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Alexandre Jordão Baptista
Matemática e Conhecimento na República de Platão
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Puc – Rio como requisito parcial para obtenção do título de doutor em filosofia.
Orientador: Profª Maura Iglésias
Rio de Janeiro Novembro de 2006
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Alexandre Jordão Baptista
“Matemática e conhecimento na República de Platão”
Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maura Iglésias Orientadora
Departamento de Filosofia da PUC – Rio
Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues UFRJ/IFCS
Prof. Fernando Décio Porto Muniz UFF
Prof. Edson Peixoto de Resende Filho Gama Filho
Profa. Maria Inês Sena Anachoreta PUC – Rio
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e de Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 30 de Novembro de 2006
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.
Alexandre Jordão Baptista
Graduou-se em Filosofia na PUC - Rio em 1999. Obteve o título de Mestre em Filosofia na PUC - Rio em 2002. Lecionou Filosofia no Ensino Médio. Participou de diversos congressos de Filosofia no país. Ficha Catalográfica CDD: 100
Baptista, Alexandre Jordão Matemática e conhecimento na República de Platão / Alexandre Jordão Baptista ; orientadora: Maura Iglésias. – 2006. 113 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Filosofia da Matemática. 3. Teoria do Conhecimento. 4. Platão. 5. Dialética. 6. Hipótese. I. Iglesias, Maura. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
Agradecimentos À minha orientadora Profa. Dr. Maura Iglésia, pelas importantes contribuições e palavras de apoio. Ao CNPq e à PUC - Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter sido realizado. Aos professores que participaram da Comissão examinadora. Aos professores do Departamento de filosofia da PUC - Rio; aos meus colegas do programa de pós-graduação; e aos funcionários do Departamento, pela ajuda. A todos os meus amigos, especialmente Ludmila de Andrade e Gledson Teixeira, por todo apoio, paciência e compreensão. . Finalmente, à minha família, especialmente à minha mãe, pelo apoio e carinho, e aos meus irmãos.
Resumo
Baptista, Alexandre Jordão; Iglesias Maura. Matemática e Conhecimento
na República de Platão. Rio de Janeiro, 2007. 113p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A proximidade entre matemática e filosofia em Platão é algo historicamente
estabelecido e que pode ser constatado desde o primeiro contato com a sua obra e
com as linhas gerais de seu pensamento. Nesse sentido, encontramos em alguns
dos seus principais Diálogos, particularmente em A República, concepções sobre
a natureza da matemática relacionadas, sobretudo, à metodologia matemática. Na
República Platão aborda criticamente aspectos referentes ao método e ao status
epistemológico das disciplinas matemáticas em dois momentos. O primeiro no
Livro VI, na célebre passagem da Linha Dividida (509d – 511e), e o segundo no
Livro VII, por ocasião da descrição do programa de estudos preparatórios à
dialética (521c-534e) e, em ambos, considerando-se o que Platão diz em outras
oportunidades, o teor da crítica platônica surpreende. Na Linha, as disciplinas
matemáticas são descritas como formas de conhecimento intermediárias entre a
opinião e a dialética, a única a merecer o título de ciência legítima. No Livro VII
para ilustrar a distinção entre o conhecimento alcançado pelas disciplinas
matemáticas, de um lado, e pela dialética, de outro, é dito que apesar de apreender
alguma coisa da essência o matemático estaria para o dialético como aquele que
dorme e sonha está para aquele que está acordado e vivendo a realidade (533b –
534e). O objetivo desse trabalho, portanto, é investigar por que Platão considera
as matemáticas “ciências intermediárias” e qual a noção de “conhecimento” que
serve de critério para essa classificação.
Palavras-chave
Filosofia; Filosofia da Matemática; Teoria do Conhecimento; Platão; Dialética; Hipótese; Método.
Abstract
Baptista, Alexandre Jordão; Iglesias Maura. Mathematics and Knowledge
in the Plato’s Republic. Rio de Janeiro, 2007. 113p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The proximity between mathematics and philosophy in Plato is something
historically acknowledged and that can be verified from the first contact with his
work and with the general lines of his thought. Thus, one can find in some of his
main Dialogues, particularly in the Republic, conceptions on the nature of
mathematics mainly related to the mathematical methodology. In the Republic
Plato approaches critically aspects regarding the method and the epistemological
status of the mathematical disciplines in two moments. The first in Book VI, in the
famous fragment of the Divided Line (509d - 511e), and the second in Book VII,
while describing the program of preparatory studies to dialectics (521c-534e) and,
in both cases, considering what Plato says in other fragments, the character of
Plato’s criticism surprises. In the Line, the disciplines of mathematics are
described as a way of knowledge in-between opinion and dialectics, the last being
the only one entitled to be considered a legitimate science. In Book VII, in order to
show the distinction between the knowledge reached by mathematical disciplines,
on one side, and the dialectics, on another, it is stated that despite learning some
of the essence, the mathematician is for the dialectical as one who sleeps and
dreams is for those who are awake and living reality itself (533b 534e).
Therefore, the aim of this work is to investigate why Plato considers the
disciplines of mathematics "in-between sciences" and what notion of "knowledge"
was used as the criteria for that classification.
Keywords
Philosophy; Philosophy of the Mathematics; Theory of the Knowledge; Plato; Dialectics; Hypothesis; Method.
Sumário 1. Introdução 8 2. A Linha dividida: Rep. VI 509d-511e 17 3. A crítica de Platão aos matemáticos na Rep. VI 509d-511 27 3.1. A noção de “uJpotivqemai” em Platão 27 3.2. A noção de “uJpotivqemai”no Mênon e no Fédon 32 3.3. A noção de lovgon didovnai na passagem da Linha 44 3.4. O uso de imagens sensíveis pelos matemáticos 50 4. Conhecimento na República 56 4.1. A noção de Conhecimento do Livro X (601b – 602b) 56 4.2. República 474b – 480a : a diferença entre aquele que sonha e aquele que está desperto 61 5. A distinção entre diavnoia e novhsi" na passagem da Linha 71 5.1. A diavnoia 71 5.2. A novhsi" 79 6. Conclusão 105 7. Referências Bibliográficas 108
1
Introdução:
A proximidade entre matemática e filosofia em Platão é algo historicamente
estabelecido e que pode ser constatado desde o primeiro contato com a sua obra e
com as linhas gerais de seu pensamento. Não apenas os Diálogos estão repletos de
exemplos e noções extraídos do âmbito da matemática, como a singular
concepção platônica dos dois mundos o mundo das idéias e o mundo sensível
parece, do ponto de vista de sua intuição básica1, claramente inspirada no
progresso abstrato2 alcançado pela matemática grega da época de Platão, tanto no
que diz respeito à noção de entidades abstratas, fixas e autônomas servindo como
1 Segundo Aristóteles (Met. 987b9 – 13), Platão atribuía às Idéias (ijdeva") e às Formas o mesmo tipo de função que os pitagóricos atribuíam aos números e às figuras geométricas: modelos ou paradigmas das coisas particulares correspondentes. David Ross (Plato’s Theory of Ideas, Oxford 1951) aponta que tanto esse testemunho quanto um outro (Met. 1078b9 – 12) onde o estagirita afirma que Platão teria, ao fim da vida, identificado as Idéias a números devem ser relativizados não só por que nossa ignorância sobre a história do pitagorismo é profunda e que não há nenhum indício de que no tempo do jovem Platão os pitagóricos chamavam os números-modelos de eijvdh ou ijdevai, mas também por que tampouco há qualquer indício que Platão tenha visitado a Itália antes de 389 ou 388a.C., ou seja, antes de escrever os seus primeiros diálogos, e que em nenhum lugar de sua extensa obra Platão sugere que números-modelos têm alguma coisa a ver com a origem de sua teoria das Idéias. Para Ross, foi antes de tudo o ti estin socrático que levou Platão a reconhecer a existência dos universais como um classe distinta de entidades os quais são nomeados por ele com os termos eij'do" e ijdeva. 2 Cf. Rep. 525d: E, noto agora, depois de ter falado da ciência dos números, quanto ela é bela e
útiL em muitos aspectos, ao nosso propósito, contanto que seja estudada por amor ao saber, e não
para comerciar. Glauco — O que tanto admiras nela? Sócrates — O poder, de que acabo de
falar, de dar à alma um vigoroso impulso para elevá-la à região superior e fazê-la raciocinar
sobre os números em si, sem jamais admitir que se introduzam nos seus raciocínios números
visíveis e palpáveis.
9
paradigmas ou modelos das coisas particulares correspondentes, quanto em
relação ao método de investigação e de demonstração no qual o filósofo deve se
apoiar em seu esforço para alcançar um conhecimento verdadeiro3. Ao trabalhar
em geometria ou em aritmética, um matemático grego tinha claro que ele não
investigava diretamente as relações das coisas no cotidiano humano (o mundo
concreto), mas sim noções estáveis destas relações ― um idealizado mundo
perfeito de pontos, linhas, números etc.4 ― tomadas como realidades autônomas e
manejadas sem a necessidade de referência a qualquer realidade concreta por
detrás delas. Se durante o processo de suas investigações, os matemáticos
tivessem que se remeter permanentemente às peculiaridades das coisas reais,
então, em vez de uma ciência (métodos geométricos e aritméticos eficientes), nós
teríamos uma arte algoritmos simples, específicos, obtidos por meio de
tentativas e erros ou em nome de alguma intuição elementar. Os matemáticos do
Oriente Antigo pararam neste nível. Os gregos foram mais adiante. E foi esse
progresso abstrato que levou à criação de um instrumento extremamente eficiente:
a geometria euclidiana5.
O alto grau de abstração presente nas disciplinas matemáticas levou Platão a
considerá-las, entre todas as ciências, as que mais se aproximariam da dialética e
também a melhor preparação para esta. Assim como a dialética, as matemáticas
têm como objeto o ser eterno subtraído à esfera do devir; seus conceitos são
3 Ménon 86e – 87b 4 Em geometria linhas retas têm largura zero e pontos não têm nenhum tamanho. Tais coisas, no entanto, não existem na prática cotidiana. Nela, em vez de linhas retas nós temos faixas mais ou menos regulares, em vez de pontos, manchas de várias formas e tamanhos, etc. Cf. Rep. 510d–e: Então sabes também que os matemáticos utilizam figuras visíveis (oJrwmevnoi" eijvdesi) e
raciocinam sobre elas pensando (dianoouvmenoi) não nessas mesmas figuras, mas nos originais
que elas reproduzem. Os seus raciocínios baseiam-se no quadrado em si mesmo
(tou' tetragwvnou aujtou') e na diagonal em si mesma (diamvtrou aujth'"), e não naquela diagonal
que traçam; o mesmo vale para todas as outras figuras. Todas essas figuras que modelam ou
desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas águas, eles se utilizam como tantas
outras imagens, para tentar ver esses objetos em si mesmos, que, de outro modo, só podem ser
percebidos pelo pensamento (dianoivai). Da mesma forma, em aritmética não se estuda apenas algoritmos praticamente úteis, mas também um tipo de número sem qualquer significado concreto direto. Cf. Rep. 525c: Seria excelente, portanto, Glauco, impor este estudo por uma lei e persuadir
os que têm de desempenhar altas funções públicas a dedicarem-se à ciência do cálculo, não de
modo superficial, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números pela pura
inteligência; e a se dedicar a esta ciência não por interesse das vendas e das compras, como os
negociantes e os mercadores, mas da guerra, e para facilitar a conversão da alma do mundo da
geração para a verdade e a essência. 5 Cf. BOYER, Carl B.: História da Matemática. Trad. Elza F. Gomide. Ed. Edgard Blücher Ltda, São Paulo, 1974; HEATH, Thomas L.: A History of Greek Mathematics, vol. I. Oxford, London,1921). p. 285 - 315.
10
apreendidos pela mesma intuição intelectual que as Idéias e o conhecimento deles
possui a mesma origem, a reminiscência:
O que pensas tu, Glauco, que responderiam se alguém lhes
perguntasse: “Amigos, de que números estais a falar? Onde se encontram
as unidades, tais como as imaginais, todas iguais entre si, sem a menor
diferença, e que não são formadas de partes? (…)Penso que diriam que
estavam a falar de números que só se podem apreender pelo pensamento
(…); Rep. 527b: Não temos de admitir também isto? O quê? Que ela tem
por objeto o conhecimento do que existe sempre (tou' ajei; o[nto" gnwvsew"), e não do que nasce e perece. É fácil concordar, uma vez que a geometria é
o conhecimento do que existe sempre (tou' ga;r ajei; o[nto" hJ gewmetrikh; gnw'siv" ejstin).
(Rep. 526a)
Essa proximidade levou Platão a fazer de sua Academia, desde a fundação,
um centro de pesquisas e de estudos matemáticos extremamente engajado, cuja
reputação atraiu alguns dos mais ilustres matemáticos da época que encontravam
nela um local ideal para apresentar suas descobertas matemáticas, ao mesmo
tempo em que freqüentavam aulas de filosofia. Embora não se possa associar ao
próprio Platão nenhuma descoberta matemática original digna de nota6, sua
importância na história da matemática é sublinhada, sobretudo, por seu papel de
inspirador e guia no desenvolvimento da matemática enquanto uma ciência
sistemática pura, como testemunha a segunda parte do Prólogo ao Comentário do
primeiro livro dos Elementos de Euclides do neo-platônico Proclus7:
Depois deles [Hipócrates de Chio e Teodoro de Cirene] viveu Platão
que levou às matemáticas em geral, e à geometria em particular, a um
imenso progresso graças ao zêlo que dedica a elas, o qual é atestado em
seus escritos cheios de discursos matemáticos, e que, a cada instante,
despertam o ardor por essas ciências naqueles que se entregam à filosofia.
Nesse sentido, encontramos em alguns dos seus principais Diálogos, em
especial o Ménon, o Fédon, a República, o Filebo, o Teeteto, e a Carta VII,
concepções sobre a natureza da matemática relacionadas, sobretudo, à
metodologia matemática e à localização dos objetos matemáticos no interior de
uma pressuposta divisão do universo, que, em seu conjunto, configurariam uma 6 Entre os mais variados problemas tratados e abordados por ele e pelos membros da Academia estariam problemas tais como os poliedros regulares e semi-regulares, a construção de poliedros regulares, as médias geométricas entre dois quadrados e dois cubos, a duplicação do quadrado e do cubo, a divisão dos números em fatores, as medianas ou médias proporcionais, o método de construção dos triângulos retângulos de lados inteiros, os incomensuráveis, o “número geométrico” ou “número nupcial” e o par e o impar. Cf. Boyer, op. cit, p. 65. 7 Paul Tannery tentou reconstruir uma história da geometria pré-euclidiana a partir do que ele chamou de “resumo histórico” de Proclus que se encontra no segundo prólogo o qual foi traduzido por Tannery em seu livro La Géometrie Grecque (Arno Press, 1976) nas págs. 66-67. A nossa tradução para o português se baseia nessa tradução para o Francês.
11
espécie de “esboço” de uma filosofia da matemática8. Além dos Diálogos, a outra
fonte importante dessa “filosofia da matemática” platônica são as muitas
referências às doutrinas filosóficas de Platão encontradas nos textos de
Aristóteles, em especial na Metafísica, conhecidas como as doutrinas não escritas
(AGRAFOIS DOGMASIN)9. Além das concepções relacionadas à metodologia
matemática e à localização dos objetos matemáticos no interior de uma
pressuposta divisão do universo, Aristóteles atribui a Platão também concepções
relacionadas à geração (não temporal), no interior do reino das Idéias, dos
chamados números ideais, assim como concepções que defendem a explicação do
mundo sensível em termos de espaço e noções matemáticas e a concepção
segundo a qual todas as idéias são números.
