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Grupo de Pesquisa da Comunicação e Sociedade do Espetáculo 3º Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo Faculdade Cásper Líbero – 15, 16 e 17 de outubro de 2015
Apontamentos sobre a crítica de arte e as práticas artísticas: as intervenções no
espaço e as diferentes construções do modo de ver
Antonio Luiz Gonçalves Junior1
Resumo: A partir da reflexão que o historiador e crítico norte-americano Hal Foster
efetua de certa produção artística no pós-guerras, dos anos 60 e 70, as chamadas pós
vanguardas, dois enfoques se mostraram úteis para identificar como essas práticas, no
campo das artes visuais, podem influenciar a cena teatral contemporânea. Nesse sentido,
o objetivo desta comunicação é sondar a possibilidade que tais práticas podem ter, ou
não, de se mostrarem resistentes à lógica espetacular examinada por Guy Debord.
Palavras-chave: Teatro Contemporâneo; Sociedade do Espetáculo; Neovanguardas;
Crítica e Criação Artística; Arte como Resistência.
1 Antonio Gonçalves Jr. é Doutorando em Artes Cênicas pela ECA/USP, mestre em Comunicação e Mercado pela Faculdade Cásper Líbero (FCSCL) e pesquisador do Grupo de Pesquisa “Comunicação e Sociedade do Espetáculo” da Faculdade Cásper Líbero. Também integra o "Grupo de Estudos em Estética Contemporânea" da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) / USP. Possui especialização, Lato-Sensu, em Fundamentos da Cultura e das Artes pelo Instituto de Artes São Paulo, UNESP (2008). É professor de teatro na Escola Superior de Artes Célia Helena, e na SP Escola de Teatro - Centro de Formação das Artes do Palco. No campo das artes (Antonio Duran), como dramaturgista, tem participado dos últimos processos de criação do grupo Teatro da Vertigem. É também é ator e diretor.
Grupo de Pesquisa da Comunicação e Sociedade do Espetáculo 3º Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo Faculdade Cásper Líbero – 15, 16 e 17 de outubro de 2015
Esta reflexão dá continuidade aos trabalhos apresentados em seminários anteriores com
o mesmo intuito de questionar sobre as possibilidades, ou não, de resistência da arte aos
processos hegemônicos da cultura espetacular. Por meio de um diálogo com as ideias do
historiador e crítico de arte norte-americano Hal Foster, no livro O Retorno do Real,
dessa vez o propósito é rastrear na história recente da arte no período pós-guerras, nas
chamadas neovanguardas, em particular no minimalismo, alguns procedimentos e
debates da crítica cultural que possam ajudar a refletir suas possíveis influências no
teatro contemporâneo, assim como seus desdobramentos, particularmente na cena
teatral praticada pelos chamados Teatros de Grupo em São Paulo. Uma prática que tem
como um de seus princípios norteadores estabelecer um processo de pesquisa para a
criação de uma peça teatral.
Para isso foi selecionado um trecho da fala2 de uma personagem do espetáculo Bom
Retiro 958 metros realizada pelo Teatro da Vertigem entre 2012 e 2013, no bairro do
Bom Retiro em São Paulo. Esta cena selecionada foi o ponto de partida que gerou essa
reflexão.
O nome da personagem é Cracômano, um homem viciado em crack, e o texto que ele
diz está sendo encenado em um teatro abandonado, e em ruínas, na parte final da peça.
O público, agora sentado em poltronas semidestruídas, vem acompanhando sua
trajetória desde o início do espetáculo que começou em um shopping center, passou por
um trecho de rua e terminou nesse teatro, totalizando um percurso de novecentos e
cinquenta e oito metros. Desde o início, a personagem quer encontrar sua 'pedra', com a
qual mantém uma relação afetiva.
2 Ver trecho em “anexos”
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Gostaria de chamar atenção para o ponto de vista do público: pode-se considerar o texto
que o Cracômano diz a partir da trajetória de sua história que vem se desenvolvendo
desde o início da peça, como também é possível atentar-se ao significado que o espaço
exerce, somado ao significado do texto, isto é, da ficção. Esta dupla camada, digamos
assim, de narrativas é que está sendo exposta à percepção do público, ou seja, da fala da
personagem e do significado do espaço. Situação esta diversa, caso a mesma cena
estivesse sendo apresentada em um palco convencional, por exemplo, o palco italiano,
onde não há uma solicitação de leitura do significado, ou da narrativa do espaço em
diálogo com a narrativa da ficção.
