chagas crÔnicas das almas
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Chagas Das Almas
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Themístocles Silva Neto mqwertyuiopas
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Chagas das Almas
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Dedicado a minha irmã Kitty,
uma pessoa por quem sinto
um orgullho especial nesta vida.
QNC, Silva, Themístocles ISBN Reg. 348.398
Livro 462 Fl. 58 - 08/08/2014.
Chagas das Almas
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Prefácio
Num momento em que a obsessão pelo
corpo perfeito, pela carreira de sucesso e pelo
consumo do último lançamento – seja do
smartphone ou do sapato – preenchem as redes
sociais e nossos dias vazios, Themístocles Silva
Neto rompe barreiras, revelando as feridas do
tempo em que vivemos. Nessas crônicas, as
chagas de nossas almas, tantas vezes
disfarçadas ou ocultas, são denunciadas pelo
escritor que, ora brincando com palavras, ora
fazendo humor com sua própria dor, as expõe
sem anestesia ou esperança de cura.
Nascido em Petrópolis, cidade imperial
que se esforça por manter o brilho do tempo em
que era cidade veraneio da antiga capital
federal, o autor passeia por seus bairros antigos,
ladeiras e escadas sem espaço para o colorido
fantasioso. As Chagas Crônicas das Almas nos
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mostram que estamos todos em um mesmo
barco, rumo a reviver mágoas não curadas,
enfrentar a solidão e questionar nossa
existência, muitas vezes distanciada do ponto
de partida, quando tínhamos certezas que se
perderam nos imprevistos da jornada.
Deixando qualquer hipocrisia de lado,
partimos nesse voo de crônicas rápidas que nos
ajudam a lembrar o que éramos e abrir os olhos
para o que nos tornamos, enquanto percebemos
na paisagem e no passageiro ao lado que, no
que diz respeito a sonhos, frustrações e
lembranças, o espaço-tempo faz pouca, ou
talvez, nenhuma diferença.
Apertem os cintos, hora de decolar.
Adelia Di Buriasco.
(Professora e amiga)
Recomenda-se ler seguindo a sequencia.
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Sexo, Drogas e Rivotril
Andei me cuidando, parei até com o
Rivotril! Depois de fracassar com a dieta da
lua, voltei à dieta da rua. Italiano de queijo
e presunto é massa! Junto, Coca-Cola, além
de churros, tipo assim: sobremesa. Tirei
férias mês passado e fui com a família para
Holambra-SP. Conheci uma moça, Inês,
num acidente. Tropecei numa tulipa, foi
inesperadamente. Torci o tornozelo. Ao
menos comia croissant de salame fino e
sobre à mesa nada de chulos, doces
vulgares do Cebolinha. Dia seguinte tive
alta do hospital local e voltei no primeiro
voo, que o anterior estava lotado. Ponte
aérea São Paulo-Rio de Janeiro. Que medo!
Prefiro buzum Castelo-Cascadura sem
barrinha de cereais! De volta também à
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Niterói, engessado, retornava das férias ao
Clube de Remo, de volta ao rink. Me
pediram uma programação de eventos para
o inverno, desanimado, comecei propondo
um swing... Muito sexo! Perca o emprego,
mas não perca uma parca rima! Claro que
isso é mentira. Voltei à rotina de casa-
pastelaria-trabalho-casa. O Falabela me
ajudou a abandonar a TV Globo, a começar
por sua Falafeia de abertura num programa
churros sobre sexo e afros. Só pode gente
tipo ele e Mala fala, se você disser isso, vai
para a cadeia, vai entender! Desconfio que
estou com LER. Causa? O controle remoto
no eterno nada de bom para ver. Ler! Tentei
sim retomar aos livros, desisti. Faz mais de
um ano que não pratico, atrapalha para
escrever. Me sinto cover sei lá de que ou
quem. O que sei é que sinto isso, porém.
Chagas das Almas
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“Ai porém!”, resolvi ouvir mais música e
neste relato chato estou com o magnífico
Paulinho da Viola nos ouvidos. Isso é a
coisa que faz jus aos dias, aliás, sempre
fora, parece. É tarde e já se foi o sábado.
Vou deitar e, ao acordar, devoraremos dois
frangos assados com a pele bem tostada,
hum! É a tradição brasileira semanal da
celebração do dia de ação de desgraças:
Domingão do Faustão e depois do Mengão,
que já tem a quarta especial após a novela.
Tudo com bastante colesterol da
sambiquira, - adoro! – “esta parte é minha!”
Sambiquira é o nome popular da cloaca ou
se preferirem, o anus da galinha. Perdão a
grosseria. Melhor ir de Wikipédia:
“Sambiquira é a porção terminal do corpo
das aves no formato de um apêndice
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triangular, ela abriga uma...” Basta de
hipocrisia, né? Isso tudo é cú!
Depois veio uma das canções chatas do
Carlos Lira. Mas tudo bem que samba eu
queria, menos indigesto que sambiquira.
Arrotei a noz moscada por algumas horas.
Entrava a segunda-feira e fui dormir. Puto,
pois o meu Botafogo caiu para o Z4. No dia
seguinte tinha labuta. De casa para o
trabalho, recheando-o com massas assadas e
fritas com queijo, carne e doce de leite.
Tudo misturado, sabemos se vomitado. O
colega Roney voltou de férias logo depois e
pediu para assinar no meu gesso. Sobrava
espaço, prova de que há alguma evolução
na sociedade, ponta de esperança. É justo,
só estava faltando ele, pensei. Deixei correr
a Last.fm no computador e uma enorme
coincidência! Terminando esta frase ouvi:
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“Naquela mesa está faltando ele e a saudade
dele tá doendo em mim”, isso na voz
marcante de Léo Batista, digo, Nelson
Rodrigues, perdão, Gonçalves.
Acordei muito sensível no dia seguinte,
sabe? Meu estomago também, repleto de
ácidos, gazes e sons de bolhas
desagradáveis como aqueles
transcendentais que fazem fundo em
sessões de Shiatsu. No almoço deste mais
um dia, resolvi pegar leve com um
pirezinho e salada de alfaces. Me senti indo
para a lua novamente e quando terminei
maldisse Armstrong e Collins. Esqueci o
outro. Retornei à minha mesa de trabalho e
botei para tocar “What a Wonderful
World” e “Take a Look at Me Now” como
que para me redimir deste atentado contra o
orgulho de humilde nação norte-americana.
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Escureceu. Marquei o ponto e fui embora.
A caminho doutro, uma barraca de churros,
assombração! Hesitei, mas acabei comendo.
Cheguei em casa e resolvi eu mesmo
arrancar o gesso. Sobrou até para o forro!
Dia seguinte chamei o pedreiro para
remendar tudo. Ele que, aliás, faria melhor
trabalho no meu pé. Descobri que
enfaixaram e lambuzaram o lado errado e
que tudo não passou de uma tola luxação.
Liguei a TV. Na Band passava “O último
tango em Paris”. Enjoado com a gordura
poliinsaturada daquela iguaria fálica, quase
regurgitei na cena da manteiga. Depois de
um sal de fruta Eno, até lacrimejei. Fui
dormir e sonhei que comia uma galinha
com muita gula. Não era coincidência, pois
acordei com uma baita dor nas costas e não
fui trabalhar. Minha amada esposa me
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levou o prato do almoço na cama, dizendo:
”Querido, preparei um ensopadinho de
sambiquira com batatas delicioso para
você! ”Pela primeira vez comecei a
repensar sobre meus conceitos céticos
acerca da teoria da conspiração. Que tudo
começou com FHC introduzindo o Frango à
dieta da classe média brasileira de então.
Me vi metido nas drogas, muitas drogas!
Na terça tudo normal. De volta ao
Clube, estava feliz, sentimento de
superação, meio isso. Olhei várias pessoas
velejando no frescor da Bahia, de remos em
punho, lindo. Tive uma sensação de
ginecologista... Trabalhando onde os outros
se divertem. Liguei o computador, a rádio
Atena 1 tocava “ouro de tolo” do Raul e a
vida seguiu em frente entre trilhas sonoras,
enredos e auroras baixo-astrais. Coca,
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massa, churros, TV e vez por outra, uma
sensaçãozinha de medo. De morrer? Ora,
não! De viver! Me deu vontade de mandar
tudo para puta que pariu, mas graças a deus,
voltei com o Rivotril!
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Eclipse do amor
Infante, a impressão que tinha era de
que alguém ou alguma coisa além da minha
compreensão desligava um botão lá em
cima e apagava o sol no cair da tarde. Como
as chaves que me lembro de meu pai mexer
na caixa de luz quando os fusíveis ainda
eram de louça. Depois, mais atento, metido
a filósofo grego, com atentas observações e
interesse na matéria científica, desconfiava
que a lua fosse o sol à meia luz, que ambos
fossem o mesmo astro em estados
diferentes, mas nada egoísta, só
generosidade e exação, achava. De dia o sol
fazia seu papel de trabalhador. No inverno
era ameno para agasalhar os pobres
descobertos de boas lãs e calorias de nozes
a avelãs. No verão, severo aos operários,
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como o Seu Gumercindo que trabalhava lá
em casa e suava em bicas, um amigão para
sempre em trabalhos esforçados. Mas que
isso era para o bem comum, como os
diretores da escola se faziam enérgicos com
a gente para educar e formar caráter, mais
postulados... Este ainda discorria sobre o
fato de que todas as noites, findo o
expediente, o Astro Mor se transformava
em Lua para usufruir do descanso e levar o
lazer e o amor aos homens. Não
pressupunha o gênero imposto pelos artigos
definidos, posto que mal terminasse o
abecedário. O conto de fadas celestiais
fazia-me crer que ele se travestia de Pierrot,
que me fascinavam nas matines de carnaval
no Petrô, referindo-me ao clube da cidade
neste depoimento galáctico retrô. Só que
agora artista a levar a beleza e a leveza das
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existências românticas e sensíveis de alma
como sentia o protótipo do meu ser, apesar
de angústias esparsas de fragilidade no final
das tardes, sujeitos a pancada de rua em
meio aos moleques da irmandade até o
alvorecer. Lua. Via suas manchas em forma
de lágrimas no rosto redondo e reluzente na
escuridão da abóboda circense. Ele. Fosse
minguante ou nascente. Estas fases
discretas pareciam a de uma meretriz que
mostra apenas o decote ou as coxas, criando
as melhores expectativas em seus ensaios
lunáticos sensuais. Se cheias, luas nuas...
Quanto às estrelas, colombinas, anãs, Anas
e Marias, anos-luz, anos-lua de mim. Para
mais de três. Convidadas para o magnífico
espetáculo quando as nuvens negras, raios e
trovões não tomavam a cena como vilões
vindos de supersônicos aviões. Vruuum!
Chagas das Almas
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Mas observando a chuva, seu poder de
acalanto, com o tempo desconfiava que
seus anunciadores não pudessem ser do
mal, que eram como os cães da casa ao
lado, lindos pastores que ladravam muito,
mas não mordiam em seus mantos alemães
malhados.
Esta alegoria combinava com o abajur
que minha mãe deixava aceso no quarto
para melhor segurança das minhas
madrugadas de passarinho em repouso de
azas a voar. Descansando de muita alegria
até o despertar, com o relógio analógico em
nosso ninho, que não havia nesta época os
digitais, é claro e isso sim lógico. Agora
sem Anas dos Lenos ou qualquer outra
constelação do zodíaco, vinham sonhos
animados e coloridos da imaginação
juvenil, onde os pesadelos invariavelmente
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são vencidos por algum super-herói abstrato
e tudo mais, e tudo bem, pois que nunca
faltava o mocinho das ilusões do menino
tolo. Criança passageira do trem da
infância, profunda e com a cabeça sempre a
mil por hora num vagão, noutras instancias
de um infinito que desconhece distancias...
Um dia conheci um eclipse, entendi
que dois astros formam um tipo de maré de
sizígia, que é nada mais do que a soma da
força gravitacional entre os astros
envolvidos, quando as lágrimas oceânicas
são as mais rasas, aprendera no ginásio com
a saudosa tia Lígia e comovido. Embriagues
nostálgica mental e orgânica de avejão em
pus. Pus-me a rever... revival sim... e como
vivo! E assim vou, coisa e tal...
O fato é que a esta altura estava ciente
de que ambos, Sol e Lua, eram sujeitos
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distintos nas orações, que nem estas como
súplicas, fossem com as vestes das mais
coloridas, continuaria dando pano para
manga com o sabor doce de uma rosa ou
caiana. Remete-me e remendo com alvitres
de Ana, que caía na minha na escola! Bela
menina, mas nem sabia o que é dar bola! Só
nas peladas, digo, no futebol na quadra. Ah!
Mas aí me deram uma porrada no joelho.
Até hoje não posso mais jogar. Como não
ter ar triste? Bem, nem tudo pode ser
considerado ideal... Voltemos ao espaço
sideral.
Um dia, deitado na cama, antes da
pestana emplacar, momento em que a
cabeça se põe mais a pensar, quando não vi,
já era candidato a rapaz, - tinha até buço -
recomecei a viajar na velha cauda do
cometa, na onda gulosa astronômica. De
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repente parei. Senti-me ridículo, pueril com
a imagem deliciosa que interrompera lá
atrás e, ainda que perdido em uma nebulosa
deixei prosseguir o filme dando fim à órbita
mental.
Na relatividade do tempo, será que um
eclipse não passa de um encontro casual
entre o Sol e a Lua, tão emocionalmente
envolvidos? Encontro para um abraço
fraterno e quente. Breve, sem espera e de
sempre. Coisa singela, inocente...
Fraternidade de um Deus limpo e todos
uníssonos com o mundo. Abençoado e a
abençoar, dignos de olimpo. Celebrando
com louvor os sentidos e instintos. Dos
homens ao milagre da vida em esplendor.
Da graça dos céus, da terra e do mar... O
todo conjugando o verbo amar... Este
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fenômeno raro de louvor... Eclipse de um
Grande Amor!
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Menino Jesus
Aos 13 anos de sua era, num dia
qualquer, Jesus fazia companhia a José em
sua carpintaria:
― Filho, me passe a estopa.
― Sim, senhor. ― Respondeu o
menino entregando-lhe a bucha.
― Já disse Jesus, me chame de pai!
Falou José enquanto fazia a limpeza final
de uma cruz de cedro.
― Desculpe pai, eu não sei o que
acontece, mas vou me acostumar... Senhor,
ou melhor, pai, quando é que o tio Batista
vem nos visitar novamente?
― Não sei. Teu primo... Está bem,
tio... É um andarilho, ninguém nunca sabe o
seu paradeiro. Mas por que você quer
saber?
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― É que eu gosto de conversar com
ele.
― Este negócio de você ficar dando
ouvidos as ideias desatinadas de João, não
me agrada. Aquele vive nas nuvens!
― Nada pai. Aliás, ele diz que eu serei
uma pessoa muito importante, sabia?
― É. Mas para isso, você tem que
continuar frequentando a escola.
― Eu detesto ir à escola e não gosto do
mestre Esaú.
― Já disse para não falar assim, você
tem de respeitar seus professores.
― Mas ele só fala coisas horríveis
sobre Javé, eu fico com medo. E outro dia
disse que os homens ainda voarão e ele me
colocou de castigo.
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― Você ainda é novo para
compreender o Livro. Ah...! Prodígio,
prodígio. ― fala baixo para si.
― Eu sou um garoto normal!
― Não, óbvio...! Bem... ― José se cala
e balança a cabeça para os lados com
reprovação condescendente.
― O que foi Sen... quer dizer, pai?
― Ah sim. Aquela história do menino
que caiu dentro do rio semana passada.
― O meu amigo Judas? O que é que
tem pai?
― Todo mundo anda falando que você
o curou. Ouça filho, só Deus opera
milagres, entendeu? E realmente como
aquele corte estancou e cicatrizou em
minutos é mais uma de suas providências.
― Eu sei. Eu sempre digo que aquilo
foi obra do Pai, quer dizer, do Senhor...
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Deus. Eu apenas pulei na água para socorrê-
lo e passei minha mão na ferida da sua testa
para tirar a areia.
Esquecendo o assunto, José levantando
a cruz, fala com esforço cansado:
― Ajude-me a levantar isto aqui.
― Nossa! Pai, como é pesado.
O silêncio toma conta da oficina e logo
o menino o quebra com sua irresistível
tagarelice:
― Pai, o Senhor, quer dizer, o papai
nunca me falou como é uma crucificação.
― Esqueça isso filho!
― É para punir os bandidos não é?
― Sim, e também os hereges.
― Como aquele Sócrates, o homem da
velha Grécia que o tio falou?
― Mais ou menos isso, aquele homem
era perturbador da ordem estabelecida e foi
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condenado a tomar veneno, não havia
crucificação naquela época.
― Sei... Será mesmo que ele era do
mal? Veneno... Não dá tudo na mesma?―
E é verdade que os condenados têm que
carregar isso até o calvário?
― É.
― E depois?
― Hum meu filho... Está bem, então
escute:
Depois eles são pregados vivos na
cruz, ela é suspensa, afixada na terra, no
cume do calvário e em meio a uma sangria
desatada, o réu permanece lá até morrer!
O menino fica atônito, se arrepia e
emenda:
― Deus me livre!
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Os Ursos
Casa nova é uma delícia! Para as
crianças um universo a se explorar,
enquanto os adultos posicionam móveis,
desembalam caixas e arrumam as coisas.
Mudança cansa, mas traz esperança. Parece
que os velhos teréns são novos, os cheiros
de mofo promovidos a jasmim e que das
dificuldades de inquilino possam vir
milagres, ilusões tolas sem fim, a cada casa
par ou impar, que foram quase trinta!
Porém, os baixinhos nem reconhecem isso,
só um peso no ar vez por outra lhes alcança
as preocupações das pessoas adultas
fazendo sentir uma sensação ruim no peito,
mas também que basta um peido que ladra
ou uma coceirinha na cabeça de dois dias
sem banho, que logo passa. Aí só alegria,
Chagas das Almas
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nirvana... Eles só se preocupam em
perscrutar os novos arredores onde os
mistérios brincam de esconde-esconde.
“Onde vai dar aquele buraco escuro da
lareira? Será que sai direto em tele
transporte para o país da Alice? Ou no
porão escuro do Conde Drácula?” O
vampiresco da Sessão Coruja que todo
mundo evita que a gente veja tarde da noite.
É, mas que sempre damos uma escapadinha
masoquista para bisbilhotar tipo o “Moita”,
de espreita e esguelha na lateral das portas
entreabertas e rangedoras num imenso pé
direito, - ao contrário do nosso despertar de
um incerto dia.
O nome da nova rua, Avenida Barão do
Rio Branco, se fosse Conde, tanto faz, seria
tudo igual, meio obscuro... Contudo, o Rio
parecia sugestivo... De águas lácteas! No
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fim, nada tão lúdico, apenas nobre e justo
quando aprendemos na escola se tratar de
homenagem, ruas afora no imenso Brasil, a
um grande homem servidor de nossa
diplomacia no passado. E o seu título
familiar simplesmente contemplou a capital
do Acre, oxalá minhas sandálias, bolas de
futebol e bodoques!
A imensidão é subjetiva no espaço-
tempo, tudo parece ser muito maior para as
crianças, no caso eu e meu irmão no
segundo andar daquela “mansão.” E foi
assim que descobrimos um verdadeiro
tesouro numa noite de lua cheia, apesar do
clima mais propício a juntar os filmes
adultos da TV em preto e branco com as
lendas dos lobisomens! Mais um dia de
estágio de rotina, um anoitecer antes de
dormir, quando os carrinhos, o pegas-
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varetas e todas as ferramentas de trabalho,
maravilhoso trabalho escravo de brincar,
vão para seus respectivos compartimentos,
graça a desgraça diária da mamãe
certamente. Aténs de colocarmos a cabeça
no travesseiro, debruçamo-nos na janela de
nosso quarto cuja vista dava à esquerda
para a moageira de trigo. Ela era escrava,
pois que trabalhava dia e noite, sete dias por
semana, denunciavam as luzes brancas
internas e o som das máquinas. De repente,
ao erguer a cabeça no ócio infantil, cutuco
meu irmão e aceno com queixo.
Bem a nossa frente, resplandecidos
pela luz do céu noturno a meio breu,
abóboda em miríade estrelada, - ou apenas
minha memória agora enluarada...? - Nos
deparamos com dois ursos gigantes!
Medidas de infante? Lembro-me bem da
Chagas das Almas
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trilha que vinha suave do quarto ao lado,
Panis e Circenses dos Mutantes. Para que se
tenha uma ideia, os animais vinham do chão
do primeiro andar do nosso quintal, até uns
dez metros ou mais acima de nossas
cabeças, que já estavam a alguns pés do
segundo andar. Eles eram verdes. Não!
Eram pretos... pretos? Nada! Ora, eram
marrons, como não?! Dependia da
intensidade da luz celeste e da luminosidade
das nossas fantasias. Às vezes uma coisa, às
vezes outra, não importa. Nunca saíam do
lugar, apenas mexiam parte de suas cabeças
e troncos fartos de pelos grossos que se
estendiam por seus corpos troncudos,
revezando os lados com misteriosa
maestria, cujo regente parecia ser o vento
frio do outono da serra como a executar a
Sinfonia ao Luar. Uma valsa em compasso
Chagas das Almas
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terno, ternaríssimo, sempre a nos espiar
com zelo. Neste balanço a nos ninar com
esmero, até pesarem nossas pálpebras.
Pode-se dizer que passaram a ser parte
diária do ritual, páreos em nossa mútua
simpática e risonha contemplação entre
comentários sem pé nem cabeça, afetos aos
ursos. Assim fora por várias noites que se
seguiram nos primeiros meses do lar que
ainda cheirava a cera nova.
Adotamos em segredo os animalaços
como nossos bichos de estimação,
relegando a amada cadelinha Biriguda, que
tinha as duas cores da imagem da TV. Tudo
bem, ela era de todos da casa, e Kitty dava
conta de muito amor como sempre.
Como casa nova à noite dá aquele
friozinho na barriga até que a gente se
acostume com seus barulhos e fantasmas
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próprios; e o papai leva um tempinho a nos
garantir a confiança de super-herói que logo
há de imperar deliciosamente; resolvemos
tomar nossos ursos como nossos protetores
e passamos as chamá-los carinhosamente de
ursões. Eram dois irmãos, como nós, bem
chegados, sempre lado-a-lado. Tivemos que
assumir posse cada um de um. Eu, claro,
que era mais novo, fiquei com o ursão
menor, o da esquerda. Até tentei o outro...
porra... com o Omar era perda de tempo...
Moca na cabeça, essas coisas... me inclui
fora dessa! O que importa é que eu amava
meu ursão caçula, afinal, à minha imagem e
semelhança. Cada um feliz com o seu.
Como não era pudim de leite, tamanho não
era documento, digo, motivo para se sair na
porrada.
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Um dia, depois da escola, armando
cabana no quintal, chegaram uns homens no
portão perguntando pelo responsável.
Informamos que mamãe foi à feira e papai
foi trabalhar. É, isto mesmo, o desfecho
desta história é tão bizarro, quanto certas
canções de ninar!
― “Aí, nós somo da prefeitura” ―
disse um “armário”, ladeado de uns caras
não menos fortes, como o “Poderoso Thor”,
que víamos com empolgação na TV
caixotão. Ainda por trás, um baita
caminhão.
Na casa dos sete a nove anos a gente
sabia mais ou menos o que era prefeitura,
mas não tínhamos muita simpatia não,
porque o papai sempre falava coisas como:
“Este salário da prefeitura é uma merda!”;
“Assim eles vão cortar nossa água!” Eu
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pensei se seria necessário todo aquele
aparato para tirar água de nossas torneiras
ou prender o papai por ele falar mal da
coisa... Ou algo mais legal, generosidade,
trazendo seu pagamento na porta!Sei lá...
Afinal, todo mundo se referia à instituição
como algo importante. “O Senhor Prefeito!”
Hoje é de dar gargalhadas!
O fato é que nosso irmão mais velho
estava em casa. Ouviu o burburinho, foi até
lá falar com os brutamontes e abriu o portão
para eles. Queria eu ser mais prodígio e
pedir um mandado, colocá-los para fora! Os
brutamontes vieram para prender nossos
bichos! Ele, nosso brother, saia da
puberdade no auge de sua beleza e
masculinidade. Preocupado com sua
guitarra, sua esbelta cabeleira e a
mulherada, não estava nem aí para mais
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nada, que dirá nossos ursões. Ordenou a
execução com autoridade. Saca autoridade
de adolescente, a galera fora e dois
pentelhos? Lembro-me da gente fazendo
juras de vingança com as narinas abertas:
"Vamos arrebentar as cordas de sua maldita
guitarra!" Como trama de alta conspiração
infantil. Não me lembro se cumprimos a
missão. Creio que o Omar sim, talvez até
antes do evento, com motivo menos grave,
faço pausa para rir...
Mas hoje percebo que ele fez o que
podia fazer um adolescente, vítima da
própria condição, nada mais do que algo de
pouca consciência, ebulição de hormônios
incandescentes, não julgo meu amado irmão
mais velho, não carece de perdão.
Mas não dá para esquecer o que de
suposta ordem de prisão, fora uma
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execução. Surpresa foi ver do outro lado do
muro o vizinho entusiasmado. Se metendo,
dava palpites técnicos de como fazer, o
melhor ângulo para mover aqui e amarrar as
cordas acolá. Baixinho narigudo filho da
puta! Soubemos depois que foi ele quem
denunciou nossos animais de estimação,
entrando com papéis por escrito na
repartição, acho que isso. Sob a alegação de
que eles - imaginem se nossa ira não era
justa por tal insulto – justo eles, nossos
ursões, lhes roubavam o sol da manhã.
Quando que nossos amigos protetores,
heróis da noite, reis das florestas e jardins,
crias da natureza, amigos das crianças,
poderiam roubar alguma coisa de alguém?
Principalmente o sol! E como o Astro Rei
podia pertencer ao vizinho? Seria o Sol, sua
luz, a exemplo da água, propriedade da
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prefeitura?Ah! Vinha cobrada junto na
conta da tal Light?! Que porra é essa, Omar,
meu irmão?!
Assistíamos pávidos o assassínio.
Começou pelos multibraços à foiçadas.
Suas vestes nobres verdes sangue azuis,
como que caindo ao chão de saibro de
chamar atenção aos urubus. Depois os
machados em suas canelas de pau inertes
que sangravam seiva cheirosa das linhagens
mais briosas. Ambas começaram a
desfalecer seus corpos num dia quente.
Começamos a perceber a impotência de
nossas indagações repletas de ingênuas
dúvidas, súplicas em meio às lágrimas que
tentavam se esconder nos cantos dos olhos
presentes. Uma mistura de dor pelo ato
literal de defloração, com a vergonha do
rótulo de que é maricas chorar à toa. Um
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choque de espanto e comoção, tipo Malásia
Airlines, aquele avião... De boa?
Percebo só agora o que só vi uma vez,
cortar-se um bem pela raiz, nunca ouvira ou
vira mais tal estupidez. Só agora... Que as
pessoas investidas de uma autoridade estéril
se fazem donas dos bens naturais que não
passam de uma generosa concessão da mãe
natureza. Seja nas praças e bosques
públicos, seja nas propriedades particulares
ou florestas virgens tropicais. E mais,
arbustos de cativeiro, animais, ilhas, praias,
campos, seus solos férteis e vistas
deslumbrantes como que privatizando tudo
ao seu bel poder. Mais filhos da puta!
Em menos de uma hora, as duas
árvores estavam abatidas e totalmente
mortas, bem assentadas no caminhão.
Amarradas com a mesma fealdade qual
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galinhas que se trás da feira para o domingo
um molho pardo. Eu, meu irmão e a
Biriguda – ela, xereta que sempre fora – nós
três, esticamos nossos pescoços miúdos
com forçosa limitação, quietos e
engasgados. Assistimos à partida do veículo
suntuoso, dando adeus com as pequenas
patas da imaginação, já que as outras
amparavam nossos corpos nas grades do
portão. Até que o carro sumiu de vista do
outro lado da via, depois de virar a curva da
ponte da Avenida Barão do Rio Branco...
Agora nome sem qualquer importância.
A nossa cachorrinha fez fiu, fiu
baixinho e depois correu pra dentro de casa
se enroscando na cadeira verde onde o
papai a chamava...