No que se refere ao escopo dessa tese, investigaremos apenas as concepções
platônicas referentes à metodologia matemática e ao seu status epistemológico e,
incidentalmente, também às que localizam os objetos matemáticos no interior de
uma pressuposta divisão do universo. E isso por razões metodológicas. Elas são as
únicas que possuem, nos próprios Diálogos, uma base textual minimamente
satisfatória. As outras concepções se baseiam somente no testemunho de
Aristóteles (os dois últimos livros da Metafísica) e esse testemunho, como
defende a maioria dos comentadores, não é suficiente para levar a uma conclusão
correta de como essas teorias devem ser interpretadas10. De modo que, a ausência,
nos Diálogos, de uma referência explícita, não ambígua, tanto do ponto de vista
da doutrina, quanto da terminologia, torna essas teorias irrelevantes para o
propósito desse trabalho. 8 Segundo Brunschvicg (Les étapes de la philosophie mathématique. Presses Universitaires de France, Paris, 1947. p. 69), por exemplo, a filosofia platônica seria uma “filosofia matemática” no duplo sentido da expressão: de um lado, é uma “filosofia matemática”, na medida em que extrai das disciplinas matemáticas uma filosofia; de outro, é uma “filosofia da matemática”, na medida em que procura fundar a matemática numa filosofia. Cf. também WEDBERG, Anders. Plato’s
Philosophy of Mathematics. Stockholm. Almqvist & Wiksell, 1955. p. 9-21 e PRITCHARD, Paul. Plato’s Philosophy of Mathematics. Germany, Academia Verlag – Sankt Augustin, 1995 (International Plato studies: Vol. 5). 9 Expressão usada apenas uma vez por Aristóteles (Física, IV 2, 209b 11-17) para se referir aos ensinamentos orais que Platão ministrava na Academia. Além de Aristóteles, referências a esses ensinamentos são encontrados em comentadores antigos tais como Aristoxeno, Simplício, Teofrasto, Alexandre de Afrodísias, Sexto Empírico e Iâmblico e constituem o que se conhece como a tradição indireta de Platão (Cf. GUTHRIE, W.K.C., A History of Greek Philosophy, v. IV. Cambridge Univesity Press, London, 1980. p.1 – 7.); REALE, GIOVANNI. História da Filosofia
Antiga. Edições Loyola, São Paulo, 1994. p. 20 –30. 10 O centro da polêmica gira em torno do fato que as doutrinas mencionadas por Aristóteles, na maioria das vezes não apenas vão além, como também chegam mesmo a contradizer o que Platão declara explicitamente nos Diálogos. Cf. Wedberg loc.cit..
12
Entre os Diálogos mencionados, o locus classicus referente à metodologia
matemática é, sem dúvida, A República. Na República Platão aborda criticamente
aspectos referentes ao método e ao status epistemológico das disciplinas
matemáticas em dois momentos. O primeiro no Livro VI, na célebre passagem da
Linha Dividida (509d – 511e), e o segundo no Livro VII, por ocasião da descrição
do programa de estudos preparatórios à dialética (521c-534e) e, em ambos,
considerando-se o que Platão diz em outras oportunidades, o teor da crítica
platônica surpreende. Na Linha, as disciplinas matemáticas são descritas como
formas de conhecimento intermediárias entre a opinião (doxa) e a dialética, a
única a merecer o status de ciência (ejpisthvmh") legítima. No Livro VII para
ilustrar a distinção entre o conhecimento alcançado pelas disciplinas matemáticas,
de um lado, e pela dialética, de outro, é dito que apesar de apreender alguma coisa
da essência (to; ojvn) o matemático estaria para o dialético como aquele que dorme
e sonha está para aquele que está acordado e vivendo a realidade (533b – 534e):
Pelo menos, há um ponto que, creio, ninguém contestará: além dos
métodos que acabamos de examinar, existe outro, que procura apreender
cientificamente a essência de cada coisa. As demais artes ocupam-se apenas
dos desejos dos homens e dos seus gostos e estão voltadas por inteiro para a
produção e a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais.
Quanto aos que fazem parte da exceção e que, como dissemos, apreendem
algo da essência, a geometria e as artes que lhe são afins, vemos que só
conhecem o Ser por sonhos e que lhes será impossível ter dele uma visão
real enquanto considerarem intangíveis as hipóteses que não os tocam, pois
que vêem-se impossibilitados de explicar o motivo. Na verdade, quando se
toma por princípio algo que não se conhece e as conclusões e as
proposições intermediárias se compõem de elementos desconhecidos,
poderá semelhante raciocínio se tornar uma ciência?
(533b-c). Ocorre o mesmo com o Bem. Dize-me, Glauco: um homem que não
pode compreender a idéia do Bem, separando-a de todas as demais idéias,
e, como num combate, abrir caminho a despeito de todas as objeções,
esforçando-se por vencer as suas provas, não na aparência, mas na
essência; que não possa transpor todos esses obstáculos pela força de uma
lógica infalível, que não conhece nem o bem em si mesmo nem nenhum
outro bem, mas que, se apreende alguma imagem do bem, é pela opinião, e
não pela ciência, que o apreende: não dirás tu que ele passa a vida presente
em estado de sonho e sonolência e que, antes de despertar neste mundo, irá
para o Hades dormir o último sono? (534b-d)
Os argumentos de Platão para justificar esse status epistemológico
intermediário, tanto na passagem da Linha no Livro VI quanto na passagem do
Livro VII, se concentram, basicamente, em torno do que ele considera ser as duas
características metodológicas fundamentais do modo de proceder das disciplinas
13
matemáticas, tal como este era comumente concebido pelos seus contemporâneos:
o caráter dedutivo e o uso de imagens ou figuras sensíveis nas demonstrações
geométricas. Aqueles que se ocupam com a geometria, a aritmética e coisas desse
tipo (ta;" gewmetriva" te kai; logismou;"), diz Platão na passagem da Linha,
“supõem” (ujpoqevmenoi) os objetos de seus estudos ― números, figuras
geométricas, ângulos, etc. ― tomando essas suposições (ujpoqevsei") como
perfeitamente claras e evidentes para todo mundo e, portanto, sem necessidade de
qualquer “explicação” ou “justificação” (lovgo") ulterior, e, a partir delas se
encaminham, através de uma seqüência de deduções lógicas coerentes, em direção
à conclusão (teleuthvn) desejada se servindo, nesse processo, de imagens e
figuras sensíveis para representar os objetos de natureza inteligível com que
trabalham.
Essas características do modo de proceder das disciplinas matemáticas são
então contrastadas com o modo de proceder da dialética. O dialético, ao contrário,
trata suas hipóteses não como princípios (ajrcav") de uma dedução, mas realmente
como hipóteses, isto é, como pontos de partida ou de apoio para, no sentido
inverso, remontar em direção, não mais a algo simplesmente suposto, mas ao
princípio mesmo de tudo (panto;" ajrch;n), o princípio não-hipotético
(ajrch;n ajnupovqeton). Atingido esse princípio, o dialético, extraindo as
conseqüências decorrentes dele, só então se encaminha para conclusão
(teleuthvn), sem, no entanto, se servir, nesse processo nem no anterior, de
imagens ou de figuras sensíveis como os matemáticos, mas unicamente das idéias
(eijvdesin) das quais parte e nas quais chega.
À primeira vista não se tem claro o alcance da descrição de Platão. Trata-se
de uma crítica ou Platão está apenas descrevendo o que ele considerava ser, como
dissemos, as duas características metodológicas fundamentais do modo de
proceder das disciplinas matemáticas em sua época? Afinal, não é nenhuma
novidade que as ciências matemáticas, tanto na época de Platão como hoje,
partem de “princípios” que elas não procuram justificar. Mas, do ponto de vista
matemático, isso se explica por esses princípios serem considerados auto-
evidentes e cuja justificação é desnecessária à demonstração que se pretende, além
de matematicamente impossível. Da mesma forma, é verdade que o geômetra faz
uso de imagens ou figuras que ele traça sobre a areia ou o quadro-negro para fazer
14
suas demonstrações sem, no entanto, apoiar seu raciocínio sobre essas mesmas
imagens, mas nas noções abstratas que elas representam. Essa distinção é
perfeitamente familiar aos geômetras. Qualquer geômetra sabe muito bem que a
exatidão com que ele traça suas figuras não tem nenhuma importância desde que
ele permaneça de acordo com o que foi estabelecido no início.
O que nos leva a suspeitar de que há algo mais por detrás da descrição de
Platão é que ao contrastar o modo de proceder da matemática e o da dialética no
sentido de que ambos partem de “hipóteses” com a diferença de que o dialético,
ao contrário do matemático, toma suas hipóteses não como pontos de partida de
uma dedução, mas, no sentido inverso, em direção ao princípio que já não admite
hipóteses, o princípio não-hipotético (ajrch;n ajnupovqeton) e que, por isso, o
conhecimento do ser e do inteligível que se adquire pela dialética é mais claro do
que o que se adquire por meio das disciplinas matemáticas, Platão parece não
estar apenas descrevendo, mas também fazendo uma crítica ou uma censura11 ao
modo de proceder dos matemáticos, como se ele quisesse sublinhar que o
matemático não procede como deveria e que por conta disso, as noções ou
princípios supostos de que parte em seus raciocínios e que são tomados por ele
como coisas perfeitamente claras e evidentes para todo mundo e, portanto, sem
necessidade de qualquer “explicação” ou “justificação” (lovgo") ulterior,
permanecem, todavia, meras “hipóteses” enquanto uma tal demonstração (lovgo")
não for oferecida. E, de fato, na continuação da passagem, é dito textualmente que
os matemáticos não possuem a inteligência (nou'n) das noções que estudam,
embora essas noções possam se tornar inteligíveis (nohtw'n) quando apreendidas
junto ao princípio não-hipotético:
Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque tratas de
um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento
(qewrouvmenon) do ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela
ciência da dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron) que aquele que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais
possuem hipóteses como princípios (uJpoqevsei" ajrcai;). É certo que aqueles
(oij qewvmenoi) que se consagram às artes são obrigados a utilizar o
raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin). No entanto, visto que
nas suas investigações não apontam para um princípio (ajrch;n), mas partem
de hipóteses (ejx uJpoqevsewn), julgas que eles não têm a inteligência
(nou'n oujk ijvscein) dos objetos estudados, embora eles sejam inteligíveis
11 É o que apontam Suzanne Mansion. (L’objet des mathématiques et l’objet de la dialectique
selon Platon. in La Revue philosophique de Louvain 67, 1969) e Richard Robinson (Plato’s
Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 152).
15
(nohtw'n) quando apreendidos junto com um primeiro princípio. Parece-me
que denominas conhecimento discursivo (diavnoian), e não inteligência
(ouj nou'n), a geometria e outras ciências do mesmo gênero, considerando
esse conhecimento (diavnoian) intermediário entre a opinião (dovxh") e a
inteligência (nou'). (511c-d).
Essa impressão é reforçada pela passagem do Livro VII (533b-d) onde
Platão, depois de classificar e descrever as disciplinas, todas de caráter
matemático, propedêuticas ao estudo da dialética ― a ciência dos números
(ajriqmhtikh; kai; logistikh v), a geometria (gewmetriva), a esteriometria ou a
ciência que estuda os sólidos em si mesmos ou a dimensão de profundidade
(th;n bavqou" au[xh" mevqodon), a astronomia (ajstronomiva) e a música (mousikhv)
― declara que, apesar de apreenderem alguma coisa do ser (to; ojvn), essas
disciplinas só vêem ou conhecem o ser em sonhos (ojneipwvssw) e que
permanecerão assim enquanto considerarem as hipóteses de que partem como
intangíveis por não poderem demonstrá-las ou dar a razão delas (lovgon didovnai).
Pois, como poderia ser ciência o que toma como princípios uma coisa que não
conhece e deduz daí proposições intermediárias e conclusões?
Esse procedimento é novamente contrastado com o procedimento dialético
que é apresentado, então, como o único capaz de dar a razão (lovgon didovnai) das
hipóteses de que parte na medida em que se eleva até o princípio mesmo para
estabelecer solidamente suas conclusões. A passagem termina com uma referência
explícita à passagem da Linha:
Sócrates — Bastará, então, chamar ciência à primeira divisão, conhecimento discursivo à segunda, fé à terceira e imaginação à quarta; a duas últimas denominaremos opinião, e as duas primeiras, inteligência. A opinião terá por objeto a mutabilidade, e a inteligência, a essência. Devemos acrescentar que a essência está para a mutabilidade como a inteligência está para a opinião, a ciência para a fé e o conhecimento discursivo para a imaginação. Quanto a analogia dos objetos a que se aplicam estas relações e à divisão em dois de cada esfera, a da opinião e a do inteligível, deixemos isso, amigo, a fim de não nos lançarmos em discussões muito mais longas do que aquelas que tivemos.
(533e – 534a)
No que diz respeito ao problema que anima essa tese, as discussões giram
em torno das seguintes questões: Em que sentido princípios, auto-evidentes e
indemonstráveis para os matemáticos tornam-se, do ponto de vista de Platão,
simples ujpoqevsei"? Como devemos entender essa exigência de demonstração ou
justificação (lovgon didovnai) exigida para que as “hipóteses” matemáticas
16
adquiram inteligibilidade? Será que Platão está pondo em questão a validade das
disciplinas matemáticas, dizendo que seus princípios são falsos? Enfim, qual o
real sentido, se ela existe, da crítica de Platão?
Nesse sentido, começaremos apresentando e discutindo alguns problemas
envolvendo a célebre passagem da Linha dividida (Rep. VI 509d-511e). Depois
investigaremos o uso do verbo uJpotivqemai em Platão, em particular nas
ocorrências onde ele aparece dentro de um contexto matemático, a fim de poder
determinar o que Platão entende como o método hipotético usado pelos
matemáticos e a transposição que ele faz desse método para o contexto filosófico
na República.
A segunda parte de nosso trabalho se concentrará na investigação da
concepção platônica de conhecimento tal como ela é discutida em dois momentos
da República: a primeira no Livro V (474b – 480a) e a segunda no Livro X (601b
– 602b). Como complemento abordaremos a distinção entre as duas formas de
apreensão cognitiva reconhecidas por Platão como diretamente relacionadas ao
conhecimento (em oposição à opinião) e às Idéias (em oposição ao sensível): a
dianoia, relacionada ao modo de proceder das matemáticas, e a noesis,
relacionada à dialética e à filosofia. Nesse sentido, nossa investigação tentará
esclarecer em que consistiria, afinal, a distinção entre a diavnoia e a novhsi"? Será
que haveria uma diferença na natureza desses dois paqhvmata da alma? E no caso
de haver, como podemos compreendê-la?
2
A Linha dividida: Rep. VI 509d-511e.
O livro VI da Republica representa, na economia do diálogo, um momento
de transição. Depois de ter provado que o governo dos filósofos é o melhor e que
ele é realizável, dependendo, para isso, do consentimento popular e de dons
naturais dos futuros governantes (Rep. 502c), Sócrates passa a investigar por quais
estudos e por quais ocupações os naturais filosóficos deverão ser educados a fim
de se habilitarem ao governo da cidade ideal:
Sócrates — Muito bem! Já que chegamos, não sem dificuldade, a este
resultado, precisamos tratar do que se segue, isto é, de que maneira, por
quais estudos e por quais ocupações, formaremos os homens capazes de
guardar e manter a constituição e em que idade devemos consagrá-los a
isso. (Rep. 502d)
A passagem da Linha dividida (509d-511e) constitui justamente um dos 4
movimentos através dos quais Platão encaminha a investigação sobre o primeiro
ponto: as ciências apropriadas à formação dos futuros governantes. Os outros são
as igualmente célebres passagens da Analogia do Sol (507-509c) que a antecede, a
Alegoria da Caverna que a sucede (514a-521b), já no Livro VII, e, por fim, a
classificação e descrição das ciências propedêuticas ao estudo da dialética (521c-
534e). Essas 4 passagens tratam, cada uma à sua maneira, do dualismo entre
sensível e inteligível. Dualismo que as une estreitamente e que lhes serve de
18
estrutura comum na medida em que cada uma delas percorre essas duas esferas e
mostra como elas são ou podem ser conhecidas.
A passagem da Analogia do Sol (507-509c) parte desse dualismo e mostra
que, em cada um desses dois níveis (sensível e inteligível), a relação entre o
objeto e a faculdade cognitiva deriva de um terceiro elemento que a funda (Sol /
Idéia do Bem). Essa passagem já prefigura a subdivisão, que será levada a cabo na
passagem da Linha, nesses dois níveis na medida em que cada um deles é
iluminado ou não por esse terceiro termo. É assim que o olho pode apreender
distintamente os objetos iluminados pela luz do sol; mas ele pode também,
enfraquecido e como que cego, se fixar apenas nos objetos que a claridade dos
astros noturnos torna discretamente visíveis. No que diz respeito à alma, ela pode
tanto se dirigir aos inteligíveis (nohtav) iluminados pela verdade e pelo ser — que
lhes concede o Bem — quanto empreender esforços inúteis para discernir aquilo
que está obscurecido, a saber, o mundo do devir:
Sócrates: — Tu sabes, logicamente, que os olhos, quando contemplam
objetos cujas cores não são iluminadas pela luz do dia, mas pela claridade
dos astros noturnos, perdem a acuidade e parecem quase cegos, como se
não fossem providos de visão clara.
Adimanto: — Sei-o muito bem.
Sócrates: — Mas, quando se voltam para objetos que o Sol ilumina
(oJ h}lio" katalavmpei), enxergam distintamente (safw'") e mostram que são
providos de visão clara.
