bitinho e a almofadinha de sonhos, por cristina pescuma
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Estava muito pesado, tão pesado que sentiu que afundava no gramado, a mesma
sensação que se tem ao ficar algum tempo parado na areia na beirinha da praia enquanto as
ondas vão e vêm. De repente não estava mais no parque. Era uma casa grande, cheia de
balões coloridos pendurados pelas paredes. Alguém fazia aniversário. Não conseguia ver,
através dos convidados altos, quem estava junto ao bolo, então resolveu se esticar, esticar…
"Bitinho", chamou a professora. Num estrondo a sala toda riu. Bitinho se encolheu
na carteira.
"Sonhando de novo!" ouviu-se num coro o que disseram todos. Franziu a testa sobre
o nariz e coçou a cabeça num misto de encabrunhamento e desapontamento.
O caso vinha se repetindo nas últimas semanas. Acontecia a qualquer momento e
em qualquer lugar. Quando menos se esperava punha-se a sonhar, melhor dizendo caía no
sono. E sonhava. Sonhava tanto e tão gostoso que ficava até decepcionado quando era
acordado. Sim, porque dormia nos lugares mais impróprios e logo um sonho vinha levá-lo
numa doce viagem.
Outro dia enquanto esperava o seu Zé da venda pegar o refrigerante que pedira,
adormeceu encostado no balcão e nesse pequeno intervalo teve a oportunidade de voar num
balão. Em sonho, claro. Talvez inspirado pelos borbulhantes gases que já se via tomando.
Às vezes passava vexame, como quando foi cortar o cabelo e acordou num canto do
salão, já com o cabelo cortado e viu que era o assunto do momento “nunca se viu ninguém
mais distraído que esse menino”. Saíu em disparada e só em casa pôde averigüar aliviado
que lhe tinham cortado o cabelo direitinho. O que o consolava era o delicioso sonho que
tivera, logo na primeira tesourada, viu-se no salão de um castelo dançando com uma
menina de olhos brilhantes. Lógico que ele era um príncipe e ela, alguma princesa. Eles
rodavam e seus cabelos flutuavam em torno deles em enormes cachos de algodão doce tom
de mel.
Sua mãe e sua tias paternas estavam ficando preocupadas, pois “não é possível que
alguém durma dessa maneira”. Ele por seu lado não se preocupava, era tão bom mergulhar
ou voar nos sonhos vida afora. Sabia que isso podia lhe trazer problemas, mas não queria ir
ao médico, só queria poder controlar esses devaneios. De forma alguma queria perder
esse… esse presente, essa dádiva, era como entendia a situação. Mas, já tinha 10 anos, e
sabia que não podia sair por aí sonhando o tempo todo, as pessoas não aceitam isso. Elas
estão sempre correndo, ocupadas com mil tarefas esgotantes e deveres chatos, nunca têm
tempo para sonhar. O sonhador é mal visto, acusado de preguiçoso ou coisa pior. As
pessoas acreditam que é preciso manter-se acordadas, falam de realidade. A vantagem de
ser criança é que ainda se pode imaginar, mas as pessoas acham que, mesmo para as
crianças, há limites no devaneio. Por isso, percebeu que estava numa situação delicada, e
que precisava encontrar uma saída, uma opção que o permitisse continuar sonhando, mas
tendo um controle sobre os lugares e horas que isso acontecesse.
Entre um sonho e outro, resolveu buscar ajuda com Dona Amélia, a “bruxa” da rua.
Por várias vezes parou em frente a casa dela, mas não se decidiu por tocar a campainha.
Quando seu dedo se aproximava, um frio descia pela nuca, ele se arrepiava e fugia. Até que
numa tarde conseguiu vencer a tremedeira ou talvez tenha sida a ela mesma que o fez
apertar a campainha. Viu um vulto por detrás da cortina, em seguida uma mão afastou uma
pequeno vão desta e um rosto horrendo apareceu na fresta, espiando-o como um gato olha
quando surpreende um rato em seu território. “Ai” gritou em silêncio. Ela fez um gesto com
a mão pedindo que ele aguardasse. Não tinha escolha. Esperou. Ouviu seus passos lentos e
arrastados se aproximando pela lateral da casa e um barulho de chaves que se batem.
Quando ela se aproximou, apenas o olhou e ele desandou a falar atropelando as palavras,
trocando a ordem, não havia como se entender o que ele dizia. Ela então abriu o portão com
uma das chaves e o convidou a entrar. Não tinha escolha. Entrou. Levou-o pela mesma
lateral em que veio atendê-lo. Achou tudo tão diferente, ia olhando o máximo que podia
pelo caminho estreito entre a parede da casa e infindáveis vasos que formavam uma espécie
de bosque de folhagens, um cheiro de umidade e uma atmosfera ensombrecida embalaram-
no e ele quase chegou a dormir, sentiu o roçagar de um sonho sobre sua cabeça, uma
floresta cheia de mistérios e …
“Entre”. Teve um sobressalto ao ouvir a voz dela. Ela o fez entrar na cozinha
grande, com cheiro de alecrim,móveis antigos, um local tão estranhamente acolhedor como
nunca se imaginaria numa casa que por fora parecia tão aterradora, isso o fez perceber que
devia estar errado tudo o que se dizia dela, e que não se deve acreditar em diz-que-diz-ques,
e que sua casa tinha esse aspecto maligno por causa não da casa em si, mas devido às
maledicências da vizinhança. Fechou a porta de tela e o convidou a sentar. Antes que ele
desembocasse novamente num torvelinho de palavras, ela começou a preparar um suco de
abacaxi e abriu uma lata colorida repleta de rosquinhas caseiras super apetitosas. Sentou-se
do lado oposta da mesa e serviu-se também.
“Fico contente com sua visita, você sabe, nunca ninguém vem aqui, porque sou
caseira, quieta e não gosto de falar à toa, todos me julgam alguma espécie de ranzinza ou
sei lá o quê.” Bitinho sentiu um calor subir por seu rosto e quase engasgou, mas fingiu que
não sabia de nada.
“Bom, parece que você está com algum problema e acha que posso te ajudar…”,
falou e esboçou um gesto com a cabeça.
“Uhm… bem… é que… eu sonho demais”, confessou num golpe.