Colocado esse exemplo, que será retomado ao final, partimos para o recorte do
pensamento de Debord acerca da sociedade do espetáculo e na sequência para o exame
que Hal Foster efetua sobre a arte do pós-guerras, as chamadas neovanguardas.
As análises e prognósticos realizados por Guy Debord sobre a lógica de operação da
sociedade de sua época continuam sendo uma ferramenta eficaz, que ajuda a distinguir
certas peculiaridades de funcionamento da cultura do espetáculo na contemporaneidade,
particularmente o que Debord denominou de "Espetacular Integrado", posteriormente
aos modelos de "Espetacular Concentrado" e "Espetacular Difuso". Quando o espetacular era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava; quando era difuso, uma pequena parte; hoje, nada lhe escapa. O espetáculo confundiu-se com toda a realidade ao irradiá-la. (Debord, 1997:173)
Para Debord não é possível distinguir entre o que é a realidade espetacular e a atividade
social efetiva, uma vez que "a realidade vivida é materialmente invadida pela
contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma
positiva." (...) "a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação
recíproca é a essência e a base da sociedade existente" (Dedord, 1997:15).
Esta impossibilidade de discernimento dificulta o acesso às camadas mais próximas do
acontecimento real, e por sua vez do seu significado, visto que a proliferação das
imagens e, geralmente, a explicação que vem junto com elas banalizam e naturalizam
seu sentido, podendo provocar certa apatia da sensibilidade. Para Guy Debord, vive-se
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uma vida adormecida, uma pseudo-vida que aceita reconhecer-se nas imagens
dominantes, e quanto mais isso se dá, menos compreende sua própria existência e seu
próprio desejo. (Conf. Debord, 1997:24) Nesse sentido, o espetáculo confundiu-se com
toda a realidade, uma vez que a realidade surge no espetáculo.
Acerca da análise de Hal Foster das práticas artísticas das chamadas neovanguardas ele
observa nessas atividades uma significativa influência de modelos críticos que atuam no
âmbito da resistência. Sua abordagem relaciona as práticas artísticas da neovanguarda
em relação às práticas efetuadas no modernismo para então repensar sua influência na
arte contemporânea. Em especial, o minimalismo. Nesse sentido, Foster encaminha sua
reflexão para a ideia de que enquanto a vanguarda histórica, praticada nos anos 10 e 20
do século XX (cubismo, futurismo, dadaísmo, expressionismo) enfoca o convencional,
a neovanguarda (dos anos 50 aos 70 do século XX) concentra-se no institucional. Um
dos exemplos que Foster destaca é Marcel Duchamp que em 1917 assinou com o
pseudônimo um urinol virado de cabeça para baixo. Para ele o ready made de Duchamp
articula as condições enunciadoras da obra de arte de fora, como um objeto extrínseco
ao mundo da arte, no caso um produto industrial, vulgar e comum (Conf. Foster, 2014,
p. 37), revelando os limites convencionais da arte naquele contexto. Esse seria um
exemplo crucial para Foster da ação da vanguarda, em um momento que a instituição
arte não estava muito definida.
Cinquenta anos depois, na década de 60, alguns artistas se interessaram em elaborar os
mesmos modelos da vanguarda para investigar o status de exposição e o nexo
institucional, cujo objetivo era elaborar uma crítica das convenções dos meios
tradicionais. Entre eles Dan Flavin, Donald Judd e Robert Morris no início da década e,
mais tarde, outros como Michael Asher, que Foster toma como um dos exemplos. O
artista concebeu um projeto para uma exposição coletiva no Art Institute of Chicago em
que uma réplica da estátua de George Washington foi removida da frente do museu
onde desempenhava um papel comemorativo e decorativo, para uma galeria do século
XVIII onde suas funções estética e histórica passavam para primeiro plano. Esse
procedimento tornou evidente, no simples ato de deslocamento, que essas funções da
estátua se tornaram históricas o que implicava uma limitação do museu de arte como
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lugar de memória histórica, e que Asher denominou estética situacional. Como se o
visto fosse direcionado pelo ambiente, como se o lugar fosse capaz de influenciar a
atenção para alguns aspectos da obra em detrimento de outros.