Por longo tempo, a casa nova se
encolheu e a novidade se perdeu entre
Chagas das Almas
39
mentes. A não lua nascia mais em nossa
janela, fossem as noites mais belas. Ou
talvez simplesmente, de almas denegridas,
começamos a perder a mácula dos imberbes
e o brilho nos olhos para os dotes de
natureza tão bela, aprendendo a lamber
feridas como a nossa cadela.
Chagas das Almas
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Nem aí...
Não estou nem aí, só lá...
Mas quem está? Se é que é para ser e
estar.
Gastar sola não, sol há, vem a mim
sem que eu vá.
Entretido comigo mesmo percebo as
luzes sombrias dos pixels vindas da TV. Em
nível inconsciente vejo que passa o jornal
da noite anunciando aos berros as tragédias
do dia de ontem e amanhã. Tudo em alta
definição, isso, os atos que se auto definem
sem qualquer vergonha de si mesmos.
Países que invadem e tentam tomar uns aos
outros, plebe e gleba, roubando o que eles
têm de melhor e impondo seus ritmos de
horror. Egos infecundos se exteriorizando
Chagas das Almas
41
ao máximo, clamando audiência, atenção,
qual Narciso em seu espelho alagado.
Enquanto isso, sem dar a menor
importância, nem às vitimas, tento o
contrário, me interiorizar, sair do ar. Sendo
absorvido pelo branco leitoso da tela que
poupa árvores, trocando silício por celulose
e, oxalá, com toda impessoalidade do hi-
tec, nem tudo está perdido. Inspiro-me
em Keith Jarrett em seu “My song”, onde
sai de “si” e flutua sobre o piano fundindo-
se a um estado de espírito elevado,
produzindo acordes que se alternam entre o
alto e baixo tom em melodia onde percebo
não haver mais um “eu” nem um
referencial. Ele parece ser o criador e a
criação. Já vi minha irmã assim no palco,
como se não fosse mais minha parente tão
próxima, mas um ser de luz maior que isso.
Chagas das Almas
42
Capto nas entranhas também o suor
profícuo do David Gilmour solando em sua
guitarra em tons rosa-floyd. Tudo que me
vem e não é pouco, coloca o panorama
beligerante em estado ainda mais
insignificante, já que na realidade deles,
promovem tanta dor a terceiros inocentes,
ou neste reality show talvez não haja
simplórios, mas só culpados pela maldição
de serem o que são. São? Só um artista em
sua ilusão de cosmo pensado, passivo de
luzes cintilantes que me recocheteiam em
seus aspectos e me fazem senti-las em
reflexo. Não há mais futuro ou passado.
Ouço "umas e outras" do Chico de
Holanda... Vem-me uma vaga cauda
passageira como de um cometa raro, Halley
de raciocínio, interferência daquele mundo
externo, tamanha minha perplexidade
Chagas das Almas
43
diante de uma idealização e concepção
genial. Ele é de um grupo onde o degrau do
talento se sobe em paços mais largos. Por
extensão vejo a música de minha terra de
referencia no orbe da praticidade de sua
dialética física e cronológica, como um
berço esplendido e infinito de ideias e
arranjos em acordes desbundantes. Eu
treino, me esmero e chego a ter lampejos no
meu escrever. Não me vejo perto do estado
dos supracitados, nem do Matthew
McConaughey, óbvio... Sou aprendiz de
feiticeiro, que espera um dia se encantar
com o repleto de tudo um pouco, bastando
produzir um suspiro, já me contentaria um
tanto. Esta poção de que se apoderam os
ricos de verdade, independentes das cifras
que sabem e fazem por merecer ou não,
mero detalhe. Eles em seus gozos múltiplos
Chagas das Almas
44
espasmódicos levam conforto e apazíguo
aos entes sensíveis entre pátrias. Tornam-se
seletos seres humanos de ressalva que
justificam a existência e permanência do
nosso bicho cambiante neste mundo de até
então. Portanto, sou fã e viciado da boa arte
que nunca me é bastante. Para aquele resto,
estou nem aí, me alieno como um
ignorante... e daí?
Onde estou? Não sei onde, viajando de
carro, jatinho ou de bonde. Sei que
ouço Shine on the crazy diamond...
Chagas das Almas
45
Aquele abraço
Na volta da escola, tempo único em
que reinava o auge da minha vitalidade
criativa e emocional, era almoçar e depois ir
pra rua. A rua é um cenário em preto e
banco, tem uma dimensão de lembranças e
fantasias de paisagens e personagens
esparsas: a família, os amigos, aquele
bêbado emblemático, os comerciantes e, em
cor, apenas o bouganville no topo da praça,
onde tudo girava em torno de seu encanto.
Ainda tenho nos ouvidos a trilha sonora que
vinha da minha casa, defronte: Genesis,
Pink Floyd, Chico de Holanda e tanta coisa
boa de um mundo progressivo que meus
irmãos tocavam, fazendo sonoplastia da
minha vida às alturas. A gente só dava
alguns passos de volta da praça até em casa
Chagas das Almas
46
quando a mamãe gritava da janela: ―
Criança, vem lanchar! ― Engolíamos uma
xícara de café com leite e pão com
manteiga, já com os pés apontados pra
porta, prontos para retornar a praça e seus
arredores.
Foi numa dessas cercanias, a escadaria
da fábrica velha, que eu fiz um novo amigo,
uma amiga desta vez, uma menina.
Começou de uma brincadeira qualquer, mas
no passar dos dias passei a dividir o futebol
e o trole por ficar ali com ela, muitas vezes
rodeado de crianças menores, suas primas,
batendo papo até começar a escurecer. Era
interessante, a gente tinha uma empatia por
certa maturidade maior do que o normal
para a nossa idade. Conversávamos sobre
problemas pessoais, sobre nossas famílias,
tantas dificuldades financeiras. E outras
Chagas das Almas
47
preocupações entre as bobagens e
brincadeiras que culminavam na despedida
com o seu tradicional: ― “Tchauzinho
viu.” ― Balançando para cima e para baixo
os três dedinhos centrais da sua destra
mãozinha fina, branquinha e delicada. Eu
achava um barato.
***
Lembrei-me de tudo isto e relato
porque estou muito chateado, triste mesmo,
pela perda do Filó, seu irmão que faleceu há
quase um mês. Ele regulava com meus
irmãos mais velhos que faziam programas
mais adultos, mas que também habitavam o
mesmo palco, a praça. Inteligente, sensato,
boa pinta, me impressionava como espécie
de ídolo. Me bateu pesado hoje. A vida foi
perversa com ele dando-lhe de presente, na
casa dos 40, uma esclerose múltipla que
Chagas das Almas
48
mutilou sua rotina, tirou-lhe trabalho,
mulher, lazer e entrevou-o por mais de dez
anos. Vida filha da mãe!
***
De vez em quando ela me avisava que
seu namorado vinha da Fazenda Inglesa,
bairro perto, subindo em direção ao Moinho
Preto. Na primeira vez, achei natural, na
segunda me incomodei bastante, até que na
terceira ela disse: ― Vou terminar com o
Roberto. ― Eu conheci o garoto, achava ele
bacana. Então, ainda que fosse a minha
iniciação também na hipocrisia, aconselhei-
a a repensar. Mas ela não me ouviu, assim
estava claro que nossa empatia tinha
transbordado em alguma coisa maior.
Passados quase um mês, ainda como
grandes amigos contidos, estávamos a dois
Chagas das Almas
49
dias do carnaval. O Petropolitano era o
clube que a classe alta e os esmerados da
média, como nós, frequentavam na época e
que tinha os melhores bailes da cidade. Na
sexta-feira combinamos nos encontrar na
matinê do dia seguinte, sábado, baile de
abertura. Só me lembro de que o tempo
parecia não passar e àquelas alturas estava
em tamanho estado de ansiedade que mal
consegui dormir, como numa sexta-feira
treze.
Sempre fora na maioria dos anos, meu
primo Fred e eu chegamos ao baile levados
por minha amada tia Téia, que também se
foi há pouco. Entramos na matinê, numa
tarde de viúva ou espanhol, tanto faz, que
cheirava a ozônio e lança perfume num
delírio onde o aroma era de fazer lisonja à
própria natureza. Ao primeiro pé portão
Chagas das Almas
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adentro, minhas pupilas já giravam em
todos os graus, como se tivesse maluco ou
com um baita cisco nos olhos. Entramos no
primeiro salão e ao som da “cabeleira do
Zezé”, empinei o nariz e rodopiei nas
pontas dos pés sobre as cabeças do Batman,
do Homem Aranha, de odaliscas e
fantasmas, mas nada de avistar minha
fantasia preferida, como um Pierrot em
busca de sua Colombina. A tia nos levou
para comer um salsichão. A gente tinha que
esperar um ano para comer aquilo que tinha
um sabor estratosférico. Porém, confesso,
de tanto girar a cabeça no bar de fora, nem
apreciei a coisa direito. Depois fomos para
o segundo salão, desta vez tocava daqueles
sambas enredo que não se produzem mais.
“E os jagunços lutaram até o final”, que não
seria eu quem desistiria de vencer minha
Chagas das Almas
51
causa em pleno carnaval. Nem por isso o
salão do meio me conteve em partir logo
para o terceiro, o da piscina, que a essa
altura, do tempo e do som, não me lembro
de mais nada se não de uma sensação de
profunda tristeza e frustração. Minha tia e
meu primo, para evitar o tumulto da saída,
me chamaram para ir embora e eu disse que
iria de ônibus. Aí já eram quase seis e meia
da tarde e até as sete eu fiquei rodando em
circulo, revezando entre o pátio e os três
salões, como um zumbi, até que ouvi o “ai,
ai, ai, ai, tá chegando a hora” e tive que
acompanhar a multidão junto à orquestra
que tradicionalmente fechava o baile
tocando e caminhando para a rua até
esvaziar o clube e encerrar a matinê. Eles
tinham que limpar toda aquela sujeira de
confetes e serpentinas para o badalado baile
Chagas das Almas
52
noturno dos adultos, O Baile de Máscaras,
que nos despertava a maior curiosidade.
Já na rua, bem abatido, peguei à direita
em direção ao ponto de ônibus, de repente
senti baterem no meu ombro por trás. Olhei
numa direção e não reconheci ninguém,
virei sentido oposto com tranco de fazer jus
a um baita torcicolo e, para minha surpresa,
ali estava ela. Como eu, com os olhos
espantados e a boca a falar de pronto:
― Putzzz! Onde você estava? Passei o
baile todo te procurando! ― Levava na voz
um tom hesitante entre alegria e irritação. E
eu com vibrato não menos prejudicado,
rebati: ― Meu Deus, eu também!
E quase que por instinto, demos um
abraço...
***
Chagas das Almas
53
Aquele abraço... Ah! O abraço do
primeiro amor, de nada combinado, não
contaminado, sem interferência das sujeiras
adultas. Abraço amaciado, de súplica, de
afago em pleuras impossíveis de qualquer
ausculta. Abraço inquieto e rotundo, maior
que o mundo. De quase santas volúpias,
como os das núpcias. Nunca vou me
esquecer daquele abraço, o melhor abraço,
que apesar de nem tão forte, de bem tão
simples, tão generoso aos nossos braços.
Emanante de um calor humano que, se de
ínfimos segundos, parecera de um ano. O
que restara de foliões em nossa volta,
pareciam inertes e sublimes feito estátua de
carrara. Como se reinasse a tão ingênua e
tola paz sonhada e todo o mundo fosse feito
de homens felizes, tamanha alegria e
Chagas das Almas
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harmonia sobejavam nossas almas
aprendizes.
***
Depois rachamos um táxi e seguimos
de braços dados, entregues, eco do abraço,
fomos para casa. Até então só isso, ou
melhor, tudo isso. Depois de volta à vida,
sua rotina, de volta à praça, a escadaria da
fábrica velha, seus arredores. Que
continuou sendo cenário, porém de paixão e
amor agora selado, ensaiando e encenando
o primeiro beijo, dos mal aos bem beijados.
Das saladas mistas com marmelada, dos
casamentos na igrejinha com a ajuda dos
amigos e dos primos, por eles celebrados e
abençoados, no meio do mato lá em cima
do morro, que quase tocava o veludo azul
das tardes de outono. No meio, tantas
risadas e criancices num tempo sem
Chagas das Almas
55
perigos, drogas e maldades, onde podíamos
ficar na rua com a anuência de nossos pais,
amáveis donos, até tarde demais. Tudo era
motivo dela largar bonecas e cabanas e eu a
bola e o bodoque, numa fase em que os
hormônios vêm a galope. Nos escondíamos
em cantos proibidos para nos amassar e
molhar em gemidos, nada daquilo, só
beijos, mãos e todos os sentidos se
descobrindo em cantos baldios, escadas
escuras e degraus levando nossos corpos
aos quarenta graus. Sim, teve o primeiro
baile à noite. Ah, ela naquele vestido num
tom de fazer lisonja ao que fiz de tecido,
aquele de outono. E o cineminha na cidade?
"E o vento levou", me lembro do filme. Do
nome só, é claro. Ah, não trocaria nada
disso por uma viagem para fora, como hoje
sonham os entrevados na TV e
Chagas das Almas
56
computadores por um voo para ver o
Mickey. Enfim, quase um ano assim de
intenso, em estado de praça. Até que, por
fim, veio uma banalidade, o amor se
contaminou e para um lado foi-se a minha
menina e para outro o menino meu. Ela dos
meus olhos e eu dos seus. E como tudo na
infância e tudo na vida, nosso sonho se
arrefeceu.
À Sônia Fecher
Chagas das Almas
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Filhos das horas
Quando eu tinha cinco anos, veio a tia
rica do Rio e disse para mamãe com altivez:
― Está na hora desse menino largar a
chupeta! ― Mamãe pressionada, retirou-me
a chupeta, não me perguntou se eu queria
ou me preparou, simplesmente, sufocada,
repetia os argumentos da titia: ― Nesta
idade não se usa mais chupeta!
Quando eu tinha 15 anos, vozes
ecoavam nos corredores: ― Está na hora
deste menino cortar os cabelos e largar essa
guitarra, está na hora de estudar mais. ―
Levaram-me ao barbeiro na marra, fizeram
chantagens e barganhas com a minha
Gibson e me mudaram de colégio, que
adorava. Nunca sentaram comigo e
ponderaram, perguntaram se eu gostava
Chagas das Almas
58
disso ou daquilo, ou o porquê disso e
daquilo. Nem insinuavam se havia algo que
me incomodava ou sobre o que eu sonhava
e pensava da vida, mesmo que fossem
tolices. Para me corrigir e direcionar
devagarzinho, ao ritmo da minha
imaturidade.
Aos 16 anos: ― Está na hora deste
menino perder a virgindade! ― disse o tio
Agnelo. Como eu via que meus colegas já
contavam vantagens ou mesmo inventavam
suas experiências sexuais, eu começava a
me achar estranho, diferente, talvez doente.
Meu tio, provavelmente combinado com
meu pai, também pressionado, já que às
vezes lhe pedia algum dinheiro emprestado,
me levou num puteiro. Não me disse como
e onde colocar isso naquilo, como começar,
o mais difícil. Mas a senhora lá sabia,
Chagas das Almas
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parece, e eu fiz o tal sexo, levando tempos à
frente para descobrir que o ato era uma
coisa boa.
Aos 17, outro tio falou que abriu uma
vaga de auxiliar administrativo na filial de
sua imobiliária na cidade vizinha,
perguntou ao papai se tinha algum interesse
de encaixar um dos filhos. Não sei por que
papai me escolheu, podia remanejar um
irmão, mas não, fui eu. E não sentou
comigo, perguntou se eu queria, só disse:
― Esta na hora de você começar a
trabalhar! ― Logo eu, o mais novo, mais
inexperiente, ir para um lugar diferente.
Senti medo, mas também uma sensação boa
de desafio, novidade, sobretudo, liberdade.
Lá, trabalhei, me diverti, sofri e chorei, até
que um dia conheci uma menina e pela
primeira vez me apaixonei, era da minha
Chagas das Almas
60
idade e a engravidei, ou melhor, nos
engravidamos. As famílias em alvoroço,
uma merda daquelas. Mas ela abortou.
Fodido - voltei e me diziam: ― Isso era
hora de arrumar filho? Como você foi fazer
uma coisa dessas? ― E eu calado, pensava
confuso, encabulado: “Se soubesse não
faria. Como devo aprender, onde?” E o
mais irônico: ― Você não tem juízo?! ―
Fiquei dias largado nos cantos de casa, sem
minha chupeta, minha guitarra, meus
cabelos longos, minha amada e, isolado, só
escola, certamente. Me davam o necessário,
o de sempre: casa, comida e roupa lavada,
vez por outra, não sou ingrato, uma
acariciada. Uns me ignoraram,
decepcionaram. Papai e mamãe, às vezes,
sentiam algum remorso e vinham
complacentes com palavras vazias e um
Chagas das Almas
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irmão, por sorte, me compreendia e me
consolava com a maior, mais maldita e mais
incoerente sensação que tinha: a culpa.
Bagagem de chumbo que levamos nas
costas até a maturidade. Epa! Maturidade?
Tem como eu ter esse negócio?!
Engraçado... Os tios sumiram.
Parecia de castigo, como que na
geladeira, até que descobrissem o que fazer
com aquilo, ou melhor: o que está na hora
de se fazer agora com isso? Quem sabe me
colocar num avião para Bósnia e este
exploda no ar? Segui estudando e
caminhando para os 18 já tinha identidade,
digo, a carteira. Arrumei um estágio. No
segundo mês, preenchi uma nota fiscal
errada, pequeno prejuízo. O chefe me
chamou dizendo que precisava de alguém
Chagas das Almas
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mais preparado e fui dispensado. Como
começar preparado?
― Está na hora de você sair das abas
dos pais! Está na hora de cuidar sozinho da
própria vida! ― preciso mencionar quem
dizia?
No entanto, passei no vestibular para o
Rio e por sorte um amigo me conseguiu um
trabalho numa livraria. Me mudei. Comecei
a tocar a vida lá. Saía nas noites, boates,
inferninhos. Fodi muito e bebi muito, me
droguei a valer. De putas a uísque on the
rocks, saudades dos undergrouds da vida
vadia! Participei de passeatas, carreatas,
micaretas e ia sempre pro Maraca, fazia o
que bem queria. Fui a Londres desbravar os
pubs! Ganhei e perdi de tudo: empregos,
mulheres, dinheiro. Larguei a faculdade por
Chagas das Almas
63
negócios, decolei e aterrissei, arremeti e me
esborrachei.
Num fim de semana em casa, vinte e
tal na cara, visitando a galera, um deles
estava lá. Me disse: ― Esta na hora de você
se casar. ― Puto, retruquei: ― Como você?
Então está na hora de trair e fingir amar
uma mulher oficial, que legal! ― Meu pai
me chamou atenção, mandei todo mundo à
merda, peguei minhas coisas, bati a porta e
fui embora. Um amigo de trabalho, muito
bacana, religioso, me disse: ― Acho que
está na hora de você aceitar Cristo. ―
Cansado daquela vida, pensei com carinho.
Afinal ele emendou: ― Funcionou comigo.
― De repente o vi por inteiro: medíocre,
conformado, robotizado. Não emplaquei
naquilo.
Quase um ano depois, me acalmei e,
Chagas das Almas
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mais centrado, de novo me apaixonei e me
casei. Tive filhos... Aí que aprendi de
verdade a perdoar meus pais, amigos, até os
tios. Pois acertei e errei muito, demais com
eles, mas sempre tentei ser diligente numa
coisa, em ver cada um como uma pessoa
única, uma personalidade, respeitando seus
tempos. Tento ser bússola em vez de
relógio a lhes impor meus horários e os da
sociedade com toda sua ansiedade.
De bons contatos, entrei para a vida
política. Vivi bons tempos de prestígio,
queridos, amigos, status e orgulho dos
melhores Rolex. Tipo assim: O lugar certo
na hora certa, saca? Quando bem sucedido
nisso, eu disse em alto e bom som: ― Então
essa vai ser minha profissão ― Estava
viciado, quando percebi, era como meu
amigo, apenas que meu cristo era o meu
Chagas das Almas
65
líder partidário. Verdade quem diz que
política é como religião, jogo e drogas, pois
que é tudo a mesma merda. Entrei de
cabeça, me filiei, balancei bandeiras, gritei
nos “cultos” e um dia logo após uma vitória
triunfal, eu, me achando parte importante
daquilo, fui traído. Como nunca me
ensinaram nada, só me informavam a hora
das coisas, também não sabia sequer roubar
e ser mau caráter para me adaptar a eles, o
que tão simplesmente era necessário, desde
que se soubesse a hora certa... Ah, ah, ah...
Mentira, que isso é vocação.
Na casa dos quarenta e tal me vi
desempregado, claro. Podem rir do que vou
dizer, porque é mesmo engraçado. Descobri
que existe também a fase do “não é mais a
hora”. - Você está velho para o mercado de
trabalho. ― me disse na lata um empresário
Chagas das Almas
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frio e calculista numa entrevista. Entediado,
certo dia, tive vontade de comer uma moça
mais jovem que me dava bola no caixa do
mercado. Um colega me disse: ― Não está
mais na idade disso, correr atrás de
meninas. ― como se eu quisesse fazer disso
um ofício. Agora a situação é mais
delicada e por isso as pessoas também, as
reprimendas vem como telefone sem fio,
aquela brincadeira de criança, dos
familiares, amigos... Ah! E agora dos
primos. Isso, os filhos dos tios, isso mesmo!
― Já passou da hora de depender da
esposa, dos filhos! Já passou da hora de
pedir dinheiro emprestado! ― A cada
acusação, sentença, penso nas putas e digo,
puto: “Ah! Filhos d...! Das horas!”
Chagas das Almas
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Enfadonha
A minha mulher emplacou num
emprego, carteira assinada, essas coisas.
Isto fez com que eu, já trabalhando em casa,
tomasse as rédeas de sua manutenção. Uma
experiência natural nestes tempos
feministas, onde se torna cada vez mais
comum os homens dividirem as tarefas
domésticas e o sustento da casa com as
mulheres. Confesso que tem sido um ensaio
excitante. Eu sempre pensei que a intuição
feminina para perceber detalhe no nosso
comportamento fosse um atributo especial
só delas. Mas não, entendi que a rotina de
um “ser” ou “estar sendo” “do lar” é pobre
de expectativas a ponto de quaisquer
banalidades não passarem despercebidas.
Chagas das Almas
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Assim, não me contive e devolvi a ela uma
daquelas brincadeirinhas insinuantes, que já
ouvira coisa parecida algum dia, repletas de
ironia e verdade:
“Nossa, quanta produção, quem é o
felizardo?” Ridículo... Bem...
Dedico a parte da manhã para cuidar
das coisas do lar. Começo lavando a louça.
Essa tarefa dura mais ou menos uma hora,
porque a minha louça é pré-aquecida com
água fervendo. Não, eu não quero ser
melhor do que ela não. Apenas tenho pavor
de gordura e procuro ser muito caprichoso
em todas minhas empreitadas. Depois limpo
o fogão, varro o chão e passo o pano. Outro
dia me peguei falando pras crianças:
― Cuidado com a minha cozinha!
Mas estas coisas enfadonhas eu resolvo
às quintas-feiras com o meu analista.
Chagas das Almas
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Descobri um prazer sem igual, aliás,
mais do que isso. Posso dizer que uma
experiência telúrica: catar feijões. Isto
mesmo, depois da faxina na cozinha, eu dei
uma geral na sala e nos quartos até retornar
à cozinha para fazer o almoço. Catar feijão
é uma terapia para a gente, sabe? Há um
processo de transe que está quase me
fazendo entrar em contato com o cosmo.
Mas tem um efeito colateral: meu processo
de seleção de pedras e caroços estragados é
muito rígido. Chego ao ponto de, às vezes,
chamar um dos meus filhos para uma
segunda opinião. Mas a minha mulher outro
dia brigou comigo porque um quilo de
feijão só estava dando para uma refeição:
― Você tem que economizar! ― Disse
ela em tom grave como via o meu pai fazer
com a minha mãe.
Chagas das Almas
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O problema maior tem sido adequar às
crianças. Todas na casa dos vinte. Tenho
usado o método de argumentação
comparada. É mais ou menos assim:
― Se eu não obedecesse ao meu pai,
levava uma surra! Certa vez, quando a sua
avó ficou doente, nós tivemos que assumir
todas as tarefas da casa! ― ou ainda ― Lá
em casa as coisas não eram como hoje não,
Coca-Cola todo dia? Nada, só de vez em
quando! Papai trabalhava muito, eram
muitos filhos.
Até que um dia tive que ouvir um deles
dizer:
― Caraca...!Pai, sua infância deve ter
sido uma merda, hem?
Como eu sou da geração diálogo, ou
seja, dos otários que achavam que os pais
eram muito repressores e agora vemos que
Chagas das Almas
71
eles até pegavam leve demais, em vez de
ficar puto, ri batata baroa.
Outro dia saí para comprar vela nova
para o filtro. Sinto pela confissão patética
da minha condição de classe B com
passaporte para C que ainda abastece a casa
de água potável com aquele rudimentar
objeto de barro. Resolvi entrar num bazar
de 1,99. Não achei a peça, mas saí com
algumas coisinhas interessantíssimas. Um
descaroçador de azeitonas “três por vez”,
uma colher de pau de um metro e, para
finalizar, uns incensos de citronela, que
estavam uma bagatela.
Em seguida, fui ao mercado comprar
alguns itens, apenas para manutenção da
despensa. De repente, me vi sem os óculos
e perguntando a um rapazinho o preço da
lata de milho. Exato, estendi a lata aos seus
Chagas das Almas
72
olhos. Depois, sem nenhuma justificativa
comentei com uma idosa dona de casa,
então colega, sobre o absurdo do aumento
do preço dos tomates.
Mas essas coisas enfadonhas eu
resolvo às quintas-feiras com meu analista.
Passaram-se três meses e a coisa
começou a virar rotina. O trabalho de casa
já me tomava também o turno da tarde.
Roupas na máquina e óleo nos móveis...
Meu amigo Douglas, editor do jornal, me
mandou um correio eletrônico:
― E aí cara, você não tem mandado
nada!
A situação financeira continuava crítica
e eu comecei a maldizer as tarefas do lar.
Um mau humor se instalou em mim. No
final do mês piorava e se misturava a um
estado de muita sensibilidade, chorava
Chagas das Almas
73
copiosamente defronte à pilha de louças.
Segundo meu analista eu estava com TPS,
ou seja, tensão-pré-salarial, algo já
consagrado e que consta inclusive na
literatura médica. Além disso, ele achava
que o excesso das demandas do lar veio a
produzir uma crise de identidade masculina
em mim e, assim, aumentando o estresse.
Mas a coisa foi ficando mais grave,
comecei a surtar. Um dia, sentado à mesa
com os feijões derramados para catar, gritei
e varejei tudo no chão. ― Ele está possuído
pelo diabo. ― disse meu vizinho, o Pastor
Besouro, vim saber depois.
Neste dia, passando a crise fui fazer os
pastéis do almoço e quando descaroçava as
azeitonas, o aparelho quebrou no segundo
grupo de um trio das melhores portuguesas.
Varejei o objeto longe, acertei o basculante
Chagas das Almas
74
quebrando um de seus vidros. Em seguida
peguei o gato em flagrante se aproveitando
da minha distração, com a boca na carne
moída sobre a pia e que ia preparar para
fazer a porra do pastel. Peguei a colher de
pau de um metro e quebrei na traseira do
bicho, que largou o naco e saiu grunhindo.
Em alto estado de ansiedade, sentei e
respirei fundo, lembrei-me daqueles
ensinamentos dos tempos inúteis de yoga,
ou yôga...? Dane-se! Inspirar e expirar pelo
abdomem, é isso. Ah! Acendi um incenso
de citronela!
Logo, já havia preparado a carne com o
que foi possível e recheei os pastéis.
Comecei a fritura. Num certo momento me
deu remorso e fui me acertar com Fernando,
o gato. Ele me esnobou por dois dias até vir
massagear minha barriga agulhando-a à
Chagas das Almas
75
noite na cama. Fernando foi uma
homenagem ao Gabeira cometida por
minha filha na fase da esquerda festiva, o
bicho já está com treze anos! Enfim, nesta,
queimei a primeira leva.
