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CAMPOS SALES: GOVERNANÇA REPUBLICANA EM TEMPOS DE
TURBULÊNCIA1
Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF.
Professor da Faculdade Arthur Thomas, Londrina.
Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor Emérito da
ECEME.
RIVE2001@GMAIL.COM
Entendo o termo “Governança” da forma em que o Banco Mundial sugere,
como capacidade dos governos de planejar, formular e programar políticas e cumprir
funções. 2 O governo de Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913) 3 teve como
1 Palestra proferida na sede do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, Serviços e
Turismo, Rio de Janeiro, 4 de Agosto de 2015, sob o título: “A governança republicana segundo Campos Sales e a crítica do positivismo ilustrado”. 2 “Governança deriva do termo governo, e pode ter várias interpretações, dependendo do enfoque.
Segundo o Banco Mundial, governança é a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos
recursos sociais e econômicos de um país visando o desenvolvimento, e a capacidade dos governos de
planejar, formular e programar políticas e cumprir funções. Governança pode ser sinônimo de governo, o órgão de soberania ao qual cabe a condução política geral de um país, sendo o órgão superior da administração pública. No entanto, governança também pode dizer respeito às medidas adotadas pelo governo para governar o país em questão. São oito as principais características da boa governança: Estado de direito, transparência, responsabilidade, orientação por consenso, igualdade e inclusividade, efetividade e eficiência e prestação de contas”. In: http://www.significados.com.br/governanca/ [Consultado em 20/06/2015] 3 Manuel Ferraz de Campos Sales nasceu a 13 de fevereiro de 1841 em Campinas, SP, tendo falecido em
Santos, SP, a 28 de junho de 1913. Formou-se advogado na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1863. A sua vida política começou quando foi eleito deputado provincial. Tendo aderido ao movimento republicano em 1885, foi eleito para a Câmara dos Deputados. Desempenhou o cargo de ministro da Justiça no governo provisório da República, presidido por Deodoro da Fonseca. Foi eleito senador pelo Estado de S. Paulo (1891-1896), tendo desempenhado também a função de presidente desse Estado
2
característica fundamental ter deitado as bases do que seria o esquema de governança
da República Velha, equacionando o grave problema da dívida externa, com um
esquema de governo que garantisse maioria à Presidência da República, a partir de um
pacto com os governadores para assegurar a constituição de ampla maioria
parlamentar, mediante a ação de uma comissão de verificação de mandatos dos
eleitos para o Congresso nos Estados, sob o rígido controle do governo da União.
As ideias republicanas foram assimiladas pelos nossos propagandistas de fins
do século XIX à sombra da concepção ensejada pela Terceira República Francesa
(1870-1940). Em que pese o fato de tais ideias terem sido adotadas no seio de uma
concepção liberal que se aproximava do radicalismo inglês (uma versão moderada que,
professada pela maçonaria, teve entusiastas seguidores no nosso meio republicano),
no entanto, havia uma inspiração positivista básica que terminou polarizando o ideal
republicano. Isso em decorrência do fato de que o comtismo tinha se ajustado à
herança cientificista pombalina reivindicada pelos primeiros propagandistas da
República, aqueles que inspiraram as revoluções que tomaram conta do Brasil no
decorrer do Primeiro Reinado e do período regencial.
O Manifesto Republicano de Itu, de 1870, inseria-se, segundo Campos Sales,
nesse contexto. Se a palavra de ordem era a democracia, após a insurreição de
inspiração socialista de 1848 na França, (e que teve desdobramentos em Pernambuco
na mesma época), aquela deveria ser entendida não como construção de baixo para
cima, a partir das comunas descritas por Tocqueville (1805-1859) em A democracia na
América, 4 mas como imposição de cima para baixo, numa espécie de homogeneização
do tecido social em torno ao centro do poder, à maneira napoleônica. Ora, para
efetivar essa tarefa, a melhor ideologia seria o positivismo comtiano, partidário da
denominada “ditadura científica”.
A propósito, Campos Sales escrevia na sua obra principal, Da propaganda à
presidência, destacando a influência positivista por ele recebida: “Continuava em
grande atividade a agitação promovida pelos sinceros adeptos das novas ideias, na
imprensa, na tribuna, nas conferências populares, nos clubes e até nas organizações
(1896-1897). Foi eleito presidente da República para o período 1898-1902. “Nesta função concebeu um mecanismo, através da simples reforma do Regimento da Câmara, prescindindo de reforma constitucional, que institucionalizou a prática autoritária no país, através do qual os governadores decidiam a sua composição, mediante o expediente do reconhecimento do mandato, e asseguravam maioria parlamentar ao Presidente da República, por eles indicado. A isto chamou-se de política dos
governadores, que manteve relativa estabilidade política durante a República Velha” [CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO, Dicionário Bibliográfico de Autores Brasileiros, Brasília: Senado Federal, 1999, Biblioteca Básica Brasileira, p. 429]. Campos Sales, ao longo do seu mandato, saneou as finanças públicas, tendo restabelecido o crédito internacional bastante abalado pela instabilidade da primeira década republicana. 4 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. (Tradução e introdução de Neil Ribeiro da
Silva). 1ª. Edição completa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.
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secretas, havendo já a política radical adquirido vasta influência na opinião nacional,
quando a proclamação da terceira república na França, coincidindo com este
movimento que cada vez mais se propagava e atingia a todas as regiões do país, veio
servir de forte estímulo a uma atitude de caráter mais acentuadamente democrático. É
um fenômeno incontestável, pois que a história o atesta, o contágio das ideias entre os
povos, nas épocas em que se operam os grandes abalos sociais. Já A. Comte havia
observado que, em cada momento da história, o povo, cuja evolução é mais adiantada,
representa a humanidade inteira. O certo é que a Conjuração Mineira aparece no
momento em que se opera a grande reação contra o antigo regime (...). Foi assim que,
logicamente, apareceu, a 3 de dezembro de 1870, o Manifesto Republicano,
documento memorável, que na história da democracia brasileira assinala o momento
inicial da ação política, que se perpetuará na memória do país como o mais notável dos
fastos das nossas lutas, tal a firmeza, a abnegação, a coragem dessa falange de
heroicos combatentes, que a empreenderam e souberam leva-la a termo. A história
deve este tributo de homenagem aos propagandistas da República”. 5
A inspiração positivista de Campos Sales aparece bem clara num texto de 1888.
Note-se, na página que citarei a seguir, como o autor apela para o expediente da
Revolução (a revolução que devora o tempo e o espaço, escreve), quando se trata da
derrubada da Monarquia. Mas trata-se de um expediente revolucionário que,
paradoxalmente, deveria ser abolido da vida republicana. Todo o esforço de
governança contido na “política dos governadores”, como veremos nas próximas
páginas, girava em torno a esta proposta: banir a revolução da vida republicana,
embora, mediante ela, tivesse sido instaurado tal regime. Eis o texto do nosso autor:
“As leis físicas constatam que, à aproximação dos terremotos, certos animais
experimentam angústias extraordinárias, que são o aviso profético da iminência do
acidente. São assim também as leis sociológicas em relação aos cataclismos do mundo
moral. Há um pressentimento geral revelado pelo órgão de alguns, que denuncia a sua
aproximação, indicando a sua marcha sinistra e ininterrupta. Eis positivamente o
estado a que tem chegado a nação brasileira. Ao aproximar-se o advento do terceiro
reinado, a consciência pública sente-se angustiada pelos pródromos de uma crise tão
profunda como jamais fora sentida. (...) Para as situações como estas, só o grande e
indisputável direito dos povos oprimidos, o processo sumaríssimo, pronto, rápido – a
revolução que devora o tempo e o espaço, em busca da vitória! Mas, objetam os
tímidos: Isabel acaba de ser vitoriada pelo povo e aclamada a Redentora. Sim; mas a
história registra nos seus velhos e novos arquivos exemplos da popularidade de um
dia, servindo de véspera ao infortúnio perpétuo (...)”. 6
5 CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência, Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1983, p. 13. 6 CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 28-29.
