aplicaÇao dos direitos fundamentais as relaÇoes privadas
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APLICAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS S RELAES PRIVADAS
Aline Martins Rospa
1. TEORIAS EXPLICATIVAS DA APLICAO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS AOS PARTICULARES
Os direitos fundamentais tm como funo bsica limitar o poder
estatal perante o cidado, entretanto crescente o debate doutrinrio ejurisprudencial que defende a eficcia horizontal desses direitos.
Rothenburg diz que ao lado de uma clssica eficcia vertical dos
direitos fundamentais, que obriga ao respeito pelo Poder Pblico, h a eficcia
horizontal ou privada (erga omnes), que cobra cumprimento dos direitos
fundamentais nas relaes entre particulares. 1
No apenas o Estado que deve observar os preceitos dos direitos
fundamentais a serem cumpridos, os particulares, em suas relaes jurdicas,
j no podem cometer arbitrariedades em relao ao seu prximo sem nada
temer. A eficcia horizontal dos direitos fundamentais trata da aplicao dos
princpios norteadores da Constituio Federal s relaes entre os
particulares, funcionando como limitadores da ampla autonomia privada.
A Constituio Federal de 1988, a exemplo de outras constituies
estrangeiras, no tomou uma posio expressa quanto aplicao ou no dos
direitos fundamentais nas relaes privadas. Por isso, a soluo para esse
problema encontra-se no campo dogmtico, atravs da interpretao da Carta
Magna.
At mesmo nos pases em que a constituio se posiciona sobre o
assunto h controvrsias e discusses, seja na forma ou no alcance da
vinculao dos direitos fundamentais nas relaes entre os particulares. Wilson
Steinmetz afirma que importante apresentar os principais fundamentos
1ROTHEMBURG, Walter Claudius. Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica.So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. Ano 7, N. 29 p.63
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constitucionais construdos tanto pela jurisprudncia quanto pela dogmtica
jurdica a respeito da eficcia horizontal dos direitos fundamentais.
Seriam eles: o princpio da supremacia da Constituio, o postulado
da unidade material do ordenamento jurdico, os direitos fundamentais como
princpios objetivos, o princpio da dignidade da pessoa, o princpio
constitucional da solidariedade e, por fim, o princpio da aplicao imediata dos
direitos fundamentais.
Diz o autor que no h como se eleger apenas um fundamento
constitucional, pois necessrio que a teoria da eficcia dos direitos
fundamentais esteja baseada em um conjunto de fundamentos constitucionais.
Elege como o argumento principal a dimenso objetiva dos direitos
fundamentais. 2
Ingo Sarlet diz que na doutrina ptria ainda so poucos os autores
que abordam o tema da dupla dimenso dos direitos fundamentais com
profundidade. Sustenta que em sentido subjetivo os direitos fundamentais
conferem ao titular de um direito fundamental a possibilidade de impor
judicialmente os seus interesses juridicamente tutelados perante o destinatrio.
J sob a tica objetiva os direitos fundamentais no so apenas os
direitos de defesa do indivduo contra atos do poder pblico, mas, alm disso,
so decises valorativas de natureza jurdico-objetiva da Constituio, com
eficcia em todo o ordenamento jurdico, fornecendo diretrizes para os poderes
executivo, legislativo e judicirio. 3
O reconhecimento da dimenso objetiva dos direitos fundamentais
trouxe vrias inovaes constitucionais de grande relevncia, como por
exemplo: a eficcia irradiante dos direitos fundamentais para toda a esfera do
direito e a aplicabilidade direta e a eficcia imediata dos direitos fundamentais.4Ao se abordar a aplicao dos direitos fundamentais nas relaes
privadas importante que se faa, ainda que superficialmente, uma anlise
histrica sobre o tema, para tanto, um exame sobre o famoso caso LUTH
essencial.
2STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo:
Malheiros, 2004. p. 100.3 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. Livraria do Advogado: Porto
Alegre, 2006. 6 ed. p. 1674BONAVIDES, Paulo. Cursode Direito Constitucional. Malheiros: So Paulo, 2002. 12 ed. p.
541.
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No caso julgado em 15 de janeiro de 1958, Erich Lth, presidente do
Clube de Imprensa de Hamburgo, estimulou o boicote de um filme dirigido por
Veit Harlan, diretor de cinema com fortes ligaes ao regime nazista. A
empresa produtora do filme obteve deciso determinando a interrupo de tal
conduta, com fundamento de que tal ao violaria o art. 826 do Cdigo Civil
Alemo. O mencionado dispositivo afirmava que quem, de forma atentatria
aos bons costumes, infligisse dano a outrem, estaria obrigado a reparar os
danos causados. Houve recurso e o Tribunal Constitucional Federal reformou a
deciso, em nome do direito fundamental liberdade de expresso, que
deveria pautar a interpretao do Cdigo Civil. O argumento utilizado foi o de
que no se pode fazer uma interpretao das clusulas gerais de direito civil
sem analisar os valores constitucionalmente protegidos.