Na segunda, senti uma baita coceira no
olho direito. Fui ao banheiro, um mosquito
me picou, ardia a coisa. Passei álcool, ardeu
dentro dele. Voltei para cozinha, queimou a
segunda leva e óleo estava preto. Fui trocar
e percebi que esqueci este item lá no
mercado e no final das contas o prato
principal foram ovos estrelados. À noite, eu
e minha mulher conversamos sobre o dia e
a possibilidade de se contratar uma
empregada, ou ainda, sobre uma possível
internação minha em regime de urgência.
Porém, o orçamento ainda não permitia
nenhuma das duas coisas e eu abominava a
Chagas das Almas
76
ideia de ter uma doméstica me inquirindo o
dia inteiro como aprenderam com as
serviçais das novelas das nove.
Ao cair das tardes devia ir para o
computador escrever meu artigo, mas
estava tão cansado que acabava indo para
frente da TV. Foi assim por vários dias até
que percebi que não conseguia ficar um
deles sem assistir a tal novela. E, em
seguida a morbidez: Desastres aéreos na
Discovery Chanel. De manhã me prendi ao
programa da Ana Maria Braga, que
receitas! Em contrapartida rezava pelo
passamento do louro... E do pastor que
ainda repetia os salmos 23 todas as noites!
Mas essas coisas enfadonhas eu
resolvo às quintas-feiras com meu analista.
Passados mais dois meses, a situação
começou a melhorar e conseguimos
Chagas das Almas
77
contratar uma empregada, consenti sem
resignação. Enfim, pude me dedicar só ao
trabalho e me livrei definitivamente das
tarefas domésticas. Dona Maria não era o
ideal, mas além de ser tímida e falar muito
pouco, era muito prestimosa e limpava
meus livros. Cozinhava direitinho, embora
suas almôndegas não chegassem aos pés
das minhas. Um dia, meu amigo Douglas
me ligou e eu o convidei para almoçar. Era
uma segunda-feira, me lembro pelo tédio
dos domingos de Fausto Silva e Luís
Penido na rádio Tupi, transmitindo mais um
desastre do meu Botafogo contra o Quinze
de Piracicaba no brasileirão, serie B. Pedi
que a Dona Maria fizesse berinjelas
recheadas, que sabia que ele gostava, pois
elogiava as da minha mãe nos velhos
tempos. Em resumo: foram as piores que já
Chagas das Almas
78
comemos na vida. Elegantíssimo com
sempre fora, meu amigo disse sobre meus
eufemismos: “Você é exigente demais.”
Depois da vergonha, Douglas foi embora e
eu fui falar com ela. À moda de uma perua
enlouquecida, com vaidade desmedida,
típica das classes opressoras, perdi as
estribeiras e proferi alto e grosseiramente
para ela:
― Caramba Dona Maria, mas que
merda! Onde diabos a senhora arranjou esta
merda de receita? Malditas berinjelas
empapadas!
Percebi que passei de “dono de casa”
ao correspondente masculino de uma
Madame do núcleo do mal das novelas que
via. Passada meia hora fui pedir desculpas,
mas em vão. Ela pediu as contas,
peremptoriamente! Isso pesou à minha
Chagas das Almas
79
consciência, como se perdesse uma turbina
precisando arremeter com urgência. Daí
passei a contar cada dia como um
presidiário, fazendo um xis no meu postite
de tela, torcendo que chegasse logo quinta-
feira!
Chagas das Almas
80
Sombra da Carne
“A sombra do teu corpo é o corpo da
tua alma.” (Oscar Wilde)
Minha fiel companheira, onde se
encontra quando preciso de ti em estado de
maior escuridão como agora? Onde andas
sombra da carne?
Momento em que a luz arde em meus
olhos na saída do cárcere. O sol nasce
redondo de novo e ao contrário dos
canalhas injustiçados não vejo bondoso seu
esplendor de aurora.
Ah...! Quanta ilusão! Não saímos por
bom comportamento, foi apenas uma
transferência para outra ilha suja, apenas
isso. O amor não passa de um grilhão
maldito.
Chagas das Almas
81
Por que não te sinto então comigo?
Éramos cúmplices nos deleites e delitos, e
na hora do trabalho forçado, tu foges da
plantação dos cogumelos contaminados.
Tentei te segurar quando caindo
ajoelhado. Escorregadia de lama imoral.
Driblou-me habilmente no piso árido
diagonal.
Vejo-me aqui andando nas horas de
pátio a te caçar para agasalhar-me como
sempre, jogado como um regurgitado acido-
lácteo ainda quente. Tentando decolar com
uma turbina incandescente.
Espera! Vi-te branca...! Como assim?
Vi nuanças de faces e gestos, e listas
brancas de tuas vetes! Quem fala sou eu?!
Deus! Vejo-me agora, uma mancha escura
no poço da ala dos dementes!
Chagas das Almas
82
Não sou eu alma em sombra quem
partiu, a mente... Ei corpo da carne!
Fastuosa, com todo este aparato cultural de
segurança máxima, como fugiu passando as
grades eletrificadas de fios de seda da alta
tensão e falsidade? Nem eu conseguiria,
entrementes!
Como me deixou aqui sozinha, pedaço
de mancha rota e escura sem uma réstia de
claridade ao bem de minha tênue e sutil
identidade? Sem poder sequer me
distinguir... A escuridão geral me engoliu,
às vezes, acho que a gente nunca se
entendeu, se sentiu.
Está bem, foragido de mim, isto
refletirá opaco em ti muito e, porém, corpo
de carne... Perdidos, somos dois lados
covardes, presas da mesma caça,
continuamos alvos fáceis. Nosso coração
Chagas das Almas
83
que apanha e dói parará logo. A ti espera
uma gaveta qualquer onde descansará inerte
sua carcaça e poderá sempre dormir um
pouquinho até mais tarde... Quanto a mim,
caberá dar continuidade à agonia da vigília
com o buraco-negro a querer me sugar
como tu, na maldição da eternidade...
Chagas das Almas
84
Janeiro
Saímos do mês da confraternização e
da virada com requintes pirotécnicos
decretados pelos homens e entramos no
primeiro dia do ano com muita preguiça.
Espíritos placebos se curando em vão.
Dormimos, levantamos, beliscamos das
sobras do réveillon, caímos no sofá,
soltamos gases nobres e arrotamos muito,
tudo cheirando a quebra nozes, assistimos
qualquer besteira na TV, cochilamos de
novo e quando vimos já estamos no dia 02,
nos arrumando com pressa para trabalhar,
entrando na rotina. Pegamo-nos xingando o
motoboy no trânsito a caminho do
escritório. Pode até ser a mesma toupeira
que desejamos feliz natal e um próspero
ano novo quando foi entregar o pedido da
Chagas das Almas
85
farmácia, o “kit ressaca” num dos porres da
véspera da véspera.
Nossos filhos descansam da escola, da
faculdade e se entregam mais aos jogos e
redes sociais na gosma da vida sedentária.
Algumas pessoas tiram férias da labuta, do
chefe que rima e, se guardaram a féria para
isso, fazem viagens aos paraísos. Edens
fiscais ou tropicais. Na primeira ou segunda
classe de um avião inseguro, tanto faz. Dos
simples anseios menores aos grandes
sonhos, os maiores, quando não, as viagens
na maionese... Por vezes estragada,
acamados num hospital com uma
intoxicação anunciada por uma puta cólica
estomacal. Há de tudo, para todos os
ponderáveis e imponderáveis desígnios da
existência mundana.
Chagas das Almas
86
Começamos a construir e transferir os
planos do ano velho para o que virá. As
promessas feitas à beira mar, degustando
um manjar ou adorando Iemanjá. Quiçá! É
um mês morno. Faz sol escaldante aqui e
chove a rodo acolá. É o terror dos
bombeiros e ambulâncias. Mês de
transtorno e de esmero é também este tal de
janeiro!
Ao mesmo tempo são 31 dias de
superação, temos que pagar o pato, a ceia e
os excessos que as vitrines de ontem nos
aliciaram. Também há uma trégua
pacificadora. Os jornais não trazem muitas
novidades, os algozes hibernam para
conspirar sobre os golpes do ano bom. Nos
corruptos é como se visse estampado na
testa um "fechado para balanço" sobre o
exercício anterior da putaria. Parece que até
Chagas das Almas
87
os assaltantes descansam neste tempo de
ironia. E os artistas? Nada há de novo,
melhor nos contentarmos com nossos
dinossauros atemporais, prediletos em
nosso mp3 ou descansar os sentidos,
melhor, ou talvez.
Janeiro pode ser definido como um
mês acanhado, pois que vive no liame de
seu ascendente e descendente, de farturas e
faltas, dependendo da classe a que se está
inserido e da cotação do dólar para os bem
cotados e nascidos. O que nada acrescenta
aos que vivem no black, na marginalidade
periférica, os assalariados e suas senhoras,
cuja moeda é do lar, louça e roupa para
lavar.
O subsequente é de alegrias e pândegas
que se anuncia a todo vapor na euforia do
carnaval. Este mais democrático na divisão
Chagas das Almas
88
do estado de espírito festivo e alto astral,
algum consolo, menos mal. Enfim, janeiro é
como um irmão do meio, que vive à sobra
do dezembro e do fevereiro. Mas o
réveillon deveria ser comemorado mesmo é
no último dia das águas de março, em meio
a seu mormaço. Aí, passadas as vinte e
quatro horas da mentira, que jocosamente
nos lembram de que tudo fora pura ilusão,
realmente começa o ano, a vida à vera. E o
princípio das frustrações, repletas de
ansiedade e solidão, nascentes junto à
plenitude e beleza da prima dela.
Chagas das Almas
89
À beira mar
Sou otimista. Com boa, muito boa
vontade mesmo, ainda me restam dez ou
quinze anos de vida. Uma adolescência...
Mas que voa. Bate as azas no destino. Que
bom, ele arruma tudo e ainda me promete a
eternidade. Não importa que ela exista de
fato, apenas que eu acredite agora.
Agora é o que assusta. Exato, o agora.
O que passa, tenho que jogar para trás,
jogar fora.
Fora bom quase tudo, mas não vivi
intensamente, fugi, ponho na conta do fado
e da sina e pago num além, onde pegarei
um voo cego para onde nem sei, e o
culpado sempre será o piloto, claro, o
mordomo da pinguela aérea... neste caso,
eu... Quanta falsidade.
Chagas das Almas
90
Falsa idade não posso mais esconder,
algumas rugas me entregam, mas se há
algum viço ainda, rogo que não me digam.
Mendigam amor, os muitos mal quitados,
não eu, contento-me em fingir que tudo deu
certo, como planejado.
Planos errados talvez, mas vivo das
sobras de felicidade dos meus. Até os
ajudo, porque dá menos trabalho e não
afronta minha coragem.
Coro a minha imagem se o novo e um
projeto de felicidade me invadem, hesito,
pois assim me foi ensinado, por isso nunca
amei plenamente, tampouco sei, de fato,
quem me amou de verdade.
Verdes imagens de imaturidade doem
em mim, porque realmente quase tudo é
assim de fato... Vacilo muito. Palavras são
Chagas das Almas
91
perigosas, podem ter farpas, principalmente
as ditas com ternura e amabilidade.
Habilidades de amar, que me orgulho
muito, mas não suporto elogios, se não me
puno pelos meus pensamentos que só me
fazem alimentar culpa. Eu nasci para ter
donos e o meu coração em tudo está
repleto, doo o amor e doo a dor.
Doador universal, mas também de
renúncias e solidão, sinto falta de mim,
contudo, insisto. Se eleito, renuncio a tudo
que me lembra de quem sou e em que
idade. A opinião alheia e a opressão dos
meus profetas são como administrar sem
verve uma monumental cidadela.
Cidade bela do interior, de praia, onde
me delicio e sou feliz com a brisa do mar e
o sol ameno que reflete em minha face,
mesmo sem saber qual delas. Até que venha
Chagas das Almas
92
a grande onda negra para me levar, me
pegando distraído e à beira mar.
Chagas das Almas
93
Vastidão
Maior. Tudo cada vez maior. Tamanho
em metros quadrados e polegadas dá
sensação de poder. Principalmente porque
se necessita de mais empregados para
mandarmos e humilharmos na manutenção
de nossos caprichos e sujeiras, isso é
gratificante. Se bem que é legal ser do tipo
que diz que lhes tratamos como se fossem
iguais. Melhor: “como se fossem da
família”. Dever de casa sobre hipocrisia dos
mais bem nascidos.
Eficientes intentos para distanciarmo-
nos dos desafetos e, sem que nos demos
conta, também dos afetos, pensem comigo:
Cada um dentro de casa com seu
computador, seu telefone e sua TV com seu
combo no tão sonhado “quarto só para
Chagas das Almas
94
mim”, ali onde levamos a xícara ou prato e
comemos de olhos vidrados nas atividades
virtuais e os sabores ficam todos iguais. É
pratico e acaba com aquelas brigas que até
me lembro de como deliciosas antigamente.
Pelo canal da TV, futebol e novela com os
irmãos! Por fim, nos colocamos vizinhos
uns dos outros dentro do próprio lar.
Tem aquele vaivém agonizante de
desejo por bens tecnológicos a ocupar os
espaços vazios da casa (da casa?). Sofremos
com a expectativa de comprar o aparelho
último tipo, o High Tech, e entramos em
histeria interior até adquirirmos. Aí
sentimos o prazer de estar construindo um
bem imóvel de primeiro mundo, quanto
conforto. Mas logo o novo modelo já foi
lançado no mercado, ele é mais atraente,
tem um recurso que nos dará menos
Chagas das Almas
95
trabalho e empenho, da mais tempo para
muitos idiotas, incluindo se aqueles que
querem aumentar o pênis.
A TV insiste em nos perseguir,
exibindo seu status e na rua há cartazes e
pôsteres com fotos nas lojas descrevendo
seus benefícios sensacionais. Quando
chegamos ao trabalho, um colega fala sobre
ela com entusiasmo, pois já comprou um
protótipo antes de você. Irrita isso, instiga
mais para devolver o esnobismo. Enfim,
ele, um produto, ou ela, uma coisa, sussurra
em seus ouvidos e brilha nos seus olhos a
toda hora, dentro e fora de casa. Aquelas
parafernálias que adquirimos antes de
ontem, nas semanas passadas, já não dão o
mesmo prazer, o novo sempre vem e os
queremos porque somos pra frente, tipo os
dos lá de fora. Contudo, esta girândola arde
Chagas das Almas
96
em qualquer língua, todos os idiomas. Café
quente, sem aroma.
Obras na casa, casa na praia... Também
é necessário manter isso sempre em
andamento, bastante poeira o ano inteiro. É
mais prático do que uma empreitada na
cachola. Ah! Investir em filiais e franquias!
Aumenta o lucro, embora as despesas
também, mas é mais trabalho, mais horas
para o fim e menos para o meio, ou seja, os
filhos ou o companheiro que engorda a
olhos vistos! Não passamos de criadores de
porcos.
Ainda assim sobra tempo para o lazer,
não há dúvida. Disney uma vez por ano
com as crianças e por elas. Não, por todos
nós, aquelas comprinhas... Convenhamos...
A família de classe media desabando como
um aeroplano da TAM.
Chagas das Almas
97
Mas somos diligentes, nunca nos
esquecemos da vovó com saudades e
sempre dizemos: ― Um dia desses vou
visitá-la, aquele bolo de cenoura...! Embora,
é fato, algumas vezes reclamamos alto: ―
“Porque vovó Leda cisma em continuar
morando no interior...? Teimosa!” ―
Mesmo sendo bem mais perto que Miami,
120 km de carro. Yes, nossa charanga é
importada, comprada em prestações que
sabemos quando acaba, ao contrário de nós,
nossa existência que pode ir antes delas.
Quando sentimos que estamos naquela
fase boa, a casa com a churrasqueira e
sauna com as obras encerradas, os negócios
indo de vento em popa e aquela TV
citoplasmática de 180 polegadas, o “enfim,
comprei”! Juntamos a família e os amigos
para a inauguração. Um terço não vai
Chagas das Almas
98
porque tem tudo que temos; outro terço vai
porque não tem e temos. Outros não
aparecem se somos do tipo que ficamos
babando em nossas conquistas, fotos de
Miami, além de morarmos longe pra cacete.
Enquanto isso, a galera jovem fica
trancada em seus quartos jogando
Playstation. Alguém vai levar picanha e
coração lá para eles, que, ironicamente,
conhecem até as vísceras, embora nunca
tenham visto uma galinha na vida se não
que à moda Touch Screem.
Naquela cerveja saideira, uma série que
se insere numa quantidade que já perdemos
a conta e o sabor, quando sobraram, se
muito, umas oito pessoas ouvindo às alturas
nosso novo CD dos sambas de enredo que
as escolas já compuseram para fevereiro, o
Chagas das Almas
99
telefone toca. É a vizinha da vovó
anunciando que ela morreu.
Chagas das Almas
100
Como dizer não
Ah! Santo Deus! Como dizer não?!
Eles são um casal de amigos tão amáveis.
Mas chega. Não suporto mais as pessoas
que vivem das minhas gentilezas, sugando
da minha alma para desfilarem as suas
tediosas e cacetes. Não, nesta nós não
vamos. Não precisa de muito, uma resposta
como uma puta dor de cabeça está bem ao
nível do convite deles para irmos tomar um
vinhozinho e ver suas fotografias da última
viagem à Paris. Junto ao convite ainda vem
àquela recomendação: ― Olha, não precisa
trazer nada, não. ― Protocolo que faz
parecer querer se afirmar: "somos melhor
de vida que vocês". Há de chegar o dia em
que responderei: ― Nem travesseiros? ― A
porra da hesitação, do adiamento. Respondi
Chagas das Almas
101
com uma mentira dizendo que ia consultar a
Barbara, pois achava que ela tinha
comentado alguma coisa sobre outro
compromisso amanhã; quer dizer, abri mais
o leque para inventarmos uma desculpa e
disse que ela tinha ido ao mercado, com a
palma da mão em sua boca, pois ela estava
ao meu lado, e que então ligaríamos mais
tarde. Sim, o “ligaríamos” era já uma
informação subjetiva de que estava jogando
a roubada para a mulher, óbvio. Ela sempre
mais complacente que eu: ―Vamos sim, é
tão raramente e passa rápido. ―
argumentou. Não, discordei, sou pela teoria
da relatividade, citei Einstein: ― “Três
segundos sentados numa boca acesa do
fogão parece durar muito mais que um
delicioso beijo de meia hora numa
rapariga.” Não, não passará rápido, parecerá
Chagas das Almas
102
uma eternidade. Entrarei com o resto que
sobrou de minha jovialidade e sairei com
incontinência urinária, dores reumáticas e
demonstrando sinais de esclerose. Fecharei
com um mico ao sair: ― Onde diabos
colocaram minha bengala? ― Bem, acabei
percebendo que antes da árdua incumbência
de ligarmos para eles para dar uma
desculpa, teria que convencer a mulher.
Usando minha humilde habilidade de
cronista e junto pegando emprestada uma
veia perdida como ator, como que a
hipnotizando, disse: ― Imagine querida?
Nós vamos chegar lá, primeiro
aquele poodle asqueroso. Amanhã promete
chuva, a primeira coisa que vamos fazer é ir
ao banheiro limpar o barro das calças feito
pelas patas imundas daquele animal
mimado. Eles já têm até as toalhinhas
Chagas das Almas
103
prontas, bordadas com o nome dele:
Michel. Só para isso. Viado! Depois o
Naldão abre o vinho, pois aquelas pastinhas
malditas já estarão expostas. Claro, bem
previsível: salaminho, tremoços, ovos de
codorna, azeitonas e molho rosê. Ah!... E
sacanagem, é claro! Não, quem dera! É
aquela porra daqueles palitinhos com
mozzarella, salsicha e azeitona. No final,
quando o trigésimo álbum vier a ser
mostrado, chega o gorgonzola e já estamos
empapuçados, estratégia mesquinha. O
Naldão desagradável, não segura os bocejos
escancarados como se quisesse mandar a
gente embora. Ou esse é o melhor lado
dele? Verdade, quem adora essa porra
mesmo é a Márcia. É sempre assim. Tem
todo um ritual. Primeiro a gente fala de
futebol, eu e Naldão. Ele é Flamengo
Chagas das Almas
104
doente, sem redundância. É, dizem que tem
coisas que só acontecem com o botafogo, e
com botafoguenses também. Depois ele
vem elogiar o Lula, que nos tempos da
escola chamava de analfabeto e vagabundo.
E vocês na cozinha. Enquanto ela disserta a
rotina de seus filhos com orgulho e elogios,
você tenta falar algo sobre os nossos e ela
interrompe. Porra, cá entre nós querida:
Eles são bonzinhos à beça, mas são chatos
pra caralho! O máximo que você vai
conseguir dizer é “tem certeza que não quer
uma ajuda com a louça?” E sabe que ela vai
responder? “Que nada, amanhã a
empregada vem e lava tudo boba!” Numa
mistura de gentileza e ostentação.
Começa as fotos, primeiro álbum. A
descrição é minuciosa, pois em Paris é a
primeira vez que eles foram. Ah! Um caso
Chagas das Almas
105
que um começa a contar sobre um motorista
de táxi mal educado, o outro interrompe e
corrige:
― Não “benhê”, isso foi indo
para Sainte-Chapelle.
― Tenho certeza que não foi
"moreca". Foi indo para Notre-Dame.
A gente ali, esperando eles chegarem a
conclusão sobre um fato que não nos
interessa bosta nenhuma. Dá vontade de
dizer nas entrelinhas: ― Tudo bem gente,
quanto tempo para chegar daí à Torre
Eiffel? ― Sim querida, só você entenderia
o duplo sentido. No álbum, não, em Paris.
Pois que claro, sabemos que a Torre e o
Louvre terão um álbum exclusivo cada um.
Mas antes vem o Palácio de Versalhes,
óbvio, e sei lá por que, a narrativa deles
sobre as fotos segue o estilo barroco do
Chagas das Almas
106
monumento. Narrarão em rococó! Disse
depois a Barbara que ainda não estávamos
juntos quando fui, faz uns sete anos, numa
chatice desta, era a primeira viagem para
Disney. Mais fácil, pois podia jocosamente
pedir para pular o Pateta e o Mickey, já que
são personalidades consagradas. Essa
merda é a mesma coisa que, se por obra do
acaso, assim como sortudos acertam a
mega-sena, seis fatores me levassem a
comer a Shakira. Porra! Imagine eu
chamando a turma do pôquer para contar:
― Gente! Pegar naquelas ancas... Ah...! E a
vagina dela... é perfeitinha, só falta falar! ―
Cacete, eles podem se orgulhar, achar
interessante, mas nunca vão saber
exatamente o que é comer a Shakira,
caralho! Barbara pede calma. Ok. Vejo-a
desanimada, mas ainda há um resto de
Chagas das Almas
107
humanidade nela que me diz: ― Tem
certeza que não devemos ir?
Dou meu último suspiro, penso e tento
meu argumento fatal.
― Sabe como termina? Ao fim do
último álbum, sempre sobram algumas
páginas que ficam em branco, certo? Eles
completam com fotos de família. É uma
mistura das sobras dos eventos dos álbuns
completos, então misturam dez do
aniversário de um ano do Marquinhos,
quinze do natal e aqueles infames dos
encontros de casais. Dá saudades de Paris!
Você vai ter que ver pessoas feias, que
nunca viu na vida e ainda sendo informada:
― Essa aqui ó, é a Carmem, enteada do
meu sobrinho por parte do Naldinho. Olha a
tia Roseli! Lembra dela, não? Tadinha ela
agora está com diabetes e perdeu o pé. ―
Chagas das Almas
108
Foda-se a tia Roseli! Moooorram todos ali.
Podiam estar todos no avião para Paris e a
nave cair.
Deu certo! Mas acho que exagerei.
Barbara lacrimejando pediu: ― Pare! Eu
não posso mais, por favor, pare! ―
Revelando também certo talento na
dramaturgia. Depois confabulamos, fizemos
uma espécie de brainstorming,
esfregávamos as mãos, ríamos, nos
arrepiávamos. Parecia haver um prazer
mórbido e malicioso em criar uma
desculpa, até que... Vamos ligar!
― Oi Márcia...?! Pooooxa, chaaaato,
chato mesmo, mas desculpe, se vocês
tivessem ligado antes. Pois é, combinamos
em levar as crianças ao cinema e depois
comermos algo. Sabe como são os filhos
né... Que? Imagina se eles aceitam ir junto!
Chagas das Almas
109
“Programa careta”... Ah! Os seus meninos
também...? É tudo igual, né? E a gente
ainda tem que assistir ao filme que eles
escolherem... “Duro de matar 5”, é mole?
Duro de assistir 5, isso mesmo... Ah! Ah!
Ah...! '' Claro, McDonald’s, aquelas
porcarias. Nem fala... um vinhozinho neste
frio... Só de pensar me dá água na boca!
Então, e as fotos! Não, nunca, nem Paris
nem nada, só região dos lagos... (grgr)...
Mas vamos marcar depois tá... Olha, a vó
vem passar um mês aqui em casa sabe, a
dona Graziela, vó do Thêmis. O clima da
serra neste inverno castiga ela, tadinha...
Mas no mês que vem... pô, já está certo
Márcia. Manda um abraço pro Naldão.
Olha, o Thêmis também tá aqui mandando
um abração (não é verdade, mas é de praxe,
Chagas das Almas
110
não só nossa, dos leitores também, vem
não!). ― Tchau!
Sim, a Barbara ligou né. O plano foi
perfeito. O exercício da mentira e da
hipocrisia fora executado com primazia. E
ainda ganhamos um mês com a vovó, sim, a
velha e boa vovó que tanto matei no tempo
da escola e do trabalho. Sempre a nos
servir. Até já falecida. Ressuscitamos e
matamos. Que bom que eles não sabiam de
tal finitude ocorrida há quase um ano. Que
Deus a tenha.
A sensação de alívio só veio mesmo no
dia seguinte. Levantei radiante naquele
sábado. Fui à cozinha e Barbara estava
lavando a louça (grrr) e os meninos
tomando café papeando. De repente, me
deu na telha: ― Galera, que tal sairmos
hoje para assistir o novo Duro de Matar 5 e
Chagas das Almas
111
depois comer no Mac?! Eles se
entreolharam. E depois para mim, como se
eu tivesse dito alguma barbaridade, (sem
trocadilhos com a mulher), tipo: ― Onde
diabos colocaram minha bengala?
Chagas das Almas
112
Psico bélica
Meu testamento será covardia e
fracasso, só farei jus a uma parede fria e
sem epitáfio. Mas não quero como pena a
eternidade. Quem tanto deseja e sente-se
dono de tudo merece serenidade, pois que
cumpriu apenas o que lhes deram de
identidade, angústia. Que eles deem então a
não finitude aos hipócritas. Quão
agonizante isso! Será a morte mais perigosa
que a existência mórbida que não possamos
ter paz em vez de viver buscando luz na
obscuridade? Não quero existir bastante,
pois que isso é o que basta. Prefiro ser aí
um bastardo... Portanto, não julgo um
suicida, o mais passional dos criminosos,
que faz à vista o que eu e muitos fazemos a
prazo com a vida. Todos sentindo que se
Chagas das Almas
113
expirou o prazo de validade das boas
aventuranças. Que não vale a idade, se vai
idade, moça idade para fazer o certo e
consagrado, ou seja, reeducação alimentar,
deixar de fumar, se embriagar e ser
comedido, além do tedioso exercício físico,
não, nada compensa. Só o crime. Todo
mundo no fim está fodido. Se não vale a
pena (dos outros) é porque não se é tão feliz
assim quanto se ostenta. Vai chegar o dia
em que a expectativa de vida do homem
será a meia era! Aos 50 e pouco, já era!
Oxalá! Imaginemos quão perfeito se
ajustaria o mundo se a morte se desse aos
por aí. Como a média de hoje, os cidadãos
de 70 passasse a longevos, morrendo
lúcidos e com maior dignidade. Um
Nieymeier menino. Poderia enumerar as
vantagens que são muitas, mas deixo a seu
Chagas das Almas
114
cargo esta criatividade... Chega disso!
Quem viveu covardemente, há de morrer
covardemente. Imprudência? Não. Os
obituários estão cheios de pessoas
prudentes que se intoxicavam de saúde ou
preferiam os automóveis, ultraleves
estraçalhados no chão. Eu no máximo, sou
meio “deprê” com a vida. Mas rio e me
divirto muito. Somadas as partes e divididas
pelo mesmo valor, meu produto é zero,
apenas torpor, mas este repleto de amor.