“Ah, mas isso é uma coisa muito boa! Não são pesadelos, são?”
“Não, mas acabo dormindo em qualquer lugar, em qualquer hora e isso me traz
muitos problemas."
“É, é problemático sonhar demais num mundo que acredita que só o trabalho duro,
exaustivo merece crédito.”
“Querem me levar ao médico, e o problema é que não quero parar de sonhar, só
quero poder controlar essa sonhadeira.”
“Entendo”.
“Será que a senhora teria alguma poção…?”
“Poção?!”, repetiu tentando segurar um riso. Depois controlou-se e mudou o
semblante, ficando séria e pensativa. Disse: “acho que posso te ajudar. Mas, preciso de uns
dias e de umas coisinhas.”
“Que coisinhas?”, assustou-se Bitinho, já imaginando asas de morcego, bigodes de
barata, rabo de lagartixa e coisas assim.
“Por exemplo: a manga de uma camiseta azul que você usou e não foi lavada, um
balão de alguma festa de aniversário… vou te fazer uma lista.” Foi até a sala ao lado e
voltou com uma folha e uma caneta e se pôs a escrever, Bitinho, com olhos arregalados de
curiosidade, espichava-se tentando ler o que ela escrevia numa letra miúda e redondinha.
Ao acabar passou a folha a ele.
LISTA
1- Manga de uma camiseta azul usada;
2- Brinquedo de plástico bem usado, quebrado e querido;
3- Um balão de festa do aniversário de um parente;
4- Pregador que segurou uma roupa da mãe;
5- Uma foto da casa onde mora com nuvens aparecendo;
6- Um fio de cabelo de uma menina ruiva desconhecida;
7- A cópia de uma poesia sobre a lua;
8- Uma flor do jardim de estranhos;
9- Um bilhete de cinema de um filme de que gostou muito;
10- O envólucro de um bombom saboreado por alguém interessante.
“Nossa parece difícil conseguir algumas dessas coisas! Não sei se vai dar certo”,
disse num gemido infantil e mimado.
“Fique tranqüilo, vai conseguir, afinal parece que você tem bastante imaginação.
Enquanto isso vou fazendo alguns preparativos…”, disse dando às palavras um ar
misterioso.
“É perigoso?”
“Não, fique tranqüilo”, disse, divertida com a situação. Nisso, ouviu-se um miado,
Bitinho virou-se e viu um gatinho que o olhava da porta através da tela. Ela abriu a porta e,
ao entrar, ele foi direto até Bitinho.
“O Bichano gostou de você, ele não se oferece assim tão facilmente”. Ele estava
com as patas dianteiras sobre a perna do menino e deu cabeçadas no seu braço pedindo
cafuné.
Ao sair de lá estava mais confiante, e tratou de começar a angariar os itens da lista.
Parecia bem difícil, e uma verdadeira luta contra o tempo para conquistar o tempo.
Percebeu isso ao examinar a lista e traçar táticas para cada um, viu que exigia rapidez e que
se aproveitasse oportunidades, coisas que não faziam parte da sua natureza lenta e
desprovida de audácia. Por outro lado, essa rapidez era necessária para manter a sua
lentidão, essa audácia era para preservar o seu distanciamento, sua satisfação com pouco,
com pequenas coisas. Era preciso correr para continuar a flutuar, flanar, voar para o céu
lenta e fluidamente como as fumaças que saem das chaminés.
Começou pelo que se mostrou mais fácil: o pregador. Sua mãe estava recolhendo as
roupas que havia por acaso lavado naquela manhã. Pura coincidência. Sorte? Pediu o
pregador a ela, assim que tirou uma de suas roupas, antes que se misturasse aos outros. “É
para fazer um jogo”, disse e ela levantou os ombros ao dar a ele o pregador. Colocou numa
sacolinha. Depois foi até um baú de brinquedos, e também não foi difícil achar um carrinho
antigo sem rodas, com o qual brincou bastante no ano passado, e ainda não o tinha jogado
fora em sinal de antiga amizade. Ainda bem. Riscou neste mesmo dia os ítens 2 e 4.
Faltavam oito, não podia dizer que estava animado, mas para tão pouco tempo já era um
progresso!
No dia seguinte não havia aula, era sábado. Acordou cedinho, ansioso por cumprir
mais alguns itens de sua “lista mágica” —foi assim que passou a chamá-la. Na hora em que
foi trocar o pijama, teve uma idéia que o fez sentir-se muito esperto. “Vou pôr uma
camiseta azul, assim terei a manga usada de que preciso no final do dia”. Ficou
animadíssimo com sua inventividade. Mas, logo se entristeceu, pois a única camiseta azul
que tinha, foi dada por sua avó querida, era uma pena estragá-la, e ainda por cima ela era
nova. Examinou-a e reparou que se cortasse as duas mangas, poderia ainda usá-la. Deu-se
por reconfortado.
Próximo passo. Começou a estudar a lista, podia-se dizer que faltavam sete itens, já
que o da manga estava quase resolvido. “Foto da casa com nuvens” pareceu promissor
começar por aí. Foi até o quarto de sua mãe e de um armário retirou uma caixa de papelão
com um arlequim colorido na tampa. Esta caixa continha as fotos da família, levou-a até a
varanda, ajeitou-se numa cadeira com a caixa no colo e começou a ver as fotos, colocando
as que já tinha visto numa outra cadeira. Esta atividade acabou por absorver todo seu
espírito, uma viagem por dias passados, anos passados, anos em que ele nem mesmo ainda
havia nascido. Época de seus pais bem jovens, de seus avós sem cabelos brancos, época de
pessoas que ele nem sabia quem eram. Estas fotos misturavam-se às fotos em que ele
aparecia, não havia uma ordem cronológica na arrumação, estavam colocadas ao acaso.
Ficava estranho, essa balbúrdia de tempos, presente e passado tinham o mesmo valor,
estavam lado a lado, seus pais com a mesma idade que ele numa eterna infância e estavam
correndo ao redor de uma casa, não sabia bem que casa era, tinha um poço num dos lados e
eles não resitiam e a cada vez que passavam por ali, debruçavam-se no batente e espiavam
seu misterioso e escuro interior, seu cheiro acre era penetrante e quando jogavam uma
pedrinha, ao alcaçar a água fazia um barulho de coisa extinta, distante, alheia à
movimentação das tarefas cotidianas, das coisas humanas.