Adimanto: — Sem dúvida.
Sócrates: — Concebe, portanto, que se dá o mesmo a respeito da alma.
Quando ela fixa o olhar naquilo que a verdade (ajlhvqeiav) e o ser (to; o[n) iluminam, compreende-o (ejnovhsevn), conhece-o (e[gnw) e mostra que é
dotada de inteligência (nou'n e[cein faivnetai); mas, quando olha para
aquilo que está obscurecido (tw'/ skovtw/ kekramevnon), para o que nasce
(gignovmenovn) e morre (ajpolluvmenon), a sua vista fica embaçada, passa a
ter apenas opiniões (doxavzei), indo sem cessar de uma a outra e parece
desprovida de inteligência (nou'n oujk e[conti). (508c-d)
A passagem da Linha aprofunda o que é dito na analogia do Sol, tanto em
relação ao objeto quanto à faculdade de conhecimento. Retomando a distinção
entre gênero visível e gênero invisível, ela subdivide um e outro e, a cada uma das
quatro espécies assim obtidas, associa respectivamente quatro paqhvmata na alma.
Por fim ela ordena essas espécies pelo grau de claridade (ou obscuridade) na
medida em que seus objetos se relacionam mais ou menos com a verdade:
Sócrates — Do mesmo modo, pega uma linha cortada em dois segmentos
desiguais, representando um o gênero visível (oJrwmevnou gevnou"), o outro o
19
inteligível (nooumevnou), e corta de novo cada segmento respeitando a mesma
proporção (ajna; to;n aujto;n lovgon) ; terás então, classificando as divisões
obtidas conforme o seu grau relativo de clareza (safhneivai) ou de
obscuridade (asafeivai), no mundo visível, um primeiro segmento, o das
imagens. Denomino imagens (eijkovne") primeiramente às sombras, depois os
reflexos que se vêem nas águas ou na superfície dos corpos opacos, polidos
e brilhantes, e a todas as representações semelhantes. Compreendes?
Glauco — Lógico que sim.
Sócrates — Considera agora que o segundo segmento corresponde aos
objetos que essas imagens representam, ou seja, os animais que nos cercam,
as plantas e todas as obras de arte.
Glauco — Estou considerando.
Sócrates — Concordas também em dizer que, no que concerne à verdade e
ao seu contrário (ajlhqeiva te kai; mhv) a divisão foi feita de tal modo que a
imagem está para o objeto que reproduz como a opinião está para a ciência
(wJ" to; doxasto;n pro;" to; gnwstovn, oujvtw oJmoiwqe;n pro;" to; wJ'i wJmoiwvqh)?
Glauco — Concordo plenamente.
Sócrates — Vê agora como deve ser dividido o mundo inteligível (noetou'). Glauco — Como?
Sócrates — Na primeira parte desse segmento, a alma, utilizando as
imagens dos objetos que no segmento precedente eram os originais, é
obrigada a estabelecer suas análises partindo de hipóteses (ejx uJpoqevsewn),
seguindo um caminho que a leva, não a um princípio (ajrch;n), mas a
conclusão (teleuthvn). No segundo segmento, a alma parte da hipótese
(ejx uJpoqevsew") para chegar ao princípio absoluto (ajrch;n ajvnupovqeton),
sem lançar mão das imagens (eijkovnwn), como no caso anterior, e desenvolve
a sua análise servindo-se unicamente das idéias (eijvdesi). Glauco — Não compreendo muito bem o que dizes.
Sócrates — Sem dúvida, compreenderás mais facilmente depois de ouvires o
que vou dizer. Sabes, penso eu, que aqueles que se dedicam à geometria, à
aritmética ou às outras ciências do mesmo gênero pressupõem (ujpoqevmenoi) o par e o impar, as figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da
mesma família para cada pesquisa diferente; que, tendo pressuposto essas
coisas (poihsavmenoi ujpoqevsei" aujtav) como se as conhecessem
(wj" eijdovte"), não se dignam a dar a razão (lovgon didovnai) delas nem a si
próprios nem aos outros, considerando que elas são evidentes para todos;
que, finalmente, a partir daí, deduzem o que se segue e acabam por
alcançar, de forma conseqüente, a demonstração que tinham em vista.
Glauco — Sei isso perfeitamente.
Sócrates — Então, sabes também que eles utilizam figuras visíveis
(oJrwmevnoi" eijvdesi) e raciocinam sobre elas pensando (dianoouvmenoi) não
nessas mesmas figuras, mas nos originais que elas reproduzem. Os seus
raciocínios baseiam-se no quadrado em si mesmo (tou' tetragwvnou aujtou') e na diagonal em si mesma (diamvtrou aujth'"), e não naquela diagonal que
traçam; o mesmo vale para todas as outras figuras. Todas essas figuras que
modelam ou desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas águas,
eles se utilizam como tantas outras imagens, para tentar ver esses objetos
em si mesmos, que, de outro modo, só podem ser percebidos pelo
pensamento (dianoivai). Glauco — É verdade.
Sócrates — Eu afirmava que os objetos desse gênero pertencem à classe do
inteligível (nohto;n), mas que, para conseguir conhecê-los, a alma é
obrigada a recorrer a hipóteses (uJpoqesesi), que ela não se encaminha em
direção a um princípio (ajrch;n), uma vez que não pode ir além dessas
20
hipóteses, servindo-se destas como de imagens dos mesmos objetos que
produzem sombras no segmento inferior, e que, em relação a essas sombras,
são tidos e considerados como claros (ejnargevsi) e distintos
(tetimhmevnoi").
Glauco — Compreendo que o que dizes se refere à geometria e às ciências
(tevcnai") da mesma natureza.
Sócrates — Percebes agora que entendo por segunda divisão do mundo
inteligível (nohtou') aquela que a razão (ov lovgo") alcança pelo poder da
dialética (dialevgesqai dunavmei), considerando suas hipóteses
(ta;" uJpoqevsei") não princípios (oujk ajrca;") mas simples hipóteses, isto é,
pontos de apoio para se elevar até o princípio universal (panto;" ajrch;n)
que já não admite hipóteses (ajnupoqevtou). Atingido esse princípio, ela se
apega a todas as conseqüências que decorrem dele, até chegar à última
conclusão, sem recorrer a nenhum dado sensível, mas somente às idéias
(eijvdesin), pelas quais procede e às quais chega.
Glauco — Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque
tratas de um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento do
ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela ciência da
dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron) que aquele
que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais possuem
hipóteses como princípios (uJpoqevsei" ajrcai;). É certo que aqueles
(oij qewvmenoi) que se consagram às artes são obrigados a utilizar o
raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin). No entanto, visto que
nas suas investigações não apontam para um princípio (ajrch;n), mas partem
de hipóteses (ejx uJpoqevsewn), julgas que eles não têm a inteligência
(nou'n oujk ijvscein) dos objetos estudados, embora eles sejam inteligíveis
(nohtw'n) quando apreendidas junto com um primeiro princípio. Parece-me
que denominas conhecimento discursivo (diavnoian), e não inteligência
(ouj nou'n), a geometria e outras ciências do mesmo gênero, considerando
esse conhecimento (diavnoian) intermediário entre a opinião (dovxh") e a
inteligência (nou'). Sócrates — Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora a estas quatro
seções estes quatro estados(paqhvmata) da alma: a inteligência (novhsin) à
seção mais elevada, o conhecimento discursivo (diavnoian) à segunda, a fé
(pivstin) à terceira, a imaginação (eijkasivan) à última; e dispõe-nas por
ordem de clareza, partindo do princípio de que, quanto mais seus objetos
participam da verdade (ajlhqeiva"), mais eles são claros (safhveiva").
Glauco — Compreendo. Concordo contigo e adoto a ordem que tu sugeres.
(509d-511E)
A passagem da Linha dividida sempre suscitou inúmeras controvérsias não
só quanto à sua correta interpretação filosófica, mas também no que diz respeito à
sua correta estruturação geométrica. Um problema relativo ao estabelecimento do
texto logo na primeira linha da passagem é crucial para a inteligibilidade da
estrutura geométrica da Linha tal como ela é sugerida por Platão:
wJvsper toivnun grammh;n divca tetmhmevnhn labw;n ajvnisaajvnisaajvnisaajvnisa tmhvmata ou wJvsper
toivnun grammh;n divca tetmhmevnhn labw;n ijvsaijvsaijvsaijvsa tmhvmata, isto é, a linha deve ser
cortada em duas partes desiguais ou iguais?
21
A polêmica existe desde a Antigüidade. Iâmblico, por exemplo, lia
ijvsa tmhvmata; enquanto Proclus12 e Plutarco13 (Quaest. Plat.) ajvnisa.
Historicamente, a polêmica permaneceu com alguns comentadores14 seguindo a
leitura de Iâmblico e outros, a de Proclus. Atualmente, entretanto, a questão
parece definitivamente decidida em favor de ajvnisa e isso mais por razões de
ordem matemática do que propriamente de ordem filosófica ou filológica15. Além
do fato de ser encontrada na maioria dos bons manuscritos, enquanto ijvsa é
encontrada em apenas em um (Vindob. 55F), de ter sido adotada por Proclus, um
notável conhecedor da geometria grega, e da idéia de fundo segundo a qual os
dois domínios do sensível e do inteligível sendo manifestadamente desiguais,
devem ser representados por segmentos desiguais, a leitura ajvnisa é a única que
torna inteligível a proporção estabelecida em seguida16: corta de novo cada
segmento “respeitando a mesma proporção” (ajna; to;n aujto;n lovgon). Pois, se
todos os segmentos são iguais, então não há sentido em tentar, em seguida,
estabelecer as proporções entre eles que o texto sugere. Qual poderia ser o sentido
de subdividir cada um dos dois primeiros segmentos “respeitando a mesma
proporção”, se essa proporção é 1:1? A expressão ajna; to;n aujto;n lovgon é uma
expressão técnica e indica que Platão, ao contrário, tinha a intenção clara de
construir uma proporção, uma analogia. De modo que uma analogia do tipo
1:1=1:1, onde a igualdade geométrica de duas relações se reduz à igualdade
aritmética de dois termos 1=1, não teria nenhum interesse para ele, uma vez que
ela descaracteriza a função própria da analogia que é de pensar a igualdade de
relações entre termos desiguais17.
12 Plat. Rep., I. p. 288 ed. Kroll. 13 Plutarco, Moralia. Platonicae Quaestiones, Ed. C. Hubert e H. Dexler, Bibl. Teubner, 1959, vol. VI, fasc. 1, p. 118 – 121. 14 Notadamente Stallbaum e Ast. Outros, como Richter (Fl. Jahrb. 1867 p. 145) and Dümmler (Antisth. p. 80), lêem ajvn jijvsa, o que não muda nada em relação ao sentido. Apud Baccou op.cit., p.
448, n. 441. 15 Cf. Lafrance Yvon. Platon et la géométrie: la contruction de la ligne en République, 509d –
511e. in Dialogue, Vol. XVI, nº 3 (1977). p. 435 e ss.; Robin, Leon. Les Rapports de l’Être et de la
Connaisssance d’après Platon. Paris, P.U.F 1957. p. 17 e Aubenque, Pierre. De L’Égalité des
Segments Intermédiaires das la Ligne de la République. In SOPHIES MAIETORES. "Chercheurs de sagesse", Hommage à Jean Pépin, Collection des Études Augustiniennes. Série Antiquité 131, Paris (Institut d'Études Augustiniennes) 1992, XXXIV. p. 31 – 44. 16 E retomada no Livro VII 534a. 17 Os testemunhos de Architas (Diels-Kranz. Die Fragmente der Vorsokratier, Vol. 1, 47B2.) e de Euclides (Elementos, V, definição 8) são, nesse sentido, decisivos para o abandono da leitura ijvsa tmhvmata. Segundo esses autores, toda proporção ou analogia é construída a partir de quatro
22
Entretanto, isso traz uma conseqüência que levou alguns comentadores18 a
defender que é impossível construir a linha em conformidade com as indicações
do fornecidas por Platão. Trata-se da propriedade geral que uma linha possui de,
ao ser dividida segundo uma proporção e depois subdividida segundo a mesma
proporção, ter seus dois segmentos intermediários iguais:
a b c d19
Segundo Platão, a linha deve ser construída de tal maneira que a/b = c/d =
a+b/c+d, de onde se extrai necessariamente: b = c. A demonstração dessa
propriedade é simples. De acordo com a teoria geral das proporções, segue-se de
a/b = c/d, pela inversão dos termos médios, que a/c = b/d; em seguida, pela adição
dos numeradores e denominadores temos que a/c = b/d = a+b/c+d; o que, em
virtude da primeira igualdade estabelecida, a/b = c/d = a+b/c+d, leva ao seguinte
resultado: a/c = b/d = a/b = c/d, de onde se deduz imediatamente: b = c20.
O problema é que essa igualdade entre os dois segmentos intermediários
parece justamente ir contra a intenção inicial que era de estabelecer uma
proporção entre segmentos desiguais. Das duas uma: ou bem dividimos duas
vezes a linha segundo a mesma proporção, e se estabelece uma analogia, mas com
os segmentos intermediários iguais; ou bem dividimos a linha em quatro
segmentos desiguais, mas não estabelecemos a analogia indicada no texto21.
Contra essa objeção, Aubenque22 argumenta, primeiro, que a menção, no texto, a
“segmentos desiguais” se dirige apenas à primeira divisão e que nada é dito, nesse
sentido, em relação à segunda divisão. Em segundo lugar, que a analogia
instituída por Platão nessa passagem, onde os termos médios são iguais é, segundo
a teoria geral das proporções que encontramos em Arquitas e Aristóteles, uma
analogia contínua, no sentido em que o termo médio ― em termos técnicos a
termos ou pelo menos três termos diferentes. Consequentemente, se todos os segmentos são iguais, eles não podem servir para estabelecer uma proporção ou analogia. 18 Em especial R. S. Brumbaugh, Plato’s Divided Line, Review of Metaphysics 5, 1952, p. 529-534. 19 A linha está sendo representada aqui na horizontal meramente por razões de comodidade. Veremos, mais adiante, que a representação mais adequada é a vertical. 20 Esta é apenas uma entre as várias demonstrações possíveis. A demonstração apresentada segue a de Pierre Aubenque, op. cit. p. 37-38. 21 Cf. Brumbaugh, loc.cit. 22
ibid. loc. cit.
23
média proporcional ― estabelece uma ligação ou uma mediação entre os termos
extremos. Enquanto que uma analogia descontínua institui apenas uma igualdade
relacional entre os domínios heterogêneos (a e b de um lado, e c e d, de outro), a
média proporcional da analogia contínua tem como característica ser homogênea,
ao mesmo tempo, ao termo inferior e ao termo superior que são ligados por uma
mesma proporção.
Mas os problemas não param por aí. Uma vez acordada a leitura
ajvnisa tmhvmata, duas questões surgem imediatamente: devemos traçar uma linha
vertical ou uma linha horizontal? Qual segmento da linha será maior em relação
ao outro? No que se refere à primeira questão, a maioria das traduções e dos
comentários parece não ver nela qualquer significação filosófica relevante e
tendem a representar horizontalmente a linha apesar da orientação dada na
conclusão da passagem (511d8), onde os quatro paqhvmata da alma (novhsi",
diavnoia, pivsti" e eijkasiva) são associados diretamente aos quatro segmentos
distinguidos na Linha, para que se coloque a novhsi" no segmento mais “alto”
(ajnwvtato"). Segundo Lafrance, que defende uma representação vertical da Linha,
a classificação estabelecida por Platão não deve ser compreendida apenas em
termos de mérito respectivo ou de valor entre os diferentes paqhvmata da alma23,
mas, uma vez que Platão se refere explicitamente aos quatro segmentos da Linha,
essa classificação exige uma correta representação no próprio gráfico geométrico
da Linha. Ao relacionar a novhsi" ao segmento “mais alto”, Platão, de acordo com
Lafrace, estaria dando a direção da Linha: alto/baixo. Essa interpretação parece,
inclusive, encontrar apoio no uso freqüente24 que Platão faz da direção alto/baixo
para se referir ao mundo sensível e ao mundo inteligível, o que não exclui,
entretanto, a idéia de que os paqhvmata recebem um valor correspondente a sua
posição na Linha: o valor maior sendo representado pelo segmento mais alto
porque seus objetos participariam mais da verdade (ajlhvqeia) e da claridade
(safhvneia), mas, apenas, que a representação vertical da Linha foi algo desejado
pelo próprio Platão.
23 Como defende, por exemplo, James Adam, The Republic of Plato, 2ª Ed., Cambridge Univ. Press, 1965, II, p. 63-64. 24 Lafrance lista 7 ocorrências no Livro VI e VII: 509c2; 511a6; 514b3; 515c6-7; 516e3-4; 517a5 e 517b4. op. cit. p. 436.