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Assim concluía o nosso autor a síntese histórica sobre o advento da República:
“Uma revolução popular elevou D. Pedro II ao trono brasileiro antes da época natural
da sucessão; uma revolução parlamentar deu-lhe a investidura plena dos poderes
majestáticos antes do tempo prefixado para a capacidade política e, finalmente uma
revolução republicana o derrubou do trono, banindo do Brasil a monarquia”. 7
Desenvolverei neste artigo, em primeiro lugar, os aspectos fundamentais da
proposta de governança republicana de Campos Sales, que passou a ser denominada
de “política dos governadores”. Numa segunda parte, analisarei a crítica dos
positivistas ilustrados à proposta de Campos Sales, na versão elaborada pelo seu
irmão, Alberto Sales (1857-1904).
I – Aspectos fundamentais da proposta de governança republicana de Campos Sales,
denominada de “política dos governadores”.
Três pontos desenvolverei nesta parte, correspondentes aos desafios herdados
dos primeiros governos republicanos: em primeiro lugar, a superação da agitação
revolucionária e do espírito de facção que tumultuaram os três primeiros mandatos de
Deodoro da Fonseca (1889-1891), Floriano Peixoto (1891-1894) e Prudente de Morais
(1894-1898); em segundo lugar, o equacionamento do problema da dívida externa do
Brasil com os bancos europeus; em terceiro lugar, a superação da instabilidade da
gestão republicana, mediante a prática da “continuidade administrativa” na
denominada “política dos governadores”.
1 - A superação da agitação revolucionária e do espírito de facção que
tumultuaram os três primeiros governos republicanos, nos mandatos de Deodoro da
Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Morais.
A passagem da Monarquia à República deu-se no meio a grande agitação, em
decorrência do risco de as forças monarquistas tentarem reverter a mudança
institucional, implantando de novo o Império. O caráter militar do golpe de 15 de
Novembro de 1889 ensejou, no seio da sociedade brasileira, propostas bonapartistas,
que visavam a dar continuidade à feição castrense do Governo Provisório presidido por
Deodoro da Fonseca (1827-1892). Os erros de comando deste, aliados ao escancarado
autoritarismo com que o seu sucessor, Floriano Peixoto (1839-1895) o Marechal de
Ferro, sufocou as revoltas que acompanharam o fim do mandato deste, bem como o
isolacionismo em que caiu o primeiro presidente civil, Prudente de Morais (1841-
1902), ensejaram um clima de instabilidade que era necessário desmontar o quanto
antes possível, a fim de garantir o reto funcionamento das instituições republicanas.
7 CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 29.
5
Esse era o clima refletido no alerta de Campos Sales em 1896, quando
desempenhava o cargo de presidente do Estado de São Paulo. A respeito, escrevia o
nosso autor: “Os elementos agitadores, que se aninham em nosso seio,
comprometem-nos, pois que, à sombra da nossa condescendência, vão acarretando a
nossa responsabilidade na sua ação, francamente e calculadamente anarquizadora.
Isto nos enfraquece, porque nos desacredita, apresentando-nos como incapazes para
o governo. Os últimos sucessos, se não produziram desastres, deverão servir-nos de
advertência. Está claro que não podemos dirigir o elemento agitador e nem devemos
presumir que ele chegue a subordinar-se à nossa direção. Ao contrário, os exaltados é
que nos vão levando, a reboque nas suas arruaças, meetings de indignação, etc. Eles
arranjam as crises, e nós aguentamos com as responsabilidades delas (...)”. 8
A única atitude coerente que garantiria a estabilidade das instituições
republicanas, pensava Campos Sales, seria a imposição de uma agenda positiva,
tendente a deitar as bases para a estabilidade política, mediante a conquista de
amplas maiorias no Congresso, favoráveis à instauração da continuidade
administrativa. Essa proposta passava por uma exigência no contexto da dinâmica
política: a criação de um partido conservador que construísse essa ampla maioria.
Somente assim seria possível superar a agitação crescente das ruas, promovida, de
dentro do Congresso, por deputados interessados em catalisar as instituições
republicanas em benefício dos seus afilhados, excluindo o resto.
A fim de superar esse vulgar clientelismo, era necessário tomar a iniciativa e
criar os mecanismos políticos para garantir a maioria no Parlamento e na opinião
pública. Somente um trabalho de engenharia política que organizasse um partido
conservador a serviço da estabilidade republicana, garantiria pleno sucesso para a
consolidação das instituições. Campos Sales queixava-se de que inexistiam, na época,
verdadeiros partidos políticos, que possibilitassem canalizar a opinião pública. Tratava-
se, mais, de clientelas arregimentadas ao redor de figuras de prol. Mas faltavam a
essas organizações um fundo doutrinário e uma proposta de ação.
Eis a proposta (contida em carta de Campos Sales endereçada a Bernardino de
Campos) 9, que fazia referência às agitações de rua ocorridas na capital da República. O
arrazoado do nosso autor tinha como pano de fundo a história da França republicana
de então: “(...) Penso que temos a escolher: ou nos declaramos adversários e lhes
damos combate decisivo, ou renunciamos à aspiração de formar um partido
conservador, ordeiro, governamental e orgânico. Ficamos nisso que aí está, que é a
anarquia, no meio da qual os nossos homens se vão perdendo por incapazes, e a 8 CAMPOS SALES, Manuel Feraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 72.
9 Bernardino de Campos (1841-1915), fundador do Partido Republicano Paulista (PRP), desempenhou
em duas oportunidades o cargo de Presidente do Estado de São Paulo. Foi Ministro da Fazenda do governo presidido por Prudente de Moraes.
6
desconfiança que se forma em torno de nós. Este é o elemento perverso em todas as
democracias. Cassagnac 10 nunca encontrou melhor aliado do que Clemenceau, 11 o
purista republicano, devorador de gabinetes. O que V. me conta do Rio é a reprodução
no nosso país desta extravagância. Diga a Glicério 12 que um chefe não pode
condescender em pontos fundamentais, sem enfraquecer a sua autoridade; e o chefe
que se enfraquece está no risco de perder o comando, aliás impossível diante das
vontades intransigentes. Basta de Câmaras agitadoras. Precisamos governar com
ordem para governar bem (...)”. 13
Elemento importante na instabilidade do período era o espírito bonapartista
que tinha tomado conta do cenário político, ao ensejo das disputas em torno à
indicação dos candidatos à Presidência da República. Eis o relato que fazia o nosso
autor acerca da agitação ensejada pela revolta da Academia Militar, em Outubro de
1897. Destaquemos, antes, que os oficiais à testa do movimento eram favoráveis à
candidatura de Floriano Peixoto para suceder a Prudente de Moraes.