“Bitinho, olha o que você fez…”, a voz irritada de sua mãe o acordou num
sobressalto e viu que tinha derrubado a caixa e as fotos espalharam-se pela varanda. Saltou
da cadeira e tratou de ajudar sua mãe a recolher, tentando encobrir a causa do acidente.
Nisso viu uma foto de sua casa, em que nuvens escuras de uma enorme chuva que se
preparava, coroavam o telhado, era uma fotografia recente que fora feita quando estavam
chegando de uma viagem de férias, vermelhinhos do sol da praia e seu pai quis registrar a
“família de camarões”, como gostava de se referir. “Ufa”, sentiu-se um pouco mais
aliviado.
Depois que passou o sufoco, deixou-se penetrar pela lembrança do sonho
emocionante que teve enquanto olhava as fotos, “brinquei com meus pais”, sim porque as
crianças com as quais corria ao redor da casa, que pensando bem era a da sua avó paterna,
eram seus pais, tais como tinha acabado de vê-los nas fotos. E o poço existia, e ele
costumava se debruçar sobre o poço, e sua misteriosa escuridão invadia sua imaginação
com lembranças de outros mundos. De outros tempos.
Riscou o item 5. E era hora do almoço. Na mesa, a família reunida (seus pais, ele e a irmã
dois anos mais velha), a mãe contou do convite para o domingo: a festa de aniversário de
uma prima ia ser antecipada, pois iam sair de férias uma semana antes.
Bitinho chegou a engasgar-se, tamanha sorte que despencou sobre ele, pois dessa
forma já teria o balão de aniversário de sua lista mágica.
Bitinho era um menino considerado estranho, tinha idéias diferentes, ria de coisas
que ninguém achava graça e ficava sério quando todos riam. Participava de quase todas as
brincadeiras, divertia-se com as outras crianças, mas gostava muito também de ficar
quietinho num canto pensando, e isso as pessoas achavam doentio. Usava óculos desde
pequenino, mas mesmo assim apertava os olhos como os míopes fazem para acertar o foco,
o que lhe dava uma aparência cômica, juntamente com o fato de estar sempre atrasado
durante as conversas, fazendo comentários extravagantes sobre as coisas. E agora com essa
sonhadeira toda estava se tornando aos olhos dos outros um completo paspalho. E muitas
acabava sendo deixado de lado. Mas, para ele isso não tinha tanta importância, às vezes se
entristecia, sentia-se meio "et", mas esta situação até o divertia, pois sentia uma imensa
alegria interior, sua satisfação consigo mesmo era tamanha e talvez sua inocência fosse tão
profunda que ele julgava as pessoas ingênuas, incapazes de perceber a beleza que ele podia
ver. Seu mundo próprio era tão rico, tão colorido, era mesmo uma pena que as pessoas
fossem incapazes de se distanciar um pouco de suas preocupações diárias e se lançar à
contemplação das coisas, às viagens do pensamento, às delícias da imaginação. De uma
coisa sabia: não queria perder nada disso, daí precisar manter essa maravilhosa capacidade
de sonhar.
Bom, também sabia que não estava só. Existe uma comunidade invisível que
compartilha dessas idéias, sentia isso muitas vezes, quando lia um livro, assistia a um filme
ou desenho, ouvia uma música ou apreciava uma pintura.
Segunda-feira após a aula, passou na biblioteca para procurar a poesia sobre a lua.
Passou pelos corredores, entre as estantes cheias de livros, de tamanhos e cores diferentes.
(Quantos sonhos devem existir em todas essas páginas), pensou entusiasmado, (viagens,
descobertas, grandes amizades, tristezas e todos os tipos de aventuras mexem-se nesses
livros pousados tranqüilamente nas prateleiras à espera de alguém para abri-los e, como
numa mágica, transportar o leitors para tantos mundos diversos). Depois de transitar pelos
corredores algumas vezes, descobriu a seção de poesia. Pegou ao acaso uns livros e os
levou até uma mesa. Formou uma coluna com eles. Retirou o primeiro, era de Walt
Whitman, leu um trecho: ‘o que é conhecido, eu deixo de lado: canto a mim mesmo:
44. chamo a todos os homens e mulheres
para a frente comigo
rumo ao desconhecido.’ (p.39)
Gostou do convite, e achou que já estava nesse rumo. Mais à frente leu um outro
trecho: Canto da terra girando:
2. ‘seja você quem for:
você é aquele ou aquela para quem
a terra é sólida e líqüida,
você é aquele ou aquela
para quem o sol e a lua penduram-se no céu,
pois ninguém mais que você
é o presente e o passado, ninguém
mais que você é a imortalidade.’ p.91
Mal se aprecebeu que ali estava a lua que procurava, pois começou a sonhar com as
palvras do poema, sonhou que corria por toda a Terra, que nadava por toda àgua, que voava
com o sol e a lua, atravessando o céu e reencontrando o bebê conquistando os passo, o feto
imerso no arco líquido, e acordou com a nítida imagem do final de um filme que tinha
visto, em que um feto aparece no espaço flutuando ao lado do planeta Terra.
(Maravilhoso!), chegou a sussurrar.
Em seguida, olhou ressabiado para os lados para ver se alguém tinha reparado no
cochilo que deu, não queria que pensassem que era incapaz de ler, que logo dormia, (bom
que importa?), pensou encima do pensamento anterior, sentia-se instigado a ler mais,
copiou estes versos e grifou a palavra lua.
Pegou o próximo livro, William Blake, ”de canções da experiência”.
“…Retorna, oh Terra, vem agora!
Deixa a relva orvalhada em que dormes;
A noite vai-se embora,
E já desponta a aurora
Das massas sonolentas e disformes.” (p.21)
Percebeu que os poetas também gostam de sonhar, falam bastante da noite, do céu,
de tantas coisas diferentes(!) que nunca antes tinha pensado.
“O odor da margarida e da begônia
Subitamente me penetra o olfato.
Aqui, neste silêncio e neste mato,
Respira com vontade a alma campônia!”. Augusto dos Anjos, conferiu o nome.