A partir desse julgamento o Tribunal Alemo passou por uma
renovao ideolgica, como por exemplo, a defesa da tese de que os direitos
fundamentais possuem dupla dimenso e a existncia de uma eficcia
irradiante dos direitos fundamentais. 5
Por ser bastante complexa, a tese da horizontalidade dos direitos
fundamentais deu origem a um grande nmero de teorias no direito
constitucional, tanto nacional quanto estrangeiro, que merecem destaque.
A dificuldade est no fato de que, mesmo que se reconhea a
eficcia horizontal dos direitos fundamentais, no se pode simplesmente aplic-
los s relaes entre os particulares do mesmo modo que se aplicam s
relaes entre o indivduo e o Estado.
Existem peculiaridades que devem ser respeitadas, por isso as
teorias formuladas buscam explicar como e em que medida os direitos
fundamentais, tanto podem servir de proteo ao indivduo perante o Estado,quanto perante outros particulares.
A doutrina do state action
5 BARROSO, Lus Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do Direito. O
triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1nov. 2005. Disponvel em: . Acesso em: 21out. 2008.
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Essa teoria advm do direito norte-americano e defende que os
particulares no esto vinculados pelos direitos fundamentais previstos na
Constituio dos Estados Unidos da Amrica. Apenas o poder pblico estaria
obrigado a observar os direitos fundamentais em suas relaes com os
particulares, com exceo da 13 Emenda, que proibiu a escravido.
Essa teoria encontrou resguardo nos Estados Unidos, pois a
Constituio desse pas bastante liberal e no tem interesse em tratar das
relaes sociais. Situao diversa ocorre com a Constituio Federal de 1988,
que, por ser prolixa, alm de regular a relao entre o Estado e o cidado,
regula tambm as relaes sociais.
O argumento mais forte dessa doutrina a proteo da autonomia
privada, que seria bastante prejudicada caso os direitos fundamentais fossem
aplicados tambm s relaes entre particulares.
A doutrina do state action tem incio com os Civil Rights Cases
julgados pela Suprema Corte norte-americana em 1883. Ocorre que, aps o fim
da escravido, o Congresso norte-americano aprovou vrias sanes contra
aqueles que discriminassem um indivduo em razo de sua raa. Daniel
Sarmento6, em digresso histrica, afirma que:
No entanto, a Suprema Corte, apreciando cinco casos depessoas indiciadas por terem cerceado o acesso de negrosem hotis, teatros e trens, afirmou a inconstitucionalidade danorma, sob o argumento de que a Unio tinha recebido daConstituio apenas a competncia para editar normasimpedindo as discriminaes praticadas pelos prpriosEstados, mas no aquelas cometidas por indivduos eempresas privadas.
Nesses julgamentos ficou firmada a tese de que s restries
impostas pelos direitos fundamentais aplicavam-se apenas ao poder pblico.
Entretanto, em meados de 1940 a Suprema Corte norte-americana comeou a
mitigar a teoria do state action, dando relevncia chamada public function
theory, que estabelece que, se os particulares exercerem atividades tpicas do
6 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2008. 2 ed. p. 190.
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poder pblico, tambm estaro sujeitos eficcia horizontal dos direitos
fundamentais. 7
Wilson Steinmetz explica como realizada a relativizao da state
action, para que se possa prolongar a utilizao dos direitos fundamentais em
casos que originariamente no admitiriam a eficcia horizontal8:
O estratagema judicial simples e inteligente: amplia-se ocampo de abrangncia do conceito do state actionoperandoeficcia de direitos fundamentais nas hipteses em que umparticular demanda contra outro particular alegando violaode direito fundamental individual, e ao mesmo tempo,preserva-se a tese segundo a qual os direitos fundamentaisvinculam somente os poderes pblicos.
