre nossos objetivos, o mapeamento da circulao do cinema na internet,
mas sim a proposio de referncias que nos situem sistematicamente no contexto dessa
ecologia de circulao. Estabelecemos elementos de orientao que localizam as variadas
solues existentes e revelam aspectos estruturantes da circulao informal.
Apresentamos como forma de sistematizar a anlise da ecologia da circulao informal,
o seguinte diagrama (Grfico 1), no qual cada tipo de soluo para a
-
32
circulao/distribuio de vdeo na internet pode ser representado como um arranjo
particular dessas variveis, quais sejam: a) tecnologia, b) dualidade formal e informal, c)
dualidade pago e grtis, d) dualismo colocado pelos discursos normativos (legal vs.
ilegal).
O diagrama baseou-se no quadro apresentado por Valentina Re, durante workshop World
Cinema On Demand: Film Distribution and Education in the Streaming Media Era
(Belfast, Irlanda do Norte, 10.11.13), no qual a autora associou as variveis formal e
informal de Lobato (2012) s variveis grtis e pago. Elaboramos um desenvolvimento
desse quadro, ao acrescentarmos a varivel tecnolgica, que o elemento aglutinador, e
a varivel da legalidade.
Sugerimos que grande parte das solues de circulao on-line de cinema8 possa ser
situada entre as variveis esquematizadas e tambm incorporar dualidades9, agregando,
no mesmo servio, o grtis e o pago, o legal e o ilegal, o formal e o informal.
8 Sendo possvel estender para outros produtos culturais.
9 Trata-se de dualidades no excludentes, pois as plataformas podem adotar estratgias hbridas.
Tecnologia
Formal
Grtis
Ilegal
Informal
Pago
Legal
Grfico 1: Diagrama das variveis da circulao digital (elaborao do autor)
-
33
Podemos utilizar o diagrama acima para situar plataformas totalmente formais e pagas,
como o Netflix10.
Grfico 2: Diagrama das variveis do Netflix (elaborao do autor)
Ou, para situar empreendimentos hbridos, como o prprio YouTube11, do Google:
Grfico 3: Diagrama das variveis do YouTube (elaborao do autor)
10 Plataforma de streaming de vdeos (televiso e cinema) desenvolvida em 2010, que, em poucos anos,
expandiu mundialmente o seu mercado e alcanou posio de liderana na entrega de audiovisual digital,
satisfazendo uma demanda considervel nos mltiplos suportes via internet, vendendo planos mensais para
os seus mais de 50 milhes de assinantes em 2014. Fonte: G1, Tecnologia e games. Netflix alcana 50
milhes de assinantes em todo o mundo. 21.07.2014 Disponvel em:
Consultado em 16.08.2014.
11 http://www.youtube.com (consultado em 04.05.2015)
Streaming
Grtis
Ilegal
Legal Formal
Informal
Streaming
Pago
LegalFormal
-
34
Ainda, aplicamos o diagrama ao Crackle 12 , que um servio de streaming
multiplataforma subsidirio da Sony Pictures Entertainment,
Grfico 4: Diagrama das variveis do Crackle (elaborao do autor)
Ou ao Popcorn Time13, um aplicativo criado colaborativamente em 2014, baseado em
streaming peer-to-peer,
Grfico 5: Diagrama das variveis do Popcorn Time (elaborao do autor)
Um outro exemplo, a distribuio que feita oficialmente no site da empresa BitTorrent,
o Bundles14,
12 http://www.crackle.com.br (consultado em 04.05.2015) 13 http://www.popcorntime.io (consultado em 04.05.2015) 14 https://bundles.bittorrent.com/ (consultado em 04.05.2015)
Streaming
Grtis
LegalFormal
P2P Streamming
Grtis
IlegalInformal
-
35
A seguir, nos deteremos a cada uma dessas variveis para que, ao final, seja possvel obter
uma perspectiva um pouco mais clara sobre a ecologia da distribuio de vdeo na
internet. Foi necessrio filtrar os elementos da varivel tecnolgica, tendo concentrado
ateno ao que nos pareceu mais relevante para o contexto desta pesquisa, ou seja,
enfatizamos tecnologias de circulao do audiovisual pela internet, especialmente as que
so ferramentas no mbito da informalidade (streaming, cyberlockers, sites de link, peer-
to-peer e BitTorrent).