Envelhecer é uma sina, apenas serve para
aprender um pouco a morrer. Eu não passo
de um ego, mais impotente que um cego, já
que esse consegue até ver a fisionomia de
seus filhos crescendo. Com o tato,
magnífico intento! Eu não. Encho minha
cabeça com palavras e desperdiço olhares,
todos os sentidos... Tidos... Como sãos,
Chagas das Almas
115
são? Muitos, sem sequer acompanhar o
crescimento dos filhos com todos os
sentidos. A labuta é vossa escravidão e se
dizem “olho vivo” por ganharem bastante
dinheiro que no fim é para dar o melhor ao
rebento e morrer empilhado de renúncias.
Quem dá mais? O cego de poucas posses ou
eles, ditos em boas condições de saúde,
“homens de visão” e suas donas com
casacos de visom? Todos remelentos pelas
manhãs, pois não. Embora os meus
pensamentos com minha voz e a voz dos
outros que me lembro, em qualquer língua,
sejam mudos, telepáticos, porque tanto
barulho? Da vontade de auto induzir-me ao
coma, esse processo mágico do corpo para
se entrar em off-line. Isto me parece um
déjà vu, que pra mim está mais para “à être
vu”. Já vi também, sem prévio aviso, a luz
Chagas das Almas
116
de Einstein curvar-se a Deus com elegância
e reverência, há poesia na ciência, sua
magnificência. Talvez esse seja seu único
propósito e ele se esqueceu da arte
universal, só isso. Como as cordas no
átomo que vibram em harmonia como a lira
entoando belas melodias em milagres de
vida quântica, a física romântica. Todo dia
24 de novembro, faço meu ritual beato,
presto um minuto de silencio às Sete
Quedas, brutalmente extintas por
assassinato. No fim, em dez mil e tal,
estaremos esquecidos, o foco será a caça
dos rastros do Homo digital. Portanto quero
viver minha boemia, liberdade pessoal,
como quem vive uma anarquia, um cio
espiritual, repleto de romance sensual,
como os vampiros, nos undergrounds das
noites num pub ou hospital. Melhor do que
Chagas das Almas
117
a sobriedade da melancolia, onde fico
tentando escrever explicações com pena de
lágrimas em livros sem páginas e capa dura
de edições ordinárias. Cansam-me o
melindre alheio, pessoas feitas de cristal
que se comportam como bibelôs e temos
que falar outra língua, dialeto, repleto de
eufemismos e cuidados, por fim mudando
quase o sentido da prosódia, linguagem de
criança, como um contador de histórias.
Dispenso o glamour, a futilidade no auge da
mais fiel sedução. Outra dependência, como
a devoção. Não crio mais expectativas. A
expectativa é uma boa atriz que rouba a
cena do fato. Eu queria ser competente em
motivar a ação, contemplar a ação e saber
criar atividades. Mas nasci sem dom. Estou
cansado de euforia, como quem vive de
estabilizantes aromatizados artificialmente.
Chagas das Almas
118
Minha mente mente, somente. Mas tenho
sempre à mão um caqui verde para dar
àqueles que me acusam de não ter sido
maduro na jovialidade. Sou um grão de
areia vigente... E assim vejo e sempre vi
gente, muita gente. Nesta magna e soberba
terra, filha órfã de pais celestiais, menina
dos olhos das razões universais. Ouso atirar
a pedra que ninguém quis atirar... Se já tiver
morrido, que seja um meteoro na vastidão
do infinito. Minha sina é se ferrar?
Chagas das Almas
119
Alívio ou humilhação?
Fomos às compras naquele sábado.
Qualquer sábado ora. O que diriam nossos
primatas ancestrais ao ver tão triste ritual
para busca de alimento. Um lugar
superlotado de seres da mesma espécie se
esbarrando uns nos outros em meio à
poluição sonora dos caras que anunciam ou
denunciam aquilo que você pode comprar
com aquela voz sensacional, sensual, em
tom pra lá de original. E carrinhos
congestionando o tráfego dos amplos
corredores... da morte! Ainda tem sempre
aquele fedelho que faz “vrum”, rápido
como um maldito Concorde, até acertar o
ferro inferior dianteiro do seu veículo “de
brinquedo” no seu calcanhar. Se voasse
Chagas das Almas
120
deceparia cabeças em acidentes aéreos
surreais. Como eu queria beliscar um deles.
Começamos sempre pela seção
de hortifrutis. É a tática de começar pela
pior parte, se é que, a exemplo de
programação de TV local, há alguma
melhor parte.
Resolvi ensacar uma dúzia de laranjas
Bahia, que apesar do preço pareciam
suculentas. Uma senhora ao lado, como
parte do rito completo dos humildes, me
pede para ler o preço da banana na tabuleta.
Ela ouve, me agradece e não leva.
Provavelmente sente-se saudosa como eu,
dos bons tempos em que banana era
sinônimo de coisa barata.
Depois das frutas e legumes, fomos ao
setor de carnes. Aquele, cuja fila não nos
distingue muito daquelas que os seus
Chagas das Almas
121
“fornecedores” entram para ser degolado
nos matadouros, com lágrimas que
antecipam o golpe fatal, no nosso caso, o
preço. Tomamos uma decisão sofrida,
daquelas que podem render várias consultas
no analista, tamanha culpa que produzem:
pedimos uma peça de filé mignon.
Enquanto isto, ao meu lado, uma
mocinha pedia dois bifes de chã, um
coração de boi para o cachorro –
provavelmente o seu marido – e perguntou
o preço do bucho ao atendente simpático do
açougue. Virou-se com a bolsa como quem
esconde a humilhação nela, depois voltou
para o atendente e disse: ― Não vou levar o
bucho não, é só isto mesmo. ― Fiquei
chocado ao confrontar minha visão da
situação do país promovida em
propagandas institucionais no horário nobre
Chagas das Almas
122
da TV: Escolas bem acabadas com crianças
de boa dentição, incluindo negros, além de
índices de crescimento animadores que
encerram com slogans de entusiasmar o
cidadão. Parece que a gente está na Suíça.
Então, vai ver aquela mulher não passa de
uma incompetente ou irresponsável, não é
mesmo?
Não podíamos sair sem levar algumas
coisas para as crianças. Assim, terminamos
na seção de laticínios. Enquanto pegava
duas bandejas de iogurte, um senhor bem ao
meu lado, paletó surrado e chapéu não
menos, tipicamente aspecto de aposentado
do INSS, que carrega documentos em saco
plástico, pegava e devolvia, analisando
preços, vários produtos na seção. Bem, hoje
os supermercados têm uma política
Apartheid nas arrumações das prateleiras:
Chagas das Almas
123
De um lado as seções dos produtos nobres,
estes que a mesma publicidade da noite na
TV vende com famílias cheirosas, e do
outro, os produtos baratos, com corante
vermelho sangue, cheiro de cachorro
molhado e uma série de substâncias que
nunca aparecerão em nossas autópsias.
Mas o mais desagradável foi ver um
menininho na seção de chocolates enquanto
eu pegava três caixas de bombons. Ele
demonstrava as dores de suas renúncias
com um biquinho de choro preso na
garganta e a cabeça baixa, puxando com a
pontinha dos dedos a manga da blusa da
mãe discretamente, enquanto na outra
segurava uma réplica de brinquedo
ordinária de aviãozinho comercial.
Certamente aprendera que só assim podia se
manifestar, ao contrário dos berros e
Chagas das Almas
124
escândalos dos riquinhos, apesar de saber
que, no máximo, ganharia um Batom
Garoto nas conveniências de última hora
dos caixas, feitas para... Para os donos dos
supermercados ganharem mais em cima da
gente, povo que adora quinquilharias, é
claro.
Demos sorte naquela hora que talvez
seja a pior das compras, ou seja, a fila para
pagar, ela nos dá tempo para lembrar o que
faltou. Devolver o que culpou, se
arrepender e refletir que aquele carrinho só
durará pouco mais de uma semana frente a
minha voracidade e a das crianças. E ainda
pagamos taxa de esgoto, ca-ce-te!
Já terminando a vítima da frente, vejo
atrás de mim, e aos lados: A mulher
cegueta, a mocinha envergonhada, o senhor
aposentado e o menininho relegado. De
Chagas das Almas
125
repente começou a dar uma sensação
desconfortável ao perceber meu carrinho
cheio de guloseimas, supérfluos. Sentia
como se eles me olhassem a pensar: “Você
é o culpado por tudo.” Suava, rezava para a
caixa contabilizar o mais rápido possível
nossos itens. Para piorar, ainda tive que
ouvir a mocinha do caixa falando para outra
colega ao lado em alto e bom tom: ― Olha
só fulana, isto aqui é que é champignon ó,
que te falei outro dia, nunca provei, tenho a
maior vontade, mas olha o preço.
Até que, enfim, a minha mulher
entrega para ela o cartão para pagar aquela
quantia que achava que todos em volta
esticavam o pescoço para ver, com mórbida
curiosidade como faz o povão quando, por
exemplo, cai um carro dentro do rio.
Chagas das Almas
126
De repente, eu e meus fantasmas fomos
pegos de surpresa com a minha mulher me
puxando abruptamente, mandando a gente
sair rápido dali. Largamos tudo e, lá fora
com ela me empurrando táxi adentro,
perguntei atônito:
― O que é que aconteceu, mulher? ―
No que ela arrematou: ― Nosso cartão foi
recusado...
Chagas das Almas
127
Hello Horooy
Se verter-me às lembranças dos fatos
bem assinalados, sobra réstia de sucesso na
obscuridade do mundo das sombras. O real
não é palpável, posto que história escrita
por escribas endinheirados só discuta a
parte que nos cabe de liberdade, que para
alma está para vida como o mundo está para
o estreito de Gibraltar. Sentados nas
confortáveis poltronas de suas
esquizofrenias não diagnosticadas, bebem
muito uísque doze anos e fumam charutos
cubanos, quanta ironia, discutem em
gargalhadas as cifras e saldos de extratos
milionários e o que pensam em ilusão
apenas de sobras mais gigantes sobre os
legados de seus nomes. Depois vão vomitar
o que nós também vamos limpar. Por isso
Chagas das Almas
128
eu ouço agora Alice Cooper, sem entender a
língua deles, pouco importa, mas destilando
da melodia a rebeldia que brota nas
entranhas de seus olhos pintados em
maquiagem preta, junto aos solos metálicos
rebeldes com causa. Outro tipo de sombra,
contra os males do mundo, as vistas das
cavernas, denunciando que todos nós
estamos presos nas correntes dela, os
contempladores, apenas com a promessa da
vida eterna, tolos é o que somos. Acendo o
cigarro e ouço mais músicas de roque
pauleira e progressivas. Junto, vêm da
janela, sons de bombas e torpedos tipo de
guerra, ecoadas do morro perto e de destino
incerto. O amor é isso em sua versão
cinzenta, paixão por matar. Não choro mais
por estas coisas e digo sem cerimônia que
me lixo para cada ser humano anônimo. Eu
Chagas das Almas
129
quero nomes! Se não há, não há crime, a
exemplo dos corpos para a justiça. Esta
impessoalidade é insuportável, logo, não
desperdiçarei mais lágrimas para números
de “cepeéfes”. Isso não é frieza, é cansaço.
Sei que o mal não se abate só ao lado, mas
o egoísmo está se impregnando em mim, é
a “alma do negócio”, não estou isento por
ler muito, sou o mesmo nefasto, eu também
construo o mundo. Tramas familiares
entoam a dor dele também. Não, nada é tão
ruim só da porta para fora, o mesmo ocorre
na casa de hoje e de outrora, quando os pais
me acordavam com canções em francês.
Cada um é sobra de barro ou argila
facilmente moldado para servir. Servil.
Não! Ser vil, cada qual é em verdade, da
velhice à mocidade. Ingênuos, um dia
achamos que nos juntamos e entre canções
Chagas das Almas
130
de Chico e Caetano mudaremos o mundo.
Depois passa o tempo e somos também
parte “deste mundo”, eles são. Esperando
por um céu, onde sempre julgamos merecer,
mesmo sendo mais um reles e abjeto estar
em estado de vir a ser. Não importa à física,
que aqui devemos pegar um avião para
viajar de um lado para o outro totalmente
oposto do globo, espaço e tempo percorrido
por um corpo bípede saudável ou
extenuado. Para lá se vai e pronto, tele
transporte arbitrário, sem qualquer
explicação. Ida e volta, rodando em círculos
em vão.
Alguns guardam e insistem com o que
chamam de ideologia, mas são sempre
rotulados e amputados pela massa pensante.
Aqueles que pensam a vida sem a arte.
Corrige-se: Gente que processa ideias com
Chagas das Almas
131
lógica. Como eu aqui e sequer respeitando o
tempo dos verbos, para mim desprezíveis,
já que em maioria a serviço do asco e do
cobiço. Não fumo maconha e não bebo,
mas me sinto meio doidão. Defeco sacos de
bosta para a sensibilidade do futuro e me
abstraio olhando o quadro do Magritte à
minha frente, fixado na parede amarelada
pela tinta e a nicotina que lhes conferem cor
peculiar de cream-cracker, tom pastel,
destes fritos com óleo saturado, em seguida
vem a tosse, muita tosse. Mas isso já me
acontece também no campo, com o ar puro
no pomar na casa da minha irmã. Overdose
de oxigênio! Na verdade, o quadro não me
diz nada e é delicioso como uma romã, nem
sei por que, talvez apenas pelo fato de me
fazer esquecer em ínfimo e precioso hiato
de pensar em bela manhã ou antes de ir me
Chagas das Almas
132
deitar, me abstraindo com os olhos fixos na
distração. Pelos homens de charuto, nos
perdemos de nossos focos e das velhas
prioridades, vamos para cama para
despertar bem cedinho para viver, dormir,
acordar, viver, dormir... Isto já é morrer,
apenas chega uma hora em que não nos
levantamos mais. Simples assim.
Chagas das Almas
133
Ah, se não fossem cortar a minha
luz!
A fila do banco estava de lascar, minha
senha era 264 e o torturador eletrônico
marcava 167.
Ah! Se não fossem cortar a minha luz!
Não tinha jeito, era esperar ou esperar.
A vantagem é que numa agonizante fila de
banco sobra tempo para muitas
reminiscências. Comecei a me lembrar da
época em que os bancos tinham uma fila
separada para cada caixa. Eu era jovem,
mas já me irritava em ficar em pé muito
tempo. No final do mês, em dias de
pagamento, ficava furioso e me contentava
em brincar comigo mesmo vendo um careca
da fila ao lado ir ficando para trás. Mas às
vezes, quando faltavam dois antes de mim,
Chagas das Almas
134
tinha aquele office boy pentelho, com um
malote cheio de pagamentos e cheques para
depositar e o careca acabava, quando não se
ladeando a minha poliposition, saindo antes
de mim da agência. Eu ainda via um
sorrisinho sarcástico no canto de sua boca,
provavelmente produto da minha mente, e
pensava: “filho da mãe!”
De repente perdi a distração com o
sujeito da frente a me falar cochichando: ―
É um absurdo não é mesmo? Trezentas
pessoas na fila e apenas dois caixas para
atender!
― Verdade mesmo. ― Respondi.
Nesse momento passa um gerente e o
sujeito acena para ele: ― E aí, tudo bem
amigo?
Passados mais quarenta minutos, outro
sujeito, agora o que estava atrás de mim,
Chagas das Almas
135
resolveu perder as estribeiras: ― Caramba,
este banco é uma bosta!
No que num ato impensado, da mais
absoluta infelicidade, aticei com um
magnífico clichê: ― É, se fosse na
Argentina, todo mundo já estava
protestando na gerência.
Pra quê? O cara se empolgou:
― É isto mesmo, vamos lá!
Saímos da fila: ele, eu (o idealizador,
como não ir?) e mais dois ou três adeptos
da causa em direção à elite opressora do
sistema capitalista. Até que surge um cara
de meia-idade, terno, gravata e bigode, o
gerente, quem mais? Que logo vai de
encontro ao sujeito em que nos
amparávamos, não perdendo tempo
convidou-o logo para um café:
― Em que posso ajudá-lo?!
Chagas das Almas
136
Como é extraordinário este feeling dos
gestores experientes para identificar e
eliminar líderes de uma iminente rebelião.
Isto mesmo. Perdemos nosso mártir para o
sistema, ou melhor, para um café
fresquinho num box com cadeiras
confortáveis.
O pior de tudo é que eu e os três
dissidentes do levante tivemos que voltar de
cabeça baixa para o final da fila.
Ah, se não fossem cortar a minha luz!
Eu continuava puto porque já era
correntista do banco, mas não passava de
duas estrelas há quase dois anos. Verdade,
uma agência bancária é o protótipo perfeito
do capitalismo. Olho à minha direita e vejo
uma fila para clientes Plus – dizia a placa.
Uma perua e um senhor muito bem vestidos
encabeçavam um caixa exclusivo, enquanto
Chagas das Almas
137
os outros estavam lotados. Depois, olho à
minha esquerda e vejo uma fila destinada a
gestantes, crianças de colo, deficientes e
idosos. Nela havia uma linda moça que
supus estar no primeiro mês de gravidez,
com o resultado do teste de urina da
farmácia na bolsa para qualquer
eventualidade. Depois outra de meia-idade
suando em bicas ao segurar uma criança de
nove ou dez anos no colo. Na terceira
posição, um cara com uma bengala que
devia ter se contundido na pelada do fim de
semana. Por fim, um idoso com tudo em
cima, que se disputássemos um confronto
de check-ups, certamente me daria uma
surra.
Este banco não era daqueles que
punham cadeiras para a gente esperar,
talvez porque se tratasse de mais humilde
Chagas das Almas
138
instituição financeira multinacional. Crise
na bolsa, estas coisas... Então não obtivesse
recursos suficientes para tal investimento,
havemos de compreender. Mas não se pode
dizer o mesmo para o marketing, cacete!
Em cada parede um pôster anunciando o
título de capitalização ou seguro de vida do
banco, com aqueles seres humanos
perfeitinhos, família modelo, Acima de
tudo, bocas com sorrisos fartos de dentes de
porcelana, brincando de roda num gramado
tapete, coisa de fazer inveja mesmo. Na
verdade, aquele monte de cartazes que
anunciam as vantagens do banco “que foi
feito para você”, faz-me quase pensar que
eu estou dentro de uma entidade
filantrópica.
Este dia no banco estava trepidante
mesmo. Mais meia hora e ouvi um cliente
Chagas das Almas
139
espinafrar uma daquelas gostosinhas do
atendimento preferencial, porque haviam
feito um débito errado em sua conta
corrente:
― A gente faz um estorno Dr. Roberto
Alhadas!
Reconheci a senhorita Meireles.
― Não adianta, agora já voltou um
cheque meu, quero fechar minha conta.
Continuava bravo o janota, até que sem
saber mais o que dizer, ela apaziguou os
ânimos dele com uma baita oferta:
― Olha só, para lhe recompensar dessa
situação constrangedora vamos suspender
suas tarifas para os próximos meses. E
podemos lhe financiar uma viagem de férias
para Aruba. Seu saldo médio permite.
O cara não deu o braço a torcer, mas
saiu feliz e triunfante. E eu, bem... Eu fiquei
Chagas das Almas
140
muito puto! Não me contive, larguei de
novo a fila e avancei sobre a mesa da
Márcia, primeiro nome daquela ordinária da
senhorita Meireles, que na verdade nem era
gostosa.
― Pô garota, eu tive semana passada
aqui com você pedindo quase de joelhos
uma redução de tarifas, explicando minhas
dificuldades e você disse que não era
possível, que dependia da regional e blá,
blá, blá... E agora esse cara vem aqui, arma
um barraco e consegue isenção total,
cacete?! Só porque ele é um empresário
bem sucedido na fabricação de Oboés?! ―
Um cara na fila me informou por acaso...
Ela ficou meio em apuros e diante
daquela multidão de pessoas olhando de
soslaio sacou a resposta:
Chagas das Almas
141
― Desculpe senhor, mas este benefício
só pode ser concedido aos clientes Plus.
“Ah, se não...”
Não, nada disso. Saí furioso porta fora
– porta adentro – porta fora, enfim, daquela
espelunca! Quando dei por conta estava no
interior de um supermercado passando no
caixa onze caixas de velas.
Chagas das Almas
142
Para onde vai a odontologia?!
Sabe aquela puta dor de dente? Pois é,
foi ela que subitamente me pegou em pleno
centro da cidade do Rio de Janeiro num
daqueles dias escaldantes na casa dos 40
graus. Acabava de chegar de Petrópolis via
terminal Meneses Cortes para mais uma
aula de Oboé na escola de música Villa
Lobos. Eram aqueles tempos em que eu era
de esquerda radical. Resolvi que o melhor
para minha vida era ser um profissional
anônimo. E como queria ser artista, nada
melhor do que entrar para uma orquestra, e
tocando oboé, óbvio! Até que percebi o
quanto uma orquestra é burguesa. Vários
integrantes se esforçando, dando o máximo
de seu fôlego ou punhos para atender a
vaidade e a fama de um cara empertigado,
Chagas das Almas
143
que só sabe fazer pantomima e muita fita,
se gabando de, com uma varinha na mão,
comandar o espetáculo, como uma fada
madrinha! É... Pensamento de esquerdista
babaca mesmo. Mas isso não tem nada a
ver com a história.
A dor de dente, fruto daquele canal tipo
"do Panamá" que negligenciamos o
tratamento é pior do que dor de parto, de
barriga e de cabeça, quando se está com dor
de dente, sim.
Entrei numa farmácia na Carioca e pedi
um destes engodos “Passa já”, “Um
minuto” ou qualquer anestésico local. Só
tinha xilocaína e foi aquilo mesmo. Pedi
para usar o banheiro e coloquei meio tubo
no lado inferior esquerdo da boca. Houve
um alívio imediato, mas ao agradecer o
balconista da farmácia e colocar o pé na
Chagas das Almas
144
porta, veio uma fisgada. Eram aqueles
malditos nervos novamente. E pensar que
vinha utilizando regularmente um creme
dental daquela tripla-ação, anti-placa
bacteriana que o reclame da TV anunciava
como a panaceia bucal.
Corri desesperado e me deparei com
um prédio comercial na Nilo Peçanha,
entrei no elevador e respondi ao
ascensorista:
― Para onde tiver um dentista!
Sensibilizado, ele respondeu;
― Dr. Silas Ubirajara, sala 406.
Adentrei o consultório, sem
recepcionista bati na porta, ele abriu e
apesar de perceber meu desespero disse que
tinha dois na frente. Olhei para os
respectivos, um tirou os olhos rápido de
mim e voltou-se para a revista cuja capa,
Chagas das Almas
145
me lembro, estampava a vitória de FHC nas
eleições. Bem, estou contando essa história
sofrível e o Lula está terminado o segundo.
O outro, um moleque, estava mais
confortável, com fones no ouvido nem
tomava conhecimento da situação. Foram
50 minutos cronometrados em que eu me
postava como uma cadeira de balanço em
movimento. Até que entrei e me sentei. O
Doutor me perguntou qual era o dente e
após eu responder ele olhou e disse que não
tratava de canais. Indicou-me um colega
perto dali, Rua Debret, sobreloja, ―
Segunda à direita saindo do prédio. ― disse
o especialista em cáries.
Lá fui eu, sem me dar conta, em oito
minutos estava no consultório que para
minha sorte encontrava a porta aberta com
o Doutor “não me lembro o nome” sentado
Chagas das Almas
146
na cadeira do cliente tirando uma boa
soneca. Para chamar sua atenção, não tossi,
disse: ― Aaaaaiii...! Ele despertou. Fez o
mesmo procedimento do dentista anterior,
mas não olhou. Quando eu disse que era em
baixo, ele foi decisivo:
― Desculpe-me, mas canal, só trato da
arcada superior. Mas tenho um colega aqui
perto que pode te ajudar, Rua da Quitanda
40, esquina com a Sete de Setembro.
Percebia que fazia um tour no centro
do Rio ao bel prazer das ciências
odontológicas e nunca estas ruazinhas
conhecidas me deram tanta raiva. Fui até lá
em absoluto sacrifício. A essa altura com
meu lenço no rosto provocando piedade aos
transeuntes mais sensíveis, se é que há.
Entrei no consultório do cara, Dr.
Rulfino Salatial, li em letras garrafais na
Chagas das Almas
147
plaqueta da porta. Dei mais sorte ainda, mas
será que eu posso dizer isto? Bem, quero
dizer, peguei o Dr. sem pacientes, chegando
do “volto já” que anunciava um pedaço de
papel colado com durex. Entramos,
expliquei toda a história quando tive que
ouvir:
― O Senhor me desculpe, mas já estou
de saída, entro de férias e vou viajar com a
família, meu voo sai em três horas, além do
mais, dos superiores eu só trato de canais
nos dentes molares.
Eu não me contive e gritei:
― Filho da puta!
Começamos a discutir:
Eu blasfemava:
― Cada um de vocês deve ter feito um
ano de faculdade e um mês de pós-
graduação, seus lobistas! E ainda querem
Chagas das Almas
148
ser chamados de Doutor! E aposto que vai
para Orlando seu cretino medíocre! E
peguei pesado: ― Não, seu dentista!
O cara então resolveu só ouvir,
impassível. ― Quer dizer que se eu for a
um oftalmologista vou ter que escolher
entre um profissional de cegueira, catarata
ou miopia?! E deve ter ainda especialista
em olho esquerdo ou direito, castanhos e
azuis? Gargalhei irônico. ― A boca já não
é uma especialidade no corpo humano,
cacete?!
Acalmei-me, pedi desculpas, depois
implorei que ele abrisse uma exceção, ele
não acatou, e como a dor continuava
insuportável, perguntei gentilmente se ele
tinha alguém para me indicar. Reticente, ele
disse que era difícil:
― Pré-molares? Só na Barra da Tijuca.
Chagas das Almas
149
Saí lacrimejando, era uma mistura de
raiva, autocomiseração e, lógico, a puta dor
de dente. Olhei para o relógio, eram
dezesseis horas, perdi minha aula de Oboé.
Que chato, estava quase pegando a
embocadura!
Resolvi então chutar o pau da barraca e
fui para o Bar Luís, pedi chope e vodca. Saí
cambaleando e parti para pegar o das
dezenove horas no Castelo. Anestesiado
pelo álcool, apaguei no ônibus e cheguei a
Petrópolis.
No dia seguinte, com ressaca e dor de
dente, tratei de ligar logo, bem cedo para o
meu velho dentista, marquei na primeira
hora da manhã. Sentei, colocamos o papo
em dia. Ele abriu o dente que ainda doía.
Ele anulou a dor e tirou uma radiografia e
evasivo me receitou Amoxicilina, cujo
Chagas das Almas
150
preço me faz maldizer Fleming! Mas
tirando a máscara falou:
― Não é canal.
Quando eu me sentia aliviado e
envaidecido, ele disse:
― A coisa é mais séria, vou ter que te
encaminhar para um especialista em
disfunção Buco-Têmporo-Maxilo-Facial.
Atônito e abatido, eu falei:
― Cacete! Está bem... Mas será que eu
posso ir agora mesmo?!
― Creio que não ― disse ele ― Esta
especialidade só no Rio.
Chagas das Almas
151
Lá no futuro
Certo dia num futuro mórbido, quase a
2100 D.C., dois donos de casa Classe Dawn
se encontram na seção de águas do
Teramercado da cidade. Analisando
minuciosamente os produtos, seus preços de
prazo e composições subliminares, um
deles deixou escapar um comentário, coisa
típica e eterna dos humildes que precisam
da atenção de estranhos para aliviar o
abandono que a sociedade lhes impõe.
– Pois é – diz João – a sobrevida está
pela hora da morte!
– Verdade – diz Antônio, com a sua
distração de autômato: – veja só, a garrafa
de água natural está mais cara que um litro
de leite!
Chagas das Almas
152
– E essas turbinadas? Só rico pode
comprar!
– Você tem algum problema sério de
saúde?
– Por quê?!
– Desculpe... É que eu estou vendo no
seu carrinho alguns produtos ultra-light e
extra-diet.
– É... Lá em casa todo mundo está com
glico-colestero-metastático alto.
– Pois é, e pensar que antigamente, na
idade moderna, quando ainda não tinham
inventado a geladeira e descoberto os óleos
vegetais, as carnes eram conservadas em
banha de porco. Só se cozinhava com
aquilo e não morria tanta gente como hoje
de problemas no coração.
– Porcooo... Ah é verdade! E o que eu
gasto com os remédios fito transgênicos!