“Os sucessos da Escola Militar – escrevia Campos Sales - tiveram larga
repercussão no mundo político, onde foram acolhidos com a sofreguidão dos que
apenas aguardam a superveniência do pretexto para um desenlace premeditado. Dir-
se-ia, ao observar a presteza com que os grupos se separaram, alinhando-se em
campos opostos, que no seio do Congresso tudo tinha sido predisposto, com ordem e
disciplina, para que cada um tomasse o seu lugar ao primeiro sinal de combate. E
quem estudasse atentamente a fisionomia das duas facções, veria reproduzido o
mesmo aspecto político que apresentava a Câmara dos Deputados durante o governo
do marechal Floriano, com uma só diferença: os oposicionistas de outrora
arregimentavam-se então em torno do governo de Prudente de Morais, e declaravam-
se oposicionistas os que se diziam representantes da tradição florianista. O nome do
Marechal de Ferro, a toda hora evocado, chegou a ser um verdadeiro grito de guerra,
sobretudo entre os elementos mais exaltados. Queriam estes ser os genuínos
representantes do republicanismo brasileiro (...)”. 14
10
Paul Adolphe Granier de Cassagnac (1842-1904), jornalista e deputado bonapartista francês, crítico contundente do regime de liberdades adotado na 3 ª República francesa pelos republicanos radicais (ou moderados, influenciados pelo radicalismo liberal inglês). As suas acirradas críticas ajudaram a aumentar o ambiente de incerteza institucional e abriram o caminho para Clemenceau, “o devorador de gabinetes”. 11
Georges Clemenceau (1841-1929) deputado radical da 3ª República francesa, foi também Senador e Presidente do Conselho de Ministros em duas oportunidades. Aproveitou o ambiente de incerteza causado pela ação crítica de Cassagnac, a fim de galgar o poder. 12
Francisco Glicério de Cerqueira Leite (1846-1916). Jornalista e maçom, foi o único líder republicano paulista presente no golpe militar que derrubou a Monarquia em 15 de Novembro de 1889, ao lado de Quintino Bocaiúva (1836-1912) e Aristides Lobo (1838-1896). Senador pelo Estado de S. Paulo, organizou o Partido Republicano Federal (1894). 13
CAMPOS SALES, Manuel Feraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p 72-73. 14
CAMPOS SALES, Manuel Feraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 76-77.
7
A candidatura de Campos Sales apresentada pelo Partido Republicano Histórico
visava a colocar um marco de continuidade institucional na nascente República que
tivera, de forma excepcional, dois presidentes militares (Deodoro e Floriano),
sucedidos por um presidente civil, Prudente de Moraes, indicado pelo fato de ter sido
presidente da Assembleia Constituinte da República e que teve um mandato
turbulento marcado pela pacificação do Rio Grande do Sul e a Guerra de Canudos. Ora,
o único marco possível de continuidade doutrinária estava identificado com o Partido
Republicano Histórico, representante de uma versão moderada de República, que se
afastava ao mesmo tempo do bonapartismo e do autoritarismo que tinha ensejado as
revoltas no Sul do Brasil, incentivadas pela versão heterodoxa do positivismo
messiânico de Júlio de Castilhos (1860-1903).
Destacando o caráter moderado do programa de governo apresentado por
Campos Sales e os vários cargos públicos por ele ocupados antes de chegar à
presidência, escreveu o jornalista e senador Alcindo Guanabara (1865-1918): “O
programa com que V. Exa. se apresentou às urnas não era de modo algum o da cisão;
era o do Partido Republicano Histórico, era o programa que o propagandista, deputado
provincial, o constituinte, o senador, o ministro da Justiça, o presidente de São Paulo
havia sempre defendido e sustentado. O Sr. Campos Sales teve especial cuidado em o
assinalar em termos inequívocos (...). Assim, a eleição do Sr. Campos Sales foi a
primeira que se efetuou no Brasil em nome de princípios e de ideias definidas.
Assegurada a ordem pública, a paz material e espiritual, o presidente pôde, com
segurança e firmeza, executar o programa claro e definido, que na ordem financeira,
como na ordem política, havia enunciado com precisão antes de ser investido do
poder”. 15
2 – Equacionamento do problema da dívida externa com os bancos europeus.
Eleito Campos Sales para o período 1898-1902, antes de tomar posse viajou
para a Europa a fim de negociar, em Londres e Paris, novo prazo para a dívida externa,
bem como empréstimos para fazer frente à penosa situação financeira do governo,
que beirava o calote. Os conflitos constantes, a insegurança jurídica, as incertezas
quanto à capacidade econômica do governo para honrar os seus compromissos com os
bancos estrangeiros e para pagar o funcionalismo foram se avolumando de tal forma,
que a má imagem internacional do país tinha se tornado uma carta negativa de
apresentação.
15 GUANABARA, Alcindo. A Presidência Campos Sales. (1902). Cit. por CAMPOS SALES, Da propaganda à
presidência, ob. cit., p. 85, nota 1. Existe edição atual da obra de Alcindo GUANABARA, A Presidência
Campos Sales. (Brasília: Senado Federal, 2005, Coleção “Biblioteca Básica Brasileira”).
8
O ministro plenipotenciário do Brasil em Paris revelava a difícil situação
financeira decorrente da falta de uma política clara em matéria econômica. A respeito,
o diplomata escrevia a Campos Sales em janeiro de 1898: “Uma das causas da nossa
fraqueza em matéria de crédito é a ausência de plano financeiro ou a ignorância em
que está a Europa de qualquer plano por parte do nosso governo”. 16
O próprio Campos Sales escreveu acerca desse ponto: “(...) Nenhum plano
estava assentado no sentido de debelar as excepcionais dificuldades que assediavam o
Tesouro: apenas o Presidente da República, com quem estava de acordo o ministro da
Fazenda, aludia a um grande empréstimo, sem lhe ocorrer talvez que, para um grande
empréstimo, seria preciso, pelo menos, dispor de um grande crédito (...)”. 17
O nosso autor viajou a Londres e Paris com autorização do presidente Prudente
de Moraes para negociar com a banca internacional a rolagem das dívidas contraídas
pelo Brasil no final do Império e nos nove anos transcorridos desde a proclamação da
República e para que conseguir, também, um novo empréstimo que tirasse o país do
aperto. Viajou acompanhado do jornalista Tobias Monteiro (1866-1952), que se
desempenhou nessa missão como o seu secretário particular. 18 A dívida externa era
vultosa e tinha sido acumulada a partir dos empréstimos feitos pelo Império para
financiar a Guerra do Paraguai (1864-1870) e pela nascente República ao ensejo das
emissões monetárias que acompanharam o Encilhamento (1889-1892), bem como
pelos gastos correspondentes à manutenção da ordem pública com motivo dos
levantes dos Estados do Sul, na Revolução Federalista (1893-1895).
Campos Sales ficou impressionado com o conhecimento que os banqueiros
europeus tinham da situação econômica brasileira. O presidente do banco Crédit
Lyonnais, em Paris, mostrou-lhe as estatísticas que a sua instituição tinha acerca das
contas brasileiras. A respeito, escreveu o nosso autor: “No correr da visita que fizemos,
ao entrarmos na repartição dos depósitos, disse-me ele: Aqui há valores suficientes
para resgatar todo o papel moeda brasileiro, restando ainda grande sobra. Nem se
suponha que haja nisto uma afirmação vaga, sem base. Na repartição respectiva teve
ele ocasião, logo depois, de mostrar-me quadros estatísticos do estado financeiro e
industrial de todas as nações do mundo, em que o Brasil figurava com uma exatidão
irrepreensível. Fatos que ainda não estavam consignados no relatório da Fazenda já
figuravam naqueles quadros. Não se entrega à exploração um ramal, um trecho
16
Carta do Ministro plenipotenciário em Paris, Gabriel de Piza, a Campos Sales, 25 de janeiro de 1898. Cit. por CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 88. 17
CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 90. 18
Cf. MONTEIRO, Tobias. O presidente Campos Sales na Europa. 2ª edição. Brasília: Edições do Senado Federal, 2005, vol. 40. Na Introdução a esta obra (p. 13-72), Tobias Monteiro traça um quadro bastante completo da difícil situação econômica encontrada por Campos Sales quando chegou à Presidência da República em 1898.