A varivel da formalidade aqui trabalhada a partir da apresentao da dicotomia formal
e informal e sua posterior desconstruo. Demonstramos que, para cada lado dessa
dualidade, existe um mbito extenso de pesquisa e prtica, o que nos levou a concentrar
esforos em apenas apresentar os aspectos mais relevantes para a problemtica das redes
de torrent cinfilas.
A varivel econmica trabalhada a partir da conceituao de mercado em sua relao
com a cultura e a propriedade intelectual. Apresentamos categorias conceituais que so
utilizadas para compreender o impacto da pirataria na economia e na cultura, comentamos
sobre as variveis relacionadas escolha entre o consumo grtis e o pago. Falamos sobre
o impacto das novas tecnologias nos modelos econmicos e do papel promocional da
pirataria. Ainda, fazemos uma breve apresentao do papel da cultura do grtis e o
surgimento de novos modelos econmicos na sociedade digital.
A varivel da legalidade ser trabalhada no terceiro captulo, onde explicamos as
diferentes abordagens possveis da questo da legalidade e do papel discursivo, e portanto
poltico, da pirataria.
BitTorrent
Grtis
Pago
Legal
Informal
Formal
Grfico 6: Diagrama das variveis dos Bundles BitTorrent (elaborao do autor)
-
36
2.1. FUNDAMENTOS DA TECNOLOGIA DIGITAL E SOLUES PARA
CIRCULAO DO AUDIOVISUAL NA INTERNET
Tecnicamente, a circulao de mdia em ambiente digital requer trs camadas estruturais:
fsica, lgica e de contedo (LEMOS, 2005). Cada camada controlada por determinados
setores do mercado: a primeira, por grupos privados, correspondendo aos servidores,
satlites, fibras ticas, torres de transmisso, etc.; a segunda, por empresas de software,
linguagens e conhecimentos correspondentes tecnologia da informao; e a terceira
regulada pela proteo propriedade intelectual e pela indstria da cultura. Os modos e
distribuio digital relacionam-se com as trs camadas, abrangendo, assim, leis, normas,
mercados e estruturas tcnicas.
A relao entre essas camadas nem sempre est em equilbrio, muitas vezes ela depende
de setores diferentes da sociedade. O avano da pirataria um resultado visvel desse
desequilbrio, quando a possibilidade de acesso ao contedo de mdia foi, inicialmente, o
mote central do desenvolvimento e consumo das tecnologias digitais de armazenamento,
exibio e transferncia de dados. As pessoas foram estimuladas a consumir tecnologia
justamente porque ela permitiria o acesso ao contedo informacional. Porm esse
desenvolvimento tcnico foi muito mais rpido do que a adaptao da indstria do
entretenimento s novas plataformas (CHRISTIN, 2010), o que resultou em um espao
rapidamente ocupado pelos agentes informais.
A transformao do contexto tecnolgico, nesse caso, promoveu desestabilizao de
sistemas tcnicos e econmicos antecessores, induzindo substituies alternativas para as
atividades dominantes (STIEGLER, 1998), ocorrendo a reorganizao das relaes
funcionais entre os componentes fsicos, lgicos e simblicos (SIMONDON, 1980) que
so utilizados na replicao do contedo.
Sobre a estrutura comunicativa da internet, os modos de circulao do cinema apresentam
diferentes lgicas e utilizam diversos tipos de linguagens e interfaces. Por isso, a sua
variedade fundamentalmente uma variedade de programao: possvel transferir
contedo de cinema a partir de diferentes softwares e interfaces interativas.
Software um termo geral aplicado aos programas de computador, refere-se a um
conjunto de cdigos que instrui a mquina e dialoga com outros programas para executar
uma tarefa. Entre as tarefas que podem ser executadas, temos a computao matemtica,
-
37
a representao grfica, o processamento de texto, a organizao de dados, entre outras
(CROWCROFT, 2010). Softwares, em geral, so divididos entre sistemas e aplicaes;
estas executam as tarefas solicitadas por uma pessoa, enquanto os sistemas os do suporte,
implementando uma srie de funes administrativas necessrias comunicao com o
hardware (a mquina) e a manuteno de recursos e informaes, como a base de dados.