Mesmo com a relativizao da state actionpode-se afirmar que essa
teoria ainda bastante prestigiada pela Suprema Corte norte-americana, que,
entretanto, defende que o Estado no deve encorajar, em nenhuma hiptese, o
desrespeito aos direitos fundamentais nas relaes entre os particulares. 9
Eficcia mediata ou indireta dos direitos fundamentais
Essa teoria, que se tornou dominante na doutrina germnica, foi
formulada por Gnter Drig em meados da dcada de cinqenta, tendo sidoutilizada pelo Tribunal Constitucional Alemo no caso Lth. Pela prpria
terminologia da teoria percebe-se que ela nega a aplicao direta dos direitos
fundamentais nas relaes privadas, sob o fundamento de que o direito privado
restaria descaracterizado pelo excessivo cerceamento da autonomia da
vontade.
Segundo Wilson Steinmetz a eficcia mediata dos direitos
fundamentais pode ser resumida tomando-se como base quatro idiasprincipais. A primeira defende que as normas de direitos fundamentais
produzem eficcia nas relaes entre os particulares apenas se os parmetros
utilizados forem os de direito privado, isso para que seja preservada a
autonomia da vontade nas relaes entre particulares privadas.
7SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. 2 ed. P. 190.8 STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo:
Malheiros, 2004. p. 179.9SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. 2 ed. p. 192.
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A segunda premissa diz que a eficcia horizontal deve antes ser
concretizada pelo legislador, para que, posteriormente, se necessrio, ser
aplicada pelo juiz.
J a terceira idia afirma que o legislador tem a funo de regular os
direitos fundamentais, para que se possa delimitar o seu contedo e alcance
nas relaes entre particulares.
Afirma Gilmar Mendes10:
Segundo esse entendimento, compete, em primeira linha, aolegislador a tarefa de realizar ou concretizar os direitosfundamentais no mbito das relaes privadas. Cabe a estegarantir as diversas posies fundamentais relevantes
mediante a fixao de limitaes diversas.Um meio de irradiao dos direitos fundamentais para asrelaes privadas seria as clusulas gerais (Generalklauseln),que serviriam de porta de entrada (Einbruchstelle) dos direitosfundamentais no mbito do direito privado.
Por fim, diante do caso concreto, se no houver regulamentao
legislativa, cabe ao juiz, atravs de interpretao e aplicao das normas de
direito privado, conferir eficcia horizontal aos direitos fundamentais.
Preferencialmente o magistrado deve utilizar as clusulas gerais, completando-
as com os valores que serviram de fundamento aos direitos fundamentais. 11
Wilson Steinmetz diz ainda que os defensores dessa teoria alegam
que os direitos fundamentais no ingressam nas relaes jurdicas privadas
como direitos subjetivos que possam ser invocados por um particular frente ao
outro, mas como normas objetivas de princpio.
Eficcia imediata ou direta dos direitos fundamentais
A teoria da eficcia imediata foi formulada, tambm na
Alemanha, por Hans Carl Nipperdey. Todavia, em seu pas de origem teve
pouca utilizao, diversamente do que ocorreu na Itlia, Portugal e Espanha,
sendo que sua influncia crescente no meio jurdico.
10 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. So
Paulo: Saraiva, 2004. p. 125.11STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo:
Malheiros, 2004. p. 137/138.
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Segundo Jos Carlos Vieira de Andrade12:
Os direitos fundamentais so tambm normas de valor quedevem valer para toda a ordem jurdica, isto , tambm para o
direito privado. A dignidade humana continua a ser o ponto departida, mas no como liberdade do indivduo isolado e, sim,como livre desenvolvimento da personalidade de homenssolidrios integrados numa sociedade e responsveis por ela.
Essa doutrina atribui aos direitos fundamentais uma dimenso
objetiva e outra subjetiva, bem como defende que possuem eficcia em todo o
ordenamento jurdico. Todavia, a diferena bsica est no fato de que a teoria
da eficcia imediata ampara a tese de aplicao direta dos direitos
fundamentais nas relaes privadas, sendo que essa aplicao no estcondicionada mediao dos poderes pblicos. 13
Assim, para os defensores dessa teoria os direitos fundamentais tm
eficcia direta nas relaes de mbito privado, entretanto o caso concreto deve
ser analisado para que se faa a ponderao de interesses entre o direito
fundamental em questo e a autonomia privada.
A liberdade individual deve ser respeitada, bem como as
particularidades das relaes privadas devem ser levadas em considerao naresoluo de um conflito, sendo que os direitos fundamentais devem ser
observados tambm nesses casos.
Teoria dos deveres de proteo
A teoria dos deveres de proteo vem sendo defendida por um
importante grupo de doutrinadores alemes, tendo como premissas a idia deque s o Estado estaria vinculado aos direitos fundamentais, bem como de que
cabe somente a ele proteger os direitos fundamentais dos particulares em
relaes privadas.