Chagas das Almas
153
– Claro, os laboratórios, como tudo
atualmente, estão todos nas mãos dos
chineses! Por que você não tenta os
alopáticos? São mais em conta e os efeitos
colaterais bem mais brandos!
– Pode ser... Você viu ontem no
telepático jornal da noite a prisão do
Deputado que foi acusado de devastar áreas
de concreto para extração de terra?
– Vi! E o desgraçado vendeu quase
cinco toneladas para o exterior! Mas na
VEJA que eu ganhei de brinde pela compra
de um dropes outro dia, tem uma matéria
muito boa falando sobre a impunidade de
nossos políticos corruptos e dos
movimentos dos “sem roda!”
– É, esta corja! E a nave presidencial
que levou o presidente e toda aquela
comitiva para a Groelandia?! É, podia ter
Chagas das Almas
154
caído! Ah, Ah...! Por isso que agora eu só
voto na esquerda-volver. Eles propõem uma
contra-reforma agrária que promete assentar
mais de três mil famílias por ano em
escaninhos!
– Balelas! Esse José Sarney...! Não é
imortal só na ABL não! ...Bem, eu ainda
prefiro continuar votando na meta-direita,
pelo menos eles não mexem na minha
vidinha. Imagina tirarem minhas bolsas
Família Plus, “Minha casa minha vida”,
“minha privada entupida, kkk...!” Pensando
para si, João se recobra da sua condição
patética e renitente, olha para o carrinho de
Antônio e muda prontamente de assunto: –
Puxa, que irado... Sua família deve ser
grande!
– Como? Ah sim... Todos estes
produtos de farinha de carne? É... Lá em
Chagas das Almas
155
casa somos eu, minha esposa, três
adolescentes e dois cachorros! É... Eu sou
professor entende? Bem, eu tenho que ir.
Minha mulher vai chegar em casa e...sabe
como é...
– Ah, como não?! A minha também e
ai de mim se o jantar atrasar...! Meu nome é
João, prazer em conhecê-lo! Qual o seu?
– Antônio, o prazer foi meu. Aliás,
qual é o final do seu CPF?
– O Meu é 34 e o seu?
– O meu também é par! Quem sabe,
com este novo sistema de revezamento de
pedestres a gente não se esbarra por aqui
numa próxima vez...?
Em seguida às palavras de João, se
ouve o barulho de uma sirene assustadora
que vem avisar o próximo apagão do dia,
medida proveniente do PRÉ-BRASIL 2100,
Chagas das Almas
156
Programa de Racionamento Progressivo e
Estratégico de Energia Solar do Governo
Inácio Rousseff Neto... Quando se ouve a
voz apressada de Antônio sumindo no
fundo...
– Quem sabe?! Até algum dia...!
Chagas das Almas
157
Bula do Tempo
(genérico)
Lembro-me de quando senti pela
primeira vez a tristeza de ter levado um fora
de uma garota que estava apaixonado.
Quando eu me abria às pessoas íntimas, o
que mais ouvia como consolo era: ― O
tempo é o melhor remédio. Lembrando-me
desta metáfora banal tão comum em nossa
cultura, pensei como seria uma bula para
“este remédio” e deu nisto.
– Informações ao impaciente: A
sucessão de anos, dias e horas que
envolvem a noção de passado, presente e
futuro, que compõem o tempo exercem uma
ação benéfica ao sistema nervoso quando
associado ao espaço. A relação espaço-
Chagas das Almas
158
tempo se desenvolve por meio de quatro
dimensões aonde o tempo é a quarta,
necessária à determinação de um fenômeno
na assimilação pelas ideias do contexto da
realidade pelo sistema cognitivo humano. A
ação em humanos é meia vida a mais, não
ultrapassando a média de 70 anos,
variando-se os cuidados clínicos e
nutricionais.
– Indicações: Suster o corpo e alma
em estado vital, sendo também eficaz no
tratamento coadjuvante das dores de
cotovelos, estado de viuvez; pacientes que
sofrem do mal de abandono ou perdas e
traições da mesma origem. (experiências in
vivo).
Chagas das Almas
159
– Cuidados de armazenamento: Deve
ser armazenado na alma, sob o abrigo de
cobranças e pressões e administrado
segundo o bem estar do paciente em suas
manias de passado e futuro.
– Uso na Gravidez: Sugere-se o
controle da ansiedade nos últimos dois
meses e cuidados em prematuridades,
principalmente nas parturientes que sentem
a gravidez como sintomas de doença.
– Interrupção do tratamento: A
suspensão abrupta do uso do tempo se
relaciona aos casos de suicídios, o que
significa em óbito. Neste caso, deve se
consultar um psicólogo ou neurologista.
Chagas das Almas
160
– Reações adversas: Em 90% dos
pacientes, foram registrada impontualidade,
desorganização, uso exagerado em trabalho,
devoções, leitura de livros sagrados,
contagens de cédulas e valores em extratos
e más relações com o desejo entre outros.
– Contra-indicações: O medicamento
é contra indicado em pacientes que fazem
uso da ociosidade, preguiça e
vagabundagem patogênica. Também
àqueles cujos destinos já estão marcados
para morrerem subitamente em eventos de
causas estúpidas como em acidentes aéreos.
Foram registrados casos de tormentos em
presidiários, filas de órgãos públicos e
transito de automóveis e outras
neurastenias.
Chagas das Almas
161
– Superdosagem: O aparecimento de
manifestações causadas pela superdose de
tempo inclui com mais frequência: solidão,
saudosismo, nostalgia, dores reumáticas e
correlatas, esclerose, abandono, depressão
do SNC, incluindo alucinações.
Experimentos com placebo demonstraram
que o uso concomitante da fé com os
desígnios do tempo obteve respostas 50/50,
só causando mais alivio das dores nos que
não utilizaram placebos. *Farmacocinética:
excretado pela vagina materna e eliminado
em submersão de terra ou cinzas.
– Pacientes idosos: Relacionado a
superdoses, vale advertir que dependendo
das condições físicas e psicologias, a
continuação do medicamento é contra
indicada, podendo ser remendada dose alta
Chagas das Almas
162
de ar intravenoso em processos de
eutanásia.
– Posologia: 24 horas por dia, durante
12 meses, por anos. Como o uso da
insulina, reguladores de pressão e outras
drogas para doenças crônicas, até
desaparecerem os sintomas ou a critério do
acaso.
– Prazo de validade: Vide lápide.
• Não desaparecendo os sintomas,
consulte seu médium.
Chagas das Almas
163
Um cigarro à meia luz
Fecho cada dia num ritual de madrugadas.
Deito na cama e acendo um último cigarro à
meia luz. Repenso o dia, quão igual foi ao
de ontem e começa logo uma regressão
involuntária. Vejo o ano com a mesma
ótica. Vou até quase uma década. Daí,
passo para uma espécie de outra vida, mas é
a mesma carnação. Tenho um
“psychotiming” estreito. As lembranças
dos últimos trinta anos parecem as de
poucos meses. Não que as imagens sejam
todas nítidas, mas as certezas e sensações.
Passei a entender que os meus amores por
Sônia, Marisa e Adriana, sempre foram
possíveis. Não havia razão para a
insegurança e covardia que me fez perdê-
las. Vejo seus rostos, toda beleza e
Chagas das Almas
164
grandiosidade de suas personalidades, que
nunca fora idealização, mas boa intuição
perdida por covardia. Percebo ainda que os
meus primeiros meses com a Barbara
podiam ser anos daquela extra ordinária
alegria! Contudo, o tempo cronológico
mostra que não há mais nenhum de nós
igual, somos agora o produto de mais trinta
anos. Outra pele, outras vidas e
circunstâncias. Apesar do estado atual de
felicidade ser um medidor de saudosismo, é
isso que faz com que as pessoas variem
suas emoções em reencontrar velhos ex-
amigos. Quanto mais psychotiming (que
não é o tempo psicológico tradicional),
menos apego, quanto menos, mais
impressão de que o outro responderá como
antigamente. Assim, não há ninguém
censurável ou louvável.
Chagas das Almas
165
Às vezes no silêncio e na solidão da
noite, com aparelhos e bocas desligados me
vem estreitamentos comparativos de fatos
que geram certa angústia. Meu filho fez
vinte e três, a idade que me casei. Eu era
dez anos mais novo que meu cunhado,
agora sou quatro anos mais velho. Meu pai
com minha idade, cinquenta anos, assistiu
comigo a derrota triste da seleção brasileira
em 1982, eu tinha dezoito anos.
É difícil querer dormir, tenho medo
dos sonhos bons. Pior, junto há o despertar
tentando juntar seus pedaços em
lembranças furtivas. Têm aqueles com
meus irmãos em festas e bares, os de flertes
com moças lindas sem rosto definido, as
perdidas ou desconhecidas. Há ainda os
recorrentes com os anos dos últimos
trabalhos, de bem com tudo e todos. Não há
Chagas das Almas
166
culpas e recalques, que bom, fugi desta
máxima de Freud, ficando apenas com a de
que "os sonhos são manifestações de
desejos." As pessoas não são amigas, não
mais, arbitro, que amigos não são sazonais,
bem como valor algum há em amores
platônicos eventuais. É necessário um
mínimo de convívio, notícias. Assim, o que
temos nas redes sociais são contatos, entre
eles amigos a se contar nos dedos de uma
mão, além de pessoas bacanas e parte de
boas lembranças de um tempo, apenas...
Não há necessidade de sincronia temporal
para isso. Voltando a mim, todos os enredos
deleitáveis no sono profundo consagram-se
em verdadeiros pesadelos no amanhecer,
porque desafiam a vigília, desta feita no
café e no primeiro faiscar do isqueiro ainda
na cama, daí o temer.
Chagas das Almas
167
Uma noite destas, no terceiro trago,
olhei para o cabideiro e vi minhas vestes
dispostas como a minha imagem vista por
ébrios na rua soturna: Camisa acima, calça
abaixo e por coincidência meu par de
sapatenis no chão próximo as suas bocas
puídas por aqueles aquiles. No cume, o
velho boné de feltro preto à moda dos
homens do cais europeu que fica ali de
enfeite, pois que como os óculos nem uso
mais. Com as pontas dos cabides verticais à
vista, a imagem parecia de um espantalho
de mim mesmo ou abantesma mal vestida,
sempre a mesma. Talvez um hibrido, o
boneco desengonçado a espantar o espectro
alado, como um símbolo mitológico da
dicotomia sonhar versus não viver. A
fantasia na TV Memória contra o dia
seguinte com realidade do ser ao vivo.
Chagas das Almas
168
Tomadas toscas sem ensaios, que o
personagem mudo sabe a sua participação
modesta de cor, sei lá...
Parei de colocar meu corpo seminu a
assistir isso em conforto e tento não mais
relutar ao torpor. Entreguei-me ao nefário
confronto. Agora, apresso o ritual da noite
assistindo o dissipar da fumaça do último
trago do cigarro que dizem matar aos
poucos, mas que só vejo demorado demais.
Em seguida, com calma, o apago a meia
guimba, depois o abajur à meia luz, e por
fim, sem perceber... a mim mesmo à meia
alma.
Chagas das Almas
169
Nosso lar
O nosso templo é a nossa casa. Nosso
deus, as almas nela habitada. Juntos,
formamos um lar. A casa, lar. Somos ou
criamos o rebento. A família se abriga e
inteira colabora, não importa a beleza de
dentro, nem a de fora. Passando da porta,
juntos ou sozinhos, estamos protegidos
contra os males do mundo, abrigo de nossos
teréns, itens pessoais. E bichos de
estimação, se é que há. Acalanta até a nossa
solidão. Isto nos define como ser, a casa
isso faz. Sem nenhuma enganação, do
jovem ao ancião. Abrimos as portas para os
bem chegados e para os que nem querem
ser. Por isso, às vezes, somos nela mesma
violados, já que a porta principal não é de
mogno nem esquadria, pois sim bem mais
Chagas das Almas
170
aberta, é cardíaca. Se sair um, sair outro,
mesmo tristes, o consolo vem dela, a casa,
mude o endereço, a pintura. Tudo se auto
retoca, do chão ao teto, posto que é uma
edificação de abstrato e concreto, feita por
nós e os provectos, todos os arquitetos.
Quando voltamos de maior ausência,
vindos de aeroportos incertos, dor nas
costas por conta dos acentos duros da
terceira classe, vimos se matar em nós uma
saudade sem igual. No largar-se no sofá da
sala, no passar de um café fresco, na cabeça
sob o travesseiro velho. Ah sim! Sobretudo
a “nossa cama”! Seja de colcha remendada
ou bacana. Bem vindos até os vizinhos, dos
cacetes aos bonzinhos. Melhor que desfazer
as malas, isso sim é mais chatinho... Não!
Não há nada igual! Tantas sandices de nós,
seres humanos do cativeiro lá fora:
Chagas das Almas
171
confrontos, competições e violência, assaz!
Nesta guerra que enfrentamos dia-a-dia,
felizes os ricos, os pobres e todos mais,
contanto que possam dizer: ― Eis minha
Casa, onde vivo a plenitude da paz sonhada,
sem olhos que me julgam ou simplesmente
insinuem qualquer coisa, de mau ou de
bom, nada a declarar... Onde eu posso me
espreguiçar, bocejar ou peidar ao luar.
Qualquer gesto de forma nobre ou feiosa.
abrir completa e incondicionalmente
minhas asas para ao ar.
Chagas das Almas
172
Reencontro
Deodoro Schmidt disse:
Ao Thêmis, saudade e referência...
“Por entre acordes de uma guitarra,
duas crianças inauguram pontes em seus
carrinhos de mão. Guia-os a tristeza e a
solidão da distância da casa. Abandonados
a eles mesmos, cúmplices nas acrobacias
da alma, transformam o recreio numa
revolução em que só eles sobrevivem. A
vida será mais dura à frente. Beberam
todos os excessos separados sem saber que
a vida escreve os roteiros com os mesmos
personagens.
Agora não mais prefeitos de
mentirinha, servem aos alcaides modernos
como velhos camaradas que a cidade
Chagas das Almas
173
pequena e a derrota da vida os
reconciliaram na cilada do conhecimento.
Viveram em quartos com pôsteres de Alice
Cooper, ouviram Lennon e McCartney em
seus beliches, pelos corredores da casa. As
pernas tortas denunciaram que só um foi
capaz do futebol. Mas a dor estava sempre
como disfarce da memória. Um herói do
outro. Cabeleireiras e merendeiras negras.
O teatro e a leitura. O armazém
improvisado no quarto de empregada.
Foram tudo sem o mal! Este surpreendeu
vindo das ausências e perdas. Da solidão.
Separados, agora torcem para que cada um
tenha se mantido fiel ao que foram. Sem
isso estarão esquecidos. Leais terão
validado todo um Ateneu!”
Chagas das Almas
174
Do referenciado, não menos...
É a sobra do herói, ou apenas seu alter-
ego que responde agora, já que as crianças
revolucionárias dos recreios, de capa e
espada, foram mortas pelos alcaides, como
Guevara que também mereceu pôster nas
paredes dos arredores das casas,
amontoados, igualmente atraiçoados pelas
costas. Entre toda solidão e tristeza das
distâncias, ao menos tínhamos o nosso
casarão da Rua Koeller, só que perdemos a
posse na primeira infância, no apogeu, no
Ateneu. Lá, nós é que éramos os Reis.
Depois, ainda acreditando em nossos ideais,
não passamos de súditos, já que se referiu
aos alcaides. Sim, verdade, os excessos que
bebemos separados ajudaram a manter a
realeza, a não edificar belos castelos, ou
melhor, fê-los de areia. Digo por mim,
Chagas das Almas
175
claro, com inúmeras viagens levadas pelo
mesmo carrinho de mão que nos inaugurou
e depois dissolvidas lentamente na
maturidade pelas brumas e espumas pretas,
como as cabeleiras e merendeiras. Será?
Não fosse seu universo particular trancado a
sete chaves, tão submerso, era para sermos
o melhor amigo um do outro. Mas respeito
e de certa forma é parte sua que admiro, e
então o quê?
Os livros e o teatro, junto aos Beatles e
Alice Cooper, continuam acalantando em
melodia a solidão de cada dia, do vácuo do
tempo desperdiçado, já que de fato, a vida é
sempre dura à frente. Tem as perdas e
ausências sem escolha e as com escolha.
Mas com a meia idade batendo à porta,
percebemos que essas são tão
incontroláveis quanto à morte. Perdemos
Chagas das Almas
176
voos e viagens, amigos, oportunidades,
amores (tudo artigos de ocasião) para a
própria vida, isto é que parece fora da
ordem natural, mas apenas parece, pois não.
Aparentemente menos otimista, parece que
a fidelidade do que somos, formatadas em
boas virtudes e valores, pode não passar de
consolo, e todos, uns mais rápidos, outros
menos, inevitavelmente serão esquecidos.
Mas enquanto houver amanhã, os
nossos heróis não morrerão nunca, fazem
parte da paisagem, a boa parte, que sempre
estará lá. Distantes, mas uníssonos em
nossas lembranças. Basta um suspiro, uma
surpresa boa, uma epifania em papel e
letras, ainda que eletrônicos, promovido por
alguém tão querido, tão saudosamente
lembrado, como hoje ocorrido ao ler o que
li do amigo, por isso agora me regozijo e
Chagas das Almas
177
até mais animado, digo: ― Claro que tudo
valeu a pena ser vivido!
Chagas das Almas
178
Pêsames
Era seu aniversário. O casal não levou
nada. Disse Rubens para a nova namorada
de 25 anos: ― Melhor, eles não têm nada
mesmo, pode ocupar espaço, constranger ou
ofender. Amigo? Isso é assunto filosófico.
Talvez só saiba quando sofrer um acidente
e estiver segurando a maçaneta. Chegaram
à casa dele, o de sempre: Acordando. A
família toda fora, trabalhando, estudando e
inventando moda para sustentar a lar e seu
esqueleto, chegar bem tarde e não vê-lo
diante da TV, de chinelo, controle remoto
fazendo tour e os olhos cheios de remela,
acúmulo do Clonazepan. ― 50 anos amigo!
Ele ouve do sujeito incógnito que lhe bateu
à porta com a moça. Vendo tudo embaçado,
se limitava a monossílabos e contava que,
Chagas das Almas
179
com isso e um agradecimento falso e bem
comovido pelo desplante de ter sido
parabenizado, aquilo poderia acabar logo. E
acabou. O amigo com muita tranquilidade,
em 40 minutos disse que tinha que pegar a
avó na fisioterapia. Desculpa do cardápio
de fim de tarde, do happy hour. Se fosse
pela manhã seria a filha na escola ou à noite
na faculdade... “Porque Niterói está
violento demais.”
Inválido, imprestável e com a
cabeça no mundo da lua velha e minguante,
por um passado que quis cassar o mandato e
perdera, Adrian Simeth era a representação
viva da barata de Franz Kafka em pleno
século vinte e um. Mais dez anos de
casamento, os filhos casados e ele viveria
comodamente junto às aranhas do teto. Até
os seus gatos lhe poupariam. A esposa nem
Chagas das Almas
180
teria que se preocupar com sua alimentação
e se ele vivesse e sobrevivesse a tudo, tal
como as periplanetas, a relação de
dependência já teria se esvanecido no dia
oficial de sua passagem. É a viuvez branca.
Se não há dependência mútua, um não leva
o outro em seguida. Uma réstia de lucidez
fazia-o pensar: “Ela é maravilhosa e se a
amo, tenho que libertá-la. “Ela foi até o fim,
não se curou de mim.”Simeth sempre
gostou das mulheres frágeis, mas quando
elas se davam alta, ele adoecia e foi assim
que se aposentou por invalidez, por dores
crônicas de amor. Nada lhe produzia prazer
na vida que não amar incondicionalmente,
ininterruptamente e acumuladamente.
Como uma fonte de água cristalina, quanto
mais dá beber, mais brota, valores
ignorados. E isso o deformou como pai,
Chagas das Almas
181
amigo e profissional. Fez-se modelo desde
cedo por certa covardia, insegurança que
contaminou tudo. Ele já quase nem profere
palavras, inaudíveis a esta altura das sancas.
Estava para terminar o dia que se marca por
convenção, calendário e outras invenções
humanas, informando que cada um de seus
exemplares tem um número tal de anos a
ser comemorado e um padrão de ser e estar.
― Não, chorar não, que isso é coisa de
criança! Após ouvir sons e palavras de
exaltação esparsas em meio a beijos
babados e ver todos degustando com avidez
sanduíches de pão ordinário que lembra
Plus Vita, mais uma massa branca redonda
engordurado de glacê, que se come fatiada,
além do que era muito claro: Coca-Cola,
como não? Arrastou-se até a cama com a
descoordenação natural que os hormônios
Chagas das Almas
182
artificialmente produzidos provocam nas
convulsões da alma a somatizar os
músculos, overdoses de psicotrópicos. Sua
vitalidade não existia mais, sequer lembrava
a que um dia lhe conferiu um tato em
temperatura amena oferecendo viço e tesão
em alta candura que salvou a auto-estima de
algumas almas sofridas, perdidas de amor
por ele. Engoliu os comprimidos
maquinalmente, rotina do piloto
automático, sem ligar para turbulências.
Algo aconteceu no vizinho. Deu
para ouvir. As paredes casca-de-ovo da
COHAB denunciavam que o seu Manoel do
ap. 301 teve um enfarte fulminante. Houve
alvoroço, sua esposa e filhos saíram porta
afora. Logo havia uma ambulância.
Familiares chegaram e o clima funesto foi
fazendo o de costume, as pessoas falando
Chagas das Almas
183
como que cochichando. Como se para não
incomodar o descanso do cadáver. Ele
estranhou o silêncio, olhou o relógio de
plástico na parede e faltando um minuto
para meia noite colocou o ouvido colado na
parede esticando-se na cama. Foi justo na
entrada do padre no quarto do vizinho que
vinha dar a extrema-unção ao velho. O
homem da batina marrom é salvo de ser
menos barata por uma segunda denúncia, a
do odor empesteado de naftalina. Disse ele
à viúva: ― Meus pêsames.
Simeth conseguiu ouvir isso e filou
o pedido condolente do beato, resgatando
um sentimento de gratidão e solidariedade
inéditos. Junto, uma sensação "térnica" que
há muito não sentia. Tomou-o como o
melhor presente para o fim do seu dia.
Balbuciou babando, baixinho, a única coisa
Chagas das Almas
184
sincera até então no seu aniversário de 50
anos... “Obrigado Senhor! Em seguida foi
pensando em masoquismo, parte daquela
rotina, com os rostos jovens das suas
paixões idas... Em dores perdidas, até as
drogas fazerem efeito e adormecer...
Chagas das Almas
185
Alma e Espelho
O espelho é um delator de almas,
cristalinas ou manchas d’auras. Relógio
implacável do tempo de um corpo que
reflete a dor de um rosto, a alegria dos
moços. Único presente à solidão é raio-xis
de um abatido coração. Mudo nada diz, mas
não há melhor espectro da verdade inefável
de um momento infeliz. Vidro cravado na
carne...
A mente sempre mente, frente a ele
nunca novamente. Às vezes ele te diz: és
bela ou bonito, noutras, todos malditos! Te
inquire, indaga e só faz lembrar. Do que vai
sobrando de nós é refração de alguém
jamais, talvez ou também. Exposição do ser
em cada novo alvorecer... Suspiro de sim e
Chagas das Almas
186
não amar, mistura de ser e não ser ou estar.
Sensação de bola de fogo que se viu
explodir no ar. A gente olhando para ele e
ele a nos olhar, dia-a-dia, a cada alvorecer,
até o inevitável instante sublime-cortante,
em prata-escarlate, de tudo se estilhaçar e
falecer.
Chagas das Almas
187
Abstinência por ilusão
De repente eu acendo um dos cigarros
que já perdi a conta, malditos apenas por
matar aos poucos, ineficazes em produzir
euforia. É a única fonte do cérebro que
produz hormônios, já que há dias ele está
sem o antidepressivo que custa os olhos da
alma. Tudo conspira contra o ego agora,
sedento de falsas explicações, de coisas
incutidas para enganar e lhe dar falsas
esperanças, fonte de seus desejos, fantasias
e mentiras próprias que se transformam em
veneno contra si e respingam
inevitavelmente nos outros. Hipocrisia é a
soma das partes que forma o todo, o que
chamamos sociedade. Como é fato sazonal,
esperamos a depressão se instalar. Pois, em
quem é frágil, medroso e covarde e leva em
Chagas das Almas
188
si a descrença nos mitos e na fé, não resta
mais qualquer recurso para se obter ilusões,
como o consumo de coisas lícitas e ilícitas,
entre outros vícios e atos compulsivos
ingeridos goela abaixo ou fantasma adentro.
O dinheiro é mandante nisso, se é minguado
então, a realidade se torna insuportável.
Pegar um avião para conhecer o mundo é
libertador, mesmo com risco da queda, sem
ela, igual à dor. A paixão, melhor e mais
eficaz, a idade e a cultura de castrações
amputam as oportunidades. Nesse estado de
espírito até o que se tem à mão se torna
pouco, como as mesmas músicas e pessoas.
É lidar só com “o que é”, sem recursos
enganadores com o “finge que é”. Aí vem
uma puta síndrome de abstinência pela
ilusão. Uma depressão branca.
Chagas das Almas
189
Mas tem a hora de um grande barato,
tipo delírium tremens neste estar em plena
sintonia com a realidade. Prazer? Não. É, na
verdade, um estado masoquista de
despertar. Noutro repente, de forma inédita
há uma epifania sôfrega. Vejo as fotos da
praia de Ipanema infestada de pessoas,
disputando um centímetro quadrado na
areia e sinto o asco pela humanidade e
complacência com as baratas. Quando
poderia imaginar isso? Kafka me invejaria.
Vejo a consubstancia inverossímil das
relações humanas. Prossigo nas notícias e
me deparo logo depois com a continuidade
da barbárie no Maranhão. O avô enfartou ao
saber que a neta faleceu com 80% do corpo
queimado pela retaliação dos presidiários
que não a deixou sair do ônibus deliberada -
à - mente. Uma criança...! Em seguida, sigo
Chagas das Almas
190
os olhos e vejo a reportagem anunciando a
celebração especial pelo dia da Folia de
Reis: “O Papa Francisco convidou hoje a
humanidade a seguir a Luz de Deus e
apresentou os Magos do Oriente como um
exemplo de sabedoria.” Conclusão: não deu
tempo para as pessoas que foram obrigadas
a ficar no ônibus incandescente de “seguir a
luz”, que pena... Penso sobre tudo, um tanto
alheio e apático. E caio noutra real, que a
recente morte de Nelson Mandela significa
muito mais a perda de um ídolo, mártir,
cujas ideias já foram esquecidas. E assim,
que a expressão “direitos humanos” é algo
totalmente incoerente por definição, não
cabendo mais qualquer discussão pontual.
O momento é propício para transcender a
porra do ego, mas isso é para poucos, (e
patrocinados que não tenham contas a
Chagas das Almas
191
vencer no fim do mês). Logo, a luta é por
não sucumbir totalmente a ele até se tornar
um idiota completo. Tenho que procurar um
grupo de ajuda aos solitários anônimos.
Chagas das Almas
192
Terra
Tive o imenso prazer de pegar
emprestado de um amigo o livro “Terra” do
fotógrafo mineiro Sebastião Salgado. Esse
magnífico artista, de renome internacional,
orgulho do nosso país, é adepto do que se
chama “fotografia engajada”, que pretende
algo além da estética, da recompensa ou
como diz o próprio mestre: “repensar a
forma como coexistimos no mundo”.
O livro trata do problema dos sem
terra, daqueles que lutam por uma gleba
numa distribuição desigual, vivendo na
miséria por falta de trabalho no campo,
único ofício da maioria. As fotos são tão
chocantes que merecem com louvor os
textos fortes dos não menos brilhantes
Chagas das Almas
193
escritores Chico Buarque e José Saramago a
permearem à obra.
O álbum começa com a foto de duas
crianças sentadas no chão do que não se
pode chamar de sala, como parte de uma
construção que também não se pode chamar
de casa, que dirá de “um lar”. Junto delas,
dezenas de migalhas de ossos de animais
mortos pela seca, servindo de brinquedinho
de montar coisas. No meio, três cavalinhos
de plástico, talvez um precioso presente de
gente do bem, algum forasteiro de outrora
que viajara no tempo até aquelas bandas,
que por força de um parco destino, ainda
anda um a dois séculos atrás do nosso.