24
Quanto à segunda questão, o texto platônico, ao contrário, não nos dá
nenhuma pista decisiva. Ambas as hipóteses ― oJratov" gevno" (o) >
nohtov" gevno" (n) e nohtov" gevno" (n) > oJratov" gevno" (o) ― são igualmente
possíveis. Plutarco, por exemplo, em seu Platonicae Quaestiones, elaborou uma
série razões filosóficas em favor tanto de uma, quanto da outra hipótese25, o
mesmo acontecendo com Proclus26. O critério utilizado por Plutarco e Proclus foi
o da unidade e da multiplicidade. Em virtude desse critério, pode-se postular o > n
por que as cópias do mundo sensível são mais numerosas do que seus respectivos
modelos no mundo inteligível, ou ainda por que o mundo sensível tem o seu
princípio na matéria indeterminada e, consequentemente, pode ser considerada
como ilimitada, ou então por que o conhecimento das coisas sensíveis se realiza
através de vários órgãos enquanto que o conhecimento do inteligível se realiza
através de uma única faculdade, o intelecto. Em resumo, o mundo sensível, na
medida em que é o domínio da multiplicidade, deve ser representado pelo
segmento mais longo. Entretanto, o mesmo critério de unidade e multiplicidade
pode ser usado para defender o < n. Podemos supor o segmento do inteligível
como mais longo, como o faz Proclus, por que o conhecimento intelectual é mais
universal que o conhecimento sensível, ou por que a realidade inteligível tem mais
valor que a realidade sensível, ou ainda, que a realidade inteligível, na medida em
que a realidade sensível participa dela, pode ser entendida como o que contém e
que “o que contém” tem que ser maior do que o que é “contido”.
Os comentadores modernos, tais como Schneider, Steinhart e Adam, se
apóiam em outro critério: o da claridade e da obscuridade. Apesar de esse critério
corresponder mais adequadamente ao texto platônico27, sugerindo uma
luminosidade crescente da Linha que vai de baixo para o alto, ele tampouco
resolve o problema. Nós ainda podemos perguntar se o segmento mais longo deve
representar a parte mais obscura da Linha (o > n) ou se ele deve representar a
parte mais clara (o < n) e, aqui, o texto platônico não nos dá nenhuma pista para
25
loc. cit. 26 loc. cit.. 27 “Classificando as divisões obtidas conforme o seu grau relativo de clareza (safhneivai) ou de
obscuridade (asafeivai)”(509d10-11); “e dispõe-nas por ordem de clareza, partindo do princípio
de que, quanto mais seus objetos participam da verdade (ajlhqeiva"), mais eles são claros
(safhveiva") (511e 2-4)
25
decidir. Segundo Lafrace28, Platão provavelmente considerou esse problema sem
importância, uma vez que qualquer que seja a hipótese adotada, é sempre possível
construir as proporções indicadas pelo texto. Se alguma das hipóteses deve ser
privilegiada, que seja (o > n), não por razões filosóficas, mas por uma razão de
ordem técnica: ela permite construir proporções geométricas de razão 2, enquanto
que (o < n) nos obriga a construir proporções geométricas de razão ½; e como é
notório, os geômetras e matemáticos gregos privilegiavam os números inteiros29.
A Linha, portanto, deve construída na vertical e dividida, segundo a mesma
proporção, em quatro segmentos, onde dois deles, os intermediários, são iguais. A
disposição dos domínios representados por esses segmentos são estabelecidos
segundo um critério de clareza e obscuridade que sugere uma luminosidade
crescente da Linha que vai de baixo para o alto.
Além das questões relativas à representação geométrica da Linha, existem
outras questões relativas à própria exposição de Platão. Como já vimos, a
passagem da Linha retoma a distinção entre o domínio do visível e o domínio do
invisível estabelecida na passagem da Analogia do Sol, e subdivide um e outro em
dois segmentos e, a cada uma das quatro espécies assim obtidas, associa
respectivamente quatro paqhvmata na alma, ordenando essas espécies pelo grau
de claridade (ou obscuridade) que seus objetos possuem na medida em que
participam mais ou menos à verdade. Num primeiro momento, somos levados a
entender essas divisões como se Platão fizesse corresponder a cada segmento um
tipo de coisa, e cada tipo de coisa uma apreensão cognitiva diferente. E no que diz
respeito à parte referente ao sensível, essa interpretação parece se encaixar
perfeitamente: Sócrates faz claramente uma distinção entre as coisas sensíveis
propriamente ditas (animais, plantas, artefatos produzido pelo homem) e suas
imagens (sombras e reflexos). As primeiras seriam objeto de fé (pivsti"), as
segundas, de conjecturas (eijkasiva). Entretanto, o mesmo parece não ocorrer no
segmento do inteligível onde Sócrates não é claro se há diferença entre os objetos
correspondentes a cada subsegmento. Tudo que é dito aí é que existe uma
diferença nos procedimentos cognitivos envolvidos em cada um deles. Diante da
dificuldade de Glauco para compreender a distinção aqui apresentada, Sócrates
28 Op. cit. p. 437-438. 29 Cf. BOYER, Carl B., op. cit. p. 67 e HEATH, Thomas L.: op. cit. 287.
26
ilustra o que foi dito associando diretamente a diavnoia ao modo de proceder da
matemática e a novhsi" ao da dialética e da filosofia. Tanto a matemática quanto a
dialética trabalhariam com hipóteses com a diferença de que o dialético, ao
contrário do matemático, toma suas hipóteses não como pontos de partida de uma
dedução, mas no sentido inverso, e sem fazer uso dos sentidos, como degraus e
pontos de apoio para remontar para além delas em direção, não mais a algo
simplesmente postulado a título de hipótese, mas ao princípio mesmo de tudo, o
princípio não-hipotético (ajrch;n ajnupovqeton).
E aqui chegamos ao ponto que nos interessa. No próximo capítulo iremos
investigar um pouco mais de perto esse modo de proceder dos matemáticos em
relação às suas “hipóteses” e o que o distingue do modo de proceder dos
dialéticos.
3
A crítica de Platão aos matemáticos na Rep. VI 509d-511e
3.1
A noção de “uJpotivqemaiuJpotivqemaiuJpotivqemaiuJpotivqemai” em Platão.
O que Platão fala sobre o modo de proceder das disciplinas matemáticas na
passagem da Linha dividida divide-se em duas partes distintas. A primeira refere-
se à atitude dos matemáticos com relação às hipóteses com trabalha:
Sócrates — Sem dúvida, compreenderás mais facilmente depois
de ouvires o que vou dizer. Sabes, penso eu, que aqueles que se
dedicam à geometria, à aritmética ou às outras ciências do mesmo
gênero tomam como hipóteses (ujpoqevmenoi) o par e o impar, as
figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da mesma família
para cada pesquisa diferente; e que, tomando essas hipóteses
(poihsavmenoi ujpoqevsei" aujtav) como se as conhecessem
(wj" eijdovte"), não se dignam a dar a razão (lovgon didovnai) delas
nem a si próprios nem aos outros, considerando que elas são
evidentes para todos; que, finalmente, a partir daí, deduzem o que se
segue e acabam por alcançar, de forma conseqüente, a demonstração
que tinham em vista. (510c)
O matemático, diz Platão, toma as hipóteses com que trabalha ― números,
figuras geométricas, etc. ― tratando essas hipóteses como coisas perfeitamente
claras/evidentes para todo mundo e que não precisam de nenhuma justificação e a
partir delas ele se encaminha, por uma seqüência de deduções lógicas coerentes,
em direção ao resultado ao qual ele tinha se proposto de início.
28
A primeira questão que surge é em que sentido os exemplos citados por
Platão ― números, figuras geométricas, etc. ― e tomados por ele como princípios
das ciências matemáticas são “hipóteses”? Ou seja, em que sentido noções
consideradas auto-evidentes e indemonstráveis para os matemáticos são vistas por
Platão como carecendo de demonstração? Como devemos entender esse
lovgon didovnai? Será que Platão está pondo em questão, aqui, a validade das
ciências matemáticas? Dizendo que seus princípios são falsos?
O verbo uJpotivqemai, com o qual Platão se refere ao método empregado
pelos matemáticos (ta;" gewmetriva" te kai; logismou;") na passagem da Linha,
é um verbo derivado de tivqhmi, verbo que aparece inúmeras vezes nos Diálogos30
e quase sempre com o sentido de pôr, colocar, firmar, assentar, supor,
estabelecer, como podemos ver nos seguintes exemplos:
Agora compreendo melhor e estabeleço (tivqhmi), para a arte da
produção duas formas (…). (Sofista 266d5).
Suponha (qe;"), agora, só para argumentar, que na alma há um cunho
de cera (…) Suponho (tivqhmi). (Teeteto 191c8-d2).
Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idéia, que
é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o
suponho (tivqhmi) como sendo verdadeiro (…). (Fédon 100a5).
Apesar de os Diálogos não oferecerem qualquer análise ou exposição sobre
o uso lógico31 de tivqhmi, as passagens onde o verbo ocorre sugerem que o
procedimento por ele nomeado é o seguinte: “pôr” uma proposição é assumir,
consciente e deliberadamente, uma proposição como algo “assentado” ou
“estabelecido” de modo a tornar essa proposição um “ponto de partida” de meus
pensamentos ou de meus raciocínios. A proposição “posta”, no entanto, é sempre
provisória e experimental. Ela é posta somente até “prova contrária”. Nesse caso,
ela é abandonada e outra proposição é posta em seu lugar ou então devemos
suspender o juízo. De forma geral, Tivqhmi, nomeia um procedimento no qual nós,
deliberada e conscientemente, adotamos uma proposição sabendo, no entanto, que
ela, no final, pode se revelar falsa e deverá ser descartada. É importante sublinhar,
entretanto, que quando falamos que tivqhmi é um ato deliberado, estamos
30 Apenas no Livro I da República o termo aparece nesse sentido em pelo menos 7 ocasiões: 331a11, 334e6, 340a-b e 352 d. 31 Ou seja, quando o que é “posto” é uma proposição ou pensamento.
29
querendo dizer aquilo que não temos necessidade de fazer, mas fazemos
conscientemente, e não deliberado no sentido de necessariamente ser precedido
por uma discussão dos prós e contras. Isso pode tanto acontecer como não.
Quando, por exemplo, Sócrates diz no Górgias (454e) “Suporemos então dois
tipos de persuasão?” essa suposição é tomada como a conseqüência de um
processo dedutivo. Por outro lado, no passo 334e da República a proposição
segundo a qual “amigo é aquele que parece honesto” é posta sem maiores
discussões.
Outro aspecto importante do uso platônico de tivqhmi é que esse
procedimento não envolve proposições consideradas conhecidas e indubitáveis, a
proposição “posta” é, aproximadamente falando, algo que se crê ou se supõe e, na
medida em que esse “pôr” é uma atividade deliberada e consciente, essa crença
pode comportar todos os níveis de confiança, do mais alto ao mais baixo, podendo
até mesmo ser uma crença “simulada”, se isso for de interesse da discussão.
De forma geral, o que é posto, colocado ou suposto é sempre uma tese
(qevsi"); mas o termo, como já apontaram alguns comentadores32, parece ter esse
sentido somente uma vez em Platão (Rep. 335a), embora numerosas vezes em
Aristóteles. Platão, ao contrário de Aristóteles, parece não possuir um nome para
representar uma proposição como tendo sido colocada por alguém e servindo
como ponto de partida de seu pensamento.
Voltando à passagem que nos ocupa, o sentido de uJpotivqemai não diverge
consideravelmente do sentido de tivqhmi. Na verdade, ele simplesmente intensifica
um elemento que já está presente no verbo original. JUpotivqemai ou “su-por” é pôr
como preliminar. JUpotivqemai traz, antes de tudo, a noção de colocar uma
proposição como começo de um processo de pensamento no sentido de raciocinar
com base nisso. No sentido de extrair conseqüências da proposição posta como
hipótese, ou de se rejeitar as proposições tidas como inconsistentes com ela com o
objetivo de se construir um sistemático, ou pelo menos consistente, corpo de
proposições. A proposição colocada como hipótese é, nesse aspecto, uma
proposição especialmente importante. É ela que guia ou orienta o pensamento
subseqüente retornando, muitas vezes, no curso da discussão e constituindo a
parte relativamente permanente e sólida do pensamento ou discurso. 32 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 94
30
Portanto, na medida em que todo “pôr” (tivqhmi) é essencialmente pôr um
pensamento ou uma proposição como preliminar a um outro pensamento ou a uma
outra proposição, ou pelo menos como ponto de partida para algum tipo de
atividade futura, uJpotivqemai simplesmente intensificaria ou daria ênfase a esse
aspecto. Quando Sócrates e Teeteto, por exemplo, põem o argumento do cunho de
cera no passo 191c do Diálogo que leva o nome do segundo, eles fazem isso em
benefício da explicação futura que ela torna possível sobre a possibilidade da
opinião falsa.
Alguns comentadores defenderam que, apesar de uJpotivqemai e tivqhmi
concordarem no sentido de representar um “pôr” no interesse de uma ação futura,
eles diferem, entretanto, em relação ao fato de que em tivqhmi o “pôr” é precedido
por uma dedução enquanto isso nem sempre ocorre com uJpotivqemai. Tivqhmi
significaria então um “pôr” como o resultado de um raciocínio dedutivo e
uJpotivqemai um “pôr” que não é o resultado de um raciocínio dedutivo, mas o
ponto de partida para subseqüentes afirmações. Entretanto, a análise das
passagens onde o termo ocorre mostra que apesar de Platão ter uma leve tendência
por esse uso, ele nunca o cristaliza. O fato uma proposição ser alcançada algumas
vezes por meio de um raciocínio e outras não é verdadeiro tanto para proposições
“postas” como “supostas”.
Diferenças, ainda que pequenas, existem. Ao contrário de tivqhmi, Platão
muito raramente fala de supor uma proposição que se conhece, de antemão, ser
falsa. Sua concepção de uJpotivqemai dificilmente, ou quase nunca, estende-se ao
completamente falso ou simulado. O único exemplo onde isso parece acontecer é
no passo 246d do Sofista: “suponhamos que concordam em responder-nos de uma
maneira mais cordial do que a de agora”. Isso não significa, no entanto, que Platão
nunca praticou deliberadamente o que nós poderíamos chamar pensamento
hipotético. Ele o faz freqüentemente. Como podemos ver, por exemplo, no passo
42e do Filebo: “Se tal estado não ocorresse nunca ― é o que sempre afirmarei
― que aconteceria necessariamente conosco?”. Mas ele não chama isto
“uJpotivqesqai”. A palavra usada para assumir o que você já sabe ou acredita ser
falso não é uJpotivqesqai mas sugcwrei'n. Isso aparece mais claramente no
Cármides onde encontramos muitas deduções a partir de premissas consideradas
falsas. E a oposição entre os dois termos e as duas noções é sugerida nitidamente
31
no passo 172c: suponhamos (sugcwrhvsante") que é possível que exista uma
ciência da ciência, e não abandonemos o que colocamos (ejtiqevmeqa) no início,
que a sabedoria (swfrosuvnhn) consiste em saber o que sabemos e o que não
sabemos. Aqui ambas as proposições “é possível uma ciência da ciência e
“sabedoria (swfrosuvnhn) consiste em saber o que sabemos e o que não
sabemos” parecem ser tomadas como insustentáveis. Não obstante, elas serão
assumidas no curso seguinte da discussão e essa assunção é chamada sugcwrei'n.
Mas quando Sócrates está se referindo a um momento anterior da discussão, antes
dessas proposições serem invalidadas, ele usa tivqemai; pois, naquele momento,
ele não as estava “supondo”, mas “colocando-as”.
Com relação ao substantivo “uJpovqesi"” (hipótese), ele é usado por Platão
com menos freqüência do que o verbo “uJpotivqemai” e menos ainda do que o
verbo tivqhmi. Nos Diálogos, esse substantivo é sempre o substantivo que
corresponde ao verbo “uJpotivqemai”, e adquire seu significado inteiramente dele,
ou seja, uma proposição su-posta como um ponto de partida para um sistema de
proposições.
Segundo Robinson33, a análise das passagens onde o verbo uJpotivqemai
ocorre, nos permite apontar cinco características principais do método hipotético
descrito por Platão em seus Diálogos. Em primeiro lugar, o método implica, por
um lado, que se deva sempre adotar as proposições em questão de uma maneira
consciente e deliberada, em vez de simplesmente “incorrer” nelas e, por outro, que
se deva sempre adotar alguma tese, em vez de simplesmente suspender o juízo34.