Basicamente, o software formado pelo cdigo-fonte, linguagem utilizada pelos
programadores; pela forma binria que entendida pelo computador; e pela interface
grfica, um conjunto de modelos, interaes, palavras, imagens e movimentos que
permitem o dilogo entre o usurio e a mquina.
Os softwares dialogam entre si, mediados pela rede mundial de computadores, e permitem
a circulao da informao utilizando protocolos de comunicao (CROWCROFT,
2010). Como resultado, temos um sistema de comunicao eletrnica global, formado por
pessoas e mquinas em interatividade; virtualidade disponvel que independe das
configuraes especficas de um nico usurio (SANTAELLA, 2005). No espao
informacional, dados so configurados e acessados por um nmero cada vez maior de
pessoas, formam circuitos informacionais, navegveis em um ambiente hipermiditico
composto por signos, sinais, imagens, grficos, movimentos e sons, que esto organizados
por uma hiperssintaxe (ibid., p. 70) complexa e multicultural.
A interatividade envolve ao, cooperao e correlao, pois os dados produzem efeitos
uns sobre os outros, havendo mtua influncia entre emissores e receptores e tambm
com relao ao sistema. Dilogo, hipertexto, sistema, automatismo, agenciamento,
escolha e topografia so termos essenciais para se pensar o ambiente virtual (ibid.). As
mensagens no esto situadas nos pontos de emisso ou recepo, mas esto presentes,
disponibilizadas pelos sistemas que permitem trnsitos mltiplos da informao. Assim,
o mundo digital intrinsicamente malevel e com alto grau de conexo (NEGROPONTE,
1999).
Ainda que no incio, o ciberespao tenha sido imaginado como paralelo e independente
do mundo real, libertado de limitaes inerentes s relaes formalizadas e geogrficas,
com o passar dos anos, ele foi percebido em maior conexo com a realidade fsica
(LEMOS, 2002). O ambiente virtual tem caractersticas intrnsecas, pois est
fundamentado em cdigos de programao e interaes bastante particulares, mas ele
-
38
tambm viabiliza uma srie de funes e interaes que fazem parte do corpo social como
um todo. Mesmo que se admita que esses espaos esto integrados, no se pode, ainda e
talvez nunca ser possvel, abrir mo da ideia de um ambiente virtual abstrato
(SANTAELLA, 2010), pois se trata de uma esfera informacional de grandes propores
que pode ser acessada a partir de qualquer localizao geogrfica, com o uso de
dispositivos mveis. O ciberespao alm de abstrato, ganha, a partir desses dispositivos,
um carter movente, que se desloca e participa da interao fsica, mas que no se
extingue ou dissolve.
O ciberespao um (...) espao de interao cujo acesso se d por meio de interfaces
dos mais diversos tipos que permitem navegar pela informao miditica (...) meta-
hiperdocumento pervasivo que cresce de modo interativo e permeia todas as esferas da
vida humana (ibid., p. 71). Ele resultado de uma convergncia infraestrutural (redes),
material (multifuncionalidade dos artefatos) e funcional (rotinas comunicacionais), que
disponibiliza qualquer servio a qualquer momento, em qualquer lugar, em qualquer rede,
aparelho ou dispositivo (ibid.). Essa convergncia tambm funde as quatro formas
principais da comunicao humana: documento escrito, audiovisual, telecomunicaes e
informtica, cujos suporte e transporte foram digitalizados.
No ambiente virtual, o espao e o tempo so redefinidos; o tempo no somente
sequencial e as interaes podem ser assncronas; os processos comunicativos passam a
acontecer atravs de protocolos, estes formam diferentes redes simultneas que podem
cruzar entre si ou no; assim, cada rede produz uma geometria prpria (CASTELLS,
2009).
Os ns so componentes fundamentais da rede, eles so pontos agregadores de
informao e podem ser apagados e modificados, formando estruturas comunicantes com
variados padres de contato, por onde passam os fluxos processados pelas ferramentas
programadas. A programao define, a partir de instrues, como a rede funcionar,
utilizando cdigos, parmetros, procedimentos e metas (ibid.). As redes so flexveis,
reconfiguram seus componentes, podendo expandir-se ou contrair-se e, em geral, no
possuem apenas um centro operante.