De repente, comecei a pensar nas
crianças. Em todo o universo de
imaginações que movimentam suas
múltiplas manifestações de criatividade e
Chagas das Almas
194
aptidões. Dos emblemáticos heróis que lhes
dão o senso da justiça, além da TV, dos
computadores que seguem a ordem natural
na formação dos mais bem nascidos,
candidatos a um futuro, uma prosperidade e
uma maturidade de infinitas possibilidades
neste modelo de cartas marcadas da
sociedade humana. Afinal, o que será lúdico
naquela infância nordestina sertaneja e de
todos os cantos marginalizados do mundo?
Que histórias conhecem para inventar o
"faz de contas", coisa tão importante à
formação juvenil? Aquelas coisas saudosas
como as árvores frondosas, os livros
coloridos e o super-homem ou a boneca que
ri. Imagine uma viajem a Disneylândia,
num avião que nem sabem o que é? Quanta
futilidade.
Chagas das Almas
195
Percebo aflito que aqueles ossos
retratam um cemitério de indigentes,
quando ali não se distinguem os vivos dos
mortos, e que aqueles cavalos de
plástico simbolizam os cavaleiros do
apocalipse.
Folheando o livro, passamos ainda por
adultos com a velhice precoce, corpos e
folhas de rosto rugados, tecidos epiteliais
não irrigados. Seca e tudo junto, com a
colaboração da fome. Mais cruel ainda:
semblantes alheios ao mundo, olhares
perdidos. Crianças, jovens e nem sei se
idosos, todos iguais, não perante Deus, mas
ao tempo que parece apenas reservar-lhes a
morte, única certeza de futuro. Íris sem
brilho, desesperança, representação viva e
realista do mais profundo vazio: o nada.
Chagas das Almas
196
Tem esta foto de uma menina na mesa
de uma escola improvisada, segurando o
lápis e olhando para a câmera. Sinto a
ínfima dor que nosso fotógrafo deve ter
sentido latente pelo máximo de sorriso que
conseguira arrancar dela, um cantinho de
lábios para cima, mas com olhos tristes de
profissão. É de emocionar.
Por fim, para me consolar, só mesmo
as palavras de Saramago no desfecho da
obra: “Deus compreendeu que nunca
tivera, verdadeiramente no mundo que
Chagas das Almas
197
julgava ser seu, o lugar de majestade.
Humilhado, retirou-se para a eternidade”.
Chagas das Almas
198
Madre misericórdia
(monólogo para performance teatral)
Tenho saudades do tempo em que o
paraíso repousava em mim. Vivíamos a era
do sublime, lá, lugar em que a minha
exuberância vinha virgem e selvagem;
aborígene da eternidade. Foi quando me
personifiquei. Minha origem remonta
àqueles anos velhos e sombrios quando
injustamente paguei o preço do pecado.
Justo eu, que nasci de uma vértebra:
geração imoral, incestuosa, aberração
universal. Ah!... Como é triste ser órfã de
pai, de mãe e de infância... Carinho,
proteção e afago de colos temperados... É
que de fêmea eu sempre soube ser menina.
Depois veio a época das barbaridades.
Lá, travei grandes batalhas. Bons dias
Chagas das Almas
199
aqueles das sociedades matriarcais! Mas
toda minha delicadeza, doçura, e
fragilidade, sempre me fizeram tão
vulnerável. Foi aí que começou a
temporada da caça, isto mesmo, eu era
escrava, mercadoria mais valiosa do
escambo negro.
Abomino quando se questiona minha
condição ordinária, esta porção Jezebel que
jaz em mim. Pois saibam: da classe das
pessoas que se vende, eu sou a mais digna
do perdão alheio. É que os “procuradores”
do Senhor, do Criador, do Grande Macho
Universal, me relegaram ao segundo plano.
Benditos são: o Pai, o Filho e certo espírito
celestial. Está feito, excluíram-me da
magnificente santíssima trindade! Talvez
seja verdade que Ele escreve certo por
linhas tortas, e que o santo seja, quem sabe,
Chagas das Almas
200
uma entidade assexuada, equilibrando de tal
modo a dicotomia dos opostos. Assim como
o bem e o mal, a vida e a morte e o ser ou
não ser, que atormentam a alma dos homens
que têm que conviver, sofrer ou gozar, com
a minha parte em seu ser e vísceras.
Até nos céus, quem impera é o Astro, o
Rei! Tudo gira em torno de si, seus
interesses lácticos e interestelares. Pois em
torno de mim, geoestacionários pairam
as parafernálias humanas. E o firmamento
não seria o mesmo sem o charme que
emano como Terra, Lua e alma das estrelas
findas; distas que trasladam longos
caminhos para nutrir os corações e os olhos
dos amantes, viajantes e poetas.
Sou um artigo fausto bem definido de
luz, bondade e tudo mais que qualifique as
mais sublimes virtudes morais; também
Chagas das Almas
201
sopro palavras de substância: a lei, a
liberdade, a felicidade e... sinto muito,
também aquilo que mais temeis...
Sem desfaçatez! Sou eu quem gera,
quem aborta, quem sangra e sente a dor
pungitiva do ventre! É de meus seios fartos
que se provê a cria. Oh! Truculento parece
meu ser agora, não é mesmo?! Sim, por isto
doadora universal de sangue, suor e
lágrimas.
Ai!... Como tudo dói tão doce e
brutalmente em mim. Mesmo com
sofreguidão, sou calmo desejo, amor
latente, libido ardente. Por favor, chega,
chega disso, amor, espancamento. Eu não
resisto, não resisto, acabo sempre à entrega.
Ofertas cândidas ou vulgares de afeto e
sedução, vícios de amor e paixão.
Chagas das Almas
202
Devagar, por favor... Deixo-me levar
tão fácil por qualquer mão morna e terna a
afagar meu cangote... Devagar... para, ai...
Não, continua... Não... chega disso, depois
vem o abandono e eu ficando pra trás com
choro engasgado na glote.
Nos áureos dias de poder e nobreza, no
esplendor das ilhas gregas, fui trocada por
meninos de pele lisa, não valia para pensar
nem gozar, só para perpetuar a espécie,
condição abjeta inferior. Ah, Ah! Que berço
esplêndido este que move o mundo das
ideias varonis.
Mas eu já fui rainha do Egito. Lasciva,
dominava os homens com meu viço e
minha chispa; hipnotizava-os com astúcia
felina, mais ardilosa que minhas víboras
fiéis. Fui Hera, Deméter e Afrodite! Aliás,
tive meus momentos de crueldade,
Chagas das Almas
203
requintes de morbidez, minha
especialidade, como quando pedi a cabeça
do santo profeta. Eu sou a célula-mãe que
vicejou. O fértil e o fecundo, filha do mais
cálido e primitivo sussurrar latino. Assim
me fiz Félix: ditosa e propícia a tudo...
O Fémino! Que acaba enlanguescendo é
verdade. Por isso fui queimada em fogueira,
minha cruz incandescente, sina de feiticeira.
Ah! Quantas saudades de Joana, de
Anne, Olga e Jana. E tantas operárias
incandescentes, tantos espíritos
desprendidos e abnegados, vítimas da
ferocidade humana contra suas causas
nobres imbuídas de boa-venturança por
justiças de liberdade. É isso que sustenta
nosso juízo: sentido casto a perceber com
retidão aquilo que a intuição nos privilegia:
a benevolência da vontade divina, que nada
Chagas das Almas
204
tem a ver com as invenções promovidas
pelas aflições mundanas, fundamentalistas
na salvação por mitos de perversidade, não,
nada disso.
Hoje, ainda que garimpe e me assente
em terras firmes por aqui e por ali, ainda
devo cobrir meu rosto com trajos de falso
pudor em alguns cantos do mundo de
mentes estéreis. Às vezes, nasço e morro
sem que qualquer cavalheiro experimente a
beleza do meu semblante. Como alguém
pode julgar com antecedência algo que não
vê sorrir ou chorar e nem sequer pode
revelar a sua face? É assim que eu vou
perdendo o respeito que sustenta toda
minha graça... Santo Deus, quanto impasse.
Quanto rancor, quanto ódio a desferir por
tantas injúrias, não?! Mas não vos
inquietem aqueles que vestem a carapuça
Chagas das Almas
205
das minhas acusações de moral assassínio,
brutalidade, desdém e omissão, nem meus
reflexos que se omitem perante a força
atávica dos machos. Não, não pecarei por
revanchismo contra ninguém. Afinal, todos
somos vítimas da própria estupidez.
Como Mãe da terra e dos filhos da
terra, cansada, só necessito de trégua. Deste
jeito alço meus punhos aos céus com uma
bandeira branca. Humildemente eu peço,
suplico paz. Paz para suspirar alívio e
apreciar meu cio. Paz para gestação em ócio
de toda minha cria e atividade. Paz para
viver a quietude do bem-estar e existir, ou
apenas, enquanto haja uma réstia de chama
que faça pulsar o que se anima em mim,
simplesmente. Paz para seguir em frente.
Eu os abençôo, pois!
Chagas das Almas
206
Fixação
Eis um espaço-tempo de poesia,
embora eu não seja poeta, me isento. Isto é
apenas um hiato, um momento. O
encantador não existe nas letras apenas,
pois que na vida em tudo é repleta. Eu sou
só um colecionador, esmerado estafeta da
alegria e da dor. Se muito, um esteta... Ah!
Dos olhos femininos, faço predileção,
graduado em maldosos e leais, uma meta se
não. De toda magia de seus fitos, os
sorrateiros me instigam mais. Tem os
malabares aflitos de desejos que arrebatam
até os peritos em suas cruzadas sensuais.
Faço meu pupilo as mais frágeis íris
hesitantes, das que me valho dos atributos,
devolvendo-os fulminantes. Que não
passam de soslaio, frente os delas, que nos
Chagas das Almas
207
arrebatam de improviso, sem ensaio.
Derretem-se com viço, como serpentes
dando o bote a qualquer instante, de
repente, a seu bel prazer e serviço. Brilho,
contraste e matiz nas faces da santa ou da
meretriz, tanto faz, quando fastuosa volúpia
lhes conferem o fixar, quase venais.
Sublimes olhares que caçam suas presas aos
pares, como os caças aeroespaciais em
guerras não menos imorais. Ora tristes,
caudalosos de tanto amar, escondem o que
clamam por dentro aos gritos. Corações
partidos, de juras e promessas, iludidos, dos
maldosos que corneiam com outras córneas
numa cama limpa, num antro ou na
esbórnia. Não há ainda profissional ou
artista que cure a dor fadada aos amantes
que se perdem do encontro à primeira vista.
É a função do amor fazer-se ver e ser visto,
Chagas das Almas
208
toda entrega mesmo no imprevisto. Então,
vê se te enxerga! Não viver de pálpebras
cerradas, revezando as pupilas pros lados,
como quem não liga pra nada. Com
desculpas de remelas e ciscos, cegos são
aqueles que não correm o risco. Os cílios
são alados como borboletas afeitas ao
pomar, feitas para fazer pouso em outro
olhar. Assim, sem piscar, pestanejar,
insisto: do fundo dos refolhos, amemos
muito, lábios nos lábios, olhos nos olhos.
Já!
Chagas das Almas
209
“Eternura”
O melhor da vida em qualquer tempo é
aquele louco amor que arrebata à primeira
ou última vista, quando acontece uma
espécie de simbiose que parece coisa do
destino, “coisa do diabo”; magnetismo no
olhar, grito interno de socorro parte a parte
que vem anunciar uma mudança de estação
nas almas desabitadas a fugirem da serração
que outrora furtivamente ocultavam. Nova
visão da vida com seus segredos revelados.
Quanto maravilhoso desatino! É um
momento raro de sintonia, sincronia e graça
e algumas vezes, ao mesmo tempo, é
verdade, quanta desgraça! Existe sim uma
química sensual, uma empatia extra-
sensorial, um fenômeno de pele, tempero da
derme, um cio espiritual. Não à toa então
Chagas das Almas
210
que os dias mudam e tudo o que antes
parecia tédio, penumbra em tom cinza-
concreto, volta a ter cores vivas novamente,
como um belo prisma do mais nítido arco-
íris que fazemos brilhar sobre nosso baú de
ouro: a pessoa apaixonada, espécie de
espelho de nossa alma maculada. Isto
mesmo, único instante em que amamos
outrem mais que a nós mesmos, o próximo
e Cristo há de abençoar! O coração bate em
harmonia todos os dias enquanto dura uma
paixão. É o prazer da sutil percepção de que
se está sendo admirado, percebido, o que
rejuvenesce o espírito e dá forças para
novas aventuras. Coragens, além do
enfrentamento sem esforço dos pequenos
problemas pessoais e cacetes do cotidiano,
da rotina, da desmotivação ou
desvalorização profissional e tantas
Chagas das Almas
211
pendências, porém tudo isso passa a ser
trivial. Tem aquele do bilhete ou do flerte,
do colegial ou da euforia e festim do
carnaval, com cheiro da química do
perfume da lança misturado ao ozônio de
viúva ou espanhol, sem dor, odor sem
igual... Só clima enamorado. E o antigo, o
atual, protocolado ou informal. É um
sentimento único e pleno de pacifismo,
desejo de proteção e afago, algo que se
resume num abraço gostoso, um olhar
cúmplice de emotiva docilidade que traz
sempre um beijo além do esperado para
incendiar todo corpo que sua em meio às
chamas sexuais. As noites são de suspiros
aliviados, voltamos a dormir como crianças
quando viramos para o lado.
É o que chamamos de conquista, com
jogos perigosos de estupenda adrenalina,
Chagas das Almas
212
orgulho quando pensamos: “Como este,
jamais!” Que se pode ter tido outro ou mais
de intensos, mas nenhum deles é igual, pois
que guardam as particularidades em cada
estilo de perfil do amor selado. Damos
adeus (e é deus quem nos dá) à amarga
solidão que acossa as almas de bem. Fim da
carência de libido, de reconhecimento, de
atenção, quando nascem os elogios e
valorização das coisas mais acanhadas,
negligências e abstinências daquele
acolhimento de ombro, de colo, uma
palavra amiga. Ou simples distração que
um longo tempo impõe aos casais,
suprimindo-os de pequenas atenções de
seus detalhes, necessidades um do outro
num convívio de tão grande cumplicidade
em problemas estruturais, embora valha a
advertência, legítimas sejam as
Chagas das Almas
213
particularidades individuais. Enfim, algo
vital a substituir todo carinho que um dia
inevitavelmente vamos perdendo dos
nossos vovôs, tios e ternos pais. Como
aquela viagem dos sonhos à Paris que
deixamos para trás pelo simples medo de
voar. Amados e amigos que se perdem no
tempo exclusivista da morte e não revemos
jamais, ao menos na mesma forma e âmago.
Se isto não é amor em sua matriz
original, isento da vulgaridade de conceitos
sociais. Se não tem algo a ver com o divino,
digam-me o que é mais?!
“O AMOR ETERNO É O AMOR
IMPOSSÍVEL.”... Essa é de Queiroz,
apenas elucido a contradição, ok?
A paixão, a verdadeira paixão, só é real
e tem este caráter ímpar por sua condição
inata de impermanência. Se não existe
Chagas das Almas
214
aquele “algo impossível de se viver”, não é
mais “este amor”. O que sobra é o que
vemos nos relacionamentos duradouros,
outro tipo em valor, não menos legal,
sequer questionável em sua magnificente
sublimação. Contudo, não é propriedade do
supremo sentimento fugir, abster-se de sua
generosidade que, como água de farta fonte,
dar de beber a quem sinta sua sede, sem
arbitrário monopólio como se tratasse de
artigo fausto de consumo e vitrines. Por
isso, não só os preconceitos e todas as
dificuldades sociais impedem a
permanência de um amor arrebatador,
porque ele transcende rótulos e eras, de tão
nata no homem é sua condição de quimera.
Assim sendo, ele por si mesmo é efêmero e
seu penoso processo de renúncia, sua sina.
Não fosse isso o que seria dos poetas? Mas
Chagas das Almas
215
ele não é só vossa licença, é de todos.
Desvivido, só resta a despedida, de coração
apertado e olhos caudalosos para viverem
futuros saudosos, mal desfechados, numa
existência curta demais, mesmo se em ecos
espirituais. Mas triste e infeliz de quem não
rouba ao menos uma confissão, um beijo e
um abraço, onde o sexo é secundário, vício
ordinário. Apenas algo que a ternura
calmamente espera.
Quando, por fim, cada um se perde de
vista, fica apenas uma ou outra fotografia
desbotada, uma carta de amor amarelada
naqueles teréns insondáveis, analógicos ou
digitais no baú da memória, agora de mais
reles metal, fantasias repletas de fugas,
beijos molhados e juras. Tudo pro fundo
inconsútil do não saciado, que só ajuda a
somatizar mais enfermidades. Ah! Quantas
Chagas das Almas
216
promessas, lembranças de um tempo de
hormônios exaltados, do novo ao idoso,
bem exalados. Que reste ao menos o
consolo de um coração desapaixonado
poder confessar em segredo, ainda que em
tom de falsa sensação de ser por si mesmo
enganado: “Um dia eu amei e fui amado!”
Chagas das Almas
217
Perdidos de vista
Olá! Como você está?! Tantos anos
que perdemos a conta! Penso em você com
muita saudade, aqueles tempos que éramos
praticamente grudados. Foi uma
oportunidade profissional ou um amor que
nos fez ir embora? Você foi para os EUA, é
isso. Estava naquele avião que caiu?! Não?
Papai e mamãe, morreram faz quase quinze
anos e, no entanto, eu não lhe vejo, sequer
tenho notícias suas há bem mais tempo.
Esquisito, não? Como está de saúde?
Engordou? É que, como meus pais, a última
imagem que tenho de você foi de quando
lhe vi pela última vez. Bem melhor, óbvio.
Quanta jovialidade! Casou e teve filhos?
Não mora mais lá é? Tem notícias do
Beltrano? Também nunca mais vi. E
Chagas das Almas
218
Cicrana?! Morreu de enfarto aos quarenta,
sabia? Faz dois anos, justo ela,
descontraída, sacana. Lembra-se daquele
dia? Você... eu nunca ri tanto! Quanta
lealdade, cumplicidade. Qual era o nome da
sua mãe mesmo? Ela fazia uma comida.
Hum! Inesquecível. Caramba! Aquela
nossa molecagem. Estou tentando lembrar a
casa também. E qual das duas escolas? Que
memória a minha! Você não ficou com
mágoas por causa daquela nossa briguinha,
ficou? Aliás, depois eu percebi que também
estava errado. Não guardei ressentimentos
e... cheguei a lhe pedir desculpas? Pois é,
vai ver a gente um dia se encontra
novamente... Não. Parece tão difícil quanto
a loteria, mas seria magnífico. Espere aí.
Talvez sim, mas... Também poderia ser
constrangedor, não poderia? Se é que nos
Chagas das Almas
219
reconheceríamos. Vai que um de nós
mudou muito, por fora ou por dentro, isso
pode dar vergonha, de si mesmo ou do
outro, já lhe aconteceu? Verdade, que
diferença faria? Afinal, ainda que fosse uma
agradável surpresa, nada nunca é como
antes, apenas euforia, lembranças como
cópia em preto e branco de uma gravura
de Gougan. Como o enfarte da Cicrana que
feneceu... Fulminante! Antes ela do que eu!
Ah, ah, ah... Desculpe-me. É que com o
tempo parece que essas coisas vão ficando
um pouco banais. Você é mesmo quem eu
estou pensando, não? Vai que é um dos
falsos! Se bem que, se não há convívio,
somos amigos mesmo? Podemos empregar
o verbo ser no presente? Platônicos?! Porra,
mas isso é ridículo até no amor. Voltemos
ao protocolo. Éééé... Então é isso... Meu
Chagas das Almas
220
Deus! Será que você pode estar entre aquela
lista de desaparecidos que um dia saiu de
casa para trabalhar ou ir ao bar comprar
cigarros e nunca mais voltou? Assassinado,
foragido de si mesmo, sua vida ordinária.
Ou... Será que você já nem existe, morreu?
Ou terá sido eu? Bem, se assim for,
igualmente, que diferença faz, não é
mesmo? Se não me conhece, diga: ― Não é
daqui não. ― E eu serei cortês: ―
Desculpe, foi engano. ― Depois que nos
ramificamos raramente “nos lembramos”.
Eu aqui e você aí e guardamos na mente
inconsútil um tempo que congelamos
agradavelmente simples e fútil e nos
iludimos com um aparato inconsciente de
que a pessoa querida “sempre estará lá”,
não importa quem e o lugar, desde que
querido um dia. Mas dá uma sensação
Chagas das Almas
221
estranha quando tão raramente como agora,
paramos para pensar, me lembro de você e
percebo que nunca mais vamos nos ver, não
dá? Afinal, como o passado, em geral, das
pessoas só percebemos as saudades, quando
sabemos que se foram. Vários nomes nos
vêm. Amigos, parentes, amores. Porém,
pensemos juntos e otimistas sobre esta vida
e sua logística que faz com que tantas
pessoas se percam de vista: Sem aquelas
derradeiras más notícias. Imagens,
lágrimas e rituais de despedida e passagem,
nossa jornada terminou da forma devida.
Não sofrer como eu sofri tanto perdendo
uma velha amiga de escola e só sabendo um
ano depois, nosso último encontro na rua,
despedida como que uma falcatrua atrevida.
Cá entre nós, seja eu quem pensa que sou,
você quem penso que é, se é que somos e
Chagas das Almas
222
estamos, peguemos alguém de exemplo,
pronto.
Pessoas entre si tão queridas um dia.
Não é muito melhor em vez de se perder
para a morte, perder para a vida?
Chagas das Almas
223
A uma diva no divã
Pois é... Faz alguns dias me sentia
esquisito e pedi meu velho amigo Antônio
da farmácia para tirar minha pressão. Ele
disse que não tinha esse poder e que se
tivesse, não o faria em consideração a mim,
e que então, iria medi-la. E batata! Lá
estava ela em ritmo dos embalos de sábado
à noite: dezesseis por doze! Essa coisa só
havia ocorrido uma vez, há três anos
quando estava num momento delicado da
minha vida, justificável: pressão de fora que
contamina a de dentro. Mas agora isso me
espanta porque estou vivendo um momento
de absoluta tranquilidade emocional. Desde
então, venho tentando entender esse
disparate e, de repente, me veio à luz: estou
sim vivendo uma circunstância se não
Chagas das Almas
224
inusitada, pouco difundida, ou seja, uma
fossa sexual ou depressão se for mais
adequado. Tanto viço sem nenhuma
correspondência, não que não perceba
minha atração, mas porque aprendi não me
permitir a isto pelos conceitos infalíveis de
moralidade social. É triste constatar que
desperdiçamos o nosso melhor ciclo, mais
maduro e perito, que quer dar tanto de si
para quem quiser ardentemente. Não vou
sair por aí mendigando, passei desta fase de
vulgaridade e desrespeito com os outros e,
acima de tudo, comigo mesmo.
Descobri o fato por um sonho,
masturbação mental, porque físico não
levanta mais o astral. Uma excursão longe
de onírica. Aquele fantasma que persegue a
gente dia e noite nas horas menos entretidas
e algumas cheias também que têm como
Chagas das Almas
225
personagem uma beldade qualquer,
subjetiva paixão, subjetiva mulher. Uns
aviões Boeing 747 da Vasp como diziam
outrora, um monumento que, às vezes,
desfila nas passarelas, as calçadas da
cidade. Ânsias lascivas não dão muita
poesia, só a vivacidade lhe constrói melhor
imagem. Antes de descrevê-lo no analista,
vou tentar desabafar no papel, divã dos não
poetas como eu.
Nosso cenário não pode ser uma cama,
nem quadrada, nem redonda, isto é lugar-
comum, inóspito aos amantes. Deve ser
qualquer canto de um escritório ou beco
escuro, e neste caso, a plataforma não
importa, corpos ardentes dispensam
conforto, futilidade e simetria.
Que comece simples, como encostar
meus lábios aos seus, carnudos e carmim,
Chagas das Almas
226
até apertar o ritmo das pleuras fazendo
acordo nossas línguas encharcadas.
Depois, ainda cavalheiro, hei de descer
devagarzinho e apreciar aquilo que muitos
não se dão conta da delícia, o ombro que
ampara o colo em banho-maria. Até vir a
parte de maior prodigalidade em harmonia,
onde a natureza foi por demais generosa
contigo. O que vêm aos pares e deve ser
lambuzado com primazia, como sopa
quente de palmitos frescos no inverno
infernal, comido pelas bordas até chegar
ao cerne de cada um; e fazer sua dona
tremer sem medo de qualquer
consequência, nem da vermelhidão que
minha barba de lixa fará vestígios dois ou
três dias seguidos. Pouco importa se virão.
Depois, minhas mãos mornas que nunca
soube aclarar por que, descansarão em
Chagas das Almas
227
tuas ancas, aquela parte que tu exibes com
graça entre a blusa modinha e a calça da
onda, sensuais todos os dias e que parecem
ter sido inspiradas em ti pelos grandes
estilistas, embora jamais comparáveis ao
Criador, que preparou os moldes do teu
corpo em formas de cristal. Como não iria
despertar tanta fantasia e criatividade nos
machos sedentos de amor como eu?
Tu és roliça, de pequeno porte como
uma potra puro-sangue em puberdade;
difícil é saber se resistiria passar dali aos
lábios às ínferas, explorando tuas
diversidades ainda bem mais untadas e com
aquele odor de cio a me produzir demência.
Isto tem que passar antes, é verdade, pela
veste íntima provada quando já bem
embebida do que te fiz produzir em delírios,
como que febris, misturada aos pelos não
Chagas das Almas
228
menos, frutos da tua agitação. Aí sim,
faremos rolar a cerimônia do banquete
final onde se refestelam os corpos, o animal
que tira a veste mais íntima da presa, de
bruços, com a avidez e a pressa dos brutos.
Eu, agora cavaleiro, não perderei o maior
espetáculo varonil que é ver de cima a
garupa se estendendo, os mais belos
flancos de carne lisa e macia a se
arreganhar e pedir clemente por traspasse
do que de mim então estará esperando,
ansioso só para ti. Isto mesmo, após esta
excursão meticulosa no teu corpo, chega à
hora do homem se fazer homem e da
mulher se fazer mulher com máxima
intensidade dos seus instintos. Que Deus
nos abençoe!
A impetuosidade se misturará em dor e
prazer, e eu pegarei as rédeas do teu
Chagas das Almas
229
cabelo para manter o controle da tua
entrega, e não largarei enquanto não te ver
gritar meu nome em súplica pedindo o
quanto mais possível. Mais ainda, quando
ver sair dos teus olhos de louca, algumas
lágrimas. Ah! Esse momento único em que
não se quer saber de mais nada, nem dos
filhos, quando drogados nos sentimos os
mais amados e magnificentes pervertidos.
Vou me regozijar quando te vir quase
desfalecida e recobrar-se com o brado
longo e sofrido no masoquismo que dá o
clímax, fim em êxtase do sublime
espetáculo marginal, o melhor diálogo da
terra, de gozos e sussurros, linguagem
universal.
Depois vem a bonança, pausa de
apaziguo, beijinhos no cangote, troca
silenciosa de delicadezas no fantástico
Chagas das Almas
230
contra-senso, agora como crianças das
mais ingênuas. Conversa fiada; tu com a
cabeça no meu peito e eu com a minha aos
ventos. Até que a tua deslizará aos
pouquinhos, sem nem saber como ou por
que, querendo começar de novo o enredo,
quando agora quem cerrará os lábios serás
tu, sem que sequer eu sugira. Você
explorará meu corpo, meio que por vontade
do arbítrio, meio que por simples
curiosidade de sentir o meu sabor e a
sensação da minha ilha de amor sem
fronteiras, mais uma vez exclusiva ao
turismo de teu deleite. Chega a minha vez
de ser devassado e torturado. Usado
indiscriminadamente; na inteireza da
minha devolução a ti, para me fazer o que
bem entender, seja no corpo, seja na alma,
ambos ardentes de prazer.
Chagas das Almas
231
Amanhã espero chegar à farmácia do
Antônio e ver de volta meus “doze por
oito”, se não, que meu sangue faça pacto
com a diabetes e minhas veias se danem; se
isquemiem, se derramem. Melhor morrer de
excessos de pressão por amor e libido do
que de preocupações, abandonos e
desencantos.
Acordo!