Essa teoria defende que o Estado tem a obrigao no apenas de
privar-se de infringir os direitos fundamentais dos particulares, mas tambm de
12 Andrade, Jos Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no mbito das
relaes entre particulares. In: Sarlet, Ingo Wolfgang (Coord.) Constituio, Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 279.13 STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo:Malheiros, 2004. p. 167.
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proteg-los de potenciais leses e ameaas advindas de particulares no seio
social.
Daniel Sarmento sustenta que a teoria dos deveres de proteo
uma variao da teoria da eficcia indireta e diz que o problema dessa doutrina
reside no fato de que a proteo dos direitos fundamentais nas relaes
privadas fica vinculado ao legislador ordinrio. 14
Aps a anlise das diversas teorias que versam sobre a eficcia dos
direitos fundamentais nas relaes entre particulares pode-se prosseguir ao
estudo da eficcia horizontal sob a tica da doutrina e jurisprudncia brasileira.
2. POSICIONAMENTOS DOUTRINRIOS E APLICAO DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS S RELAES PRIVADAS NO DIREITO BRASILEIRO
Como o tema proposto no presente artigo cientfico trata dos direitos
fundamentais, so essenciais algumas consideraes acerca dos princpios,
uma vez que, muitas vezes, para aplicarem-se tais direitos usa-se como
embasamento a teoria dos princpios e no somente as leis.
Diz Paulo Bonavides que sem aprofundar a investigao acerca da
funo dos princpios nos ordenamentos jurdicos no possvel compreender
a natureza, a essncia e os rumos do constitucionalismo contemporneo 15.
A sociedade evolui muito rapidamente no havendo como o Direito
acompanh-la prontamente. Os princpios servem justamente para que se
possa ter um entendimento atual das situaes, sem ter, necessariamente, de
mudar ou elaborar novas leis. inquestionvel que qualquer sistema jurdico
se sustente sobre um conjunto de princpios; assim no fosse, tornar-se-ia
impossvel trabalhar com a idia de sistema jurdico16.
14SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. 2 ed. p. 220.15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. So Paulo: Malheiros, 2002,
p. 231.16 ROTHENBURG, Walter Claudius. Princpios constitucionais. Porto Alegre: Fabris, 2003, p.51.
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Paulo Bonavides17 cita Jean Boulanger como o primeiro a fazer um
estudo analtico e classificatrio sobre tipos e variedades de princpios de
Direito. Os princpios, uma vez afirmados e aplicados na Jurisprudncia, so os
materiais graas aos quais pode a doutrina edificar, com segurana,
construes jurdicas. O enunciado de um princpio no escrito a
manifestao do esprito de uma legislao.
Conforme Marco Aurlio de Mello, princpio jurdico o
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposio
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o esprito e
servindo de critrio para sua exata compreenso e inteligncia 18.
Canotilho define princpios como os fundamentos de regras
jurdicas que tm uma idoneidade irradiante que lhes permite ligar ou cimentar
objetivamente todo o sistema constitucional. O autor classifica os princpios
em quatro tipos: jurdicos fundamentais que so os princpios historicamente
objetivados e progressivamente introduzidos na conscincia jurdica e que
encontram uma recepo expressa ou implcita no texto constitucional.
Princpios constitucionalmente conformadores so aqueles princpios
constitucionais que explicitam as valoraes polticos fundamentais do
legislador constituinte e onde refletida a poltica ideolgica da constituio.
O terceiro tipo so os princpios constitucionais impositivos com
normas programticas, definidoras de fins ou tarefas. Por ltimo, tm-se os
princpios garantia que so aqueles que visam instituir direta e imediatamente
uma garantia aos cidados19.
Os princpios devem ser reconhecidos como autnticas normas
jurdicas, servindo de parmetro constitucionalidade das normas. Norberto
Bobbio20 expe que
17 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. So Paulo: Malheiros, 2002,p. 239.
18MELLO, Marco Aurlio Mendes de Farias. Liberdade de expresso. In: ROCHA, FernandoLuiz Ximenes; MORAES, Filomeno. (Coord.). Direito constitucional contemporneo:estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.450.
19 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. 3. ed. Lisboa:
Almedina, 1999. p.20 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico. 10. ed. Braslia: Editora Universidadede Braslia, 1999, p. 158.
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Para mim no h dvida: os princpios gerais so normas como todasas outras [...]. Para sustentar que os princpios gerais so normas, osargumentos so dois e ambos so vlidos: antes de mais nada, seso normas aquelas das quais os princpios gerais so extrados,atravs de um procedimento de generalizao sucessiva, no se vpor que no devam ser normas tambm eles: se abstraio da espcie
animal obtenho sempre animais e no flores ou estrelas. Em segundolugar, a funo para qual so extrados e empregados a mesmacumprida por todas as normas, isto , a funo de regular um caso.