O próximo livro, “Eu profundo e os outros eus” de Fernando Pessoa, ao folhear
aleatoriamente: ficções do interlúdio, I/Plenilúnio:
“As horas pela alameda
arrastam vestes de seda,
vestes de seda sonhada
pela alameda alongada
sob o azular do lua…
e ouve-se no ar a expirar —
a expirar mas nunca expira—
uma flauta que delira,
que é mais idéia de ouvi-la
que ouvi-la quase tranqüila
pelo ar a ondear e a ir…
silêncio a trameluzir…” (p. 95)
Sentiu-se num barco a navegar num mar calmo, numa cadeira de balanço,
levemente a se mexer, ia por céus prateados, ao som do encontro de agulhas que tricotam,
mas ao voltar, viu que escorregara da cadeira e se agarrou à mesa.
E finalmente pegou o último livro: “O livro das ignorãças” de Manoel de Barros. Os
deslimites das palavras — Terceiro dia— 3,5:
“A lua faz silêncio para os pássaros,
— eu escuto esse escândalo!
Um perfume vermelho me pensou.
(Eu contamino a luz do anoitecer?)
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
……………………………………………………
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)
De noite bebo água de merenda.
Me mantimento de ventos.
Descomo sem opulências…
Desculpe a delicadeza.” (p.44)
Achou estes versos enigmáticos e também achou bem bonitos, resolveu fazer a
cópia deste poema, com a intensão também de lê-los muitas vezes para que eles
penetrassem em seu corpo, e fizessem parte dele, um pouco para desvendar o enigma, um
pouco praa fazer parte do enigma, tornar-se enigma. Em seguida fez uma lista das palavras
que desconhecia e procurou no dicionário. Releu as poesias e viu que compreendia um
pouco mais cada uma delas agora que tinha todas as palavras. Flutuou para fora da
biblitoteca, sentia-se uma libélula voando sobre um lago, entre plantas e palavras. Estava
alegre. Neste dia, graças a tarefa para cumprir um item da lista mágica, sentiu o poder da
poesia. A delícia que pode estar nas palavras.
Já em casa olhou a lista: balão de festa de aniversário será fácil, no dia seguinte irá à
festa de aniversário da prima. Dito e feito. Na noite de terça, ao voltar para casa guardou
com cuidado um lindo balão rosa em seu armário.
A flor do jardim de um estranho pareceu-lhe uma boa opção para o próximo passo.
Ao ir para a escola na quarta-feira foi observando as casas pelo caminho. Então tomou
consciência de algo que já sabia de alguma forma: quase nenhuma casa tem jardim. A
maioria tem garagem, tem ladrilhos, cerâmicas, piso cimentado. Não se vê a terra, não há
lugar para a vida vegetal e os insetos e os pássaros e as borboletas e os tatus e as minhocas
e as joaninhas e tantos outros bichos da terra e do verde que nem saberia dizer o nome. Isso
o entristeceu e o fez perceber o porquê gostava tanto de visitar sua tia que morava num
sítio. Ela era meio chata, implicava bastante com ele, mas lá era tão cheiroso, seus olhos se
sentiam tão confortáveis ao olhar para aquelas cores todas entre os verdes de tons diversos.
Ficava entusiasmado. O conjunto das flores coloridas e plantas de diversos tons de verde
com o céu azul exerciam um efeito onírico sobre ele. Ao mesmo tempo o mantinha
acordado. Desperto. Cheio de sensações.
Na volta da escola já tinha um esquema montado. Duas casas tinham um jardim ao
qual ele teria acesso sem muito alarde, um deles tinha uma flor bem fácil de pegar, mas o
outro tinha a flor que queria, só que para consegui-la, teria que pular o muro. Resolveu
arriscar-se. Era a casa de duas senhoras que ainda mantinham o muro da casa baixo sem
uma muralha de grades e lanças perigosas, ou pior ainda, cercas elétricas. Ao chegar perto
viu que podia mesmo entrar pelo portão, que não ficava trancado, assim não chamaria tanta
atenção, os vizinhos podiam achar que ele era um amigo da casa, só precisava ficar atento
para não ser visto pelas donas da casa. Esticou o pescoço para ver se alguém estava por
perto , não viu ninguém e entrou, com cuidado para não pisar em nenhuma planta, adentrou
o jardim e em quatro passos alcançou a flor que queria, seu coração entrou num batuque
acelerado, estava trêmulo, e quando ouviu uma voz vinda não se sabe de onde, pulou,
gritou e correu em disparada, tudo ao mesmo tempo, dixando o portão aberto, um galho
quebrado. Mas não viu nada disso, só voltou a enxergar quando entrou em sua casa e se
refugiou em seu quarto. Então começou a rir, um pouco de nervoso, um pouco de satisfação
por ter se arriscado, corrido perigo —na sua opinião isso foi um ato muito grave— e
conseguido realizar seu desejo para cumprir um item: pegar uma hortência.
Um outro item, o envólucro do bombom, veio-lhe inexplicavelmente, de forma
mágica, parar nas suas mãos. Estava num ônibus com sua mãe indo ao cinema, olhava
distraído pela janela, quando viu entrar uma moça com uma roupa um pouco diferente da
das demais pessoas. Como não havia mais lugar para sentar, ela teve que ficar de pé, e se
instalou nas proximidades de onde estavam Bitinho e sua mãe, esta sugeriu a ele se apoiar
em seu colo para dar lugar à moça, ele meio sem jeito, aceitou, achava-se um mocinho para
ficar assim, quase que no colo da mãe, mas… A moça sorridente piscou para ele que, mais
do que depressa, desviou o olhar, como fazem os tímidos, em seguida não resistindo,
olhou-a de viés, ela fez o mesmo, sem deixar de sorrir, e novamente encarou-o, levantando
dessa vez as sobracelhas disse que se chamava Vitória e perguntou o nome dele. “Bitinho”,
ele falou meio que para dentro, “ahn? abelhinha?”, ele riu, “não, Bitinho.” falou alto e claro
desta vez. “Sabe de uma coisa? Eu sei fazer mágicas.”, disse e tirou dois lindos lenços, um
amarelo e outro azul, de dentro de sua bolsa. Ele já havia reparado nela, era uma bolsa toda
colorida, feita de rodelinhas de pano franzido costuradas umas às outras. “Advinha o que
vou tirar daqui?” perguntou a ele após mostrar que não havia nada entre os lenços. Bitinho
fez um gesto com os ombros fixando nela uns olhos de cereja. Ela fez uns salamaleques
com as mãos e os lenços, pronunciou sílabas misteriosas como fazem normalmente os
mágicos, e de lá tirou uma folha de celofane rosa com desenhos em preto e deu a ele,
produzindo um barulhinho crocante ao amassá-la. Ele ficou tão atônito com o fato da moça
dar-lhe exatamente uma coisa de que precisava, que não conseguiu mover-se, olhando
espantado para o envólucro em sua mão. Ela abriu novamente a bolsa e deu-lhe um
bombom, antes de se despedir e levantar para descer do ônibus, não sem lá de fora acenar-
lhe sorrindo. Então ela começou a pairar no ar, viu por detrás dela umas asinhas de
borboleta e um delicioso cheiro de chocolate penetrou em suas narinas, ela começou a
esvoaçar ao lado do ônibus em movimento… “Bitinho, o que deu em você?”