Chagas das Almas
232
Meu amigo de Portugal
No mês de julho do ano passado tive a
grata surpresa de receber um correio
eletrônico do meu velho e querido “amigo
de Portugal”. Ele veio de férias ao Brasil e
claro, para nossa cidade natal. Escreveu o
número do seu “telemóvel” para eu ligar.
Em Portugal, onde vive faz mais de 20
anos, telefone móvel, se fala assim. Não,
não pense nada, não se disperse da leitura,
ora, pois!
Então eu liguei. Só ouvir a voz dele
depois deste tempão já foi uma emoção
especial. A gente brincou como sempre: ―
E aí você ainda tem cabelos? Aquelas
tolices que, nestes casos, parecem que
param o relógio, tempo em que convivemos
jovens com todas as boas coisas relativas:
Chagas das Almas
233
Os trotes por telefone, a primeira
namorada... Mas ele disse que ficaria
apenas mais três ou quatro dias por aqui,
por motivo de trabalho e depois pediu o
meu “telemóvel” que iria me ligar para
marcar de tomar um café lá em casa. Eu dei
o número e emendei: ― É “celular” cacete,
já esqueceu o português do Brasil cara?!
Demos mais umas boas risadas e nos
despedimos.
Era fim de semana, confesso que me
tomei de um entusiasmo sem igual.
Tínhamos trocado dois ou três e-mails
nestes quase vinte anos sem nos ver e
comecei a transformar-me de ansiedade:
arrumar a casa, pensar em “algo mais” para
o café, além de criar as fantasias repletas de
dúvidas: será que ele se casou? Ou de tão
mulherengo que era, acabou homossexual?
Chagas das Almas
234
Isso às vezes acontece, o cara enjoa, sei lá.
Bem, o que eu sei é que chegou o domingo
e nada do telefone tocar. Não tive o cuidado
de salvar seu correio eletrônico. E eu a
pensar, bem... Afinal ele tem sua família
a cá, muitos amigos, poucos dias... Na
segunda, já estava igual a uma donzela
apaixonada, meio esperançosa, meio
desiludida... Será que morreu alguém da sua
família, ora, pois?! Já na terça-feira uma
empreitada de trabalho me distraiu e ele
certamente partiu de avião para Portugal,
graças a Deus, porque se fosse dessa para
melhor ou coisa “menos pior”, contrariaria
o ditado de que “notícia ruim chega
rápido”.
Para ser sincero, eu nunca me sinto a
vontade em procurar velhos amigos, mesmo
antes desse episódio. Parece que as
Chagas das Almas
235
impressões dos tempos idos são as que
ficam. Aí, criamos expectativas a nos
esquecer que a vida de todos nós passa por
transformações e que não só a gente, mas
todos eles amadureceram e blá, blá, blá. Daí
que me valho agora da tecnologia, um
correio eletrônico é bem menos passível de
constrangimento do que uma voz ou um
semblante. Ou talvez seja melhor mesmo
ser esquecido no adeus para sempre, que
não deixa vestígios, frustrações, falta de
assunto ou decepções peremptórias, como
uma valise velha no fundo do armário.
Não estou a falar isto com qualquer
intenção de julgar meu amigo, transferir
remorso ou outras coisas do gênero, de jeito
algum desferiria tamanha feiúra a uma
pessoa que tem vaga cativa no meu coração.
Tenho certeza que o dito cujo deve ter tido
Chagas das Almas
236
algum imprevisto como acontece com
qualquer um.
Mesmo assim, quem sabe depois de
efetuar o check in, lá no Tom Jobim, ao
passar pelo portão de embarque, em meio às
despedidas, com duas palpadelas nos bolsos
da frente e de trás, entre parentes a amigos,
ele não pensou em meio tom um pouco para
si um pouco para eles: “Está tudo aqui?
Estou com a sensação de esqueci alguma
coisa.”
Chagas das Almas
237
A morte de Maria Alice
Morreu Maria Alice, aos 49 anos.
Suicidou-se. O amor que sentia por
Ricardo, seu segundo marido, que a
abandonou definitivamente pedindo
separação por conta de se envolver com
uma mulher mais jovem, dilacerou seu
coração por dois anos. Ela era inteligente,
sensível e muito passional. Mas o ato de
atentar contra a própria vida, como ocorre
com todos que testemunham coisa igual,
não deixariam seus amigos e sua filha
Marina menos chocados, claro. Apenas
mais intrigados, levando-se em conta que o
"mais" é sempre o de cada um. Marina era
filha de seu primeiro casamento. Ela não
convive só com a dor da perda da mãe de
forma tão trágica e surpreendente, mas a
Chagas das Almas
238
angústia de entender essa escolha, o que
também não parece, a princípio, nada do
que uma legião de pessoas passa, daqui ao
extremo oriente. Mas há um elemento
maior. Marina tem em mente, do amor de
sua mãe pelo seu pai, um intrigante
precedente. Ela sequer conheceu seu
progenitor, daí não ser possível adjetivá-lo
melhor do que isto. Ele morreu de câncer,
poucos meses antes de seu nascimento.
Soubera que sua mãe teve um luto
desesperado, quase a perdeu na gravidez,
seu parto foi prematuro e, depois,
quarentena e lactação dificultosa. Teve até
que fazer a ligadura das tubas. Eram
lembranças latentes e mais claras, agora
para ela, as crises de sua mãe. Histerias e
depressôes assolaram sua vida por anos,
onde três podem sugerir dez quando se
Chagas das Almas
239
combina idade, lembranças e dores de
infância. Ela se lembra, na casa dos seis a
sete anos, de sua mãe na cama, encolhida,
tremendo. Mas também se recorda de que a
partir de uma época, já pré-adolescente,
antes mesmo de conhecer Ricardo, que a
mãe já havia melhorado muito, era quase
outra pessoa, ou a mesma de origem, no
caso. Até largou os medicamentos. Quando
Ricardo se casou com ela então, foi como
se nada de tão ruim tivesse acontecido em
sua vida. Marina não via Ricardo como um
padrasto, mas como um tio, um grande
amigo, uma referência. Por isso, também
sofreu muito com a separação deles,
embora fosse outro tipo de dor. Na mente
de Marina, ficam agora muitas perguntas
que seu analista trabalha com ela sem parar.
― Eu, que já estou formada, casada, não fui
Chagas das Almas
240
razão suficiente para mamãe sentir o dever
de viver? Quando pequena eu era um
propósito, mas agora não mais? Será que
era, mesmo quando bebê? Será que eu
deveria estar mais com ela no momento da
separação de Ricardo? Será? Será?
Nesse caso, é a culpa que entra em
primeiro lugar, em todas as pessoas, pois
culpar-se parece a solução inconsciente
mais cômoda para explicar tudo que
transcende à capacidade humana de
compreensão sobre os malogros da vida que
carcomem a alma. Culpar-se é explicar,
ainda que falsamente. Mas isso passa e
passou para ela também. Dado momento da
terapia, meses à frente, parece que as coisas
começaram a se elucidar, o que,
paradoxalmente faz criar o ponto
culminante da dor. É que tudo que se dá à
Chagas das Almas
241
luz é parto, cuja dor é inerente. Ou a dor do
ficar, condição não menos comparável, se
lembrar da sensação de desamparo pela
falta que a mãe faz em qualquer idade.
Todos nossos momentos crianças para
sempre os faz inevitavelmente órfãos algum
dia. Elas não poderiam morrer nunca, ao
menos antes de nós. Mas isto é egoísmo, o
que de pior poderíamos dar-lhes em troca.
Assim, na última sessão, ficou no ar uma
elucubração tentadora, ainda que sôfrega. É
a morte em si, a do outro ou a nossa para o
outro, carne sem vida, cérebro inerte, o que
mais atemoriza o ser humano? Ou alguns
deles, ou a perda? Qualquer perda,
sustentada pela posse e seus desejos. A
perda de uma pessoa que amamos dói mais
pelo sentimento de compaixão por ela ter
deixado a vida, ou por ter nos deixado, pelo
Chagas das Almas
242
sofrimento, abandono, a falta e saudades
que nós vamos sentir? ― Então, mamãe
suportou perder um homem que amava para
a morte, mas não perder o outro para
vida?Foi a perda, a humilhação por ela
derivada, a derrota numa competição
desigual que a motivou de desistir
peremptoriamente?
Afinal, corroboremos com ela, o seu
pai no câncer fora mais humilhado,
terminou seus dias dependendo de quem lhe
trocasse as fraldas. Ou seria a meia idade
que por si só condena as mulheres ao
abandono pelos conceitos machistas
sociais? Na verdade que seus corpos
desabrocham lindos mais cedo, em
compensação deformam-se não menos
precocemente. O medo da solidão? Não,
Maria Alice era professora universitária,
Chagas das Almas
243
amava a profissão, tinha muitos amigos.
Assim, Marina punha em jogo até o amor
que sente por seu marido e o que ele diz
sentir por ela. “Existe amor de verdade no
coração dos homens? Será este amor pelo
outro, sensual, fraternal, de compaixão, que
seja, maior do que o amor próprio? E tudo
no fim não se resume em dependência?” O
lote inclina-se para a afirmação hesitante de
que até a auto piedade, quando alguém grita
internamente, demonstrando que sua auto-
estima está abaixo de zero, é pura
supervalorização de si mesmo e o amor
incondicional que sente pela própria
personalidade. Tais ideias vão brotando em
Marina com sentimento de dó, mas com
certa pitada de ressentimento por sua mãe,
processo comum, outra reação trivial em
perdas de tal dano e modalidade. A sua
Chagas das Almas
244
religião e crença em Deus, que está dentro
de um padrão normal, quer dizer, pessoal
não praticante, nunca satisfez as perdas
menores em sua vida, não seria esta, a
maior até agora, de sua mãe, ainda recente,
que a confortaria. E da forma que foi,
principalmente, não haveria desígnios
divinos que lhe promoveriam a cura da
alma, fissura em sangria. Por fim, até
quando permanecerá este luto confuso em
seu coração, no todo de seu ser em tamanha
aflição? Para piorar, ela não deixou carta,
nem sequer um bilhete e ingeriu
barbitúricos em sua própria casa sozinha e
ainda tendo o cuidado de tentar arrumar as
coisas, quer dizer, se desfazer de tudo. Os
teréns que fazem um episódio à parte de
sofrimento para quem assume a árdua
incumbência. Mais ainda, deixou todas as
Chagas das Almas
245
providências de seu crematório, tomadas e
pagas. Houve frieza, parece, consciência.
Embora este ato solitário, ninguém jamais
pode saber o que de fato passa nos
neurônios incandescentes dos moribundos
de alma.
Elas são uma ficção, mas estão
encarnadas na realidade, onde há vítimas ou
candidatos em potencial na curva estéril da
existência infestada. Uns que levam a vida
sedentária, fumam, bebem, devoram fast-
food poliinsaturados, gosmam o corpo,
matam-se aos poucos e sequer enchem as
cabeças dos familiares como as de Marina.
Apenas porque sua mãe fê-lo à vista, o que
eles, os compulsivos, fazem a prazo e que
ao menos a mim, o autor desta história, não
enganam. Que engolem e mascaram
tristezas de perdas de amores e danos
Chagas das Almas
246
gerais, de morte, de insatisfações pessoais
nada muito diferentes de Alice. Pois que
apenas há um liame tênue do imponderável
onde só um cretino, ainda que se diga douto
e se ampare em teorias, livros e postulados
acadêmicos, ousaria cometer a infâmia de
julgar. Não posso explicar onde os fios se
embaraçam em infinitos e insondáveis
mistérios da vida. Não fosse nada o
empecilho a encerrar este enredo de forma
agonizante, ao revelar como dói o
irrevogável, o não consubstancial em Deus
e o lado cruel de se sentir amor ou acreditar
que ele exista tal como o vemos, tão
vulgarmente, incluído na dualidade
mundana do pensamento: o bem e o mal
que assombram o mundo, como fantasmas
que em nada se diferem de toda nossa
estúpida forma de viver na abstração. Que a
Chagas das Almas
247
mamãe descanse em paz, sem evolução,
hierarquia, princípios éticos, convívios,
incluindo também tudo de mais formoso e
belo que é a vida em seu potencial. Apenas
paz que pressupõe vácuo, que por si só é
ausência de dor. Logo, alguma coisa, o
substrato da vida, o côncavo, que cria
espaço para o trago do destilado que
acalanta goela abaixo ou o chá de
manufatura indiana, seu sabor e aroma na
mais legítima porcelana chinesa. Nada,
contudo, que atenue o dó que sinto de
Maria Alice e Marina, que são a
representação do meu eu e o da maioria das
pessoas do mundo, hediondo coliseu.
Chagas das Almas
248
O Balanço
Mãe é quem pari ou quem cria
rebentos, seus ou alheios. Filhos da
engendra do próprio ventre ou de quem
gera aos quaro ventos, como ratos, sem
perceber, em esgotos e lixões, encaixotados
em qualquer alvorecer. Filhos de berços
esplendidos, de grutas obscuras ou filhos da
puta.
Por atos de prazeres inconsúteis pela
excitação no sexo que se é escravo e um
desejo inconsciente de também perpetuar a
espécie... O ser humano faz uso do
imaginário de consumo para incutir que há
beleza no que não passa de mais um
sacrifício animal, engravidar, mero fato
social, como urinar ou respirar.
Chagas das Almas
249
Vale lembrar que um embrião é tido
pelo organismo como uma coisa abjeta e dá
vômitos às mulheres pedindo a expulsão
daquilo. Depois desta fase acostumada,
pesa uma barriga que por nove meses faz
estragos, das vértebras aos dentes, além de
tirar a graça das moças que as têm como
dádiva, magnífico presente. Os seios caem,
posto que cai um ser nos braços da Eva
como se de uma nave, de pára-quedas.
Até que vem o ato de dar à luz, com
dor pungitiva do ventre, algo que parece o
Javé bíblico gritado de prazer a seu bel
estado de ser em alma vingativa do alto da
babel: “Eis sua desgraça por colocar mais
um no meu inferno, ó Mulher Jezebel!”
O leite a natureza dá, às vezes em
pedra, mas dá. A generosidade desta Mãe
maior é a pitada doce e bela nisso tudo. Mas
Chagas das Almas
250
as mamas racham, sangram e suas
condições de brotos em flor murcham em
favor do quanto sugam sua seiva, do filho,
sua fome e fervor, além das leis de Newton,
mais horror.
Com a voracidade de um feto mais
farto e abençoado, sorte dos que têm tudo
no lugar, vem como previsto e todo mundo
há de dizer: “que lindo!” sobre algo que se
supervaloriza como se distinguíssemos cada
pedra cinza e disforme das muralhas da
China, antes que um escultor supostamente
lhe dê beleza real, forma e cor.
Junto ao sacrifício lácteo, tem muitas
fezes para limpar, farta perfumaria em
noites de um mal dormido sem luar e berros
formidáveis aos ouvidos. Quanto mal estar.
Em suas mãos ou berços, bebês ninados em
balanço, no embalo, tentativa de
Chagas das Almas
251
merecimento deles de um pouco de
descanso.
Por isso o puerpério é um período em
que muitas mães desejam abrir mão desta
majestade. Artimanha do inconsciente
feminino descontente em seus hormônios
discrepantes e incandescentes que sentem
medo, em tão tenra idade, de tomar posse e
ser a rainha deste império. Conflito
esquisito que surge se assim se é mulher...
Por inteiro ou pela metade? Confronto cruel
entre a maternidade e coisas individuais de
sua vaidade. Dilema de solidão, como se a
mente fechasse para balanço. Como se cria
isto? Não vem com manuais! Queremos ser
mais que animais!
Diz-se que ser mãe é padecer no
paraíso. Somando-se a preocupação para o
resto da vida, onde um quarentão será
Chagas das Almas
252
sempre o "meu menino", com tudo isso,
difícil é imaginar o que seria padecer fora
dele... é de se merecer a ISO do inferno!
Mas ser mãe é também ser inevitavelmente
cruel sem intenção, da racionalidade nos
bípedes humanos, quase que uma
imposição.
Passado isto, falando do lado da cunha
que, aliás, elas também são ou foram um
dia. O rumo das almas do porvir, a que
desígnios servirão? Dignas de elogio ou
alcunha? Bem, felizes daqueles que tem um
regaço materno imanente de calor,
aconchegantes mãos mornas a lhes embalar
nos braços, com requinte do mais puro e
incondicional amor. É a mulher em seu
maior ato de heroísmo!
Porém, elas morrem como qualquer
existência de ávidos sentidos, manifesto que
Chagas das Almas
253
pulsa. É aquele momento em que cada filho
desejaria até que a ordem natural das coisas
entrasse junto a todo o enredo enfadonho de
parir e ser parido, existir e ter existido. Do
moço ou senhor, homens e mulheres,
maduros e imberbes o momento maldito,
para sempre um vácuo profundo a falta dela
deixa na gente... Que nem o papai dá jeito...
Que as coisas dele têm o seu universo
próprio a ser descrito, não menos
imperfeito.
Falta de um alivio no cansaço do corpo
e alma em exaustão, da atitude não tomada
que fez se perder o bem almejado, alvo de
algo oportuno ou amado, melhores
intenções imbuídas, mas abafadas em
tomadas mal decididas... Ah! Que bom
nestas horas é poder repousar a cabeça
naquele ombro e chorar em alto e bom som,
Chagas das Almas
254
sem receio de ser o que se está sendo, mau
ou bom. A porta fechada, no cantinho da
cama. Na sua cabeceira sentindo no
máximo as pontas de seus cabelos
casquinando no rosto ombro adentro.
Apenas naquele sereno e implícito “eu te
entendo”... Sem complicação e sentenças, -
que acalanto de mãe é silêncio e presença.
Pois que sempre há dias e instantes em
que nada nem ninguém, melhores parentes,
amigos ou amantes substitui a falta do colo
e do calor materno que não mais se tem
como antes... Burro-velhos, cheios de bons
orgulhos e maus ranços, tantas vezes nos
sentimos cada qual um órfão infante, tal
como uma criança numa praça vazia, fria e
sem encanto, solitária, brincando em seu
balanço.
Chagas das Almas
255
Três destinos
Antônio e Marta, há 20 anos passados,
num lugar que só pode ser segredo:
― Oi amor! ― diz Marta.
― Estava ansioso por te ver querida!
― Emenda Antônio.
― Vamos sair daqui querido, alguém
pode nos ver!
― Espere... Saiba Marta. Eu estou
muito esperançoso no concurso da
Petrobras.
Beijam-se por longo tempo e ele continua:
― Eu te amo muito, não quero te
perder.
― Eu também, mas não dá... Você está
noivo e...
― Então, espere as coisas se acertarem
e quando eu receber o meu primeiro salário,
Chagas das Almas
256
largo ela e ficamos juntos. Podemos fugir,
compro passagens para bem longe. Toca o
celular dele, é a sua noiva ligando para falar
do enxoval. Ele diz que está tomando um
chope com seu amigo Fred. Desliga e
emenda: ― Eu tenho que ir, te ligo amanhã
querida.
― Está vendo? Eu não suporto mais
isto Toni. Vamos terminar aqui, é melhor
eu seguir o conselho da Elaine. ― Fala
Marta com lágrimas nos olhos.
― Mas querida?!
― Saiba, eu te amo e te amarei para
sempre, mas... Não sei... Não dá mais.
E ela sai às pressas.
Antônio e Fred, hoje na esquina da Casa
D’Ângelo:
Chagas das Almas
257
― E aí amigo, há quantos anos! ― Diz
Antônio.
― Meu Deus! Toni... Como vai você
cara?!
― Tudo indo.
― Que beleza!
― Então Toni, não me vai dizer que
casou com a Martinha, que aquele grande
amor da faculdade vingou?!
― Não, não... Que isto... Diga-me, e
você se casou?
― Ainda não, continuo aquele
mulherengo. O que é que você está fazendo
da vida?
― Trabalho no ramo de cartões de
crédito, não está dando para reclamar não...
― Entendi. ― Esta resposta de Fred
foi adequada à própria sentença de Toni,
que mostrou que está no osso certamente.
Chagas das Almas
258
― Eu ainda estou na Vale, você sabe...
Estabilidade...
― Claro. Pô, eu tenho que ir Fred... A
gente tem que se encontrar com mais calma
para se lembrar dos velhos tempos e colocar
o papo em dia, né?
― Sem dúvida! Anote meus
telefones...
Pediram guardanapos ao garçom,
trocaram números e endereços eletrônicos.
Aqueles fantasmas que quase sempre
pegamos borrados e ilegíveis quando a
roupa do encontro chega da lavanderia,
numa sensação ao mesmo tempo de culpa e
de alívio.
Marta e Elaine, um mês depois do
encontro de Fred e Antônio, por ironia do
Chagas das Almas
259
destino, na mesma esquina em frente à Casa
D’Ângelo.
― Amiiiga! ― Diz Marta, efusiva.
― Maaartinha Querida! ― Se abraçam
balançando os corpos como gangorra:
― Como vai você?
― Tudo indo...
― Pois é Martinha, eu perdi a mamãe
faz uma semana...
― Ah! A dona Sílvia! Ela fazia o
melhor pudim de leite que eu já comi.
― É... É a vida... E você?
― Eu estou me separando Elaine.
― Nooossa! Mas você ainda é nova,
aliás, não mudou nada! ― O tom desta
exclamação tem dois sentidos: serve tanto
para o caso dela ter deliberadamente
largado o marido, quanto para o caso de ter
Chagas das Almas
260
levado um pé no traseiro. Continua a
Elaine:
― Então Marta, eu agora estou de
licença prêmio na prefeitura, quero pensar
um pouco em mim. E o Fred, o Toni, tem
notícias deles?
― Não, nunca mais os vi.
― Também não. Andei procurando
vocês no Face, mas não acho ninguém...
Aliás, você era louca pelo Fred lembra?
― Hein? Ah! Isto é coisa do passado,
besteirinhas da juventude, você sabe. E o
Carlos Alberto, não é este o nome do seu
filho?
― É, ele se formou, está casado e
trabalhando em Rorâima, acredita?!
― Veja você! Elaine... Estou com
pressa, vou levar o papai ao médico! Me dá
seu e-mail?
Chagas das Almas
261
― Claro Marta!
Por fim cada uma passou seu e-mail
para outra que certamente só renderá uma
mensagem e uma resposta, se muito, porque
na casa dos quarenta não se tem mais
novidades: novos filhos que nascem, novas
oportunidades de emprego, novos amores.
Assim, cada uma vai para uma direção da
avenida, pensando saudosamente nos
tempos idos e cada defeito que viram uma
na outra como obra da perversidade do
tempo e da competição feminina. Elaine
logo se distrai ao ver um belo vestido na
vitrine de uma loja. E Marta dispersa
pensando intrigada:
“Afinal, o certo é Rorâima ou
Roráima?”
Chagas das Almas
262
Um dia um Ipê
Despertei em plena aurora num
amanhecer de mais um dia qualquer. Vi a
sala avermelhada. Curioso, fui à janela.
Minha janela é uma exposição de quadros,
tipo estas porcarias modernistas. Natureza
morta, exceto um ângulo à direita que com
certa dificuldade me acomodo para ver,
entre dois blocos de concreto, um hiato de
natureza com montanhas lá no fundo, bem
longe. É de lá que o sol nasce para mim. Foi
então de onde a sua luz ofuscou meus olhos
com aquela chegada especial e vigorosa em
seus tons ultravioletas irradiantes. Corri
para achar um filme velho de máquina
fotográfica. Percebendo que isso não existe
mais, peguei meu último raio-X de pulmão,
delator de um fumante, que ficava guardado
Chagas das Almas
263
perto do sofá numa estante. Voltei ao canto
incômodo para refazer uma brincadeira de
criança. Ver o sol no seu formato original
em relação à distancia da Terra. Coloquei a
chapa sobre meus olhos, ergui a cabeça e lá
estava o astro rei, meu deus que sustém
minha vida e posso arcar com o ônus da
prova.
See see the sun. Reproduzi a capa deste
disco progressivo do Kayak. Acompanhe
comigo, pois não resisti e liguei o
computador para ouvir a canção tema do LP
e trilha desta manhã. Fiquei a lembrar sobre
como as coisas são efêmeras e me veio à
mente a casa velha anterior onde tinha só
para mim um ipê amarelo no jardim. Pensei
na frase que escrevi sobre o quanto de
aparato há para o prazer de um mero
instante. Parece que o orgasmo rege esta
Chagas das Almas
264
orquestra, mas é assim no saborear um
prato predileto, em quinze minutos
acabamos com algo que alguém na cozinha
levou duas a três horas para preparar com
muito amor.
Descobri sozinho que um ipê vive o
ano todo seco, esquecido, a ponto de eu
nem saber do que se tratava, se mais um
limoeiro ou pé de jabuticaba, tamanha
ignorância em relação à história da minha
ancestralidade. Até que outro dia, em mais
um despertar de meu corpo, cujo relógio
biológico já ficou biruta faz tempo, me
deparei com algo que me fez pensar estar
ainda na cama, sonhando. A tal árvore se
revelara inteiramente florida em amarelo na
minha janela, como um quadro de Maxfield
Parrish. Me emocionei com tamanha beleza
daquele ipê. Uma das coisas mais lindas
Chagas das Almas
265
que contemplava na vida e entendi o
porquê. Me sentia um príncipe na sacada da
varanda do segundo andar da casa. Foram
dois dias que acompanhei aquilo, porque no
final do segundo, já percebia que as flores
secavam e caiam. Ele era como as
borboletas, pensei com ar de botânico. Dois
dias de esplendor por ano, contra o resto de
reclusão, suplicio ante as secas e todas as
intempéries das estações. Jesus aprendeu o
sacrifício com a natureza. E a teoria da
evolução mostra quão árdua é a
sobrevivência. Enquanto os pinguins e as
águias entregam suas almas e entranhas,
nós humanos, lastimamos por tudo. Eu sou
um belo exemplar da espécie, admito.
Compreendi um pouco a ordem natural
das coisas simples esquecidas. O que
importa é a qualidade e não a quantidade.
Chagas das Almas
266
Que o que é belo e poético deve ser breve,
passageiro, do rosto bonito à melodia
principal, a cena especial, para não ser
vulgar e fazer assim os objetos fins, os seres
animados que desfrutam, se distraírem.
Porém, por seus ávidos sentidos, os homens
logo enjoam e desvalorizam suas graças
recebidas e por isso se fartam e usurpam
tudo de bom da vida. Resumindo este
barato: são aqueles momentos raros em que
sentimos um arrepio das ínferas aos pelos
dos braços. Eu senti isso no
deslumbramento do ipê e como sempre
acontece com esta canção e elepê.
Portanto, o sol nasce todo o dia, aqui
meio que quadrado em meu amanhecer.
Mas atento, agora com uma atenção
astronômica, verifico que sua órbita leva
poucos minutos por trás das montanhas a
Chagas das Almas
267
sair e produzir seu brilho maior, o resto é
trabalho e suor a semear e nortear a Terra,
sua causa maior. Não seria eu a pleitear a
longevidade, a eternidade... Se no que
consideramos breve existência, - e não faz
sentido sê-la? - em curtos instantes, puder
raiar um pouquinho aos olhos dos que
esperam algo de mim, terei feito minha
parte e me tornado uníssono a todas as
coisas tais como são, membro integrante
com a inteireza das minhas células e
membranas, contribuindo com a imensidão.
Ao contrário da sociedade e suas
artimanhas de ilusão, entendo neste
momento que sou parte disso e a mim não
cabe ser o centro pelo qual algo deva girar
em torno. Coadjuvante, não sou a estrela
deste magnífico espetáculo, sobra me
Chagas das Almas
268
orgulhar muito de ser parte integrante do
estafe.
Terminou a canção, certo? Fui à
cozinha passar um café. Com o resto desse
espírito, o coar lento e irritante se fez
tolerante, da demora valia a xícara
apreciada em curtos goles daquilo
frasquinho junto ao aroma, cara das
manhãs. Definitivamente de pé, o sol já não
entra mais. A janela parece se reduzir a uma
quadrada, vedada e blindada de avião.
Vejo-me diante da tal exposição, aqueles
quadros cinza do concretismo. Estou no que
é mais certo chamar de recinto, a mesmice
dos dias condenados, falando do apê, por
fim me fazendo de pedreiro. Quem sabe me
enforcar com meu cinto?! Ah, ah! Melhor,
tomar absinto...! Neste vernissage sofrível,
desta feita me ressinto, pois parte de seus
Chagas das Almas
269
curadores é o como me sinto. Não, isso não
é possível, minto! Não sou capaz de curar
dores... E isso dá uma sensação dos
horrores...