9
qualquer de estrada de ferro, que não entre imediatamente para os seus mapas.
Conhecem tanto, senão mais, da nossa vida, que nós mesmos. Devemos ter isto bem
patente para não nos iludirmos acerca do que chamamos aqui campanha de
difamação, no estrangeiro. O que faz a difamação são os nossos erros, que eles
conhecem e cujos efeitos descontam”. 19
O nosso autor achou que havia concordância entre o que pensava o presidente
do Banco Crédit Lyonnais acerca da atitude que um bom governo deveria ter em
matéria de gestão econômica e o que ele tinha dito no Rio de Janeiro, antes de partir
para a sua viagem; efetivamente, Henri Germain, presidente do banco francês frisou:
“É dever primordial de todo governo fazer executar o que for deliberado”. Campos
Sales concordava com ele, lembrando o que tinha dito no Rio: “Este país do que
precisa é de governo”. 20
Em face da dívida externa, abriam-se três possibilidades: o calote, a redução
arbitrária de juros ou a negociação de um grande empréstimo. Campos Sales
descartava de entrada as duas primeiras soluções. A primeira, porque desmoralizaria
ainda mais a já combalida imagem do Brasil no exterior, fechando as portas para
futuras negociações. A segunda opção, no entender do nosso autor, era inconveniente,
levando em consideração o que tinha acontecido com a Grécia. “(...) Tendo aquele país
adotado esta solução para a crise que o afligia, foi obrigado mais tarde a sujeitar-se a
uma fiscalização financeira internacional muito severa”, nas palavras do nosso autor. 21
Como se vê, os problemas financeiros da Grécia não são de hoje.
Restava a solução mais prudente, o reescalonamento da dívida e a busca de um
novo empréstimo. A respeito dos termos da negociação que Campos Sales levou a
cabo com os bancos internacionais em Londres e Paris, escreveu o nosso autor: “Do
confronto da proposta original com o que foi aceito, depois de modificadas as
cláusulas primitivas, resulta o seguinte: O prazo para pagamento dos juros em moeda,
que era de dois anos, elevou-se a três; a amortização, que no fim do mesmo prazo
(dois anos) deveria continuar a ser feita como na forma até então existente (...), foi
espaçada para dez anos, depois do prazo acordado, isto é, ficou suspensa até 30 de
junho de 1911. As garantias exigidas, compreendendo todas as alfândegas da União, a
Estrada de Ferro Central e o serviço de abastecimento de água, ficaram reduzidas à
especialização da Alfândega do Rio de Janeiro, devendo, porém, o governo suprir com
as rendas de outras o que viesse a faltar no caso de insuficiência daquela (...)”. 22
19
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 93-94. 20
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 93. 21
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 96. 22
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 100.
10
A negociação com os bancos internacionais deu-se entre o representante do
governo brasileiro (Campos Sales) e os agentes do River Plate Bank, do London and
River Plate Bank, do Brasilinanische Bank fü Deutschland e do Cédit Lyonnais,
contando com a intermediação da Casa Rotschild, em Londres. Campos Sales
considerava que a negociação tinha chegado a um bom termo, pelo fato de ter
consultado duas variáveis: salvaguarda aos interesses dos bancos internacionais e, de
outro lado, cálculo das possibilidades de o Brasil cumprir com o prometido.
Escrevia a respeito: “Ainda agora, após a consumação dos fatos, me convenço
de que chegamos nesse acordo até onde podíamos chegar. Outros pensaram e
pensam ainda, talvez, que deveríamos tentar melhor negócio. A questão, entretanto,
não era positivamente a de um bom negócio, com maiores sacrifícios dos interesses
dos nossos credores; era, sim, o de uma combinação honesta e exequível. Que esta
que fizemos era honesta, prova-o o acolhimento da outra parte; que, também, era
exequível, demonstra-o o próprio fato da sua execução”. 23
Tratava-se, nessa complicada conjuntura por que passava a economia
brasileira, de manter a credibilidade perante os credores da dívida externa sem, no
entanto, paralisar a economia do país. Difícil tarefa de que o nosso autor se
desincumbiu com desassombro, ao longo dos quatro anos do seu mandato como
Presidente da República. Para o importante cargo de Ministro da Fazenda, Campos
Sales escolheu Joaquim Murtinho (1848-1911) por encontrar nele a pessoa que
poderia, com firmeza, sanear as contas públicas. No terreno da produção cafeeira,
Murtinho acreditava, aliás, que o mercado se encarregaria de resolver o problema do
abastecimento, sem que fosse necessária a intervenção do Estado. 24 As energias
deveriam ser concentradas na racionalização do gasto público.
Eis os termos em que Campos Sales exprimia essa complexa realidade: “Com
efeito, dada a profunda depreciação, do papel, a que chegamos, a primeira
necessidade que ocorria era a de libertar o governo da contingência de tomar câmbio
para o serviço da sua dívida externa, removendo, ao mesmo tempo, a principal causa
do desequilíbrio orçamentário. Por outro lado, ganhava o governo largo período, de
que aliás necessitava, para que pudesse, apoiado nestes recursos, estabelecer a ordem
e a regularidade nas finanças e desenvolver gradativamente os trabalhos de
valorização do meio circulante, causa fundamental da tremenda crise”. 25
23
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., ibid. 24
A respeito deste ponto, Antônio DELFIM NETTO frisa: "Convicto de que a intervenção oficial só poderia aumentar os nossos males, o governo deixou que a produção de café se reduzisse por seleção natural, determinando-se assim a liquidação e a eliminação dos que não tinham condições de vida, ficando ela nas mãos dos mais fortes e dos mais organizados para a luta". O problema do café no Brasil. São Paulo: UNESP, 2009, p. 45. 25
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 100.
11
3 - A superação da instabilidade da gestão republicana, mediante a prática da
“continuidade administrativa” na denominada “política dos governadores”.