perguntava-lhe a mãe, sacudindo-o levemente e o colocando no banco, “Por que ficou
assim paralisado?”, “Nada…” disse numa voz um pouco aguda encompridando a primeira
sílaba. Guardou no bolso o envólucro amassado e se pôs a comer o bombom com muito
gosto.
Adorava ir ao cinema, pois o cinema é, por excelência, o lugar dos sonhos, quando
se está sentado numa confortável poltrona, apagam-se as luzes, um silêncio marca o
suspense dos expectadores à aventura que vão viver em breve. E então desandam na tela
imagens absurdamente enormes, um som transita pela sala de um lado a outro, como
trovões vindos de terras longínquas trazendo uma tempestade de cores, formas,
movimentos. Encantado, é-se levado por esse festival de luz. Uma viagem com seres ou
pessoas que logo se aprende a amar, a temer, a desgostar. Rir, chorar, vibrar. Não dá para
ficar alheio.
Saíu pela tarde em êxtase. Tudo estava espantosamente claro, brilhante, sussurrante.
Andava com um semblante sorridente. Sua mãe não se fartava de olhá-lo, disse-lhe que ele
estava parecendo um vagalume aceso. Ele gostou , de fato se sentia um inseto pululante ao
entardecer. Num bolso guardava o invólucro, no outro o ingresso do cinema. Dois itens
numa mesma tarde, ganhos de forma fantástica.
Enfim, chegou ao último item, o mais difícil, temia até não poder realizá-lo. Como
iria conseguir um fio de cabelo de uma menina ruiva desconhecida? Mas, talvez por isso
mesmo fizesse parte das coisas necessárias ao “projeto sonhar”.(Hum, de onde veio essa
idéia?). Gostou e passou a chamar assim o projeto de poder controlar seus sonhos.
Passaram-se alguns dias e nada lhe ocorria, nenhuma pista, começou a ficar nervoso
e inquieto. Até que numa manhã, na escola durante o recreio, foi até a sala de um colega
que ia mostrar-lhe um álbum. Enquanto este procurava em sua mochila, Bitinho viu um fio
de cabelo ruivo pousado numa blusa que estava sobre a guarda da cadeira ao lado. Um
tremor de terra, foi exatamente o que o abalou. Tentou contralar-se e perguntou ao menino
quem sentava ali. “Verinha.”, respondeu indiferentemente. “Ela é ruiva?”, “É.”
(Aí está a oportunidade), disse consigo mesmo. Não lhe ocorrera antes que não precisava
sair por aí puxando o cabelo de meninas desconhecidas, ruivas aliás são raríssimas, era só
procurar um fio ruivo caído numa blusa. Disfarçadamente pegou o fio e o colocou no bolso,
certificando-se de que estava bem colocado, não queria perdê-lo de jeito nenhum. Afinal,
foi fácil, mas sabia que era um achado extraordinário deparar-se com um fio de cabelo
ruivo perdido por aí, de uma menina desconhecida.
Mais tarde em casa ao depositar todos os itens numa sacolinha de supermercado,
sentia-se muito satisfeito, contente consigo mesmo por ter realizado com sucesso essa fase
do “projeto sonhar”.
Preparou-se para voltar à casa de Dona Amélia que não considerava mais uma
bruxa perigosa, mas uma amiga. Embora ainda sentisse um friozinho na barriga quando
chegava perto de seu portão. Com um sorriso confiante entrou naquela cozinha com cheiro
de alecrim já sua conhecida. Colocou sobre a mesa os itens que ia tirando da sacolinha. A
cada objeto tirado ia contando como havia conseguido, ela vibrava conforme o entusiasmo
com que ele contava. E assim, formou-se entre eles um laço de amizade e confiança. Ela
guardou tudo numa caixa, levou para a sala ao lado da cozinha e de lá trouxe uma
almofadinha multicores presa a um cordão de couro. “O que é isso?” quis saber, cheio de
curiosidade, ao mesmo tempo que apalpava e cheirava a almofadinha. “Isso é uma
almofadinha de ervas que guarda todos os sonhos do mundo, é para você usar no pescoço.
Toda vez que tocá-la poderá sonhar.”, “É cheirosa! É bonita!”, estava muito empolgado.
“Calma, lembre de só tocá-la no momento certo, senão você continuará sonhando por aí, a
torto e a direito. Pendure-a no pescoço, só tire para tomar banho, e lembre-se: a sua
responsabilidade é muito grande, pois se você perdê-la, os sonhos deixarão de existir, o
mundo ficará cinza e tudo murchará.”
Esse perigo o aterrorizou. Olhou-a com olhos de melão. “Fique tranqüilo. Sei que
você consegue, afinal trouxe os itens certinho e rapidinho.” E ofereceu-lhe a lata de
rosquinhas e um suco de framboesa.
Bitinho estava radiante, acreditava que agora estaria seguro, não corria mais o risco
de parar num médico que lhe daria um remédio anti-sonhos. Correu até o seu lugar secreto
no quintal do fundo de sua casa para poder ter seu primeiro sonho com a almofadinha.