Uma discusso relevante nessa seara quanto distino entre
regras e princpios e como solucionar um eventual conflito de normas. Os
princpios so normas jurdicas dotadas de maior abstrao e podem ser
aplicados em graduao, o que no ocorre com as regras.
Humberto vila apresenta trs critrios de diferenciao entre regras
e princpios. Primeiro, enquanto as regras prescrevem com maior exatido o
comportamento a ser tomado, os princpios so finalsticos, a saber,
prescrevem um estado ideal das coisas que s ser realizado se determinado
comportamento for adotado. Segundo, as regras exigem uma correlao entre
a norma e o fato, j quanto aos princpios deve haver correlao entre a
conduta e o estado ideal das coisas. E, por ltimo, os princpios no tm a
pretenso de gerar uma soluo especfica, mas de contribuir para a tomada
de decises. J as regras tm a pretenso de gerar uma soluo particular
para o conflito entre razes21.
As regras e os princpios tambm se diferenciam no que se refere
soluo do conflito entre normas. Quando ocorre um conflito entre regras,
geralmente uma delas precisa ser sacrificada para que a outra possa ser
aplicada. No conflito de princpios no h excluso de nenhuma das normas,
devendo o intrprete fazer a ponderao entre elas, verificando qual
prevalecer naquele caso concreto22.
No entendimento de Jos Afonso da Silva pode-se resumir a teoria
dos princpios afirmando que ela chega presente fase da Cincia Jurdica
com alguns resultados consolidados como a passagem dos princpios da
especulao metafsica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito
e com baixssima densidade normativa.
21 VILA, Humberto. Teoria dos princpios: da definio aplicao dos princpios jurdicos.
4. ed. So Paulo: Malheiros, 2004, p. 63-70.22GEBRAN NETO, Joo Pedro. A aplicao imediata dos direitos e garantias individuais.So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 94.
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E, ainda, a suspenso da distino clssica entre princpios e
normas, o deslocamento dos princpios da esfera da iusfilosofia para a esfera
da Cincia Jurdica, a proclamao de sua normatividade, a perda de seu
carter de norma exclusivamente programtica, o reconhecimento definitivo de
sua positividade e concretude por obra, sobretudo das Constituies, e, por
ltimo, a total hegemonia e relevncia dos princpios23.
A nova viso do direito privado aps a Carta Magna de 1988.
A Constituio Federal de 1988 trouxe consigo diversas inovaes
jurdicas para o direito brasileiro. Isso se deve, principalmente, ao
constitucionalismo ps-segunda guerra mundial que focou sua ateno nas
idias de democracia, e, por conseguinte, nos direitos fundamentais.
Essa nova forma de se entender o direito constitucional, ou
neoconstitucionalismo como dizem tantos autores , segundo Luis Roberto
Barroso, um conjunto amplo de transformaes ocorridas no Estado e no
direito constitucional, tendo como marco histrico a formao do Estado
constitucional de direito, que se consolidou no final do sculo XX. O marco
filosfico dessa nova teoria o ps-positivismo, marcado principalmente pelos
direitos fundamentais e a observncia da tica no Direito. Por fim, o marco
terico do neoconstitucionalismo um conjunto de idias como: a fora
normativa da Constituio, a expanso da jurisdio constitucional e uma nova
interpretao da Constituio. 24
A nova dogmtica da interpretao constitucional, trazida pelo
neoconstitucionalismo, provocou uma mudana profunda na maneira de se ver
o direito privado no Brasil. Tome-se como exemplo o caso dos direitosfundamentais que h algumas dcadas tinham, muito claramente, a funo
nica de proteger o indivduo perante os abusos do Estado, sendo que
23SILVA, Jos Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. So Paulo:Malheiros, 2001, p. 178.
24BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalizao do Direito (o
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponvel em:http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/NEO.pdf. Material da 8 aula da Disciplina
Novos Aspectos da Teoria do Direito, ministrada no Curso de Especializao Telepresencial eVirtual em Funo Social do Direito: processo, constituio e novos direitos UNISUL/REDELFG. p. 9.
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atualmente esto lhe sendo conferidos tambm a atribuio de proteger os
indivduos entre si.
Com a eficcia horizontal dos direitos fundamentais nas relaes
privadas refora-se a aplicao direta e imediata dos valores que esto na
Carta Magna, ficando superada a tradicional discusso doutrinria referente a
fora normativa da Constituio.