Segundo Foster, esse exemplo denota certo tipo de crítica das convenções dos meios
tradicionais, tal como efetuada pelo movimento dadaísta, pelo construtivismo e outras
vanguardas históricas, desenvolvidas pelas artes neovanguardistas. O que colocaria,
segundo Foster, o projeto da vanguarda histórica em prática, e estabeleceria as bases
para sua tese. Primeiro tópico: a instituição arte é captada como tal não com a
vanguarda histórica, mas com a neovanguarda. Segundo tópico: a neovanguarda, em sua
melhor expressão, aborda essa instituição com uma análise criativa a um só tempo
específica e desconstrutiva, “diferente do ataque niilista abstrato e anarquista, como
ocorre com frequência com a vanguarda histórica”. (Foster, 2014, p. 20) Terceiro: em
vez de suprimir a vanguarda histórica, a neovangurada põe seu projeto em prática pela
primeira vez, “uma primeira vez que é teoricamente infindável” (Foster, 2014, p. 20).
Nesse exemplo, Foster retifica a dialética da vanguarda formulada por Peter Burger, em
sua obra Teoria da Vanguarda, na qual Burger defende que as vanguardas históricas
orientaram-se visando contestar o estatuto da autonomia da arte na sociedade burguesa,
preconizando sua reinserção nas práticas do cotidiano. Segundo Burger, contudo, as
vanguardas empreenderam uma jornada inglória contra esse descolamento da arte em
direção à realidade do cotidiano, uma vez que ela foi fundida nas tendências de um
esteticismo da arte pela arte, entendendo que “a vanguarda intenta a superação da arte
autônoma no sentido de uma recondução da arte em direção à práxis vital, [mas que
isto] não aconteceu e porventura não pode acontecer na sociedade burguesa, a não ser
sob a forma de falsa superação da arte autônoma”(Foster, 2014, p. 36)
No entanto, Hal Foster, embora reconhecendo a relevância do texto de Peter Bürger
para as discussões em torno das vanguardas, afirma que seus pontos cegos já estariam
suficientemente mapeados, e que “a principal premissa [da teoria de Bürger] – de que
uma [única] teoria poderia compreender a vanguarda, e de que todas suas atividades
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poderiam ser reduzidas ao projeto de destruir a falsa autonomia da arte burguesa – é
problemática” (Foster, 2014, p. 39)
As neovanguardas tentaram “reposicionar a arte em relação não apenas ao espaço-
tempo mundano, mas às práticas sociais” (Conf. Foster, 2014, p. 10), promovendo um
retorno (nos anos 1950 e 1960) a práticas preconizadas cinquenta anos antes pelos
dadaístas, tendo os readymades de Marcel Duchamp como emblema, e os
construtivistas russos (Tatlin e Rodchenko) como exemplo: embora diferentes política e esteticamente, ambas as práticas contestam os princípios burgueses da arte autônoma e do artista expressivo, o primeiro através do acolhimento dos objetos cotidianos e uma postura de indiferença, e o segundo através do uso de materiais industriais e da transformação da função do artista. (Foster, 2014, p.38)
Foster entende que sua tese tem problemas, percebe que certa reconexão da arte com a
vida ocorreu, mas não nos termos do desejo da vanguarda histórica, mas nos termos da
indústria cultural, cujos procedimentos foram assimilados nas operações da cultura do
espetáculo, em parte mediante as próprias repetições da neovanguarda. Nesse sentido,
Foster também reconhece as contradições do empreendimento modernista apontadas por
Burger, a falsa superação da distância entre arte e vida, assim como de outros críticos
como Buchloh, que identificava uma função na vanguarda em fornecer modelos de
identidade cultural e legitimação para a recém-construída audiência burguesa liberal do
período pós-guerra. Tal audiência buscava uma reconstrução da vanguarda que
preencheria suas necessidades não para a integração da arte na prática social, mas sim o
oposto: a associação da arte com o espetáculo. Para Buchloh, é no espetáculo que a
neovanguarda encontra seu lugar como provedora de um semblante mítico de
radicalidade, e é no espetáculo que pode incutir a repetição de suas estratégias mítico de
radicalidade, e é no espetáculo que pode incutir a repetição de suas estratégias
modernistas obsoletas com a aparência de credibilidade. (Conf. Foster, 2014, p. 39).