Ficava num galho da jabuticabeira onde ela se encontrava com folhas de um abacateiro
formando um emaranhado e como um camaleão se enroscava por ali misturando-se na
confusão verde-marrom. Por diversas vezes o tinham procurado, chamando-o bem debaixo
do galho sem notarem que ele estava sobre suas cabeças, ele, quietinho esperava que se
afastassem para então dar sinal de vida, pois estimava muito esse seu refúgio para fazer
alarde dele.
Todo cerimonioso, aconchegou-se ao galho encostando-se no tronco, respirou
fundo, olhou para o céu azul recortado por folhas e galhos, segurou a almofadinha
dependurada em seu pescoço e concentrou-se. No mesmo instante começou a sonhar.
Sonhou que estava voando, este com certeza é o sonho mais gostoso que se pode ter. Era
noite, uma enorme lua branqueava o céu, uma brisa fininha e cheirosa passava ao largo, e
ele elevou-se levemente no ar, embriagado com a luz prateada sobre o azul produndo e
flutuou sem rumo, apreciando a cidade lá embaixo, uma sensação maravilhosa perpassava-
lhe em frêmitos o coração. Que êxtase viajar assim pelo céu, sobre as construções, ruas,
árvores, carros… guiava-se por um breve gesto da cabeça, não precisava mover nenhum
músculo, nenhum membro, apenas um gingado da cabeça. Era um mundo a ser explorado,
subiu mais encontrando algumas nuvens esparsas que encobriam vagamente a lua, que logo
se impunha impudentemente. Num lapso teve consciência da almofadinha, sentiu-a entre
seus dedos, e isso o colocou no comando do sonho, e logo se imaginou numa viagem
vertiginosa até a lua. Mas, nisso ouviu seu nome ao longe. Sua mãe o chamava. Soltou a
almofadinha e puft, acordou. Sorriu de si para si e desceu da árvore de galho em galho e
correu gritando “Já vou.”. Funcionava, pensou.
Daquele dia em diante não teve mais problemas, e passou a controlar seus sonhos.
Logo descobriu que a almofadinha também lhe proporcionava disfarçar que dormia, pois
não precisava fechar os olhos, bastava apoiar a cabeça nas costas da mão, nem mesmo
sentar era necessário, um dia viu que dava para sonhar apenas se encostando num muro, ou
parede, ou armário, e assim foi criando um repertório de posições fora de suspeita, em que
parecia acordado, quando na verdade estava a léguas dali, num sonho deslumbrante. Dessa
forma, cumpria certos deveres sociais por fora —afinal criança também tem isso—, porque
na verdade estava burlando todas as obrigações enfadonhas que preparam as crianças para
serem adultos formais e obedientes. E também ninguém mais comentou que precisavam
levá-lo ao médico e coisas assim.
Sempre que tinha que ir a um lugar chato, logo pegava na almofadinha após se
ajeitar de forma a disfarsar o sono, e se punha a sonhar, mas assim que percebia que se
dirigiam a ele, soltava a almofadinha e respondia calmamente qualquer coisa, sem que
ninguém percebesse que ele estivera ausente.
E passou as próximas semanas numa alegria intensa, sua imaginação era
inesgotável, criava sonhos fascinantes, e graças à almofadinha estava aprendendo a
interferir no sonho, às vezes conseguia dar o “tema” do sonho, por exemplo, se lia alguma
história que o agradava muito, tentava sonhar com ela, fazendo o papel de algum
personagem, ou simplesmente como que “assistindo” a história, às vezes inventando um
outro curso para os acontecimentos. Mas, também não abria mão da surpresa, do
inesperado, deixando que os sonhos viessem por si, deslisando sobre ele como uma cobra,
enroscando-se e trilhando seu próprio destino, sem nenhuma interferência.
Agora tinha uma companheira em Amélia —ela pedira que ele a chamasse pelo
nome—, que visitava sempre, e que adorava ouvi-lo contar seus sonhos, —coisa que
geralmente ninguém gosta—, ela se divertia muito com as freqüentes mudanças que ele
dava às histórias conhecidas, vibrava com os sonhos “autônomos”, e de vez em quando,
contava também um sonho que tivera, pois ela também adorava sonhar, e sonhava sempre.
Esperava logo confiar suficientemente em alguma outra pessoa para compartilhar
essa coisa maravilhosa. Sentava-se diante da janela de seu quarto e imaginava contar seus
poderes oníricos para algum amigo ou amiga. Repassava os nomes conhecidos e não via a
possibilidade de nenhum deles vir a ser seu confidente. Isso começou a entristecê-lo, afinal
a amizade é uma das coisas mais importantes. Já teve uma amiga uma vez, muito querida,
mas ela teve que se mudar para longe quando seu pai foi transferido no trabalho. Depois
dela nunca mais teve alguém em quem confiasse totalmente, com quem se sentisse tão bem
junto a ponto de poder ficar lado a lado sem dizer nada e não se sentir desconfortável, pelo
contrário, sentir-se aquecido, satisfeito, tranqüilo, pois os corações pulsavam juntos. E
ficava pensando porque era tão difícil fazer amigos desse tipo. E então era tomado por um
pavor de ser sempre assim, de estar sempre só, sem poder se ligar a alguém e crescer com
isso, tornar-se mais amplo. Rir junto, chorar junto, sonhar junto. Estar sozinho era muito
bom, satisfazia-se consigo mesmo. Mas, como era melhor saber que quando quisesse
poderia se encontrar com um amigo e fazerem coisas juntos. E um contar ao outro coisas e
pedir socorro e socorrer.
Um dia percebeu que Amélia era uma amiga desse tipo. Até então, não a
considerava assim, por ela ser tão mais velha que ele, mas viu que a idade é apenas um
acaso, asssim como tantos outras coisas, como sexo, religião, cor, língua, nacionalidade.
Tanto faz, não é isso que faz duas pessoas serem amigas e se amarem. É o… espírito, (que
nome dar a isso?) que não tem a ver com características externas, que é uma espécie de
irmandade, um laço invisível que atrai ou repele as pessoas.
Um dia percebeu que a almofadinha não estava no cordão. Era uma quarta-feira de
manhã, estava se arrumando para ir à escola, quando notou sua falta, entrou em pânico.