A “política dos governadores”, posta em execução por Campos Sales ao longo
do seu mandato presidencial (1898-1902), foi a resposta dada pelo mandatário à
crônica instabilidade que caracterizou a primeira década republicana. O caminho
escolhido pelo Presidente foi o da fundamentação do governo num amplo apoio dos
governadores dos Estados, que garantiriam maioria para o governo no Parlamento,
com vistas a tornar exequível a política econômica de rígido controle de gastos, a que
se vira obrigado o país em decorrência da renegociação da dívida externa, cujos
aspectos essenciais foram sintetizados anteriormente. A essa política o presidente da
República dava o nome de manutenção da “continuidade administrativa”. 26
Célio Debes (1926), um dos mais conceituados biógrafos de Campos Salles,
identificava a “política dos governadores” como uma opção eminentemente
pragmática, num meio em que inexistiam partidos políticos solidamente
fundamentados do ângulo programático e doutrinário. A respeito frisa: “A política dos
Estados, que, para seu escarmento, popularizou-se como política dos Governadores,
tinha por fulcro sua concepção de partido político. Este devia concentrar
correligionários e não cultivar alianças, porque a identidade de concepções tendia à
permanência, enquanto as ligações de momento eram efêmeras, por natureza. Duas
tinham sido, até então, e seriam, ainda por muito tempo, as correntes que se
digladiavam nas unidades federadas. A que detinha as rédeas do poder e a que se lhe
opunha. Era entre essas facções que o Chefe da Nação tinha que buscar suas bases
políticas nos Estados. Inexistindo uma estrutura doutrinária que individuasse esses
conglomerados, a opção seria obedecer a um critério objetivo. Assim, deu preferência
26
Ao longo da República Velha apareceram propostas de manutenção do “Poder Moderador” de feição não monárquica, a fim de superar os impasses ensejados pelo Executivo hipertrofiado. Essas tentativas, no entanto, fracassaram, abrindo o caminho para a aplicação da hipertrofia do Executivo pura e simples, na tradição da Segunda Geração Castilhista, com Getúlio Vargas à testa. Cf. a respeito do debate sobre o tema, CYRIL LYNCH, Christian Edward. “Entre a jurisdição constitucional e o estado de sítio: o fantasma do poder moderador no debate político-constitucional da Primeira República”. [in: https://www.academia.edu/12894652/O_fantasma_do_poder_moderador_no_debate_pol%C3%ADtico_da_Primeira_Rep%C3%BAblica] (Consultado em 05/07/2015). A respeito, frisa este autor: “O fracasso dessa tentativa de restabelecer o poder moderador, como meio termo entre judiciarismo e excepcionalidade, favoreceria a escalada autoritária que resultaria na instauração do Estado Novo”. Dentre as tentativas fracassadas, vale a pena lembrar a apresentada pelo ex-governador gaúcho Antônio Augusto BORGES DE MEDEIROS (1863-1961) na obra intitulada: O poder moderador na República
presidencial. 2ª Edição. (Prefácios de Paulo BROSSARD DE SOUZA PINTO e Victor José FACCIONI) Porto Alegre / Caxias do Sul: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul / EDUCS, 1993. Como destacou Antônio PAIM, a ditadura somente era admissível pelos seus beneficiários sendo que, quando na oposição, ex-ditadores como Borges de Medeiros preferiam a democracia, adotando até institutos da “metafísica liberal” como o “poder moderador”. Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo – A
natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. 2ª edição corrigida e acrescida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994, p. 101 seg. “Capítulo V – O embate do século republicano e seu desfecho”.
12
aos contingentes que apoiavam os Governadores. O empenho destes, nas respectivas
áreas, era manter a ordem e a ordem interna era a base fundamental para que a
diretriz de governo de Campos Sales se concretizasse”. 27
Segundo o historiador marxista Edgar Carone (1923-2003), Campos Sales pôs
em prática um governo de índole conservadora, destinado a cumprir à risca a proposta
de cortar gastos desnecessários, a fim de garantir os compromissos econômicos
assumidos pelo governo anterior, quando da assinatura do Funding Loan, negociado
na Europa por ele mesmo antes de tomar posse em 15 de Novembro de 1898. Mas o
fato que fez deslanchar a “política dos governadores” foi constituído pelas brigas entre
os dois principais agrupamentos políticos, Republicanos e Concentrados.
A respeito, frisa Carone: “As duplicatas e fraudes levariam a brigas internas, a
divisões nos Estados, e o resultado seriam os problemas políticos superarem o
interesse pela administração e pelas questões financeiras. Para remediar a situação, a
seus olhos muito grave, Campos Sales entra em combinações com todos os
governadores e lideranças políticas e modifica o mecanismo da Verificação de Poderes
da Câmara dos Deputados. Essa tática resulta num controle geral dos Estados, daí ter
sido denominada política dos governadores, ou, como o autor gosta de chama-la,
política dos Estados”. 28
Arsênio Corrêa29, na sua obra intitulada: O pensamento político de Campos
Sales destaca que a instabilidade crescente decorreu da ruptura ensejada com a queda
do Império e o abandono das instituições do governo representativo no novo ciclo
histórico. A isso se acrescentou a opção federativa, em termos bastante confusos. “A
opção por uma república federativa, nos moldes americanos, – frisa este autor – levou
o governo a adotar a teoria da descentralização. Portanto de uma prática
organizacional de mais de meio século (...), saltamos no escuro para uma nova
organização política e administrativa”. 30
Como ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Sales tentou dar
estabilidade à administração (presidida pelo velho Marechal Deodoro, bastante
27
DEBES, Célio. Campos Sales, perfil de um estadista. Rio de Janeiro / Brasília: Livraria Francisco Alves / Instituto Nacional do Livro, 1978, 1 º volume, p. 15. 28
CARONE, Edgard. A República Velha – Instituições e classes sociais. 2ª edição revista e aumentada. São Paulo: DIFEL, 1972, p. 305. 29
Arsênio Eduardo CORRÊA (1945), pesquisador do Instituto de Humanidades, advogado, tem centrado a sua obra na pesquisa do substrato doutrinário da República, tanto no que se refere aos primórdios, quanto no relativo ao último período, após o ciclo militar, correspondente à abertura democrática. Além da obra dedicada ao estudo da vida e pensamento de Campos Sales (O pensamento político de Campos
Sales, Londrina: Edições Humanidades, 2009), publicou também: A Frente Liberal e a democracia no
Brasil – 1984-1985, (São Paulo: Nobel, 2006). 30
CORRÊA, Arsênio. O pensamento político de Campos Sales. Ob. cit., p. 16.
13
doente), mediante a tese da responsabilidade compartilhada do Chefe do Executivo e
os seus ministros, nos atos de governo. No mandato de Prudente de Morais, que
seguiu ao bonapartista governo de Floriano Peixoto, a instabilidade aumentou, na
medida em que o Presidente da República ficou refém do Partido Republicano Federal,
sendo que o chefe deste, nas palavras de José Maria Belo, tornou-se “uma espécie de
condestável da República”. As instituições republicanas passaram a sofrer das mesmas
contradições que enfrentou a Terceira República francesa: acirrada disputa entre o
Executivo e o Parlamento, como destacava José Maria Belo (1885-1959): “O poder do
Congresso e o poder do Presidente da República harmonizavam-se apenas nos artigos
constitucionais; na realidade, não se entenderiam nunca”. 31
Campos Sales considerava que a nova “política dos governadores” traria a
estabilidade almejada. Essa política deveria ser traçada pelo Chefe do Executivo da
União, tomando como base o exemplo do presidencialismo nos Estados Unidos da
América. A respeito frisava: “Isso quer dizer que não é nos conselhos de ministros que
se estabelece a unidade da administração, mas, sim, na intervenção oportuna e eficaz
do presidente. É assim igualmente que se concilia a autoridade suprema deste com a
autonomia dos seus auxiliares. Em suma, neste regime, não há no governo senão a
política do presidente: o que cabe aos ministros é praticar lealmente esta política, para
que se estabeleça a homogeneidade governativa”. 32
Na negociação em torno à “política dos governadores” ficava clara a índole
vertical da mesma: tratava-se no sentir de Campos Sales, de assunto a ser discutido
não no Parlamento, mas num petit comitê de pessoas esclarecidas, reunidas ao redor
do Presidente da República. Eis o que escrevia o nosso autor a respeito: “Os chefes que
hoje aparecem nada dirigem: ao contrário, deixam-se arrastar mais ou menos
constrangidamente pela impetuosidade de forças anárquicas, agremiadas em
coletividades sem coesão. Não têm outro sentido as cenas do Congresso. É por isso
que receio submeter a uma assembleia política a escolha do plano a ser adotado na
verificação dos poderes da futura Câmara. Muitos quererão inspirar-se no sentimento
partidário, outros alvitrarão pela liberdade de agir na conformidade das afeições
pessoais e não faltará mesmo quem pense ser preferível a violência brutal do voto,
porventura em eventual maioria para esmagar e eliminar por completo a outra parte.