O ciberespao um modelo informatizado estruturado em rede, que constitui um
ambiente comunicativo no editado por um centro, mas disseminado transversalmente e
-
39
verticalmente de forma catica, multidirecional, entrpica, coletiva e, ao mesmo tempo,
personalizada (LEMOS, 2002, p. 85). Trata-se da convergncia entre o social e o
tecnolgico, sem ser um determinismo tecnolgico, mas um processo simbitico.
Os sistemas so ambientes estruturados com determinado fim social; o escopo se
manifesta em cada site ou servio de acordo com a sua poltica, com os meios que fornece,
com a adeso do pblico e em consequncia de uma srie de determinaes. As solues
tecnolgicas para a circulao de contedo de cinema, por exemplo, procuram satisfazer
expectativas coletivas, demandas de consumo que foram geradas a partir das novas
ferramentas de mdia.
As ferramentas digitais auxiliam as pessoas a coordenarem prticas globalmente e
localmente, desenvolvendo trocas e interaes (RHEINGOLD, 2002); nota-se uma
tendncia de se formar quantidades cada vez maiores de pequenos grupos que desafiam
as formas institucionalizadas de distribuir contedo, a partir de um trabalho colaborativo.
Ocorrem, assim, reformulaes nos sistemas de trabalho, sociabilidade, cultura, consumo
e distribuio (MITCHELL, 2000), o que no se deu ao acaso, mas foi diretamente
pensado e impulsionou o desenvolvimento da prpria computao.
Tanto a computao pessoal, quanto a comunicao digital ponto a ponto foram produtos
de imaginrios tecnolgicos que sonharam com a mquina universal pensada por Alan
Turing15, nos anos 1930. O espao de interao entre mquina e linguagem abriu-se como
um campo de conhecimento a ser explorado, sendo, assim, a cultura colaborativa um
agente veterano na construo do arsenal de comunicao digital que hoje temos. A
prpria evoluo do computador foi resultado de um processo integrado de trabalho.
Os computadores foram, inicialmente, vendidos como mquinas para o conhecimento
(SCHFER, 2011) e o seu design foi altamente influenciado pela promessa de
participao, despertando o imaginrio de uma srie de entusiastas tecnolgicos ao longo
das dcadas. Ainda na dcada de 1960, o criador do mouse, Douglas Engelbart, j pensava
na interao homem-mquina como uma oportunidade de aumentar o intelecto e, na
dcada seguinte, o filsofo Ted Nelson com o Projeto Xanadu (uma rede de computadores
com interface simples), j visionariamente pensava no que teria sido desenvolvido mais
15 Modelo abstrato de um proto-computador que resolveria problemas lgicos, publicado em 1936.
Basicamente, seria uma mquina que resolveria mecanicamente problemas a partir de uma estrutura de
registros em fitas.
-
40
tarde por Tim Berners-Lee, a world wide web. Para Ted Nelson, os computadores
passariam a ser, ao longo do tempo, um aspecto de tudo o que concerne vida humana,
defendendo ativamente que as pessoas deveriam estar includas e integradas no
desenvolvimento da computao, que, aos poucos, comea a ser vista como uma
tecnologia de comunicao (ibid.). A realidade tecnolgica, sendo de natureza tanto
simblica quanto material, apresentou o desenvolvimento da computao pessoal envolto
em um imaginrio: o da comunicao digital libertadora, incluindo dimenses culturais e
polticas.
O ambiente da circulao de vdeo digital, alm de j ocorrer sobre uma malha
tecnolgica construda pelos mais diversos agentes, principalmente nos modos informais
de circulao, depende das apropriaes tecnolgicas da cultura participativa. Apropriar,
no sentido da palavra, fazer prprio, fazer seu, fazer do seu jeito. pegar algo que est
pronto e utilizar para uma funo especfica. H diversos nveis de apropriao das
tecnologias, estes podem ser previstos pelo seu design ou podem ser imprevisveis,
inovadores.
A maleabilidade do software possibilita com que as tecnologias digitais sejam objetos
facilmente apropriveis e tambm que um grande debate em torno da propriedade
intelectual se estabelea; ao passo que o campo vai se tornando mais lucrativo, barreiras
protetivas vo sendo colocadas e atores passam a desafiar essas mesmas barreiras,
insistindo na apropriao ilimitada.