Segundo as palavras de Maria Celina Bodin de Moraes: 25
Assim, que qualquer norma ou clusula negocial, por maisinsignificante que parea, deve se coadunar e exprimir anormativa constitucional. Sob essa tica, as normas do direitocivil necessitam ser interpretadas como reflexo das normasconstitucionais. A regulamentao da atividade privada(porque regulamentao da vida cotidiana) deve ser, em todos
os seus momentos, expresso da indubitvel opoconstitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana.
Sob essa mesma tica, Daniel Sarmento sustenta que os direitos
fundamentais possuem uma eficcia irradiante, o que quer dizer que promovem
a humanizao da ordem jurdica exigindo que todas as normas sejam, no
momento da aplicao, reexaminadas pelo operador de direito com novas
lentes, priorizando a dignidade humana, a igualdade substantiva e a justia
social, presentes no texto constitucional26.Um fator que propiciou a maior observncia dos preceitos contidos
na Constituio Federal de 1988 pelo direito privado foi o aumento dos
microssistemas jurdicos, como o Cdigo de Defesa do Consumidor e o
Estatuto da Criana e do Adolescente. Isso fez com que o centro do direito
privado parasse de ser exclusivamente o direito civil, bem como fez aumentar
os pontos de contato entre o direito pblico e o direito privado.
A clssica distino entre direito pblico e direito privado foisuperada, j no traduz mais a realidade pela qual passa a sociedade, assim
25 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revistado Estado. Direito e Sociedade. Vol. I. 1991, publicao do Departamento de CinciasJurdicas da PUC Rio. Disponvel em: http://www.idcivil.com.br/pdf/biblioteca44.pdf. Materialda 1 aula da Disciplina Novos Rumos do Direito Privado Contemporneo, ministrada no Cursode Especializao Telepresencial e Virtual em Funo Social do Direito: processo, constituioe novos direitos UNISU/REDE LFG. p. 5.26
SARMENTO, Daniel. A dimenso objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de umateoria. In: SAMPAIO, Jos Adrcio Leite. (Coord.) Jurisdio constitucional e os direitosfundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 279.
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como tambm ficou desconexa dos rumos pelos quais seguiu a cincia
Jurdica.
O Cdigo Civil de 2002, seguindo os moldes da Constituio Federal,
chegou trazendo consigo diversas discusses jurdicas. No faltou quem
dissesse que o novo Cdigo Civil j nasceu fora de poca, uma vez que a
tendncia seria, cada vez mais observar os princpios e valores constitucionais.
Entretanto, deve-se reconhecer que o Cdigo Civil de 2002 foi
inovador ao prever as chamadas clusulas gerais, permitindo que o intrprete
introduza, perante as regras de direito privado, os princpios e valores adotados
pela Constituio Federal. 27
Ao utilizar os conceitos abertos o intrprete tem a oportunidade de
adequar as situaes jurdicas com a evoluo da sociedade. Todavia, essa
prtica desperta o maior temor dos que criticam a constitucionalizao do
direito privado, que o limite estatal autonomia privada.
Segundo Paula Sarno Braga: 28
A autonomia privada poder que se atribui aos sujeitos dedireito para livremente regrar suas relaes jurdicasnegociais, definindo seu contedo e seus efeitos. Sucede que
a autonomia privada no pode nem deve ser considerada emabstrato, mas em relao ao especfico ordenamento jurdicono qual estudada e experincia histrica que, de vriasformas, coloca sua exigncia.
Por isso, muito mais que defender cegamente a autonomia privada
necessrio que se criem meios para que ela possa ser exercida em sua
plenitude, o que demanda que ela no atinja direitos fundamentais alheios de
outros indivduos. Mesmo porque, na maioria das vezes, h grande
27 STOCKINGER, Francisco Tiago. Selees em prisma para o STJ. Prismas do Direitocivil-constitucional PUCRS/CNPq. Vol. 1. Disponvel em:http;//bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/3177/1Direitos_Fundamentais_Codifica%C3%A7%C3%A3o.pdf. Material da 1 aula da Disciplina Novos Rumos do Direito PrivadoContemporneo, ministrada no Curso de Especializao Telepresencial e Virtual em FunoSocial do Direito: processo, constituio e novos direitos UNISU/REDE LFG. p. 9.28BRAGA, Paula Sarno. Direitos fundamentais como limites autonomia privada. Obra:Aplicao do Devido Processo Legal s Relaes Particulares. Salvador: 2007, 232 p.Dissertao (Mestrado em Direito) Universidade Federal da Bahia. Material da 4 aula daDisciplina Processo e Constituio: Novos Rumos, ministrada no Curso de Especializao
Telepresencial e Virtual em Funo Social do Direito: processo, constituio e novos direitos UNISUL/REDE LFG. p. 2.