Em segundo lugar, o método hipotético é um procedimento essencialmente
dedutivo35 onde fundamentalmente se procura explorar as implicações ou
33 op., cit., p. 105-113. 34 Robinson sublinha que em nenhum dos diálogos Platão desenvolve explicitamente cada uma desses pontos, mas que eles parecem estar implicados, por um lado, pelo que Platão diz sobre o uso das hipóteses, e, por outro, pelo fato de que o método dialético como um todo se funda numa conversa do tipo pergunta-resposta onde o essencial é o princípio de que o que responde deve sempre responder, não devendo alegar ignorância. Caso ele se sinta incapaz de responder, é tarefa ou obrigação do que pergunta trazê-lo de algum modo a um juízo definido, quer revelando-lhe as razões da proposição em questão, ou desenvolvendo mais detalhadamente sua natureza, quer ainda extraindo-a de outras afirmações com as quais ele já concordou. E uma que o que responde concorde com o que pergunta, ainda que de maneira hesitante, a proposição em questão é considerada como aceita. Não que os participantes deixem de distinguir um mero “talvez” de uma afirmação vigora e decidida, mas sim que é essencial ao método colocar toda proposição sugerida em uma das duas categorias, “aceita” ou “rejeitada”. op., cit., p. 105. 35 Robinson sublinha que “dedução” aqui deve ser compreendida, não em oposição à “indução”, mas preferencialmente em oposição à “intuição”. op., cit., p. 106.
32
conseqüências das hipóteses em questão, a fim de se atingir uma determinada
conclusão, sem se preocupar tanto em justificar essas hipóteses mesmas. Em
terceiro, o método rejeita toda contradição, avaliando como nulo todo conjunto de
proposições que se contradigam, seja diretamente ao afirmar uma mesma
proposição como verdadeira e falsa, ou indiretamente afirmando duas proposições
onde uma delas, em algum momento de seu desenvolvimento, insinua a falsidade
da outra. Em quarto lugar, o método toma as opiniões de que parte
provisoriamente e não dogmaticamente. Se, por um lado, estimula-se a formação
de hipóteses em lugar da suspensão do juízo, por outro, deve-se ter em mente que
estas hipóteses podem ser falsas, e que, portanto, deve-se estar pronto a abandoná-
las se lhes faltar consistência. E, por último, o método de hipóteses é um método
“aproximativo” uma vez que nosso conjunto inteiro de opiniões muda na medida
em que são reveladas contradições entre elas pelo processo de dedução. De modo
que, com o passar do tempo, elas até podem se tornar cada vez mais adequadas,
sem, entretanto poderem ser tomadas definitivamente, de uma vez por todas, já
que a possibilidade de se encontrar uma contradição permanece sempre presente36.
E cabe ressaltar, com Robinson37, que em nenhum lugar dos diálogos, Platão nos
oferece uma descrição de como converter esse “provisório” em “certo”.
3.2
A noção de “uJuJuJuJpotivqemaipotivqemaipotivqemaipotivqemai”no Mênon e no Fédon
Antes da República, a referência ao método hipotético aparece em dois
Diálogos: no Mênon e no Fédon. No Mênon, diante da insistência de Mênon para
que investigue se a virtude é coisa ensinável ou não antes de investigar o que ela é
em si, Sócrates propõe o uso de um artifício que diz tomar emprestado aos
geômetras: o método hipotético. Sócrates explica que quando se pergunta a um
matemático se é possível, dada uma superfície, inscrevê-la como triângulo num
círculo, ele responde:
SO. Ora, Mênon, se eu comandasse não somente a mim mas
também a ti, não examinaríamos antecipadamente se a virtude é
coisa que se ensina ou que não se ensina, antes de primeiro ter
procurado o que ela é, em si mesma. Mas, já que tu não tratas de
comandar-te a ti mesmo, para que sejas livre, enquanto a mim tratas
36 Robinson aponta que se trata aqui mais de uma interpretação que de um comentário. Ele deixa claro que não há nenhum desenvolvimento explícito desse ponto nos diálogos. op., cit., p. 108. 37 Loc. cit.
33
de comandar e comandas, ceder-te-ei ― pois que se pode fazer?
Parece então que é preciso examinar que tipo de coisa é aquilo
que não sabemos ainda o que é. Se mais não <fizeres>, então, pelo
Menos relaxa um pouco o comando sobre mim e consente que se
examine a partir de uma hipótese (uJpoqevsew") se ela é coisa que
se ensina ou se <é> como quer que seja. Por "a partir de uma
hipótese" (ejx uJpoqevsew") quero dizer a maneira como os geômetras
freqüentemente conduzem suas investigações. Quando alguém lhes
pergunta, por exemplo, sobre uma superfície, se é possível esta
superfície aqui ser inscrita como triângulo neste círculo aqui, um
geômetra diria: “Ainda não sei se isso é assim, mas creio ter
para essa questão como que uma hipótese (uJpovqesin) útil, qual
seja: se esta superfície for tal que, aplicando-a alguém sobre uma
dada linha do círculo, ela fique em falta de uma superfície tal como
for aquela que foi aplicada, parece-me resultar uma certa
conseqüência, e, por outro lado, outra <conseqüência>, se é
impossível que <a superfície> seja passível disso. Fazendo então
uma hipótese (uJpoqevmeno"), estou disposto a dizer-te o que resulta a
propósito de sua inscrição no círculo: se é impossível ou não. (86d-87b) 38.
Não é importante para a questão que nos ocupa saber a qual problema
matemático Platão está se referindo39. No que nos diz respeito, o interesse reside
no sentido em que Platão parece tomar a palavra uJpoqevsi" e ao uso que faz dela.
Segundo Robin40, a palavra é utilizada aqui simplesmente com a intenção de dar
uma idéia do método que Sócrates empregará para examinar a questão das
características da virtude nas condições anormais que lhe foram impostas por
Mênon e cujo esquema geral seria o seguinte: se tais condições se apresentam, o
resultado será este, e em tais outras condições, será aquele41. De modo que
“hipótese” se apresentaria aqui como uma espécie de conjetura onde se procuraria
descobrir a validez ou não de uma proposição a partir da dedução de suas
conseqüências.
Robinson42 nos oferece uma interpretação um pouco mais elaborada, na qual
o método hipotético descrito nessa passagem seria um método para investigar se
uma determinada proposição q é verdadeira ou falsa, não exatamente 38 Em relação às passagens do Mênon citadas nesse trabalho, reproduzo a excelente tradução da profª. Maura Iglésias. Mênon,Ed. Loyola, São Paulo, 2001. 39
A passagem envolve diversas dificuldades de interpretação. Entretanto, a maioria dos comentadores concorda que não é importante identificar de qual problema se trata, mas sim a forma a qual Platão reduz o “uso de hipóteses”. cf. Maura Iglésias, op. cit., n. 29, p. 115; Robin, Léon. Platon, oeuvres complètes Paris, Gallimard 1950. notes; Robinson, R. op. cit., p. 114. 40 op. cit., id., ibid. 41 No caso: se a virtude se ensina e se transmite, de um lado eu tenho mestres com os discípulos e de outro eu tenho a mesma coisa, discípulos com mestres; se ela é uma opinião verdadeira adquirida pela natureza, de um lado eu tenho os pais, homens de valor, mais com os filhos, o outro lado permanece vazio, por ausência de valor, etc. op. cit., id., ibid. 42 op., cit., p. 116.
34
demonstrando diretamente q, como sugere Robin, mas recorrendo a uma outra
proposição p, equivalente a q, de modo que q deve ser verdadeira se p é
verdadeira, e deve ser falsa se p é falsa. Prova-se ou rejeita-se p diretamente, e a
partir disso sabemos se o objeto original de nossa investigação q é verdadeiro ou
falso, porque q é equivalente a p43. Neste procedimento a proposição p é que é
chamada “hipótese”. No exemplo geométrico o objeto original de investigação é a
proposição “se é possível esta superfície aqui ser inscrita como triângulo neste
círculo aqui”, e a hipótese é o enunciado “se esta superfície for tal que, aplicando-
a alguém sobre uma dada linha do círculo, ela fique em falta de uma superfície tal
como for aquela que foi aplicada” (87a). Na aplicação subseqüente ao caso da
virtude, o objeto original da investigação (q) é a proposição “a virtude é coisa que
se ensina ou não”, e a hipótese (p) é a proposição “a virtude é ciência”. Primeiro,
Sócrates mostra que a hipótese p é equivalente à proposição original q (87b5-c10).
Isso é feito em poucas linhas: essa equivalência é considerada “evidente para todo
o mundo”:
Assim também, sobre a virtude, já que não sabemos nós o que é
nem como é, façamos uma hipótese e examinemos se é coisa que se
ensina ou que não se ensina, dizendo o seguinte: se for que tipo
de coisa, entre as que se referem à alma, será a virtude coisa que se
ensina, ou coisa que não se ensina? Em primeiro lugar, se ela é um
tipo de coisa diferente do tipo de coisa que é a ciência, é, ou não,
coisa que se ensina, ou, como dizíamos há pouco, coisa que pode ser
rememorada? Que não nos importe absolutamente que nome
utilizemos, mas sim: é coisa que se ensina? Ou melhor: não é
evidente para todo o mundo que nada se ensina ao homem a não ser a
ciência?
MEN. Parece-me que sim. SO. E se é uma ciência, a virtude, é evidente que pode ser
ensinada.
MEN. Como não seria?
SO. Dessa questão, vejo, desvencilhamo-nos depressa: se for
uma coisa desse tipo [sc. ciência], é coisa que se ensina, se for de
outro tipo, não.
MEN. Perfeitamente. (87b5-c10)
43 no caso, q seria a proposição de que a virtude é coisa que se ensina, e a hipótese p é que virtude
é conhecimento. loc. cit. Robinson menciona as objeções levantadas por Friedländer e por Cherniss à sua interpretação, mas mesmo reconhecendo que se trata de objeções pertinentes, mantém-se, entretanto, fiel a ela.
35
Em seguida¸ Sócrates dá uma prova bem mais elaborada da hipótese p
“virtude é ciência” (de 87d a 89d) a partir da qual então Mênon deduz que virtude
é coisa que se ensina, (89c):
SO. Depois disso, segundo parece, é preciso examinar se a
virtude é ciência ou algo de tipo diferente da ciência.
MEN. Parece-me, a mim, que esta é a questão a examinar
depois daquela.
SO. E então? Não dizemos que ela, a virtude, é um bem, e não
nos fica esta hipótese: que ela é um bem? ― MEN. Perfeitamente. -
SO. Então, não é?, se, por um lado, algo há que é um bem e que é
algo outro, distinto da ciência, talvez a virtude seja uma coisa que
não ciência. Mas, se, por outro lado, não há nenhum bem que a
ciência não englobe, estaríamos corretos em suspeitar que ela é uma
ciência. (…)
(87b-d) (…) Logo, é compreensão que afirmamos ser a virtude, seja o
todo <da compreensão> seja uma parte <dela>? -MEN. Parece-me
bem dito o que foi dito, Sócrates. -SO. Se é assim, não é por natureza
que os bons seriam <bons>, não é? -MEN. Parece-me que não.
SO. Com efeito, penso, dar-se-ia o seguinte: se os bons se
tornassem <bons> por natureza, teríamos, penso, pessoas que
reconheceriam, entre os jovens, aqueles que são bons por sua
natureza, e, tendo<-os>, essas pessoas, designado, nós os
tomaríamos e, tendo-os selado mais bem que o ouro, mantê-los-íamos
sob guarda na acrópole, para que ninguém os corrompesse, mas sim,
ao contrário, <para que> assim que atinjam a idade, se tornem úteis
à cidade.
MEN. É bem provável, Sócrates.
SO. Então, já que não é por natureza que os bons se tornam
bons, será que é por aprendizado?
MEN. Já me parece que é necessário que sim. E é evidente,
Sócrates, que, segundo a hipótese, "se realmente a virtude é ciência",
ela é coisa que se ensina.
(89a-c)
A exposição de Platão do método hipotético no Mênon parece terminar aqui.
No restante do Diálogo não há nenhuma outra menção à palavra “hipótese” nem
qualquer observação metodológica de outro tipo. Robinson faz notar, entretanto,
que em seguida Sócrates inverte o argumento e rejeita a proposição “virtude é
coisa que se ensina” concluindo (99a) que uma vez que virtude não é coisa que se
ensina, ela não é ciência. Com isso ele está, embora isso não esteja explicitado no
Diálogo, diretamente contestando a proposição que estava originalmente em
questão e deduzindo daí a falsidade da hipótese considerada como equivalente à
proposição original.
Apesar da elegância, a interpretação de Robinson não é inteiramente
convincente e ele próprio lista as principais possíveis objeções a ela. A primeira é
36
que há duas outras proposições que Sócrates chama de “hipóteses” bem mais
explicitamente do que a proposição “virtude é ciência”. Em 89d Sócrates diz que
ele não “retira” a proposição segundo a qual “a virtude é coisa que se ensina, se é
realmente ciência”. O termo grego usado é ajnativqemai que pode ser traduzido
como “retiro a hipótese...”. Em 87d ele chama “hipótese” a proposição segundo a
qual “a virtude é um bem”. Robinson argumenta que, apesar de Platão não nomear
a proposição “virtude é ciência” como uma “hipótese” tão explicitamente como
ele nomeia as duas proposições mencionadas acima, o contexto sugere, pelo modo
como essa proposição se encaixa na descrição geral do método hipotético
apresentada aqui, que a proposição “virtude é ciência” é uma hipótese no diálogo.
Isso é sugerido, de um lado, pela observação obscura de Mênon em 89c: “se
realmente a virtude é ciência, ela é coisa que se ensina” e, de outro, pelo fato de
Sócrates, depois de sua ilustração geométrica, propor pôr a hipótese “isto”, onde
esse “isto” indubitavelmente significa virtude e a hipótese que Sócrates parece ter
em mente é justamente a proposição “virtude é ciência” devido aos argumentos
utilizados em seguida: “se ela é um tipo de coisas diferente do tipo de coisa que é
a ciência” (87b7) e “se for uma coisa desse tipo [sc. ciência]” (87c5).
A segunda possível objeção contra a interpretação de Robinson diz respeito
ao fato de que essa interpretação não faz o método hipotético ser mais hipotético
do que qualquer outro método socrático, pois a hipótese “virtude é ciência” é
demonstrada exatamente do mesmo modo que qualquer demonstração socrática.
Robinson argumenta que, em termos gerais, não é óbvio que o que parece a nós
uma diferença sem importância no procedimento envolvido também parecia sem
importância a Platão. Aristóteles, por exemplo, parece considerar importante essa
diferença em sua doutrina do “silogismo por hipóteses”. Segundo Aristóteles, o
silogismo por hipóteses procede assim: para provar que C é D, você primeiro leva
seu contestador a concordar, como hipótese, que se A é B então C é D. Você então
obtém as premissas necessárias e prova silogisticamente que A é B. (Anal. 50a16-
28.) Aristóteles, entretanto, considera este procedimento inferior. Ele não seria
uma real demonstração porque não deduz diretamente por silogismo que C é D,
no sentido de que suas premissas não decorrem de uma das três figuras de
silogismo. O que se obtém por silogismo é uma outra coisa, isto é, que A é B; e a
passagem disso para a conclusão exigida é simplesmente tomada como hipótese.
37
Esse método seria o segundo melhor, só empregado quando você não pode obter
diretamente por silogismo que C é D. Assim o procedimento descrito no Mênon
que, na interpretação de Robinson, se mostrou como uma investigação “a partir de
uma hipótese” seria semelhante ao procedimento que Aristóteles no Analíticos
chamou “o silogismo a partir de hipóteses” e sustentou ser diferente de silogismo
ordinário.
Entretanto, embora a forma de argumentar que Aristóteles tem em mente se
assemelhe àquela que Platão parece ter em mente no Mênon, o que Aristóteles
chama “hipótese” é diferente daquilo que Platão chama “hipótese”, na
interpretação de Robinson. Para Aristóteles a hipótese é a proposição segundo a
qual “se A é B, então C é D”; mas para Platão é a proposição segundo a qual “A é
B”. Porém, esta diferença de nomenclatura não afeta, segundo Robinson, o fato de
que Aristóteles e Platão estão falando sobre a mesma forma de argumentar, e que
Aristóteles considera que essa forma possui uma importante diferença em relação
ao silogismo ordinário, e que, portanto, Platão também pode ter considerado que
esse procedimento possui uma importante diferença em relação à dedução
ordinária.