Entretanto, Foster questiona tais afirmações como um pronunciamento geral e definitivo
sobre a neovanguarda, e afirma que esse tanto é a parte do diabo, mas só esse tanto, uma
vez que mais do que anular e esvaziar a vanguarda, esses desdobramentos produziram
novos espaços de atuação crítica e forneceram novos modos de análise institucional,
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reconhecendo que essa reelaboração revelou-se o projeto mais vital em arte e crítica das
três últimas décadas, pelo menos. (Foster, 2014, p. 40) o assim chamado fracasso da vanguarda histórica e da primeira neovanguarda em destruir a instituição arte capacitou a segunda neovangurada a submeter essa instituição a um exame desconstrutivo - exame que, mais uma vez, agora é estendido a outras instituições e discursos na arte do presente”. (Foster, 2014, p. 43)
Foster encaminha seu argumento dizendo que a discussão sobre a crítica da vanguarda
continua, e que não há uma receita para o hermetismo ou o formalismo, como às vezes
se alega.
O ponto crucial do minimalismo e virada etnográfica na arte
Acerca do minimalismo, como desdobramento da primeira neovanguarda, Foster
destaca as condenações que a crítica efetuou a esse movimento como irrelevantes. Para
essa crítica, o minimalismo consumava um modelo formalista de modernismo. Todavia,
ele declara que o minimalismo está longe de ser uma questão morta e destaca que suas
práticas abriram um novo campo da arte, que a arte contemporânea continua a explorar.
Foster entende que a percepção, no minimalismo, torna-se reflexiva nessas obras e,
consequentemente, complexa, uma vez que rompe com o espaço transcendental de
grande parte da arte modernista: o espaço imanente do readymade dadaísta ou do relevo
construtivista (Foster, 2014, p. 52). Em suma, com o minimalismo a escultura não fica
mais à parte, sobre um pedestal ou como arte pura, mas é reposicionada em meio a
objetos e redefinida em termos de lugar. Nessa transformação, o espectador, uma vez
negado o espaço seguro e soberano da arte formal, é trazido de volta para o aqui e
agora; e em vez de examinar a superfície de uma obra para fazer um mapeamento
topográfico das propriedades de seu meio, é instigado a explorar as consequências
perceptivas de uma intervenção particular num local determinado. Essa seria a
reorientação fundamental que o minimalismo inaugura. (Foster, 2014, p.53)
Foster entende que a ênfase do minimalismo está na temporalidade da percepção e tal
aspecto, por sua vez, ameaça a ordem disciplinar da estética moderna na qual a arte
visual é considerada estritamente espacial. Isto é, para Foster, a partir do minimalismo
há uma virada fenomenológica da relação do corpo no espaço junto a uma obra, no
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sentido de haver um deslocamento da percepção em direção à temporalidade da relação
entre o corpo e o espaço, um deslocamento da atenção para a própria experiência.
Acerca das práticas artísticas, seguindo o pensamento de Foster, ele identificará, no
capítulo O artista como etnógrafo, o surgimento de um novo modelo estruturalmente
semelhante ao antigo paradigma do autor como produtor de Walter Benjamin, que seria
o artista como etnógrafo. Nesse novo modelo, também identificado como um
desdobramento das neovanguardas, o objeto da contestação do artista ainda é, em
grande medida, a instituição de arte capitalista-burguesa (o museu, a academia, o
mercado, a mídia) suas definições excludentes de arte e artista, identidade e
comunidade. Entretanto, Foster detecta nesses novos procedimentos da arte
contemporânea um deslocamento para o campo do outro cultural e/ou étnico, ele
distingue que o sujeito da associação mudou: passou a ser o outro cultural e/ou étnico.
(Foster, 2014, p.161)
Nesse sentido, essa virada social, também entendida como horizontal, espacial, e
etnográfica da arte contemporânea, que está no campo do outro, pode ser entendida
como o lugar da transformação política. Logo, tal modelo do etnógrafo pressupõe que o
lugar da transformação política seria também o lugar da transformação artística. Tal
virada etnográfica na arte contemporânea, até aqui esboçada a partir da visão de Hal
Foster, mostra-se então motivada também por desdobramentos no interior da genealogia
minimalista da arte desde o final dos anos 50, assim como no começo dos anos 60 até a
arte conceitual, performance, body art e arte site-specific do começo dos anos 70. Tais
desdobramentos constituíram uma sequência de investigações da arte: dos materiais
constituintes do meio artístico; das condições espaciais de sua percepção; das bases
corpóreas dessa percepção. Assim sendo, houve um movimento das práticas artísticas
para um eixo mais horizontal, principalmente a partir de tal virada etnográfica.