Desesperado começou a revirar tudo dentro do quarto, sem conseguir encontrar nem rastro
dela. Começou a chorar convulsivamente. Sua mãe assustada perguntou-lhe qual era o
problema e ele, aflito, não conseguia articular as palavras, e se ouviu um embolado de sons
sem sentido. Aos poucos, ela conseguiu acalmá-lo e ficou sabendo que ele havia perdido
uma almofadinha que lhe era muito preciosa, um presente importante. Persuadiu-o a ir à
escola, enquanto ela procurava a almofadinha. Ele foi, mas atormentado não conseguiu
fazer nada, a voz do professor chegava-lhe como um amontoado de ruídos. Mal enxergava
os colegas, os livros e cadernos eram-lhe estranhos. Não sabia o que fazer com a caneta.
Começou a entrar num estado febril. Estava vermelho, sentia-se em brasa. A sala de aula
começou a tornar-se uma enorme cesta, cheia de legumes e frutas falantes. E como numa
vingança voltaram-se a ele ameaçando devorá-lo inteiro. E se aproximavam ritmicamente
abrindo enormes bocas babentas. E quando estavam prontas a abocanhá-lo, soltou um grito
lancinante, pondo em sobressalto a sala toda, por outro lado espantou os legumes
assassinos. A coordenadora foi chamada e ele, que nessa altura pingava de suor, foi levado
à enfermaria da escola. Sua foi mãe chamada e o levou para casa com a prescrição de
mantê-lo em repouso, após tomar um remédio para abaixar a febre. Nessa altura sua mãe
realmente ficou preocupada, pois ele não parava de repetir o caso da almofadinha perdida, e
ela não conseguia imaginar porque tal coisa teria tanta importância para ele, ao mesmo
tempo em que pensou que podia ser delírio provocado pela febre. Enfim, ele adormeceu,
mas no pior dos sonos, um sono sem sonhos, ficou entre a vigília e o sono, ouvia tudo que
se passava a sua volta, a voz de sua mãe, o cachorro da vizinha, um liqüidificador que era
usado, um carro que passava na rua, o vitrô que vibrava com o vento, o pregão de um
vendedor ambulante, a música da camioneta do gás e muito mais, parecia ser capaz de
ouvir os seres a respirar, a água passando pela garganta de alguém e até mesmo um piscar
de olhos. Ficou nessa agonia por um bom tempo. Até que conseguiu arrancar-se desse
limbo e levantar, a febre tinha cedido um pouco, por isso sua mãe deixou-o ficar na
varanda, mas sem sair de casa. Queria muito avisar Amélia, mas estava preso. E também
petrificado. Não se movia da cadeira em que estava sentado, não tinha iniciativa para
procurar a almofadinha. A única coisa que fazia repetidamente era repassar mentalmente
tudo o que fizera no dia anterior até a última lembrança que tinha dela, para ver se
conseguia descobrir o local ou a circunstância da perda. E nada. Lembrava e relembrava.
Vermelho, estático, alucinado.
À tardezinha veio a sua casa um colega trazer a lição para ele copiar. E vendo que
ele ainda estava distante e vermelho, perguntou-lhe o que tinha. Bitinho não resistiu e
contou tudo, nesse momento não tinha como raciocinar ou intuir se ele era ou não de
confiança. E nisso teve uma bela surpresa: o outro ficou muito emocionado com a história e
se oferceu para ajudar a procurar a almofadinha, mantendo estrito segredo. Isso lhe fez tão
bem que a febre e a aflição foram cedendo e ele pôde voltar a movimentar-se. Combinaram
começar as buscas no dia seguinte após o almoço. Idris —este era seu nome— convenceu
Bitinho a esperar e tentar manter-se calmo. Era incrível, mas isso fez-lhe tão bem que
conseguiu relaxar um pouco e diminuir a ansiedade.
Quando se encontraram novamente foi como se sempre tivessem sido próximos,
Bitinho estava muito contente por ter um novo amigo e teve a sensação de que um amigo é
amigo mesmo antes de se conhecer, e também depois se acontece de não se verem mais.
Sentaram-se lado a lado no degrau da escadaria da entrada da casa indecisos por
onde começar. Até que Idris perguntou “Onde você viu a almofadinha pela última vez?
Podemos começar por aí.” Bitinho pensou e pensou e viu que ainda não conseguia se
lembrar, estranho, era como se sua memória tivesse sido apagada. “Uhm” disse Idris,
“paraece um caso bem complicado.” Bitinho então sugeriu que procurassem por toda a
casa, começando da frente e passando por todos os cômodos até o fundo. Nunca
imaginaram que a superfície podia ser tão extensa, foi o que perceberam ao rastrear palmo a
palmo o chão, até parte das paredes que ficava no vão de vasos, coisas amontoadas pelo
quintal e dentro de casa, uma imensidade de móveis e utensílios. O que à primeira vista
pareceu-lhes fácil, mostrou ser um trabalho de Hércules. Mal tinham chegado à metade já
estavam exaustos e um pouco desanimados, mas vez ou outra se deparavam com coisas e
seres variados, até interessantes, como sementes, pedrinhas, besourinhos, um carrinho
velho sem rodas, um pedacinho de espelho, uma cabeça de boneca, um botão azul, um
prego enferrujado, um inseto ressecado, uma lasca de unha, uma bolinha de gude verde,
uma caneta vermelha, aranhazinhas e teia (de quem seria?), um palito de fósforo, uma
conchinha, e tantas outras coisinhas, muitas embalsamadas por poeira. Uma casa pode ser
um mundo tão vasto, e tantas coisas podem ter uma existência tão efêmera e obscura, mas
lá estão, em algum canto, existindo. E assim foram inspecionando cômodo por cômodo,
móvel por móvel, em cima, dentro e fora, em baixo, de um lado e de outro, portas e janelas,
bolsas e caixas. A mãe de Bitinho, ia e vinha, topava com eles e a cada vez perguntava “o
que vocês estão fazendo?” e a cada vez respondiam “procurando a almofadinha, você
viu?” e ela dizia "É mesmo! Não vi", e eles torciam a boca. O quarto de Bitinho foi onde
procuraram com mais acuidade, devassaram tudo, e nada, misteriosamente nada acharam.