A terceira dificuldade em relação à interpretação de Robinson é que ela
sugere que o raciocínio, ou boa parte dele, acontece em direção à hipótese e não a
partir dela. Sócrates recorre a duas páginas de silogismos para deduzir a hipótese
segundo a qual virtude é conhecimento, mas só de um passo para ir desta hipótese
para a demonstração de que virtude é coisa que se ensina, um passo que ele
considera “óbvio a todo o mundo” (87c2). Isso traz dois problemas. O primeiro é
que parece estranho esse uso do termo “hipótese” para se referir apenas à última
fase uma de uma série de raciocínios. O segundo é que duas frases presentes na
explicação de Sócrates de seu método parecem insinuar que hipótese realmente
envolvia uma série longa de conseqüências deduzidas disto, e não, como insinua
interpretação de Robinson, apenas a última conseqüência. Um destas frases é
“façamos uma hipótese e examinemos” (87b4), onde “examinemos” sugere uma
cadeia significativa de raciocínio procedendo da hipótese. A outra é “Fazendo
uma hipótese, estou disposto a dizer-te o que resulta a propósito” (87b1) que
sugere o mesmo.
38
Contra essa dificuldade, Robinson não parece ter um contra-argumento
realmente convincente. Ainda que o fato de parecer estranho hoje em dia dar o
título de “hipótese” para uma proposição a qual, na estrutura lógica do raciocínio,
aparece por último e é deduzida estritamente do que precedeu, não seja um
argumento forte contra a interpretação de Robinson, é difícil conciliar essa
interpretação com as passagens mencionadas que sugerem claramente a idéia de
significativas séries de raciocínios a partir de hipóteses. Segundo Robinson, essa
dificuldade pode ser superada se assumirmos que as conseqüências de que fala
Platão aqui não são as conseqüências lógicas da proposição colocada como
hipótese, mas as conseqüências práticas do procedimento envolvido, isto é, da
construção de uma cadeia de raciocínio conduzindo à proposição colocada como
hipótese. As conseqüências práticas “da proposição colocada como hipótese”
seriam seus antecedentes lógicos, aqui vistos como conseqüências do processo de
colocar como hipótese a proposição. O problema dessa explicação é que para
reconciliar sua interpretação com as passagens 87b1 e 87b4 Robinson acaba
insinuando que o texto platônico foi escrito de um modo bastante confuso.
Alguns comentadores como Farquharson44 sugeriram que o método que
Platão expõe aqui é o mesmo que os geômetras gregos depois chamarão “análise”.
Este método de análise é descrito pelos historiadores da matemática grega45 como
um procedimento que consiste em colocar como hipótese a proposição a ser
provada e, a partir dessa proposição, deduzir outras proposições até chegar a uma
proposição que você sabe ser verdadeira ou falsa independentemente da
proposição de que se partiu. Pode-se então, se essa proposição for verdadeira, usá-
la como premissa na demonstração da proposição inicial; ou, se ela for falsa, usá-
la para refutar a proposição que se pretendia demonstrar inicialmente. Assim, pela
colocação de uma proposição como hipótese, chega-se, a partir dessa hipótese, à
descoberta de uma prova conclusiva baseada em premissas indubitáveis.
Entretanto, como aponta Robinson46, apesar de o método de análise e o
método hipotético descrito no Mênon incluírem, ambos, a colocação de
proposições como hipóteses, eles não possuem nenhuma outra semelhança 44 CQ XVII 21, apud. Robinson, op. cit., p.121. 45 Cf. BOYER, Carl B.: História da Matemática. Trad. Elza F. Gomide. Ed. Edgard Blücher Ltda, São Paulo, 1974; HEATH, Thomas L.: A History of Greek Mathematics, vol. I. Oxford, London, 1921). p. 285 - 315. 46 Op. Cit. p. 121.
39
adicional; na verdade, eles procedem de forma bem diferente. No exemplo
geométrico do Mênon, a análise começaria com a colocação como hipótese da
proposição que ser quer provar ou refutar, isto é, que “se é possível para este
retângulo ser inscrito neste círculo como um triângulo”, e então tira-se
conseqüências desta hipótese; mas Platão descreve o geômetra como colocando
como hipótese alguma outra coisa. Na discussão que se segue, “se virtude é coisa
que se ensina”, o método de análise começaria assumindo que virtude é coisa que
se ensina e tiraria conclusões disto. A princípio, parece que é esse o procedimento
de Sócrates e que a primeira conseqüência que ele tira dessa hipótese é que
virtude é conhecimento; mas, na verdade, ele não tira nenhuma conclusão de
“virtude é conhecimento”, essa hipótese é explicitamente provada por uma
dedução direta.
O método hipotético descrito por Platão no Mênon não é muito parecido
com o método hipotético platônico descrito na primeira parte desse capítulo. É
verdade que ele contém, algo que poderíamos chamar de “pôr como hipótese” e
dedução; mas a dedução é quase inteiramente em direção à hipótese em lugar de
partir dela, e os elementos de provisionalidade e aproximação parecem estar
ausentes, ou presentes somente na medida em que a mesma pergunta é respondida
primeiro no afirmativo e depois no negativo. O método hipotético descrito no
Mênon é bem diferente daquele que encontramos no Fédon e na República nos
quais se baseia a descrição desse método da primeira parte desse capítulo; e
parece diferir da dedução socrática ordinária somente pelo fato de não ser um
silogismo aristotélico, mas alguma outra forma de dedução rígida.
A exposição encontrada no Fédon é o ponto alto da discussão platônica
sobre o método hipotético em Platão. Ela é muito mais séria, completa e precisa
do que a que encontramos no Mênon e na República. O objetivo do Fédon é
estabelecer que “alma é imortal”. Alguns bons argumentos são apresentados; mas
uma objeção minuciosa de Cebes traz novas dúvidas à discussão. Sócrates diz
então que uma investigação geral da causa da geração e destruição das coisas é
necessária (95e); e começa a narrar as suas próprias experiências nesse tipo de
pesquisa. Na mocidade, ele nutrira um enorme interesse pela chamada “ciência
natural”. Entretanto, quanto mais ele se dedicava a esse estudo, mais ignorante e
incompetente ele se sentia em relação a essas questões. Nenhuma das causas
40
alegadas parecia ser realmente uma causa. Até que um dia ele ouviu que, segundo
Anaxágoras, a inteligência (nous) era a causa e o ordenadora de tudo e voltou a ter
esperanças de que obteria uma explicação para cada caso de geração ou destruição
ou existência a partir da idéia do melhor; acreditando, que se isso acontecesse,
nenhuma outra causa adicional seria necessária. Mas a esperança logo se dissipou
quando ele leu o livro de Anaxágoras e viu que Anaxágoras tampouco atribuía ao
“melhor” algum papel na geração, destruição e ordenação das coisas. Enfim, todos
pareciam tomar como causa somente aquilo sem o qual a causa não seria causa e
não a causa mesma. Depois de mais essa decepção, Sócrates decide então
empreender o que ele chama de segunda navegação (deuvteron plou'n) ― a
investigação pelas idéias ― e passa a descrever seu método:
E assim, tomando como hipótese (uJpoqevmeno") em cada
ocasião a proposição que julgo ser a mais forte, tudo o que me
parecer estar de acordo (sumfwnei'n) com ela tomo como verdadeiro,
quer no tocante às causas quer a qualquer outro aspecto; se não
[estiver de acordo], como não verdadeiro.
(100a)
O que será que Platão quer dizer com o uso da metáfora do “acordo e
desacordo” nesta passagem? À primeira vista, o mais óbvio e natural parece ser
algo como consistente com ― inconsistente com. Entretanto, se “acordo” significa
“ser consistente com”, então Sócrates está dizendo que basta ser consistente com a
hipótese inicial para que qualquer proposição seja tomada por ele como
verdadeira, o que parece um passo apressado e não autorizado a se fazer, na
medida em que, do ponto de vista lógico, nada nos autoriza a adotar uma
proposição como verdadeira apenas pelo fato dela não poder ser refutada pela
nossa hipótese.
Uma outra possibilidade de interpretação seria ser dedutível de ― não ser
dedutível de. Essa interpretação parece encontrar apoio na continuação da
passagem onde Sócrates, depois de descrever a hipótese que ele tem em vista “A
realidade de um Belo, que existe em si e por si, de um Bem, de um Grande e assim
por diante” (100b), insinua que a próxima coisa a se fazer é tirar deduções disto:
... Se neste ponto me dás razão e aceitas a existência de coisas como
estas, espero bem a partir delas, explicar-te qual seja essa causa e descobrir
o que faz com que a alma seja imortal.
― Que dúvida! – disse Cebes – Conta com o meu assentimento e não
atrases mais as tuas conclusões.
― Observe, então, o que vem a seguir.
41
(100b-c)
Aqui esse “o que vem a seguir” parece significar “o que logicamente se
segue”; e “conclusão” parece ser a conclusão lógica.
Entretanto, essa interpretação também envolve uma dificuldade tão séria
quanto aquela da “consistência”. Se “acordo/desacordo aqui deve ser entendido
como ser dedutível de ― não ser dedutível de, então Sócrates estaria dizendo em
100a que sempre que ele não encontra uma proposição dedutível da hipótese
inicial, ele a coloca como falsa. Ora, esta lógica parece muito esquisita realmente.
Ninguém hoje sustentaria que, se p é verdade e q não é dedutível de p, então q
deve ser falso. Parece mesmo difícil de acreditar que Platão tenha sustenta isso ou
incorrido nisso por erro.
As duas interpretações da metáfora do acordo e desacordo, portanto, nos
levam a paradoxos sérios. O problema é que parece não haver uma terceira
interpretação e somos obrigados a escolher entre consistência e dedutibilidade
como significado de “acordo”. Segundo Robinson47, o melhor é consistência. O
paradoxo a que essa interpretação nos leva é bem menos grave do que aquele a
que nos conduz a escolha por dedutibilidade. Estabelecer como verdadeiras
proposições que são consistentes com a nossa hipótese inicial é mais defensável
do que estabelecer como falsas proposições que não são dedutíveis dela. Além
disso, essa interpretação parece ser confirmada pelo uso de Platão das palavras
“acordo” e “discórdia” em outros Diálogos. Enquanto que em nenhum outro
Diálogo encontramos qualquer passagem onde acordo e desacordo pareça indicar,
claramente, dedutibilidade ou a ausência disso; em vários outros, encontramos
passagens onde o uso do termo certamente indica consistência ou inconsistência:
“Nós temos que examinar o que o argumento diz como também o que Hipócrates
diz, e ver se eles concordam” (Fedro 270c); “Mas o que você está dizendo agora
parece a mim nem conseqüente nem de acordo com o que você disse no princípio”
(Górgias. 457e, cf. também 461a).
Uma maneira de diminuir o paradoxo a que essa interpretação leva ―
estabelecer proposições como verdadeiras porque elas são consistentes com a
hipótese inicial ― é assumir que não existe um real paradoxo em pressupor como
47 Op. Cit. p. 127.
42
verdadeiro aquilo que é consistente com sua hipótese. É bem razoável pressupor
uma proposição como verdadeira até que o aparecimento de uma inconsistência
nos leve a rejeitá-la. Sócrates segue o princípio de que toda proposição é
verdadeira até que se descubra ser ela incompatível com a hipótese ou com uma
de suas conseqüências, da mesma maneira que todo prisioneiro é inocente até que
se prove que ele é culpado.
O problema é que esse procedimento não configura a um método. O método
hipotético tem a pretensão de chegar a alguma conclusão particular. No caso,
Sócrates deseja estabelecer que a alma é imortal. Ora, meramente pressupor como
verdadeira toda proposição que for consistente com a hipótese inicial não nos leva
a qualquer conclusão de fato, mas apenas nos leva a acumular um monte de
afirmações. De modo que, se isso é feito deliberadamente para chegar à conclusão
desejada, não há nada que impeça de pressupor esta conclusão imediatamente
depois de pressupor a própria hipótese. O método hipotético chegaria ao fim quase
ao mesmo tempo em que ele começasse, sem que, com isso, a conclusão tenha se
tornado um pouco mais provável. Se, por um lado, consistência, ao invés de
dedutibilidade, se mostra como a interpretação mais natural para “acordo”, por
outro lado, o método hipotético descrito por Platão no Fédon e em outros
Diálogos, seguramente envolvia uma dedução de conseqüências a partir da
hipótese inicial e não apenas uma adicional “pressuposição” de proposições
consistentes com a primeira hipótese.
Devemos concluir, portanto, que Platão não diz, aqui, tudo o que ele tem em
mente sobre o método hipotético. Ele se restringe a dizer que o segundo passo do
método é achar proposições consistentes com a hipótese; mas ele acredita que,
com isso, podemos encontrar proposições não apenas consistentes, mas também
dedutíveis da hipótese inicial.
A metáfora do “acordo e desacordo” aparece mais uma vez na continuação
da passagem e de um modo ainda mais enigmático: “E, para o caso do teu
interlocutor se apoiar na hipótese em si mesma, pois bem, despachá-lo-ias sem
resposta, até verificares se os resultados dela decorrentes estão entre si em
concordância ou em discordância” (101 d). Segundo Robinson48, ao usar o termo
oJrmhqevnta (e wJrmhmevnon em 101e), Platão parece conceber “hipótese” como um 48 Op. Cit. p. 127.
43
impulso que dá origem a um fio de eventos ou que produz uma quantidade de
material. Essa concepção seria a mesma que é encontrada em outros Diálogos tais
como República (510d, 511b), Banquete (185e) e Teeteto (184a). Entretanto,
tampouco nessas outras passagens, a questão se esses resultados são
conseqüências lógicas ou resultados de outro tipo é inteiramente respondida e,
com exceção da presente passagem, não existe nenhuma outra passagem, em
Platão, onde oJrmhqevnta signifique, tecnicamente e indubitavelmente,
conseqüências lógicas tal como sumbaivnonta.
De forma que o que Platão parece estar querendo dizer é: “até que você
tenha considerado as conseqüências lógicas da hipótese, para ver se eles
concordam ou discordam entre si”. Isto nos coloca em uma posição ligeiramente
melhor em relação à questão se “acordo e desacordo” significa “ser dedutível de
― não ser dedutível de” ou “ser consistente com e ser inconsistente com”. Nós
temos um bom argumento para supor que “acordo” aqui significa “dedutível de”.
Pois, se significasse consistência, Platão estaria assumindo uma impossibilidade
lógica na medida em ele estaria assumindo que as conseqüências de uma hipótese
podem se contradizer mutuamente, e elas não podem. As várias proposições que
se seguem de uma dada proposição são necessariamente consistentes tanto em
relação a essa proposição quanto entre si. Este absurdo é evitado se tomarmos
como se ele estivesse dizendo: “você se recusa a responder até que você tenha
considerado as (supostas) conseqüências da hipótese para ver se elas se seguem ou
não umas das outras”. Se elas não se seguem elas não são realmente
conseqüências. Assim o procedimento inteiro consistiria em (1) fazer uma
hipótese, (2) deduzir suas conseqüências, (3) checar estas conseqüências para ver
que elas são realmente se seguem logicamente da hipótese (este é o passo descrito
em nossa passagem presente), e (4) postular estas conseqüências como
verdadeiras (como descrito anteriormente, 100A).
Entretanto, como mostra Robinson49, apesar do aparente absurdo lógico a
que ela parece levar, a opção por “ser consistente com e ser inconsistente com” é
preferível, aqui, à “ser dedutível de ― não ser dedutível de” pelas seguintes
razões: (1) Platão nessa passagem põe uma ênfase desproporcionada sobre a
atividade secundária de conferir os cálculos lógicos envolvidos. (2) nós já vimos
49 Op. Cit. p. 129.
44
anteriormente que nos textos de Platão a metáfora do “acordo” nunca significa
“dedutível de”, mas, freqüentemente, significa “consistente com”. Na presente
passagem “desacordo” ou diafwnei' parece uma metáfora bem antinatural para
“não se segue de”. (3) parece muito pouco provável que Platão, em duas
passagens tão próximas do ponto de vista temporal e semântico, queria significar
coisas diferentes através da mesma metáfora; e como vimos, no passo anterior, ela
significou “consistente com”. (4) mesmo os comentadores que rejeitam a opção
por consistente com, não propõem, ao invés, que devemos assumir “acordo” como
“dedutível de”, preferindo acreditar ou que Platão comete um erro ou que o texto
foi interpolado. Por estas razões nós devemos sustentar que “acordo” aqui também
significa consistência e que temos que passar por cima do absurdo lógico a que
essa interpretação parece levar.