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desigualdade entre os indivduos nas relaes particulares, seja econmica
seja social.
A incidncia dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares noBrasil.
Analisando os pressupostos da Constituio Federal de 1988
percebe-se que houve um grande apelo defesa dos direitos fundamentais e,
por isso mesmo, difcil imaginar que tamanha proteo deu-se
exclusivamente para limitar o poder do Estado frente ao indivduo.
A tese da aplicao dos direitos fundamentais nas relaes privadas
recente, motivo pelo qual somente agora os doutrinadores comeam a se
debruar sobre o assunto.
Algumas linhas acima foram expostas as principais teorias acerca da
aplicao dos direitos fundamentais nas relaes privadas. Para Daniel
Sarmento fica claro que a teoria adotada no Brasil a eficcia direta e
imediata, no dependendo da atuao do legislador ordinrio. Diz o autor: 29
No hesitamos em afirmar que a eficcia dos direitos
individuais na esfera privada direta e imediata noordenamento jurdico brasileiro. Esta, para ns, no s umaquesto de direito, mas de tica e justia. Ademais, asobjees lanadas contra esta concepo nos parecem todasimprocedentes.
Para o autor nenhum dos argumentos contra a eficcia direta e
imediata encontra suporte na ordem constitucional brasileira, sendo que para
que haja autonomia privada efetiva necessrio que existam condies para
que ela possa ser exercida.Essas condies exigem que os direitos fundamentais sejam
aplicados nas relaes privadas, uma vez que a autonomia privada no ser
completa enquanto os particulares estiverem sujeitos a constrangimentos
praticados por outros particulares que simplesmente no respeitam os direitos
alheios.
29SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. 2 ed. p.239
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No mbito da jurisprudncia brasileira vale colacionar dois julgados
do Supremo Tribunal Federal que aplicam os direitos fundamentais nas
relaes privadas, isso necessrio para que se possa ter uma viso prtica
do tema.
No Recurso Extraordinrio 201.819 do Estado do Rio de Janeiro,
cuja relatora foi a Ministra Ellen Gracie, foi defendido que a excluso de scio
deve respeitar as garantias do contraditrio e da ampla defesa. Na ementa
consta
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIOBRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSO DE SCIOSEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DOCONTRADITRIO. EFICCIA DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS NAS RELAES PRIVADAS. RECURSODESPROVIDO. I. EFICCIA DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS NAS RELAES PRIVADAS. As violaesa direitos fundamentais no ocorrem somente no mbito dasrelaes entre o cidado e o Estado, mas igualmente nasrelaes travadas entre pessoas fsicas e jurdicas de direitoprivado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pelaConstituio vinculam diretamente no apenas os poderespblicos, estando direcionados tambm proteo dosparticulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCPIOS
CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES AUTONOMIAPRIVADA DAS ASSOCIAES. A ordem jurdico-constitucional brasileira no conferiu a qualquer associaocivil a possibilidade de agir revelia dos princpios inscritosnas leis e, em especial, dos postulados que tm porfundamento direto o prprio texto da Constituio daRepblica, notadamente em tema de proteo s liberdades egarantias fundamentais. O espao de autonomia privadagarantido pela Constituio s associaes no est imune incidncia dos princpios constitucionais que asseguram orespeito aos direitos fundamentais de seus associados. Aautonomia privada, que encontra claras limitaes de ordem
jurdica, no pode ser exercida em detrimento ou comdesrespeito aos direitos e garantias de terceiros,especialmente aqueles positivados em sede constitucional,pois a autonomia da vontade no confere aos particulares, nodomnio de sua incidncia e atuao, o poder de transgredirou de ignorar as restries postas e definidas pela prpriaConstituio, cuja eficcia e fora normativa tambm seimpem, aos particulares, no mbito de suas relaesprivadas, em tema de liberdades fundamentais. III.SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADEQUE INTEGRA ESPAO PBLICO, AINDA QUE NO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARTER PBLICO. EXCLUSO
DE SCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSOLEGAL. APLICAO DIRETA DOS DIREITOS
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FUNDAMENTAIS AMPLA DEFESA E AOCONTRADITRIO. As associaes privadas que exercemfuno predominante em determinado mbito econmico e/ousocial, mantendo seus associados em relaes dedependncia econmica e/ou social, integram o que se podedenominar de espao pblico, ainda que no-estatal. A UnioBrasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem finslucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assumeposio privilegiada para determinar a extenso do gozo efruio dos direitos autorais de seus associados. A exclusode scio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia deampla defesa, do contraditrio, ou do devido processoconstitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual ficaimpossibilitado de perceber os direitos autorais relativos execuo de suas obras. A vedao das garantiasconstitucionais do devido processo legal acaba por restringir aprpria liberdade de exerccio profissional do scio. O carter
pblico da atividade exercida pela sociedade e a dependnciado vnculo associativo para o exerccio profissional de seusscios legitimam, no caso concreto, a aplicao direta dosdireitos fundamentais concernentes ao devido processo legal,ao contraditrio e ampla defesa (art. 5, LIV e LV, CF/88). IV.RECURSO EXTRAORDINRIO DESPROVIDO.