Para Foster, essa expansão horizontal envolveu a arte, como também a teoria e a crítica
cultural em locais e audiências há muito tempo delas afastadas, abrindo assim outros
eixos verticais, outras dimensões históricas, para o trabalho criativo. (Conf. Foster,
2014, p.9). Tal deslocamento, tanto da arte quanto da crítica, também implicou uma
nova carga para o artista e o público à medida que o artista passa de um projeto ao
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outro, ele precisa aprender a amplitude discursiva e a profundidade histórica de muitas
representações diferentes, como um antropólogo que entra numa nova cultura a cada
nova exposição (Foster, 2014, p.10) ou, na perspectiva da cena teatral contemporânea, a
cada novo processo de criação de um espetáculo, em especial naqueles que tem o
espaço urbano como uma vertente do trabalho.
Considerações finais
Em uma primeira leitura mais superficial desse movimento das atividades artísticas, no
campo das artes plásticas e visuais, é possível identificar como determinadas práticas da
cena teatral contemporânea também são influenciadas por tais gestos artísticos
desenvolvidos a partir dos anos 50.
No caso da peça Bom Retiro 958 metros, torna-se reconhecível alguns aspectos que
inicialmente esboçamos no início desse texto. No campo da criação artística, o
espetáculo foi realizado fora do espaço institucional do teatro, ou seja, o palco italiano.
Foi um trabalho site-specific, criado a partir das características de um local específico,
tendo o bairro de uma cidade, no caso o Bom Retiro, na cidade de São Paulo, como
objeto de estudo. Durante o processo de pesquisa para a criação deparou-se com o
“outro cultural”, as diversas etnias presentes no bairro, em especial, judeus, coreanos e
bolivianos, assim como os viciados em crack, os quais demandaram do grupo uma
reflexão acerca de como se dariam as abordagens de cada um desses grupos sociais,
configurando assim, uma aproximação de caráter etnográfico. No campo da percepção e
recepção, o trabalho incluiu uma ficção, trajetórias de personagens e narrativas, em
tensão com os espaços reais do bairro, seja o shopping center, as ruas do bairro e o
teatro abandonado em ruínas. Nesse campo da recepção, voltamos à cena de nosso
personagem Cracômano, em que o público está em uma determinada situação, dentro
de um teatro abandonado em estado de completo abandono e destruição, ao mesmo
tempo em que acompanha a ficção, a trajetória de vida da personagem. Nesse contexto
sua contemplação se torna complexa, no sentido de que ele é instigado a relacionar os
significados dessas duas instâncias, da ficção e do espaço real em ruínas, durante sua
experiência no aqui e agora.
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Nessa perspectiva, é possível assinalar que o processo de criação do espetáculo Bom
Retiro 958 metros mobilizou características e procedimentos que denotam, segundo
Foster, o movimento para uma virada horizontal na arte em direção a espaços não
institucionalizados, como também à virada etnográfica, que se depara com outro
cultural e/ou étnico, assim como no campo da percepção, onde o espectador é orientado
a explorar as consequências perceptivas de uma intervenção particular em um local
determinado. Logo, esta condição de experiência na cena contemporânea, que considera
tais perspectivas, pode ser entendida como um modo de resistência da arte, uma maneira
de requisitar outro tipo de percepção sensível do público e, portanto, outra capacidade
de cognição e simbolização não alienada, diversa da condição em que a lógica
espetacular se confunde com a realidade. Nesta experiência do espectador a realidade e
o espetáculo, no sentido de Debord, deixam de ser a mesma coisa, uma vez que a ficção,
isto é, o espetáculo, passa a ser um modo de compreender e significar o real.
Resta, obviamente, ponderar acerca das armadilhas que os artistas incorrem nesse tipo
de arte, por exemplo, fora de espaços convencionais e que se defronta com o outro
cultural: como lidar com a autoridade etnográfica na abordagem aos grupos sociais
pesquisados? Como não exercer um comportamento assistencialista em relação a eles?
Já em relação às possíveis consequências de um trabalho no espaço urbano: como
encarar o impacto que uma intervenção desse tipo pode acarretar na valorização de
espaços degradados da cidade e que podem ser futuramente alvo de especulação
imobiliária? Outro aspecto que será investigado no desenvolvimento desse estudo, e não
menos significativo, é a abertura para se repensar alguns pressupostos da crítica
cultural: refletir acerca do olhar crítico, a partir desses diferentes modos de fazer e ler a
cena contemporânea, de modo diverso da crítica que via na arte realizada dos anos 60 e
70 uma demonstração de seu fim de linha.