No final, exaustos e frustrados, sentaram-se novamente num dos degraus da escadaria, cada
um encostado numa parede lateral, quase chorando, admitiram que seus esforços deram em
nada. Estavam preocupados e não sabiam mais o que fazer. Então Bitinho sugeriu que
procurassem Amélia para pedir ajuda e conselho, embora ele estivesse sem coragem para
procurá-la, pois sentia que tinha falhado e não queria decepcioná-la. Tocaram a campainha
umas três vezes, mas ninguém apareceu. “Estranho ela nunca sai” disse Bitinho muito
preocupado. Parecia que tudo estava contra ele, e pensamentos funestos tomaram conta
dele, imaginou o mundo ficando todo cinza e ninguém mais sonhando, mal conseguindo
dormir e novamente começou a ficar febril e confuso. Mas Idris logo percebeu o mal-estar
do amigo e o consolou, dizendo que era apenas coincidência, que logo ela voltaria e tudo se
arranjaria, ele ia ver. Levou-o para casa e ficou com ele no quarto, tentando distraí-lo, não
parava de perguntar-lhe coisas, pegava brinquedos, livros, discos, cadernos e sempre
achava um comentário ou uma pergunta para fazer. Encontrou um dvd de um filme que
adorava e insistiu para assisti-lo juntos. “A história sem fim”. No decorrer do filme
sentiram-se tão próximos dos personagens, pois eles também defrontavam-se no momento
com um problema parecido, era como se o mundo dependesse deles, como se tudo de ruim
caíria sobre o mundo se eles não resgatassem a almofadinha dos sonhos. Nunca vibraram
tanto ao assistir este filme, nem mesmo da primeira vez. No final, sentiram-se fortalecidos.
Como faz bem assitir a um filme interessante? Como é revigorante! Imagens maravilhosas,
histórias envolventes, músicas fascinantes.
Ambos estavam refeitos, acreditando que de alguma forma tudo iria acabar bem. Ao
se despedirem, perceberam que estavam alegres.
Mas, quando Bitinho deitou-se, voltou a apreensão, não queria nem pensar a
respeito, mas não conseguia. Estava com medo de não conseguir dormir. E sonhar? Será
que conseguiria sonhar?
Virava-se para um lado, virava-se para o outro lado, foi ficando tão tenso, que
acabou por despertar totalmente, mas cansado. Após vários minutos tentando inutilmente
dormir, acabou por se levantar. Estava com insônia, era chocante, ele que costumava
dormir à toa, em qualquer lugar. Sentou-se à escrivaninha e começou a folhear
displicentemente um livro de pinturas que tinha estado apreciando um dia antes. A cabeça
apoiada sobre a mão esquerda foi se levantando, o folhear aleatório foi tornando-se
participativo. Borboletas, uma tecelagem cuja estranha trama eram borboletas azuis,
amarelas, alaranjadas entremeadas, repetitivamente. Num outro trabalho seres meio peixes,
meio lagartos, meio folhas com seus olhinhos amigáveis repetiam-se em cinza, preto e
vermelho formando uma composição que conforme se ajusta o olhar vêem-se formas
diferentes, como ao girar um caleidoscópio, seus grãos formam diferentes imagens. Em
seguida um vitral de cobras entre inúmeras argolas entrelaçadas ao infinito arrastando o
olhar às profundezas de um poço sem fundo, num turbilhão de voltas joga o olhar de volta à
superfície para novamente desabar no abismo. Escadas e escadas e mais escadas, mas
nunca se pode estar numa sem escorregar em outra e para onde levam? de onde vêm? Com
certeza para lugares incomunicáveis, sem referência, não há cima, nem baixo, nem lados
que se correspondem numa mesma figura, seus olhos turvavam-se numa tentativa de
apoiar-se, mas então deparava-se com alguém de ponta-cabeça e recomeçava a tentativa de
encontrar um ponto de equilíbrio e novamente se perdia nesse labirinto.
Suas chaves penduradas acima da janela no lado de fora da casa começaram a
tilintar levemente, a luz da luminária sobre a escrivaninha parecia que piscava, outra hora
parecia que minguava. Sua cabeça foi pendendo sobre a mesa e seus olhos pesados,
entrelaçaram-se ao labirinto de escadas e lentamente se foram fechando, fechando. Uma
música estava tocando ao longe e misturava-se ao tilintar das chaves que a essa altura
estavam frias. Lufadas furiosas de vento entravam pela janela movimentando em
compassos as cortinas de filó, um cheiro de alfazema aparecia no intervalo do vento. Estava
tudo tão macio e cintilante. Azulado. Sentia-se leve e flutuante como se tivesse criado asas
e sobrevoasse esse ambiente escheriano confuso de subidas e descidas que não podem ser.
Então estava dentro de uma bolha de sabão flutuando e o vento o carregava para cima, mas
quando pensava que chegava ao teto era sobre o chão que quase pousava e um novo sopro o
levava numa nova direção, estava para assentar-se na cabeça de uma figura sentada, quando
deu com a cintura de alguém que formava um ângulo reto com a que estava sentada. Deu-se
conta de quantas pessoas transitavam por ali, cada uma em sentidos e ângulos e
perspectivas e variações diferentes. Que confusão! As escadas, as pessoas desmancharam-
se em linhas que se embaralhavam e surgiam borboletas, depois lagartos, cobras, círculos,
galhos e uma lua branca e redonda refletida num lago foi se aproximando mais e mais e a
bolha de sabão estourou levemente num ploc seco e Bitinho mergulhou inteiro no revés de
um mundo, na cega brancura agora sem forma, pura, nua. Penetrou num universo sem sons,
sem imagens. Dissolveu-se na própria fonte de onde tudo provém, para onde tudo retorna.
O informe.
Quando abriu os olhos viu que era dia, e que estava todo dolorido por ter dormido
sentado com a cabeça apoiada sobre o livro. Entendeu que não precisava mais da
almofadinha de sonhos, entendeu que podia voltar a sonhar sempre, que sempre que
quisesse podia tocar esse espaço sem lugar, atingir esse tempo sem momento, sempre que
quisesse e pudesse, pois esse universo não está em lugar algum, não depende das horas, é
só uma maneira de ajeitar o espírito, de acolher em si o mundo, e já se está lá, e já se vive o
sonho.
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