Que é que poderá sair de uma reunião assim agitada por intuitos e tendências tão
desencontrados? Senão o desacordo, possivelmente um alvitre menos acertado, do
qual poderá resultar o sacrifício do prestígio moral do Congresso”. 33
31
BELO, José Maria. História da República, 6ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 151. 32
CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 108. 33
CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 124.
14
Campos Sales culminava assim sua reflexão: “Parece-me, portanto, que mais
acertado será evitar a reunião e sujeitar o exame dos meios práticos, para a execução
do acordo, ao critério de alguns poucos, que sejam reconhecidamente mais
competentes. Uma ação bem conduzida por parte destes será bastante para levar o
acordo à sua completa execução, oferecendo seguras garantias aos que tiverem por si
a legitimidade do voto”. 34 Afastava-se de vez, assim, o presidente Campos Sales da
versão liberal de República definida por Tocqueville como sendo “o reino pacífico da
maioria”. 35
Tal estratégia de estabilidade deveria ter um perfil mais técnico
(“administrativo”, dizia Campos Sales) do que político. Já assomava a ideia de
“despolitizar” o governo, tornando-o mais uma gestão técnica a serviço da estabilidade
econômica. Essa semântica anunciava o que viria mais tarde, com Getúlio afirmando
que “o tempo das assembleias políticas já passou e era chegada a hora do
equacionamento técnico dos problemas”, como frisava o líder gaúcho na Plataforma
da Aliança Liberal. 36
O pacto de estabilidade almejado por Campos Sales foi mais obra do Presidente
da República sobre o gabinete ministerial, bem como uma imposição dele e dos
governadores (chamados então de presidentes) dos Estados, sobre o Poder Legislativo.
O apoio dos governadores não era difícil, levando em consideração que os candidatos
à presidência da República eram indicados a partir de prévio consenso dos executivos
estaduais.
Campos Sales consultou diretamente os governadores dos Estados mais
poderosos acerca do seu projeto: enviou correspondência prévia aos executivos
estaduais da Bahia, Minas, São Paulo e Pernambuco. O nosso autor buscava firmar
uma força de apoio forte no Congresso ao Governo da União, alicerçado,
paradoxalmente, na defesa do princípio federativo contido no dístico: “Soberania local
e Integridade da Pátria”. 37 Apesar da retórica oficial, subsistia o grande problema:
como conciliar a defesa do princípio federativo com o abandono da defesa das
liberdades locais, ao optar por fortalecer o poder do Presidente da República sobre o
eleitorado das várias regiões? A Comissão de Verificação de Mandatos para o
Congresso agiria em função dos interesses do Executivo nacional, deixando em
segundo plano quaisquer outras considerações.
34
CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 125. 35
TOCQUEVILLE , Alexis de. A democracia na América. (Trad. de J. A. G. Albuquerque). São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 266-267. Coleção “Os Pensadores”. 36
VARGAS, Getúlio Dornelles e outros. Aliança Liberal: Documentos da campanha presidencial. (Introdução de Ricardo Vélez Rodríguez, “Tradição centralista e Aliança Liberal”). 2ª edição, organizada por Ricardo Vélez Rodríguez. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. A Introdução encontra-se nas págs. 9 a 43. 37
CAMPOS SALES, Da propaganda à presidência, ob. cit., p. 131-132.
15
A verdade é que a questão da representação tinha sido relegada a segundo
plano desde a proclamação da República. O mecanismo de dominação da Presidência e
dos executivos estaduais sobre o Parlamento deu-se, de maneira pragmática, no
terreno procedimental, ao redor do estabelecimento da Comissão de Verificação de
Mandatos, criada na Mesa Diretiva do Congresso sob o controle do Executivo, sem
mexer na Constituição. Embora tivesse sido conquistada uma estabilidade suficiente
para pôr em execução a política de contenção de gastos adotada, esse expediente
terminou gerando, contudo, grande instabilidade nos governos subsequentes, em
decorrência do abandono dos interesses locais e regionais ensejada pela deformação
dos pleitos eleitorais no contexto da “política dos governadores”. De outro lado, a
questão do federalismo, que tinha sido levantada por Campos Sales junto com a da
estruturação doutrinária dos Partidos, já desde a época da propaganda republicana,
terminou desaguando num reforço paradoxal ao centralismo encerrado na prevalência
dos interesses do Governo da União sobre as reivindicações regionais. 38
Antônio Paim sintetizou assim a essência da via escolhida: “A peça-chave dessa
política consistia em delegar à Mesa da Câmara, composta pela Chefia do Executivo, a
atribuição de reconhecer os diplomas dos parlamentares. Às eleições concretas se
substituía a ata da apuração, confeccionada na Capital da República a partir do único
critério de assegurar maioria sólida ao governo, sem maiores compromissos com o
evento real. Viu-se então representantes eleitos que perdiam seus votos na confecção
da ata e toda sorte de chicana. Tudo isto mediante simples arranjo no Regimento da
Câmara dos Deputados, intocada a Constituição”. 39
Arsênio Corrêa caracterizou a “política dos governadores” como um expediente
pragmático do governo para garantir a unidade política e a estabilidade, sem intervir
diretamente nos Estados, mas manipulando o mecanismo de legitimação das eleições,
privilegiando os interesses do Executivo e do Partido Republicano, ao seu serviço.
Eis a caracterização desse processo: “A política dos governadores foi, portanto,
a unidade política estabelecida por Campos Sales, que pressupunha a não intervenção
nos Estados. Isso trouxe a perda de importância das eleições, consolidando as
situações estaduais, cuja legitimidade era equivalente à da União. É forçoso
reconhecer que assegurou estabilidade política. Naturalmente, às custas da
legitimidade da representação, vale dizer, do abandono do espírito que presidiu à
estruturação das instituições de tal governo, no Segundo Reinado. Ali, o foco estava na
determinação dos interesses que deveriam ser representados. E, subsequentemente, a 38
Para a discussão acerca do federalismo no pensamento de Campos Sales, cf. SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Republicanismo e federalismo 1889-1902. Um estudo da implantação da República no Brasil. (Apresentação de Petrônio Portella). Brasília: Senado Federal, 1978. 39
PAIM, Antônio. A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 62.
16
avaliação sucessiva da capacidade respectiva de assegurar-lhe legitimidade. Agora o
foco mudava completamente de direção: assegurar o livre exercício do poder, excluída
a possibilidade de negociação fora dos círculos que tivessem comprovado sua
fidelidade ao sistema republicano. Somente o Partido Republicano tinha autorização
de funcionamento e, portanto, de participar dos pleitos em que era admitida a
disputa”.40
O efeito produzido pelo arranjo autoritário foi a desvalorização da
representação e a instabilidade, que conduziriam diretamente à adoção, mais adiante,
do modelo de ditadura republicana criado por Castilhos no Rio Grande do Sul. Arsênio
Corrêa ilustrou esses aspectos negativos da seguinte forma: “Os efeitos das novas
regras estabelecidas no Regimento Interno da Câmara revelaram-se devastadores. A
primeira vez em que se deu sua aplicação, em 1900, sob Campos Sales, (com a atuação
da) Comissão instituída a partir da Mesa Cessante, deixaram de ser reconhecidos 74
mandatos, cerca de 35% do total (o Parlamento se compunha de 212 representantes).