A apropriao, portanto, fala muito da parte social que movimenta o desenvolvimento das
tecnologias digitais. No caso da circulao informal de cinema, notamos exatamente um
processo de apropriao de uma srie de recursos tecnolgicos e contedo que so
arranjados via colaborao. A figura abaixo representa a dinmica de apropriao no
contexto da circulao informal de cinema que observamos em nossa pesquisa:
-
41
Figura 1: Diagrama da apropriao Tecnolgica na Circulao Informal de Filmes (elaborao do autor)
O diagrama da Figura 1 mostra que, em um contexto de linguagens e protocolos, ocorrem
dois tipos de apropriao: a primeira (A) aquela que produz a estrutura para circulao
do contedo e a segunda (B) aquela que disponibiliza e consome o contedo. A
apropriao A , muitas vezes, conduzida por um grupo pequeno e altamente engajado,
este definir as caractersticas da plataforma de distribuio e, consequentemente, do tipo
de contedo. Certamente, a apropriao do consumidor tambm influenciar nos
contedos, todavia, percebe-se, principalmente no universo dos grupos privados de
BitTorrent, uma poltica relativamente centralizada que estabelece territrios para os
contedos.
A apropriao, portanto, sempre vai gerar arranjos particulares, de modo que toda funo
-
42
tecnolgica tem tambm um significado contextual (SCHFER, 2011). A tecnologia,
sendo um nvel abstrato de conhecimento, composta por elementos, nveis tambm
abstratos, de possveis relaes e automatismos entre foras, materiais, componentes e
mecanismos lgicos, que unidos funcionalmente, em determinado momento e cadeia
relacional, compem um aparelho, um objeto, uma individuao tcnica (SIMONDON,
1980). Assim, o conhecimento tcnico e a atividade do operante garantem relativa
autonomia no domnio das ferramentas; ao mesmo tempo em que os automatismos
encadeados em certos processos e interfaces limitam a sua agncia.
Simondon (ibid.) utiliza, para referir-se s relaes do homem com as individuaes
tcnicas (especialmente as automaes) a dualidade mestre e escravo; o homem mestre
quando tem a liberdade, o domnio de organizar os elementos e produzir processos cada
vez mais aperfeioados (o que seria o exemplo do usurio BitTorrent mais ativo); mas ele
tambm pode ser escravo, quando no tem conhecimento e responsabilidade direta sobre
certas etapas da produo realizada nas individuaes tcnicas, tornando-se um
alimentador das mquinas.
As linguagens artificiais, como a ciberntica, tambm so formas de expresso; mas uma
expresso que provm da individuao tcnica, onde os maquinismos agem como um
outro ser, diferente do humano, mas com caractersticas humanas. Mquinas e
automaes so indivduos que carregam heranas culturais, so resultados de
conhecimentos, memria materializada. Nisso consiste a humanidade do objeto: a cultura
no est afastada da tcnica, os objetos contm realidade humana.
Mquinas e mecanismos, assim como ferramentas, so "entidades tcnicas" (ibid.), que
compreendem um corpo de conhecimento e valores e promovem a mediao homem-
natureza. Para a sua anlise, precisamos diferenciar o sentido de uma entidade da sua
funo utilitria, pois alm de uma objetivao funcional, a entidade possui um
significado social e econmico ainda maior do que o tecnolgico.
A prtica pirata, via apropriao tecnolgica, portanto, envolve o desenvolvimento de
habilidades prticas e de cooperao a partir do uso das ferramentas tcnicas e
plataformas de mdia; tticas cotidianas, modos particulares de usos, narraes nicas de
espao, de objetos e corpos (DE CERTEAU, 1998), recontextualizao e transformao
das entidades dadas em formas expressivas de identificao individual e comunal. De
-
43
acordo com Mylonas (2012), as prticas de compartilhamento informal so a superao
de obstculos dados pela tecnologia ou pela poltica, a partir de um uso particular de
soluo tecnolgica, o que potencializa a participao dos indivduos no espao pblico.