3.3
A noção de lovgon didovnailovgon didovnailovgon didovnailovgon didovnai na passagem da Linha
Essas características do uso do verbo uJpotivqemai por Platão reforçam a
nossa desconfiança de que há algo mais na passagem da Linha do que uma mera
descrição dos aspectos referentes ao do modo de proceder das disciplinas
matemáticas. Na República, Platão chama de uJpoqevsei", o que o matemático
considera evidente por si mesmo e que não necessita justificação: não se dignam a
dar a razão(lovgon didovnai) delas nem a si próprios nem aos outros,
considerando que elas são evidentes para todos (510c). A questão é que, ao fazer
isso, de acordo com a nossa descrição do significado e do uso do verbo
uJpotivqemai, Platão confere um caráter de provisionalidade e de suspeição a algo
onde, antes, em geral, não havia.
O que incomoda é que, ainda que a terminologia referente aos primeiros
princípios da geometria grega não estivesse ainda definitivamente estabelecida50,
não parece provável que os matemáticos da época não distinguissem, pelo menos
qualitativamente, nos elementos que compõem suas disciplinas, entre princípios
de caráter “axiomático”, auto evidentes e indemonstráveis, e “princípios” de
caráter “hipotético”, conjeturais, provisórios e aproximativos. Que essa distinção
era feita é o que parecem nos sugerir os testemunhos que chegaram até nós51,
50 Yvon Lafrance, Platon et la Géometrie: la méthode dialectique en République 509d-511e, p.57 51 Segundo H.D.P. Lee (Geometrical method and Aristotle’s Account of First Principles, ds. Class. Quart. 29, 1935, p. 117. Apud Yvon Lafrance, op. cit. p. 53), a exposição de Aristóteles nos
45
assim como as passagens onde Platão trata do método hipotético dentro de um
contexto estritamente geométrico, parecem indicar que ele estava plenamente
consciente de que o que caracterizava o método hipotético entre os matemáticos
era justamente o caráter conjetural, provisório e aproximativo.
É fato bem conhecido, atestado em vários de seus diálogos, que Platão
atribuía às disciplinas matemáticas uma grande importância e que a sua por elas
não tinha nada de exterior ou superficial. É bem provável que, durante a infância
em Atenas, Platão tenha tido aulas de matemática ministradas por mestres
especializados. De acordo com Diógenes Laércio52, após a morte de Sócrates, no
decorrer da longa viagem que fez ao Egito e à África do Norte, Platão conheceu
um dos mais famosos geômetras da época — Teodoro de Cirene — que o iniciou
em seus métodos. Mais tarde, por volta de 389, visitando a Grande - Grécia,
tornou-se amigo de Arquitas de Tarento e, a partir dos trabalhos desse sábio, se
aprofundou nas teorias aritméticas dos pitagóricos. De modo que, quando, no ano
seguinte, ele retorna a Atenas para aí fundar a Academia, ele se encontra de posse
de uma excelente formação em matemática e, indubitavelmente, não ignorava
nenhuma descoberta notável da geometria contemporânea. Entretanto, o fato é
que, apesar de toda essa admiração e respeito, Platão simplesmente passa por cima
das distinções utilizadas pelos matemáticos de seu tempo com referência aos
princípios de suas disciplinas. Onde o matemático distinguia entre axiomas,
postulados, hipóteses e definições, Platão só vê “hipóteses”53.
Mas será que isso quer dizer que Platão desconhecia tais distinções? Isso
seria de se espantar, considerando-se o envolvimento que Platão tinha com as
disciplinas matemáticas e que, certamente, esboços ou formulações diferentes de
Segundos Analíticos 76b-77a dos primeiros princípios da ciência ou da demonstração segundo a ordem lógica é, em realidade, uma exposição dos primeiros princípios da geometria grega . Tais distinções são retomadas por Euclides em seus Elementos com a diferença que, em Euclides, o postulado é um princípio que não se tem necessidade de definir, enquanto que, em Aristóteles, um postulado deve ser demonstrado na medida em que ele é contrário a opinião daquele que aprende. Também é digno de nota a referência de Proclus sobre a existência, na Academia, de um tratado de elementos da geometria de um certo Theudios onde provavelmente se encontravam essas noções de axioma, de definição, de hipóteses e de postulados formuladas diferentemente. Cf. também Robinson, op. cit. p. 102. 52 apud Baccou, Robert. Introdução e notas à República, Ed. Guarnier, Paris, 1950. p. 456, n. 492. 53 Yvon Lafrance (op., cit., p. 57) nos faz saber que, em nenhum lugar de seus diálogos, Platão utiliza os termos aijvthma (postulado) e ajxivwma (axioma) em um sentido técnico e geométrico, apenas em um sentido puramente literário.
46
tais distinções já eram conhecidas em seu tempo54. A particularidade da
concepção platônica dos princípios das disciplinas matemáticas gregas nos parece,
portanto, estar menos num pretenso desconhecimento dessa terminologia e de suas
respectivas distinções e mais numa extensão consciente do uso do termo
“hipóteses” para além das fronteiras estabelecidas nessas mesmas disciplinas55.
Segundo Platão as disciplinas matemáticas só vêem ou conhecem o ser em
sonhos (ojneipwvssw) e que permanecerão assim enquanto considerarem as
hipóteses de que partem como intangíveis por não poderem demonstrá-las ou dar
a razão delas (lovgon didovnai). Mas o que isso significa?
Segundo R.M. Hare, Platão teria concebido as hipóteses em matemática,
não como proposições, mas como coisas ou entidades postuladas (postulated
entities): o par e o impar, as figuras geométricas e as três espécies de ângulos56.
Em sua interpretação, Hare se apóia, por um lado, em duas passagens do Timeu,
onde as hipóteses aí mencionadas podem realmente ser compreendidas como
coisas ou entidades:
(…) O novo começo de nossa descrição do universo exige uma
divisão mais ampla que a anterior. Na primeira distinguimos dois
gêneros; porém agora precisaremos revelar mais um. Para o discurso
anterior, bastavam aqueles: um, postulado (uJpoteqevn) como modelo
(paradeivgmato" eijvdo"), inteligível (nohto;n) e sempre o mesmo; o
segundo, cópia desse modelo (mivmhma de; paradeivgmato" ), visível
(oJratovn) e sujeito ao nascimento(…).
(48e) (…) Todos os triângulos são derivados de dois triângulos com
um ângulo reto e dois agudos. Um desses triângulos tem de cada lado
uma parte do ângulo reto dividido por lados iguais; o outro, partes
desiguais de um ângulo reto divididas por lados desiguais. Essa é a
origem (ajrch;n) que atribuímos (uJpotiqevmeqa) ao fogo e aos demais
54 F.M. Cornford. Mathematics and Dialectic in the Republic VI-VII. p. 63. 55 O que estaria totalmente de acordo com a tradição, em se tratando de Platão, de ser pouco fiel quanto ao que realmente foi dito por seus contemporâneos. Sobre isso, Cornford (La Teoria
Platónica del Conhecimento, Ed. Paidós, Buenos Aires, 1968. p.42.) tece um comentário revelador: “(…) nem Platão, nem Aristóteles fazem história da filosofia: eles mesmos filosofam, e procuram utilizar unicamente os elementos aproveitáveis, sem que lhes seja muito importante de onde provêem. Não devemos supor nunca, como coisa evidente, que a apresentação que fazem das doutrinas de outros filósofos se ajuste (exatamente) à verdade.(…)”.
De onde podemos acrescentar que Platão, no nosso caso, tampouco parece estar preocupado em fazer história da matemática, ou em apresentar testemunhos inequívocos de como os matemáticos contemporâneos definiam os primeiros princípios de suas disciplinas. 56 “The hypotheses here must be things, not proposition … it is impossible for them to be
propositions here” (Plato and the Mathematicians, ds. New Essays on Plato and Aristotle, ed. By R. Bambrough, London, 1963, p.23.) apud. Yvon Lafrance, op., cit.
47
corpos, de acordo com o método (to;n lovgon)que concilia a
necessidade com a probabilidade. (…)
(53d).
Hare traduz lovgon didovnai como “dar a definição de” e argumenta que,
como não faz sentido pedir que se dê a definição de proposições, o que Platão
reprovaria no método dos matemáticos era, portanto, o de não fornecerem a
definição das coisas ou das entidades que eles estudavam.
Cornford, ao contrário de Hare, afirma que Platão concebeu as hipóteses em
matemática como proposições e defende uma leitura existencial dessa passagem:
hypotheses are assumptions of the existence of things defined (hipóteses são
suposições da existência de coisas definidas)57. Segundo esse autor, o termo
ujpoqevsei" na República 510c deve ser tomado no mesmo sentido que o toma
Aristóteles no Segundos Analíticos 76b31 – 77a4, ou seja, como suposições que
assumem a existência das coisas definidas58. De forma que o que Platão criticaria
nos matemáticos era assumir a existência do par e do impar e das diversas figuras
e dos diversos ângulos, sem se preocupar em “provar” (lovgon didovnai) essa
existência.
A meio caminho dessas duas leituras e, mutatis mutandis, a igual distância
da verdade, temos a interpretação de Archer-Hind segundo a qual Platão utiliza o
termo ujpoqevsei" em A República 510c-d para indicar proposições definitórias:
(…)The hypothesis is the notion or definition, logos, under which the object to be
explained falls (…)(A hipótese é a noção ou definição, logos, sob a qual o objeto a
57 F.M. Cornford. Mathematics and Dialectic in the Republic VI-VII., ds. Mind (1932), reproduzido no Studies in Plato’s Metaphysics, London – New York, 1965, p. 65. apud Yvon Lafrance (op., cit., p. 59) 58 Neste texto, Aristóteles distingue como princípios da ciência, os axiomas, as definições e as hipóteses. Os axiomas seriam os princípios comuns a várias ciências e seriam primeiros na demonstração, isto é, indemonstráveis (76b 14-15; 71b 26-27). Ele acrescenta que o axioma é uma verdade necessária por ela mesma e que se mostra evidente como tal (76b 23-24). O segundo princípio da ciência seria a definição. As definições não seriam como os axiomas, princípios comuns a várias ciências, mas princípios particulares a cada ciência. A definição seria, por conseqüência, uma tese, isto é, alguma coisa que é posta pelo mestre sem demonstração, e onde se pede simplesmente que se compreenda (72a 21). Entretanto, as definições não se deixariam confundir com as hipóteses: estas constituiriam o terceiro gênero dos princípios da ciência. A diferença estaria no fato de que, enquanto a definição exprimiria o que significam os termos utilizados, a hipótese suporia a existência da coisa quando esta não fosse evidente (76b 35-36;72a 18-21). Deve-se ainda distinguir entre “hipótese” no sentido absoluto do termo e “hipótese” no sentido relativo. Em sentido absoluto, a hipótese suporia a existência da coisa definida, enquanto que, em sentido relativo, a hipótese seria colocada pelo mestre sem demonstração, ainda que sendo demonstrável, a partir do consentimento daquele que aprende. Quando aquele que aprende é de opinião contrária ou não tem opinião, a hipótese relativa é chamada então postulado (76b 27-34).
48
ser explicado cai)59. Archer-Hind expressou essa opinião ao analisar uma
passagem do Fédon (100a – 101e) que a maioria dos comentadores considera
como intimamente ligada à passagem de A República 510c, por estar em jogo,
justamente, o método hipotético. Nesse sentido, Archer-Hind parece se inspirar
em Proclus que, em seu comentário aos Elementos de Euclides, identifica as
hipóteses em geometria com definições60.
O maior problema de todas essas interpretações é a sua frágil base textual —
conseqüência, entre outras, da tentativa de explicar a “regra” recorrendo-se a
exceções. No caso de Hare61, por exemplo, as passagens apontadas, onde
hipóteses são consideradas como coisas ou entidades (na primeira o modelo
inteligível e a cópia desse modelo, e na segunda o triângulo como princípio do
fogo) constituem apenas casos isolados face às indicações muito mais numerosas
onde Platão associa o sentido de hipóteses a proposições tomadas como pontos de
partida de uma argumentação e assumidas em prol dessa mesma argumentação62.
De modo que elas não poderiam ser consideradas como indicações seguras de que,
na passagem de A República 509d – 511e, ujpoqevsei" deva ser compreendida
como coisas ou entidades.
Além disso, a tradução de lovgon didovnai por “dar a definição de”, inspirada
na passagem 533c onde Platão também critica os matemáticos por não “darem” o
lovgon de suas hipóteses, se encaixa mal com o contexto geral da passagem da
Linha onde a crítica platônica parece estar mais dirigida ao fato de os matemáticos
não se elevarem das hipóteses até ao primeiro princípio (511a5) e que estas, por
sua vez, só se tornam inteligíveis quando ligadas a esse primeiro princípio
(511d3-4), do que ao fato de os matemáticos não darem a “definição” das coisas
com que se ocupam. Ainda que se leve em conta a notória dificuldade de se
compreender o uso dessa expressão no vocabulário platônico, a passagem do
Fédon 101d7, onde, em pleno contexto geométrico, Platão utiliza a expressão
lovgon didovnai no sentido de “dar conta” de uma hipótese ligando-a a uma
hipótese superior, parece ser decisiva, nesse caso, contra a tese de Hare. E, 59 The Phaedo of Plato, p. 102, n. 8. apud Lafrance, op., cit., p.59 60 Ed. Friedlein, p. 178. apud Lafrance, op., cit., p.82 61 Os argumentos aqui expostos são desenvolvidos notadamente por C.C.W. Taylor em seu artigo Plato and the mathematicians: an examination of professor Hare’s Views e referendados por Yvon Lafrance (op., cit., p. 58). 62 p. ex., Fédon 100b5-7; Parmênides 135e9 – 136e; Protágoras 339d2-3, Eutidemo 11e; Teeteto 183b3-4; Mênon 87d3.
49
ademais, como entender que Platão critique os matemáticos por não darem a
“definição” daquilo de que eles se ocupam, se o uso de definições era prática
corrente entre os matemáticos bem antes de Platão63?
A interpretação de Cornford, por sua vez, peca, como argumentam alguns
comentadores64, por estar apoiada na pressuposição, não demonstrada, de que a
concepção aristotélica de hipóteses se identifica à de Platão. Pressuposição que
parece mesmo ir contra o texto platônico, na medida em que uma leitura mais
atenta aponta antes para uma identificação da hipótese platônica com a noção
aristotélica de axioma65. Ainda que se possa encontrar alguns casos onde
ujpoqevsei" são tomadas como proposições existenciais: (…)por aí começarei,
pois, tomando por pressuposto (uJpoqevmeno") a realidade de um Belo, que existe
(eij'naiv) em si e por si mesmo(…)(Fédon 100b5-6) e (…)Desenvolve idêntico
esforço partindo da hipótese (uJpoqh'i) de que a semelhança existe (evjstin) ou não
existe (mh; ejvstin)(…)(Parmênides 136b2-4) nada parece indicar, no entanto, que
esse seja o caso na passagem de A República 510c-d onde o teor da crítica
platônica se concentra, principalmente, no fato de serem, os matemáticos,
incapazes de ligarem suas hipóteses a um princípio primeiro (511a).
A interpretação de Archer-Hind tampouco resiste a uma leitura mais atenta.
Quando Sócrates propõe a Cebes colocar como hipóteses o Belo em si e por si, o
Bem e o Grande, ele tem em vista evidentemente a existência dessas formas
inteligíveis e não as suas definições. Da mesma forma, na descrição do método
hipotético um pouco mais adiante (101d-e) nada é dito que nos autorize a assumir
que uma hipótese seja uma definição. É verdade que podemos encontrar
passagens onde hipóteses são concebidas como definições como, por exemplo,
Eutífron 9d1-8 (definição da ação piedosa), Cármide 163a6-7 (definição da
sabedoria) e Teeteto 165d1 (definição da ciência), mas em todos esses casos as
hipóteses em questão são proposições provisórias que servem de ponto de partida
à discussão socrática, e que serão posteriormente descartadas pela refutação
socrática, e não proposições conhecidas e evidentes para todos como aparece na
passagem de A República que nos ocupa.
63 C.C.W. Taylor. Plato and the mathematicians: an examination of professor Hare’s Views, p. 121; p. Tannery. La Geometrie Greque, p. 108-120. apud Yvon Lafrance (op., cit., p. 59) 64 notadamente Lafrance (op., cit., p. 60) e C.C.W. Taylor (op., cit., p. 199) 65 cf. nota 9
50
Evidentemente, não se trata aqui de negar que, absolutamente, Platão não
possa ter pensado as hipóteses em geometria como entidades ou como proposições
existenciais, ou ainda como definições; mas apenas sublinhar que não se pode, a
partir das referências oferecidas, concluir que Platão tinha unicamente em vista,
em A República 510c-d, qualquer uma dessas opções. Mas o que, então, Platão
tinha em vista? Lembremos que o testemunho de Platão, nessa passagem,
restringe-se a afirmar que o que ele considera “hipóteses” são proposições
conhecidas e evidentes para todos e que servem de princípios à geometria e à
matemática. Mas antes de prosseguirmos, façamos uma breve análise da segunda
parte da descrição de Platão do modo de proceder das disciplinas matemáticas na
passagem da Linha dividida.