O caso extremo deu-se na Câmara eleita em 1912: 91 mandatos deixaram de ser
reconhecidos, 43% do total. Criou-se, assim, uma falsa estabilidade, na medida em que
exigia fosse desfigurada a representação. Ainda que a Constituição fosse mantida e
submetidos ao Parlamento os frequentes estados de sítio, a providência tornou-se a
antessala do longo ciclo autoritário vivido pela República brasileira”. 41
A formulação da “política dos governadores” por Campos Sales alicerçava-se no
democratismo rousseauniano, de que se tornou tributária a geração de jovens
bacharéis formados no Largo de São Francisco, na segunda metade do século XIX.
Campos Sales deixou-se seduzir pelo ideal da ordem imposta desde cima dos primeiros
governos republicanos, nos quais assomava o caudilhismo militar, em que era muito
rica, aliás, a tradição política hispano-americana, valorizada por ativistas como
Quintino Bocaiúva, um dos mais atuantes propagandistas da República e que integrou,
junto com Campos Sales, o gabinete do Governo Provisório presidido por Deodoro.
A “política dos governadores” com a manipulação dos resultados das eleições
pela Mesa Diretiva do Congresso para garantir a estabilidade do governo, era uma
nova encarnação da “vontade geral” concebida pelo filósofo genebrino. Estava esse
expediente longe de permitir a representação de interesses dos indivíduos ao longo do
território nacional, de acordo com os pressupostos do liberalismo clássico.
O democratismo rousseauniano foi, assim, a opção doutrinária privilegiada na
República, em substituição às ideias liberais clássicas de Locke (1632-1704), Constant
de Rebecque (1767-1830), Guizot (1787-1874), Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846)
40
CORRÊA, Arsênio. O pensamento político de Campos Sales. Ob. cit., p. 61. 41
CORRÊA, Arsênio. O pensamento político de Campos Sales. Ob. cit., ibid.
17
e Tocqueville, em que tinham se formatado as instituições imperiais. O abandono da
questão da representação de interesses dos cidadãos era apenas o corolário dessa
opção teórica.
Se bem é certo que a geração de Campos Sales dizia se inspirar na Terceira
República francesa, (que tinha uma base ideológica bem menos estatizante que os
ciclos republicanos anteriores, porquanto influenciada pelo liberalismo radical inglês),
no entanto, no Brasil, por força da influência do positivismo, essa nuance foi mitigada,
deixando-a mais próxima da ditadura republicana comtiana, aproximando a concepção
republicana do modelo bonapartista. A concepção republicana dominante no terreno
federal aproximou-se, assim, da visão de positivismo heterodoxo posta em prática por
Castilhos no Rio Grande do Sul. Isso abriu espaço para que, em 1930, Getúlio Vargas
implantasse em nível nacional o modelo castilhista.
A tese castilhista da “continuidade administrativa”, mediante a superação do
debate político no legislativo (tendo sido convertido este em assembleia puramente
orçamentária no Rio Grande do Sul) passou a formar parte do cardápio de medidas
posto em marcha por Campos Sales no plano federal: o caminho estava trilhado para o
advento da “ditadura científica”, com Getúlio, sob o viés do princípio apresentado na
campanha eleitoral da Aliança Liberal em 1929, centralizada no slogan do
“equacionamento técnico dos problemas”, defendido pela Segunda Geração
Castilhista. 42
II - A crítica dos positivistas ilustrados, na versão elaborada por Alberto Sales, à
“política dos governadores” de Campos Sales.
João Alberto Salles (1857–1904) 43 acreditava na ação do espírito e na
construção da ciência. Não era um filósofo. Era um político. Mas não ficou preso,
apenas, à luta pelo poder e pela distribuição dos seus benefícios. Almejava construir
42
Cf. nossa obra: Castilhismo, uma filosofia da República, (apresentação de Antônio Paim), 2ª edição,
Brasília: Senado Federal, 2000, Coleção Brasil 500 anos, pg. 252-258. 43
João Alberto Sales nasceu em Campinas, São Paulo (1857), tendo falecido em Salto, interior de S. Paulo (1904). Formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, em 1882, após ter tentado estudar engenharia nos Estados Unidos. Participou ativamente da política no Partido Republicano Paulista, como jornalista e deputado federal. Rompeu com o Partido em 1894 e em 1901 com o seu irmão, Manuel Ferraz de Campos Salles então presidente da República, em decorrência dos traços clientelistas de que se revestiu a denominada “Politica dos Governadores”, concebida e posta em prática pelo seu irmão e que constituiu, no entender do nosso autor, um dos mais sérios golpes contra a representação política. Em matéria de positivismo, Alberto Salles optou por uma concepção moderada, assumindo algumas teses de John Stuart Mill (1806-1873), como, por exemplo, a defesa do governo representativo. Após a sua saída da política dedicou-se ao magistério. Deixou ampla obra escrita, podendo ser mencionados os seguintes livros: Política republicana (1882), Catecismo republicano (1885), Ensaio sobre a moderna concepção do Direito (1885), A vitória republicana (1885), Os crimes
célebres de São Paulo (1886), A pátria paulista (1887), Estudo científico sobre disciplina e organização
partidária (1888), Ciência política (1891) e O ensino público (1901).
18
uma República alicerçada nas luzes da ciência. Não se conformou com o positivismo de
Comte (1798-1857) puro e simples. Procurou ampliar a visão da realidade política,
abrindo o seu espírito aos autores que, sob o influxo do positivismo, tinham pensado
na Europa as instituições republicanas. Nisso tudo radica a grandeza da obra de
Alberto Salles.
Miguel Reale (1910-2006) destaca que Alberto Sales foi um cultivador do
espírito positivo. “Mais do que a expressão específica de uma doutrina – pois nenhuma
delas logrou sequer equiparar-se aos modelos europeus reproduzidos, - o que me
parece mais importante foi a nova atitude que então se difundiu, condicionando o
exame dos problemas nacionais, ou por outras palavras, foi mais o espírito positivo do
que o positivismo; mais a atitude de reserva e de crítica que muitos assumiram,
mesmo sem cuidarem especificamente de filosofia, do que a repetição dos
ensinamentos de Haeckel ou de Spencer. Há muitos pontos ainda a esclarecer a
propósito desse espírito positivo que animou a cultura brasileira a partir de 1870 e que
foi bem mais relevante que o drama dos positivistas ortodoxos. Em verdade, sob certo
prisma, Miguel Lemos e Teixeira Mendes representaram fatores negativos no
movimento renovador de ideias. Por terem querido seguir A. Comte até às suas
últimas consequências, aceitando com admirável devoção as suas ideias sócio-
religiosas: coube-lhes, assim, o papel paradoxal de continuadores da velha tradição
dogmática e autoritária, embora sob a roupagem da revolução científica, enquanto
que os adeptos do positivismo científico desempenhavam mais um papel de caráter
crítico”. 44
A respeito da inspiração ilustrada de Alberto Salles, escreveu Luiz Washington
Vita: “Ideólogo acima de tudo, e ideólogo republicano particularmente. Alberto Salles
lançou mão das ideias para a sua ação política. Seja como cientista social ou cientista
político, seja como cientista do Direito ou cientista da educação, sua única meta foi,
através das ideias, não apenas entender a realidade brasileira, mas transformá-la.