Entretanto, o objetivo desta reflexão preliminar foi chamar atenção para possibilidades
de resistência da arte aos processos hegemônicos da lógica espetacular, pelo viés da
criação artística e da percepção e leitura de um trabalho artístico.
Referências
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DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo – Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 1997. FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
ANEXO 1 (trecho da fala do personagem Cracômano)
CRACÔMANO
PRA ONDE VOCÊS ESTÃO INDO? TÃO FUGINDO DE QUÊ? PENSAM QUE
VÃO PRA ONDE, PRA CASA? MAS QUE CASA, NÃO EXISTE MAIS NENHUMA
CASA… TUDO QUE TÁ ABANDONADO É NOSSO, É MEU, É SEU, É DE QUEM
QUISER! (Vendo morcegos) TÁ CHEIO DE MORCEGO AQUI DENTRO. TÁ
CHEIO DE CHUPASANGUE SE APROVEITANDO DA GENTE…CADÊ A MINHA
PEDRA? ONDE É QUE TÁ? EU TAMBÉM NÃO VOU PRO SUS, PREFIRO IR PRA
IGREJA! DAR UNS DEPOIMENTO! GANHAR UNS TROCADOS, INVENTAR
UMAS HISTÓRIAS, A MINHA HISTÓRIA, QUE NÃO EXISTE MESMO E
PRECISA SER INVENTADA. OLHA! OLHA, VOCÊS TÃO VENDO? (aponta para o
fosso sob o palco) PARECE UM BARCO AFUNDADO!... E VOCÊS AÍ? TÃO
PREOCUPADOS COM O QUÊ?
(afastando-se do público e escalando as cadeiras em direção ao palco)
COM O MEU ESTÁDIO? VOCÊS TÊM UM LUGAR, NÃO TÊM? UMA CIDADE
CHEIA DE TORRE, MARGINAL, PONTE, PISCINA.. E AGORA O QUE VOCÊS
QUEREM MAIS? AS PEDRAS? QUEREM AS PEDRAS PRA QUE, HEIN, PRA
CONSTRUIR MAIS UM ESTÁDIO DE FUTEBOL, É? OLHA AQUI MEU
ESTÁDIO
(levanta a camisa, exibindo a magreza)
ESTÁDIO! ESTÁDIO! ESTÁDIO! ELES QUEREM MAIS UM ESTÁDIO DE
FUTEBOL, PAPAI NOEL!... VOCÊS TÃO ENGANADO. VOCÊS TÃO TUDO
ENGANADO...VOCÊS ESTÃO PRESO AQUI DENTRO. DENTRO DESSE BARCO
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AFUNDADO. TÃO SENTINDO A ÁGUA POLUÍDA ENTRANDO NOS PULMÃO
DA GENTE? A ÚNICA COISA QUE É REAL AQUI É ESTA ÁGUA QUE A GENTE
RESPIRA AGORA… TÃO SENTINDO? E SE DESPEJAREM A GENTE DAQUI, A
GENTE VAI PRO OUTRO LADO DO MUNDO, PRA QUALQUER LUGAR. BEM
NA FRENTE DA TUA PORTA… CADÊ A MINHA PEDRA?
ONDE É QUE TÁ? EU VOU ACHAR VOCÊ ONDE CÊ TIVER... EU VOU TE
ENCONTRAR. ONDE CÊ TÁ?…
(Perto do palco, o CRACÔMANO vê a pedra descendo do urdimento)
AH, VOCÊ TÁ AI! PORQUE NÃO FALOU NADA? TÁ CHATEADA COMIGO, É?
OLHA, SE EU TE FIZ ALGUMA COISA, ME PERDOA VIU? FOI SEM QUERER...
EU VIM AQUI PORQUE EU QUERO CUIDAR DE VOCÊ. PORQUE EU QUERO
SALVAR VOCÊ! ENTENDE ISSO? OLHA, DAQUI PRA FRENTE A GENTE VAI
FICAR PRA SEMPRE JUNTO. VAMO SER UMA COISA SÓ.
EU E VOCÊ, UMA COISA SÓ!... UMA COISA SÓ!
[Quando a pedra atinge o piso do palco, ela se abre. O CRACÔMANO então a penetra,
ela se fecha e ambos se tornam uma coisa só]
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