Chagas das Almas
270
Resumo da Ópera humana
“Sempre aqueles que dizem de
antemão que lutam em nome de Deus são
as pessoas menos pacíficas do mundo:
como crêem que recebem mensagens
celestiais, têm os ouvidos surdos para
qualquer palavra de humanidade”. (Stefan
Zweig)
E sempre o fora, antes e depois da
vinda de seu Mártir... Então, enquanto não
retorne o Messias; os discos voadores não
desabrocham aos olhos dos seus céticos; os
espíritos não cumprem sua eterna e
agonizante missão carmática; qualquer
operação de um “cavalo de Tróia” não leve
os homens de volta ao passado para
corrigirem seus erros ou viverem seus
mundos lunáticos; e os filósofos prossigam
Chagas das Almas
271
sua peregrinação sem fim, que tal
substituirmos tantos dilemas e todo este
investimento de espírito em questões
duvidosas, pela cura das doenças malditas,
na recuperação das matas virgens ou das
baías submersas no asco das latrinas
humanas e nos óleos derramados por navios
mercantes? E a camada de ozônio que
derrete nossas calotas polares, o eixo da
terra que retira gradativamente segundos
dos nossos dias já tão fugazes? Para que se
refugiar na ingenuidade perigosa sobre a
curiosidade por tudo que se diz sobrenatural
ou relativo a um passado inútil de
consciências mórbidas? Que afinal não
mata e nem esfola, mas afeta o caráter e
atrasa a evolução da alma. Enche o bolso de
líderes e oportunistas, mercenários
inescrupulosos de seitas, de pérolas, de
Chagas das Almas
272
indústrias cinematográficas, do lazer e
editoriais, além de cartéis farmacêuticos e
petrolíferos que fazem escravos e cobaias,
parte da miséria alheia.
A lua um dia já foi sobrenatural, o “Calígula
de Camus” ansiou por ela no auge da
angústia dos seus limites de poder. Hoje a
conhecemos de cor e sabemos bem que ela
não tem nada que supere a realidade além de
uma beleza ímpar, ao contrário do que
pensavam em grunhidos aqueles pré-
históricos patéticos. Este “Uno” de Platão,
Espinosa ou Einstein é privilégio do
conhecimento deles que são minoria no
mundo. O gênio de cabeleira e língua
esbugalhada virara um clichê que ofuscaram
muitos outros de sua estirpe. Que a filosofia
se atenha as questões racionais porque afinal,
o próprio Sócrates, espécie de pai, descobriu
Chagas das Almas
273
que “nada sabia” como todo cidadão
ordinário. E a maioria dos seus sucessores
que se verteram para o romantismo inútil,
experimentou frustrações inimagináveis,
alguns inclusive entregando suas vidas na
alta mocidade com tola pureza d’alma. A
fome e a miséria no mundo nos levam a
dispensar urgentemente o supérfluo! Aliás, a
natureza em si não produz supérfluos e muito
menos é redundante em quaisquer de suas
manifestações. Só devemos aceitar como
verdade o que um número expressivo de
espectadores experimentarem, com os
devidos ônus das provas. Devemos aprender
com a lenda de Tomé que nos deu antes de
tudo, uma grande lição de humildade. Deste
modo o que a gente vê pode provar, é a
miséria e a fome ao contrário dos discos
voadores e vídeo tape do passado, sonho
Chagas das Almas
274
maior do homem de uma engenhoca
matadora de saudades. As favas com os
prosélitos e sectários, Papas Pios, Dalais e
Aiatolás! Vida depois da morte só interessa
para os mortos que vivem nela, ainda que
tudo se resuma a nada, anestesia eterna e
geral! Aqui no Inferno humano, no dantesco,
o que pesa mesmo é morte prematura: de
homens, mulheres, crianças, animais em
extinção e toda e qualquer forma estupenda
de vida animada, danem-se por quem! Por
isso chega de cultos, mitologias, orações,
meditações e rituais! O que importa é “mãos
a obra” com amor a tiracolo e compaixão de
dar a esmo... o resto pouco importa, deve
esperar até que o ser humano recupere sua
maturidade, senso de integridade. Fácil sim é
temer a Deus como o povo alemão temia o
Reich. Melhor é acreditar no juízo final e
Chagas das Almas
275
aguardar a salvação que se compra em
prestações mensais como planos de saúde e
funerais. Afinal, se o mundo está para acabar,
que importa os novos degelos glaciais? Que
importa a miséria africana? Alerto, pois, os
individualistas e artificiosos... Talvez, ao soar
das trombetas vocês tenham uma surpresa
aterrorizante, pesadelos com camelos
adentrando em sangria, buracos farpados de
agulhas celestiais. Somos todos Deus
herdados, e só!
Por enquanto, todo este embuste como
entretenimento, tudo bem, vai...! Como a
vasta literatura de ficção, contos de fadas e
carochinhas ou até mesmo estas minhas
vaidosas e dispensáveis quimeras no caos.
Chagas das Almas
276
Contornos baldios
Na flor da idade, casas dos vinte,
depois de viverem alucinante paixão,
Marcos e Andréa deram cabo do casamento
em menos de um ano. Ao nono
mês Andréa pediu o divórcio. Ela era filha
única, muito regulada pelos pais. Então,
estava confusa. Sentiu na vida conjugal
uma liberdade que nunca havia
experimentado, isenta da tutela deles. Por
mais que amasse Marcos, passou a ver o
compromisso matrimonial como empecilho
para fazer uma porção de coisas que
faltaram na sua fase de solteira como sair
para festas, relações com amigos e, embora
esta ideia a culpasse terrivelmente, até
mesmo ter mais experiências com homens
diferentes. Também pensava que uma
Chagas das Almas
277
gravidez interferiria nos planos
profissionais, com o sonho de cursar a
faculdade de artes plásticas. A sociedade
chama isto de casar para abrir caminho, mas
julga como sendo ato premeditado, o que
pode ser injusto e arriscado em muitos dos
casos, como o de Andréa, por exemplo.
Marcos custou a se recuperar do baque,
deu graças a Deus de não terem filhos, que
seria um golpe ainda mais difícil de
suportar, passar por todas aquelas
intransigências e burocracias do processo,
quando o filho é tido como um objeto de
posse disputado em litígio. Contudo, mais
experiente, passados alguns meses ele já
estava se casando novamente. Era do tipo
que não conseguia ficar sozinho muito
tempo.
Chagas das Almas
278
Andréa passou a curtir a vida. Fez uma
viagem aos EUA, matando o sonho de
andar de avião, frequentou as noitadas, teve
relações sexuais e tudo mais que permeia a
alma de uma juventude liberta. No entanto,
seu coração era frágil, depois de dois anos
nessa rotina de solteira, emplacou em mais
dois relacionamentos sérios que juntos não
passaram de cinco anos. Em ambos os casos
a causa da ruptura foi a traição de seus
amantes. Até que por insistência dos pais,
dos quais nunca deixou definitivamente de
sofrer beata autoridade, acabou por casar
com um homem bem mais velho, sem
amor. Era o filho de um grande amigo de
família. Em pretexto de melhor reflexão,
esta coação foi gerada pela necessidade
cultural que as mulheres têm de ter filhos
com todos seus rituais. Como não se
Chagas das Almas
279
recomenda fazê-lo depois dos trinta, seria
um peso doloroso para Andréa não dar
netos a seus pais.
Antes de toda essa engendra, ela
apelou para o Marcos meio que por ato do
inconsciente. Descobriu o endereço do seu
escritório e certo dia, quando ele saia,
abordou-o como se fosse um encontro
casual. A diferença é que ela alongou a
conversa deixando claros a sua
disponibilidade e o telefone “para qualquer
coisa”.
O tempo perverso em sua relação de
“fases insignificantes da vida” não
sustentou suas precárias intenções. Marcos
ainda estava naquele momento do
casamento que, se não está mais numa lua
de mel, ainda há entusiasmo... Nem que a
custa de alguns tragos rotineiros com os
Chagas das Almas
280
amigos para afastar o tédio ou, quem sabe,
umas puladas da cerca para simples
afirmação de sua virilidade, condição
patética do sexo masculino.
Embora a cidade em que viviam não
fosse das maiores, os compromissos de
Marcos com sua empresa de informática e a
rotina de Andréa no cuidado de um lar, já
com três filhos, não possibilitavam a eles se
cruzarem muito pelas ruas e pontos sociais.
Isso acontecia uma vez por ano, se muito.
Mesmo assim, nesse caso, como prova de
uma postura muito elegante e tão rara entre
casais separados, se cumprimentavam e se
falavam com interesse e dignidade, o
suficiente para provocar ciúmes tolos em
seus novos parceiros. É provável que para
eles, um divórcio deva ser uma declaração
de combate, preferencialmente com
Chagas das Almas
281
bastante reivindicações de direito
mesquinhos, e por parte das mulheres,
rejeição doentia aos enteados.
Passou-se mais de vinte e cinco anos
dessa vidinha. Até que Marcos, então na
casa dos cinquenta, se apaixonou por uma
de suas estagiárias, de vinte. Miriam era o
nome dela, que proporcionava a Marcos
uma recíproca paixão entusiástica, típica
deste estágio onde a euforia confere
efêmero caráter às previsões mais otimistas.
Em um ano sua vida estava do avesso.
Separado da esposa e morando
num flat com a Miriam, se sentia
revigorado, como se rejuvenescesse dez
anos, apesar dos negócios terem caído
bastante em função dos caprichos da nova
parelha.
Chagas das Almas
282
Dez anos mais tarde, Andréa não havia
mudado de vida a ponto de fazer jus gastar
pena de qualquer escritor, se não no sentido
de dó, principalmente sobre seus sonhos em
direção às artes que a fizeram largar a
universidade e não passar de uma exímia
bordadeira. E Marcos foi mordido pela
cobra que generosamente anunciara o bote,
mas que ele estava surdo para ouvir. Levou
um fora da Miriam no segundo ano de
relacionamento e voltou para a ex-mulher,
aquela cujo nome nunca importa, tamanha
vítima que é da sociedade machista. A
mesma mulher que, depois de dez a vinte
anos de matrimônio, desaprende a ser
indivíduo para virar contrapeso social. Vive
de pensão, das alegrias alheias, sucesso dos
filhos, lembrança do corpinho do passado e
esperando, como última esperança, ter seu
Chagas das Almas
283
marido de volta para viverem a reincidência
do “faz de contas que somos felizes”. Mas
incrível, foi isso mesmo que aconteceu.
Marcos não se abateu tanto com o fora
da Miriam, nem pelo fato dela tê-lo trocado
por um rapaz com a metade da sua idade.
Certa vez ele confessou para um amigo: ―
Isto era de se esperar, as pessoas são muito
previsíveis. Além disso, foi melhor para
mim também, afinal de contas, mais alguns
anos, tudo cairia em rotina. Veria seu corpo
como vejo meu carro na garagem, não é
mais novidade; começaria a peidar a
vontade na frente dela e ela usaria a privada
de porta aberta... Ah! Às vezes, eu tenho
uma puta saudade da minha primeira
mulher! ― completou melancólico.
Os dois chagavam à casa dos sessenta e
tantos. Primeiro Marcos, dois anos
Chagas das Almas
284
depois Andréa. Pareciam estar em paridade
no que se refere aos ideais humanos de
vida. Financeiramente bem resolvidos, cada
um com seus filhos bem encaminhados e,
claro, cada qual com casamento estável.
Naquelas poucas vezes em que se
encontravam, mantinham aquela
cordialidade. Agora com mais frequência,
pois têm em comum frequentar clínicas,
consultórios médicos e locais de terapia ou
temor no que se chama ironicamente de
melhor idade. A amizade ganhou mais
colorido em suaves tons pastel, findo os
quentes. Como um voo para as Bahamas,
calmo e tranquilo, sem nenhuma adrenalina.
Havia a liberdade de poderem estar sem
seus respectivos cônjuges, já que a saúde de
ambos ainda não necessitava de amparo
físico ou psicológico a virar estorvo dos
Chagas das Almas
285
parentes. Com a sabedoria e a segurança
que só a vetustez imprime maior
honestidade, se é que há, suas migalhas de
encontros começaram a ficar mais
desprendidas, a ponto de poderem
conversar sobre amenidades, incluindo
histórias em preto e branco sem nenhum
constrangimento.
Certo dia, num breve café após o
horário de RPG, cada um confessou para o
outro sobre a comodidade de seus
casamentos, enaltecendo o enorme apreço
que tinham por seus esposos, embora as
entrelinhas delatassem claro, que não eram
plenamente realizados no amor.
― Pois é. ― disse Andréa ― Depois
de nossa separação eu... ― Proferiu um
rápido resumo desta história de brilho
fosco. Em seguida Marcos emendou: ―
Chagas das Almas
286
É... E eu... ― Fez ele a resenha da sua não
menos turva.
De repente, ao fim do diálogo
renitente, fez-se um silêncio longo e
cáustico. Houve um fito mútuo e lacônico.
A cognição de ambos projetou uma imagem
similar, clara e conformada, mas também de
grande consternação. Tantas aventuras,
tantas buscas... Contornos baldios. Cada um
tinha, diante de si, a única pessoa que um
dia verdadeiramente amou. “Para que levar
tudo tão a sério? Correr tanto, buscar
tanto?” Cada cabeça pensou não
necessariamente nesta ordem ou desordem
das coisas, repletos de inúteis talvez, se e
ou.
Chagas das Almas
287
Recordar
Recordar não é viver, é recriar, logo,
do ditado “quem conta um conto aumenta
um ponto", faz-se valer um bocado!
Recordar é recrear, felicidade sem
sofrer, pelas dores entender, valendo sim,
por que não e sem culpa até um leve
lacrimejar ao anoitecer? Sem chatear os
outros com nossa exegese (!), viajar mesmo
na maionese.
Recordar é pousar em terras copiosas,
porto seguro, quintal ou pátio de outrora,
tocando o sino da memória e colocando
“nossas crianças e jovens” pra fora, em
mentes acesas ou ociosas, a toda e qualquer
hora.
Chagas das Almas
288
Recordar é tudo isso ao nosso bel
prazer e, do súdito ao xeique, a sós ou em
companhia dos mais chegados, poder tecer
na vida nosso remake, de "curtas ou longas
metragens”, dos melhores momentos
vividos, todos seus babados.
Recordar é também esquecer e ser
esquecido, de todo rosto ou apelido, coisas
de neurônios, liga não, isso não nos faz
mais ou menos queridos. O importante é o
amor do todo e não do nosso ego indivíduo.
Não recordar é maldade com o "mim"
ou "consigo", que saudade não se mata, se
faz alvorecer!
Chagas das Almas
289
Daquilo que aprendemos e afinal é o
que tentamos passar aos nossos filhos e
netos. Arduamente fazê-los compreender o
que para nós já fora um conflito...
Que apesar dos pesares, ainda que
nunca plena...
Ah! A vida sempre valeu a pena!
Chagas das Almas
290
Chagas das almas
...Roney, Ana, Sônia, Douglas, Vera,
Leda, Ronaldo, Márcia, Senhorita Meireles,
Silas, Antônio, Deodoro, Jorge, Deméter,
Beltrano, Antônio, Edson, Marina, Jezebel,
Fred, Tony, Maxifild, Themístocles,
Andréa... Um funcionário da Prefeitura de
Petrópolis e uma mulher cegueta ainda não
identificados...
Chagas das Almas
291
... Aos poucos vão sendo divulgados os
primeiros nomes repletos de sobrenomes
que não importam mais se fazerem
distinguir, das vitimas do que estão
chamando de tragédia do voo cego. Mal
identificados, entre áridos escombros, saiu a
primeira lista parcial de mortos no acidente
com a aeronave desaparecida há seis meses.
Ela foi descoberta na semana passada
inteiramente destroçada no meio da floresta
amazônica. Autoridades, ainda que seus
títulos e cargos não passem de
chamamentos insignificantes, ainda não
sabem afirmar a origem e destino do voo,
cercado de muitos mistérios, uma vez que
se insere em um vácuo no espaço-tempo.
Tudo é incerto, imponderável.
Provavelmente logo serão confirmadas
outras vítimas. Parentes aguardam notícias
Chagas das Almas
292
nos aeroportos das capitais, mas são entes
não necessariamente deste acidente. Podem
fazer parte das estatísticas de pessoas
desaparecidas que um dia saíram de casa e
nunca mais voltaram. Ou acidentadas em
automóveis e balas perdidas a esmo. Até a
véspera da descoberta das ferragens, eles
não haviam dado falta de ninguém. Todos
estavam lá, como parece ainda estarem
agora. Tempo que para no liame entre o
côncavo e o convexo espaço relativo das
coisas que são. Maiores detalhes só
acompanhar na TV, caixa preta que revela
as tragédias humanas.
Supõe-se que haja fãs que iriam
assistir ao Show de Alice Cooper. Dois
casais apaixonados, recém-casados
informais e no papel. Também foi
confirmada toda a tripulação, enfim, que o
Chagas das Almas
293
menino Jesus proteja a todos neste
momento de luto opaco.
***
Não, Deus não é onipresente para o
supérfluo. As necessidades universais, sem
falar das africanas, os ocupam bastante. Por
isso não há justiça divina. Vários corruptos,
perversos e empedernidos morrem idosos,
gozando de boa saúde no conforto de seus
lares suntuosos pagos com o sacrifício dos
miseráveis. Este ditado "aqui se faz, aqui se
paga" não encontra estatísticas relevantes.
Tudo isso são abstrações religiosas, de um
povo cuja maioria é de pobres, ignorantes e
medianos, precisando mesmo de
mecanismos de consolo e ilusão para
seguirem em frente os patéticos ardis de
suas vidas. Devemos sim nos esforçar para
Chagas das Almas
294
sermos melhores, bem sucedidos, mas tem
o fator misterioso que rege as leis do
mundo. Em segundos os milagres ou
malogros podem bater na porta de um ou de
outro. Não temos o controle. Somos
responsáveis por nossas escolhas sim, mas
com muitas pressões.
Por anos convivemos com varias
pessoas, sejam familiares, amigos ou
colegas, absolutamente frágeis, dos bons
caráteres aos maus. Lembro-me de alguns
chefes que, em seus pequenos mundinhos
representados por suas empresas,
administram as pessoas com arrogância, se
valendo da prerrogativa do alto nível de
desemprego ou outras dificuldades, para
demonstrarem o que consideram
superioridade. Executivos: altos
empresários que acumulam salários
Chagas das Almas
295
exorbitantes e caem na armadilha do prazer
e dos excessos que suas fortunas podem
comprar; os nomeados em cargos públicos
que maquinam com os fartos recursos do
poder e manipulam destinos, além de
verbas do erário em benéfico de suas
ambições. Gente que vive trancada em casa
acumulando extratos para se manter nas
estatísticas dos mais isso ou aquilo na capa
da Times. Homens religiosos que fazem da
fé, má fé, martírio, paixão e fanatismo de
sofredores anônimos. Todos carregando à
tira colo seus egos narcisistas, tamanha
vaidade desmedida.
No coro das pessoas de bem, tem
aquela legião de entes que lutam
obstinadamente por seus sonhos, outros que
travam batalhas para largar vícios,
Chagas das Almas
296
conquistar melhor posto, diploma, fama,
pós-graduação ou simplesmente qualquer
lugar ao sol a custos altos e sacrifícios
inimagináveis. Destes bons e portadores de
valores nobres, também há os que se
arrependem, se culpam, os responsáveis que
perdem noites de sono por suas dívidas,
pela prova do concurso ou vestibular. E
ainda os que rogam serem queridos,
admirados, que se preocupam em ser
orgulho de pais ou filhos. Todo mundo
desejando superar-se, corresponder às
exigências selvagens da sociedade, onde
subsistir no sistema de capital é cada vez
mais penoso. Crises, índices, leis de oferta,
slogans, toda esta parafernália. Junto a isto,
violência e tecnologia trabalham juntas sem
saber, na contramão. O consumismo e o
entretenimento levam todos a quererem
Chagas das Almas
297
experimentar os próprios limites, tão
tentador tudo parece. Como efeito colateral
vem à ansiedade e com ela novas doenças
depressivas e obsessivas. Acontece é que o
mundo se reveza entre os que buscam ajuda
médica e espiritual e os que se ocupam de
novos deleites e aventuras com os recursos
cada vez mais pretensamente eficientes da
modernidade em meio às fórmulas
químicas, super-naves pesadas ou ultra-
leves. Maquinários digitais que dão prazer,
agilidade, ganho de tempo, porém que
matam ou mutilam corpos e mentes.
Depois, profissionais especializados catam
desculpas como agulhas em palheiro,
enquanto clarividentes se calam frente ao
dilema de assombrações perdidas nos óbitos
espetaculosos. É a moral mediúnica com as
beatices do espiritualmente correto.
Chagas das Almas
298
Dinheiro, grande mantenedor da
contemplação comovente da aldeia
humana! Por ele se vendem almas e se
movem montanhas com suor ou sacanagem.
Valerá mesmo à pena tudo isto?
Ainda que angustiante, só há uma triste
constatação, a de que todos nós estamos
equivocados, adoentados em nosso
hardware de carnes e nervos. Que a vida
por tão rara não merece tanta circunspeção
e obstinação. Não vale tudo o que
exaltamos com tanto apego, apenas ser
vivida um dia atrás do outro, sem grandeza
de concentração com as armadilhas
humanas que se deslembram da beleza de
uma simples rosa amarela, do amor ou do
bate papo à toa com os bons amigos num
dia comum do bem-viver. Não,
definitivamente este ritmo retilíneo torpe
Chagas das Almas
299
uniformemente acelerado não faz bem aos
homens. Afinal, de inteligentes, vaidosos,
arrependidos, ambiciosos e sonhadores, o
trágico e espetacular acidente de um
domingo comum com o Air France AF 447,
levou sem aviso, consulta e anuidade de
Deus, à sua revelia, 228 almas deste mundo
cão.
(04 de junho de 2009)
***
Voltando a ficção. Bem...
Neste obituário torturante que sai aos
poucos, à medida que os corpos
carbonizados são reconhecidos pela arcada
dentária, pedaços de documentos
Chagas das Almas
300
plastificados e vestes, percebo distinguir
quase todos além de mim. Mas há os que
não. Velhos, adultos e jovens, entre
homens, mulheres e crianças. Apesar disso,
ninguém me parece estranho. Todos tinham
uma variedade de sonhos perdidos e
realidades projetadas, sãs e vis, como já
fora anunciado antes.
Quem eu realmente conhecia, são os
que eu mesmo criei. Muito pertinente para
quem fez o mesmo com o espetaculoso
acidente. No entanto, réplica de uma
verdade recente como o voo Frances.
Também a qualquer momento pode ser
a próxima realidade, tragédia anunciada e
badalada.
Festa para os patrocinadores que
sustêm mídias, que nutrem espectadores.
Por seu turno, estes se alimentam de
Chagas das Almas
301
perguntas, dados de sangue e morbidez.
Clientes finais fechando a corrente do
consumismo imoral. Pois que depois,
quando entra no âmbito protocolar: justiça,
investigações e perícias, viram um enredo
chato demais e todo mundo esquece, de
olho num novo lançamento mais atraente
nas bancas, redes e telejornais. Anos
pesados para os parentes, estes sim, sempre
plugados ao fato, até saberem as causas,
espera de um mínimo de justiça. Eu luto
para não esquecer os fatos e assim ser
menos inútil e solidário a eles que em nada
são piores e menos merecedores ou mesmo
afortunados do que tu-ele-nós-voz-eles.
***
Chagas das Almas
302
Há compaixão no mundo. Há de todo
tipo. Têm os que se compadecem com a
miséria africana, da indonésia. Mas a dor e
o sofrimento estão espalhados em diversos
lares: de um pop star, dos empresários do
tradicional ocidente capitalista e machista
de cristãos brancos ocidentais, que se
consideram principais. Mas não. Todos
sofrem aos poucos, em distâncias relativas,
sem manchetes, em cantos de páginas como
qualquer alma anônima esquecida. O
soldado na guerra, o terminal de câncer, o
que feneceu de estômago colado, Ebola, os
pais do filho da bala perdida e o assassino
executado na cadeira elétrica. Os famosos,
o peso de será, mais lembrados por isso...
Somos todos irmãos. Marfim e ébano
que viemos do mesmo cerne e iremos para
Chagas das Almas
303
as mesmas cinzas, mesma verve, denuncia
esta variedade de traspasses desvairados.
É difícil entender a morte, ela
transcende nossas faculdades intelectuais.
Sentimos a dor dos entes e queridos idos,
consagramos nossas dificuldades mentais,
pois sim. É propriedade do ego levar o
apego consigo. Há sofreguidão demais. Não
é de nossa cognição afetiva tolerar dor por
milhares de CPF que morrem no varejo, se
não forem de nossos círculos. Apenas os
que se vão de uma vez só, num dia e
instante fulminante como na tragédia de um
voo cego. Só ficamos abismados com os
espetaculares, espetáculos nos ares. O que
está na negligencia ou no incógnito, eventos
sensacionais com a TV e suas trilhas
emocionais. Choramos se o mesmo for bem
Chagas das Almas
304
representado no cinema. Realidade e ilusão
nos confundem.
Assim, esta crônica derradeira cumpre
sua sina de misturar isso, a dor real com a
da ficção existencialista, o que ainda não sei
bem a diferença. Sina dos cronistas? Nestas
horas, como fora nos últimos acidentes
tanto do Air-France, como o da Gol e da
TAM, assim como o Tsunami asiáticos ou
boite do sul ... Não menos intrigado, me
pergunto e não acho qualquer resposta mais
adequada à maior questão que me aflige:
“Vida: vales muito ou não vales
nada?!”
Não há caminho do meio Mr. Buda.
Assim como pouco importa se haja
mais dela depois, uma vez que jamais seria
como esta, da forma que nossas almas são
Chagas das Almas
305
apegadas e vicejam a beleza da terra e da
água.
Tantas destas crônicas eu escrevi então,
misturando minhas verdades com
divagações e enredos falseados, não? Juntei
a primeira pessoa com terceiros, criaturas
recheadas de sabores ácidos, doces e
alegres. Dançarinos da corda bamba.
Mesmo assim, não me contento com nada.
Estou sempre frustrado e preso nesta
alfândega esperando o sinal verde para
liberdade. Não há felicidade plena se há o
sofrimento alheio.
Sabendo que a vida é repleta destes
impulsos falíveis que nos fogem totalmente
às escolhas, será que vale mesmo a pena
tantos planos, sonhos e anseios?
Preocupações excessivas? O que os
penados diriam se pudessem prever ou
Chagas das Almas
306
voltar para expressar o ato milésimo de
segundo antes do coração parar de bater?
Ou se houver este tal de “um outro
lado?” Afinal, tanto desprendimento de
energia do espírito, para que fim?
Por que meio buscamos a felicidade?
Chorando a miséria própria ou
colecionando status em perfis indômitos nas
tramas reais ou virtuais?
Durmo ansioso pelo beijo na minha
amada no encontro de amanhã e no
caminho “bum”! Desapareço em segundos,
deixando-a esperando em Bagdá ou
Amsterdã. Ainda têm culpas, promessas,
dívidas e renúncias. Nada que também
possa ser mais sanado. “Problema” passa a
ser uma palavra vazia, estéril.
As parafernálias do mundo, a mixórdia
dos sistemas de civilização... Tudo trazendo
Chagas das Almas
307
muita tentação e junto, à ingratidão em uma
mó de vidas perdidas em tempos esparsos.
No dicotômico e tragicômico viver do dia-
a-dia que não passam mesmo de meras
crônicas banais. Sofrimento sem fim dos
seres humanos e desumanos ao bel prazer
de um destino esquisito. Muitas tão bem
imbuídas, deixando entes chegados
absolutamente desamparados. Lagrimas e
rinites crônicas, renitentes narizes rubros
úmidos de tanto chorar para sempre. Sina
de existir sem sentidos e propósitos...
Bendita seja a vida ingênua ao
contrário da sociedade moderna em cada
era temporal presente. Cada uma, amorfa
anã, ansiosa e clemente de calma, se
enganando em fé maometana ou cristã.
Malditas desonras e dores humanas, chagas
crônicas das almas.
Chagas das Almas
308
Niterói, 15/10/2014.
Denuncie possíveis erros de distração,
ortográficos ou gramaticais e me de uma força.
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Obrigado,
Abraço.
Themístocles Silva Neto.
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