Nisto se resume seu engagement e sua mensagem”. 45
A transformação da realidade brasileira, segundo Alberto Sales, somente teria
um caminho possível: a educação dos espíritos. Mais ciência, maior desenvolvimento
44
REALE, Miguel, Filosofia em São Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962, pg. 23-25. Cit. por VITA, Luiz Washington. Alberto Sales, ideólogo da República. São Paulo: Companhia Editora Nacional / EDUSP, 1965, p. 14-15. Os autores citados por Miguel Reale são: Ernst Haeckel (1834-1919) médico e naturalista alemão que popularizou o princípio de que a ontogenia é uma recapitulação da filogenia. Herbert Spencer (1834-1919) filósofo inglês, que alargou o conceito darwinista de evolução, aplicando-o às organizações sociais, tendo dado ensejo, no Brasil, à corrente denominada de “darwinismo social”. Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927) positivistas brasileiros que organizaram, no Rio de Janeiro, o Apostolado e a Igreja Positivista, tendo permanecido fiéis à “religião da humanidade” proposta por Comte na última parte da sua obra. 45
VITA, Luiz Washington. Alberto Salles, ideólogo da República. Ob. cit., p. 21.
19
do método científico aplicado à realidade brasileira no contexto do Direito e das
Ciências Sociais, bem como no esforço em prol de construir instituições republicanas
que correspondessem ao avanço do espírito humano: essa era a fórmula apregoada
por ele. A República, segundo este autor, perdia o rumo, na medida em que faltava aos
cidadãos ilustração para participarem a contento da vida do país. Alberto Sales
esposava as teses de um positivista ilustrado inglês, John Stuart Mill (1806-1873).
Para o autor britânico, somente a ilustração dos espíritos permitiria às jovens
nações a construção de instituições que garantissem a liberdade almejada. As suas
teses eram uma síntese do que de melhor teve o comtismo (valorização do método
científico e preocupação com os fundamentos morais das instituições políticas), com
as teses básicas do liberalismo clássico (defesa das liberdades e construção dos
mecanismos da representação). Alberto Sales empenhava todos os seus esforços na
construção de uma síntese semelhante.
Ora, a política republicana representada pelo programa desenvolvido pelo seu
irmão, Manuel Ferraz de Campos Sales e que se alicerçava na denominada “política
dos governadores”, tinha um grave defeito: era fruto da negociação entre as
oligarquias que tinham se apossado dos Estados brasileiros, a fim de manter intocado
o poder no interior dos seus feudos, e transplantar essa “estabilidade” para o plano
nacional, impedindo que representantes de outras tendências se elegessem para o
Congresso.
Para Alberto Sales, essa era uma desavergonhada manutenção do status quo. O
professor e idealista republicano achava que reduzir as conquistas do novo regime a
essa proposta “conservadora”, consistia em trair os ideais republicanos pelos quais
tinham se batido gerações de jovens nas últimas décadas do Império. Em decorrência
disso, deixou estampada, em 1901, no jornal O Estado de S. Paulo (no artigo intitulado
“Balanço Político”) a sua rejeição à “política dos governadores”, posta em prática pelo
seu irmão com o apoio do Partido Republicano Paulista. 46 Decorria essa atitude da
fidelidade inarredável aos princípios professados, afastando qualquer laivo de
interesse imediato ou de conveniência política circunstancial.
No entanto, essa ruptura não significava o afastamento de Alberto Sales das
atividades políticas. Estas eram entendidas no contexto mais amplo da “política
republicana”, que consistia em “educar os espíritos” por todos os meios disponíveis:
imprensa, panfleto, tribuna e pleitos eleitorais.
46
Cf. “Cronologia de Alberto Sales”, in: VITA, Luís Washington. Alberto Sales ideólogo da República. Ob. cit., pg. II-III.
20
A respeito dessa política abrangente, escreveu Luís Washington Vita: “Nas
páginas derradeiras da Política republicana, seguido a John Stuart Mill, para quem só
se recomenda e se defende uma instituição ou uma forma de governo pondo em
evidência todas as suas vantagens, afirma Alberto Sales que o primeiro dever dos
republicanos brasileiros é fazer ativa e corajosamente a propaganda, recomendando,
então, que diversos meios existem para o cumprimento desse dever: a imprensa, o
panfleto, a tribuna e os pleitos eleitorais. Por qualquer deles é possível exercer sobre a
mentalidade nacional uma ação verdadeiramente poderosa, no sentido da eliminação
gradual dos preconceitos monárquicos”. 47
Considerações finais
A altiva atitude de Alberto Sales em prol da defesa de princípios e não de
circunstâncias, talvez tenha pesado na reflexão que o seu irmão, Manuel Ferraz de
Campos Sales, fazia anos depois, já fora do palco da política.
Escrevia o ex-presidente da República: “Sustentei outrora que as instituições
reformam os costumes. Hoje reconheço que nutria uma quimera, e estou com aqueles
que pensam que as mudanças sociais não se fazem a golpes de decretos. É certo,
entretanto, que costumes e instituições exercem entre si influência recíproca, e isto
adverte que o papel do legislador é o de observador atento dos fenômenos
sociológicos que se vão desenrolando no seu meio, a fim de intervir oportunamente e
com eficácia, ou seja para reprimir instintos perversos, ou seja para abrir caminho às
expansões de sentimentos altruísticos. A sofreguidão reformista, às mais das vezes,
não concorre senão para introduzir a anarquia na legislação. (...) Não destruí os
partidos, porque eles não existiam, nem me preocupou a ideia da sua formação,
porque não vi para isso os elementos que reputo indispensáveis. Os partidos políticos
hão de aparecer naturalmente, logicamente, ao influxo dos princípios, quando, em
lugar de falsos apóstolos, que exploram a credulidade popular e os sentimentos dos
despeitados, entrar em campo uma legião de homens de crença, pregando com amor
a doutrina da sua fé”. 48
Tardia mas bela homenagem de Manuel Ferraz de Campos Sales ao seu irmão,
“homem de crença” que pregava com amor a doutrina da sua fé. O ideal republicano
sobreviveu à “política dos governadores” e à versão autoritária dos Castilhistas da
segunda geração que, no longo ciclo getuliano, sagraram o princípio do
“equacionamento técnico dos problemas” abolindo o debate político e a
representação. Sobreviveu, também, à versão dirigista do duplo ideal “democracia e
desenvolvimento”, formatada ao longo do ciclo militar e que fez frente, com
47
VITA, Luís Washington. Alberto Sales ideólogo da República. Ob. cit., p. 80. 48
CAMPOS SALES, Manuel Ferraz de. Da propaganda à presidência. Ob. cit., p. 131-132.
21
desassombro, á dúbia alternativa da república sindical, ideológica e unidimensional
dos tempos de Goulart, no contexto polarizado da Guerra Fria.
Hoje, nas agruras da crise do “presidencialismo de coalisão” que agoniza e em
que o Brasil se debate, os ideais republicanos sobrevivem na busca da consolidação de
instituições que, mantendo a fé numa República para todos os brasileiros, tornem
possível a estabilidade política e o progresso econômico, revitalizando as instituições
do governo representativo e do controle moral ao poder.
Nesta quadra da nossa história, a herança dos irmãos Sales, gerada nos albores
da República, talvez seja útil para orientar o debate atual. De Manuel Ferraz de
Campos Sales podemos tirar a lição da escolha de uma política realista, de cunho
aristotélico, no sentido de encontrar um caminho viável para a política ideal. Do irmão
professor podemos tirar a inspiração platônica, de valorização de um ideal e de
fidelidade ao mesmo. Da síntese de ambas as visões, talvez consigamos encontrar um
meio termo (novamente de inspiração aristotélica), para descobrirmos o fio da meada
do republicanismo, sem perdermos de vista as exigências concretas da realidade
praticável.
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