Essa deciso, que ordenou a aplicabilidade dos direitos
fundamentais em uma relao privada, foi importante, sobretudo, pelo fato de
ter sido a primeira a trazer, abertamente, a discusso sobre o tema no
Supremo Tribunal Federal.
Outra deciso que tratou do tema veio do julgamento do Recurso
Extraordinrio 161243-6 do Distrito Federal em que foi decidido que um
trabalhador brasileiro, funcionrio de empresa de aviao francesa, tem os
mesmos direitos trabalhistas assegurados aos funcionrios franceses. O
Supremo Tribunal Federal assim decidiu
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCPIO DAIGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADODE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTO DO PESSOALDESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADORESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. CF,1967, art. 153, 1; CF, 1988, art. 5, caput.I Ao recorrente, por no ser francs, no obstante trabalharpara empresa francesa, no Brasil, no foi aplicado o Estatutodo Pessoal da Empresa, que concede vantagens aosempregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregadode nacionalidade francesa. Ofensa ao princpio da igualdade:
(CF, 1967, art. 153, 1; CF, 1988, art. 5, caput).
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II A discriminao que se baseia em atributo, qualidade, notaintrnseca ou extrnseca do indivduo, como o sexo, a raa, anacionalidade, o credo religioso, etc., inconstitucional.Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg) PR, Clio Borja,RTJ 119/465.
Em nome do princpio da igualdade foi decidido que o trabalhador
brasileiro teria as mesmas vantagens trabalhistas que o trabalhador francs, ou
seja, o direito fundamental do empregado prevaleceu sobre as normas
contratuais e a empresa teve que igual-lo com o trabalhador francs.
O tema tanto era polmico que o recurso interposto pelo trabalhador
foi improcedente no Tribunal Regional do Trabalho e no Tribunal Superior do
Trabalho, sendo que coube ao Supremo Tribunal Federal inovar e aceitar a
argumentao de que a empresa estaria obrigada a observar o princpio daigualdade entre os seus funcionrios.
Analisando-se esses acrdos percebe-se que o Supremo Tribunal
Federal vem aceitando a aplicao direta dos direitos fundamentais na soluo
de conflitos entre pessoas privadas, independentemente da mediao do
legislador ordinrio. 30
Do exposto, abstrai-se que durante muito tempo os direitos
fundamentais tiveram como funo bsica limitar o poder estatal perante ocidado, todavia crescente o debate doutrinrio e jurisprudencial que defende
a eficcia horizontal desses direitos, ou seja, j no apenas o Estado que
deve observar os preceitos dos direitos fundamentais a serem cumpridos.
O fato da Constituio Federal de 1988 no se posicionar
expressamente sobre a eficcia horizontal dos direitos fundamentais dificulta
bastante o entendimento sobre o assunto. Por isso, surgiu um grande nmero
de teorias no direito constitucional, tanto nacional quanto estrangeiro, quetratam da horizontalidade dos direitos fundamentais.
Segundo a doutrina brasileira a teoria que melhor se coaduna com o
ordenamento jurdico brasileiro a teoria da eficcia direta dos direitos
fundamentais. Isso porque a CF/1988 trouxe uma nova viso do direito privado,
sendo que o neoconstitucionalismo contribuiu bastante para a nova
30SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008. 2 ed. p. 253.
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hermenutica constitucional, desaguando assim, na chamada
constitucionalizao do direito privado.
Por fim, depreende-se que a aplicao direta dos direitos
fundamentais necessria para reafirmar os valores contidos na Constituio
Federal de 1988, no sentido de proteger o indivduo no somente do poder
pblico, como tambm de seus pares.
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