Apenas hoje, a internet comea a ser pensada como mecanismo eficiente de distribuio
de contedo audiovisual, aps a circulao informal ter mostrado na prtica as
potencialidades da distribuio digital. Por isso, o imaginrio da participao, pode-se
dizer, moldou as bases da cultura digital a qual o cinema passa a se integrar.
Com a Web 2.0, a questo da apropriao ficou muito mais explcita e a internet passou
a ser uma feira livre de solues, servios, ferramentas: um mercado de utilidades, de
objetos apropriveis. Contudo, ficaram muito mais delimitadas as formas e nveis de
apropriao: profissionais e hackers apropriam-se de ferramentas especializadas para
criar ferramentas para usurios finais, prosumers (TOFFLER, 1980) institucionalizam-se
como uma nova classe cultural e o grande volume de pessoas interage com as plataformas
recorrendo s suas funcionalidades mais simples (chat, notcias, blogs, busca, feeds,
fruns, etc.) e inserindo informao no sistema.
Um outro aspecto importante da varivel tecnolgica relaciona-se s limitaes tcnicas
para a transmisso de vdeo na internet que, pode-se dizer, esto em processo de
superao, dado o recente melhoramento no acesso banda larga (ainda longe de ser o
ideal, principalmente em regies menos ricas ou mais isoladas) e o tambm recente
desenvolvimento de telas maiores e melhores, e das tecnologias de compresso de vdeo,
players e formatos. Tais limitaes interferiram diretamente na velocidade da
transmisso, na qualidade da imagem e na disponibilidade ou facilidade de acesso ao
contedo, elementos que dificultaram a consolidao de uma indstria eficiente para a
distribuio digital de cinema, fato que apenas muito recentemente vem se revertendo.
Outro fator sobre a tecnologia a questo da cpia. Se a propriedade intelectual determina
regras sobre a cpia de contedo, o seu controle torna-se difcil quando a comunicao
digital pressupe, essencialmente a cpia. Esta no uma varivel, mas uma constante
tecnolgica, que situa o consumo cultural no centro do desenvolvimento da interao
digital, pois um computador, pode-se dizer, uma mquina de copiar (SCHFER, 2011,
p. 59), a cpia um recurso genuno e inevitvel da tecnologia computacional, ela o
princpio bsico para a transmisso de dados e aponta para aspectos centrais da cultura
-
44
digital, como o compartilhamento peer-to-peer, o compartilhamento de arquivos, o
streaming de mdia, o acesso ilimitado informao via download e a criao e
distribuio de software16 (ibid.).
Seguimos agora com apreciaes especficas sobre as tecnologias mais utilizadas para a
circulao de cinema na internet.
2.1.1. Streaming
O termo streaming tecnicamente define um modo de transmisso de mdia (captado ao
vivo ou gravado), que pressupe a simultaneidade entre a entrega e a recepo (exibio)
e pode ocorrer tanto na forma analgica (rdio, televiso) quanto digital, neste caso h
uma quantidade diversa de mtodos. Apesar de ser um termo aplicado a qualquer tipo de
transmisso de contedo de mdia, streaming passou a ser utilizado mais comumente para
referir-se entrega de vdeo sob demanda em redes IP (Internet Protocol17).
Dentre as dinmicas possveis, pode-se classificar o streaming como streaming real, no
qual o contedo recebido, exibido, mas no armazenado no aparelho receptor; e como
streaming sob demanda/progressivo, que consiste no download temporrio dos dados no
aparelho receptor (GRANT e MEADOWS, 2009).
O streaming de vdeo em redes digitais apenas pode ser viabilizado ao final dos anos
1990, quando a era multimdia comeou a se consolidar via computao pessoal, esta
ficou mais eficiente e superou gradativamente as limitaes tcnicas para processamento
e transmisso da informao audiovisual. Os protocolos de comunicao tambm ficaram
padronizados e os softwares e solues de transmisso e recepo se desenvolveram com
maior velocidade.
Tanto o media player da Microsoft (Windows Media Player 6.4), quanto da Apple
(QuickTime 4) e, tambm o RealAudio Player, j suportavam a transmisso on-line em
formatos especficos na segunda metade dos 199018. Alguns anos mais tarde, a Adobe
16 [it] aims at core aspects of digital culture, such as peer-to-peer file sharing, streaming media, unlimited
access to information through downloading and the creation and distribution of software. [traduo nossa]
top related