3.4
O uso de imagens sensíveis pelos matemáticos:
A segunda parte da descrição de Platão sobre o modo de proceder dos
matemáticos refere-se ao uso de imagens sensíveis em seus raciocínios sobre as
realidades supra-sensíveis de que tratam:
Sócrates — Então, sabes também que eles utilizam figuras
visíveis (oJrwmevnoi" eijvdesi) e raciocinam sobre elas pensando
(dianoouvmenoi) não nessas mesmas figuras, mas nos originais que
elas reproduzem. Os seus raciocínios baseiam-se no quadrado em si
mesmo (tou' tetragwvnou aujtou') e na diagonal em si mesma
(diamvtrou aujth'"), e não naquela diagonal que traçam; o mesmo vale
para todas as outras figuras. Todas essas figuras que modelam ou
desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas águas, eles
se utilizam como tantas outras imagens, para tentar ver esses objetos
em si mesmos, que, de outro modo, só podem ser percebidos pelo
pensamento (dianoivai). (510d-e)
A pergunta que imediatamente se coloca é se existiria, ou não, uma conexão
necessária entre as duas características da matemática/diavnoia mencionadas por
Platão: de um lado, a atitude dos matemáticos com relação às hipóteses e o
conseqüente estatuto “hipotético” de seus princípios e, de outro, o recurso a
imagens sensíveis em seus raciocínios sobre as realidades supra-sensíveis de que
tratam. Será que Platão está dizendo que a geometria tem que usar hipóteses como
faz — seguindo um caminho que a leva, não a um princípio (ajrch;n), mas a
conclusão (teleuthvn) — por causa de seu emprego de imagens, ou que tem que
usar imagens por causa do modo como trata as hipóteses — que, tendo
51
pressuposto essas coisas (poihsavmenoi ujpoqevsei" aujtav) como se as
conhecessem (wj" eijdovte"), não se dignam a dar a razão (lovgon didovnai) delas
nem a si próprios nem aos outros, considerando (ajxiou'si) que elas são evidentes
para todos (wj" panti; fanerw'n) — ou ambos? Ou será que aqui há apenas uma
ligação casual, acidental, característica da matemática de sua época?
Segundo Burnet66, a existência de uma conexão necessária entre o método
hipotético e o uso de imagens é sugerida pelo fato de “usando as imagens”, na
passagem 510b, estar ligado como um particípio ao uso de hipóteses no verbo
principal:
Na primeira parte desse segmento, a alma, usando as imagens
dos objetos que no segmento precedente eram os originais, é obrigada
a estabelecer suas análises partindo de hipóteses
(hJ'i to; me;n aujtou' toi'" tovte mimhqei'sin wJ" eijkovsin crwmevnh yuch; zhtei'n ajnagkavzetai ejx uJpoqevsewn).
(510b)
Robinson67, no entanto, contesta essa hipótese de Burnet. Segundo
Robinson, o fato de que “usando as imagens” estar ligado como um particípio ao
uso de hipóteses no verbo principal sugeriria uma conexão necessária, entre
“partir” de hipóteses e o recurso a imagens, e não uma conexão meramente
histórica é ilusória. A posição de Robinson é que Platão até pode ter encontrado
algumas conexões entre esse dois aspectos pela razão de que ele via o
procedimento matemático como um tipo distinto de atividade mental (novhsi" X
diavnoia). Mas isso é tudo. Não haveria na República nenhuma declaração que
associe necessariamente o método hipotético e o uso de imagens.
Por outro lado, segundo Robinson68, se, no Fédon (99d-100a), se declara
que o método hipotético não faz uso dos sentidos, isto não significaria, tampouco,
que aquele método “necessita” não usar os sentidos; nada é dito aí sobre haver
uma conexão necessária, ou não, entre esses dois aspectos. Ademais, continua ele,
segundo a passagem que nos ocupa, as matemáticas não são as únicas a usar
hipóteses; a dialética também as usa. E essa é uma das curiosidades dessa
passagem: quando Platão diz que as matemáticas partem de hipóteses
(ejx uJpoqevsewn), ficamos esperando que ele diga que a dialética, ao contrário, não
parte de hipóteses, mas o que ele diz é que também a dialética parte de hipóteses 66 Greek Philosophy, p. 229, apud ROBINSON, R., op. cit., loc. cit. 67 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 155. 68 Ibid. p. 154.
52
(ejx uJpoqevsewn). Uma coisa, no entanto, segundo Robinson, é certa: a dialética
não recorre a imagens.
Robinson69 defende que o mais provável é supor que Platão conectou o
procedimento geométrico ao uso de imagens não porque os geômetras partem de
hipóteses, mas porque eles “falham” ao usar o método hipotético. A perspectiva
de Platão, segundo Robinson, era de que os geômetras tomavam seus princípios
como certos e evidentes quando deveriam tomá-los como hipóteses, que é o que
eles são, embora o geômetra não reconheça isso. Platão desconfiava que o que
fazia os matemáticos tão convencidos de suas hipóteses era que elas pareciam ser
dadas diretamente em intuição sensível. E essa passagem seria uma crítica,
portanto, para que não se confundisse a tendência à intuição do espaço com a
reivindicação de que aqueles postulados são “certezas”. Segundo Robinson70, os
contemporâneos de Platão aceitavam ambos. Platão e o século XX rejeitam
ambos.
Entretanto, nos parece que a passagem que nos ocupa está mais para uma
descrição esquemática do método dos geômetras do que para uma “crítica” desse
mesmo método. De modo que, apesar de concordarmos, em suas linhas gerais,
com os argumentos de Robinson, devemos tentar esclarecer melhor em que
sentido podemos entender esse porque eles falham ao usar o método hipotético71.
Se compararmos com a análise de Suzanne Mansion72, essa “falha” no uso
do método hipotético parece dever-se menos a um pretenso “mau” uso do método
hipotético e estaria relacionada muito mais com a própria natureza dos objetos
matemáticos. Partindo do pressuposto de que, assim como foi o caso para o
segmento do sensível, a divisão em dois subsegmentos no inteligível também é
fundada sobre a natureza mesma de seus respectivos objetos73, Mansion defende
que as duas características da matemática mencionadas estão intimamente
relacionadas e que as figuras traçadas pelo geômetra possuem um papel crucial na
demonstração de suas hipóteses. Haveria casos, p. ex., em que a demonstração só
69Loc. cit. 70 op. cit. p. 156. 71 “A much more problabe suggestion is that Plato is connecting geometry’s use of the senses not with its use of hypothetical method but with its failure to use the hypothetical method” (op., cit., p.155) 72 L’objet des mathématiques et l’objet de la dialectique selon Platon, in La Revue philosophique de Louvain 67 (1969) 365-388. 73
op. cit. p.366
53
é possível com a ajuda de uma construção, isto é, linhas, ângulos e figuras que se
acrescenta à figura de que se partiu74. De modo que o papel das imagens em
geometria iria muito além de um mero auxílio à razão por intermédio da
imaginação, e isto nem tanto pela sua condição de objetos materiais individuais,
mas porque elas representam os verdadeiros objetos da geometria: o triângulo ou
o quadrado enquanto tais.
Segundo Mansion, essa distinção é perfeitamente familiar aos geômetras.
Qualquer geômetra sabe muito bem que a exatidão com que ele traça suas figuras
não tem nenhuma importância desde que ele permaneça de acordo com a hipótese
colocada no início. Por outro lado, ele sabe também que ele não encontrará a
solução de seu problema a menos que ele descubra a construção a ser feita; esta,
por sua vez, deve ser uma construção que se justifique geometricamente, que deve
estar de acordo com as definições, axiomas e postulados de que a geometria parte
e que lhe fornecerão o intermediário necessário ao seu raciocínio para chegar à
conclusão.
A interpretação de Mansion nos coloca diante do já mencionado problema
sobre as famosas entidades matemáticas intermediárias citadas por Aristóteles em
Metafísica A6. Afinal, teria, ou não, Platão concebido as entidades matemáticas
como nohta; intermediários?
Não iremos aqui nos envolver diretamente com essa questão, uma vez que
ela excede largamente ao escopo desse trabalho. Entretanto, gostaríamos de fazer
algumas considerações, inspiradas por Mansion, e no sentido de complementar o
que foi dito até aqui, que talvez mostrem que tal concepção, em se tratando de
Platão, não é tão tola assim75.
A questão que imediatamente se coloca é por que Platão alinha as noções
matemáticas numa classe diferente daquela das Idéias puras? Alguns
comentadores76 sustentam que tal distinção se deve somente a uma diferença entre
os respectivos métodos e não a uma diferença entre a natureza dessas entidades. E,
de fato, enquanto Platão faz claramente uma distinção entre a natureza das coisas
74 op. cit. p.368 – 369. 75 É o que pensa Shorey (Plato, The Republic with na English Translation by Paul Shorey, The Loeb Classical Library, Cambridge, Massachusetts, vol. II, p. 164, note a.). apud. Mansion, op.,
cit. 76 P. ex., Lafrance (op., cit., p. 78);
54
que compõem os dois subsegmentos do âmbito sensível, o mesmo parece não
ocorrer no âmbito do inteligível, onde Sócrates não é claro sobre se há diferença
entre os objetos correspondentes a cada subsegmento. Tudo que é dito aí é que
existe uma diferença nos procedimentos cognitivos envolvidos em cada um deles.
Por outro lado, a crítica de Platão quanto aos matemáticos, de serem incapazes de
ligar suas hipóteses a um princípio primeiro, sugere que a única coisa que falta ao
conhecimento matemático para se tornar verdadeiramente ejpisthvmh é um
fundamento independente, que não seja ele mesmo hipotético (ajnupovqeto"). De
maneira que, as matemáticas pareceriam pertencer ao âmbito da diavnoia, apenas
por causa de seu lado “prático”.
Apesar de considerarmos salutar o zelo de tentar não se ir além do que diz a
letra platônica, consideramos, no entanto, que essa explicação não é inteiramente
convincente na medida em que não são apenas as hipóteses matemáticas que
devem buscar confirmação em um princípio superior não hipotético, as hipóteses
de que parte o dialético também devem buscar a mesma confirmação. De forma
que não se vê, a partir daí, por que Platão teria alinhado as hipóteses do
matemático em uma classe inferior.
Se, então, Platão divide o mundo inteligível em duas seções, é porque, para
ele, os nohta; inferiores são claramente distintos dos nohta; superiores. Há um
outro aspecto do testemunho de Platão sobre as matemáticas que talvez nos ajude
a entender melhor em que sentido se funda tal distinção: as chamadas antinomias
matemáticas e geométricas. De acordo com a interpretação de Cherniss77 da
Teoria das Idéias, temos que a sua principal inspiração (da Teoria das Idéias) é
permitir ao espírito escapar às contradições inerentes ao âmbito sensível. A
questão é que essas contradições podem ser encontradas igualmente no âmbito das
entidades matemáticas e geométricas como nos mostram as passagens de A
República 523e – 525b e Fédon 96e. E queremos crer que a causa disso é que os
objetos matemáticos, ainda que indubitavelmente distintos do objetos sensíveis,
possuem, contudo, uma certa natureza espacial ou, ao menos, quantitativa que,
assim como ocorre no sensível, é um obstáculo para a sua plena inteligibilidade.
Natureza essa que confere algo de paradoxal a esses objetos e que forçariam o
espírito a procurar seu fundamento num plano superior, puramente lógico. Sendo
77 op., cit.
55
assim, poderíamos dizer que as noções matemáticas como que guardam um “pé”
no sensível e outro no inteligível, isto é, que elas não são idéias puras, mas
imagens dessas idéias misturadas à representações sensíveis, o que configuraria,
senão entidades intermediárias, ao menos, noções algo mistas.
Daí a necessidade dos matemáticos, nas suas hipóteses, de recorrerem a
imagens sensíveis em seu raciocínio sobre as realidades supra sensíveis de que
tratam: como as relações entre as noções matemáticas são também de ordem
espacial ou quantitativa e não apenas lógicas, o matemático, na demonstração de
suas hipóteses, tem que se apoiar não apenas em seu rigor dedutivo, mas também
em imagens que complementariam essa mesma dedução78.
78 Mansion, op., cit., p. 370
4 Conhecimento na República.
4.1 A noção de Conhecimento do Livro X (601b – 602b)
Se, por um lado, os matemáticos são criticados por Platão por não serem
capazes de dar a razão (l ovgon dido vn a i) dos hipóteses principais de suas
disciplinas, por outro, o dialético/filósofo é apresentado, justamente, como aquele
capaz disso, na medida em que, em seu modo de proceder, trata suas hipóteses não
como princípios (ajrca v") de uma dedução, mas realmente como hipóteses, isto é,
como pontos de partida ou de apoio para, no sentido inverso, remontar em
direção, não mais a algo simplesmente suposto, mas ao princípio mesmo de tudo
(pa n t o;" a jrch ;n), o princípio não-hipotético (ajr ch ;n a jn u povqet o n). E é isso que faz
da dialética a única a poder ostentar legitimamente o título de conhecimento ou
ciência (ejpis th v mh) (533b – 534a).
Existe, portanto, uma estreita relação entre a noção de ciência (ejpis t h vmh) e
a capacidade de dar a razão (l ovgon did ovn a i) entendida aqui como a capacidade
de fundar proposições hipotéticas em um princípio não hipotético. Aquele que
conhece, ou seja, quem detém uma ciência, é capaz estabelecer os nexos causais
entre as hipóteses de que parte em suas pesquisas e um princípio considerado
como não hipotético.
57
Nesse sentido, essa noção de conhecimento pode ser aproximada das
descrições encontradas no Ménon 97 -98 e no Teeteto 200-201, onde conhecer ou
a ter a ciência de algo é mais do que o simples fato de ter razão, ou de possuir
uma opinião verdadeira. O Teeteto, por exemplo, sugere que conhecimento
poderia ser a “opinião verdadeira acompanhada de Justificação (l ovgo"):
Teeteto ― Sobre isso, Sócrates, esquecera-me o que vi alguém
dizer; porém agora volto a recordar-me. Disse essa pessoa que
conhecimento é opinião verdadeira acompanhada da explicação racional, e
que sem esta deixava de ser conhecimento. As coisas que não encontram
explicações não podem ser conhecidas ― era como ele se expressava ―
sendo, ao revés disso, objeto do conhecimento todas as que podem ser
explicadas.
Sócrates― Falas muito bem. Porém dize-me como ele distingue as
conhecidas das que não são, para vermos se eu e tu ouvimos a mesma
cantiga.
Teeteto ― Não sei se poderei recordar-me; porém se alguém fizer
essa exposição, penso
que me será fácil acompanhá-lo.
Sócrates― Então, que vá um sonho em troca de outro. Eu também,
parece-me ter ouvido de certa pessoa que os denominados elementos
primitivos de que somos compostos, como tudo o mais, não admitem
explicação. A cada um só poderás dar nome, sem nada mais acrescentar,
nem que é nem que não é, pois isso já implicaria atribuir-lhe existência ou
não-existência, o que não seria lícito, se quiseres falar dele, apenas dele.
Como também não devemos determiná-los com expressões como: Mesmo,
Aquilo, Cada um, ou: Só, Isto e muitas outras do mesmo tipo. Porque
semelhantes determinações circulam por tudo e em tudo aderem, sendo
diferentes das coisas a que se juntam, quando o importante para aqueles
elementos, no caso de nos ser possível defini-los e de comportar cada um
sua explicação particular, seria serem enunciados à parte de tudo, sem
acréscimo de qualquer natureza. A verdade, em suma, é que nenhum desses
elementos admite explicação; só podem ser nomeados; é só o que tem:
nome. Diferentemente se passa com os compostos desses elementos: por
serem complexos, são expressos por uma combinação de nomes, pois a
essência da definição consiste numa combinação de nomes. A esse modo, as
letras são inexplicáveis e desconhecidas, porém percebidas pelos sentidos,
ao passo que as sílabas são conhecíveis, explicáveis e podem ser objeto da
opinião verdadeira. Por isso, quando alguém forma opinião verdadeira de
qualquer objeto, sem a racional explicação, fica sua alma de posse da
verdade a respeito desse objeto, porém sem conhecê-lo. Pois quem não sabe
nem dar nem receber explicação de alguma coisa, carece do conhecimento
dessa coisa; porém se a essa opinião acrescentar a explicação racional,
então ficará perfeito em matéria de conhecimento. Foi isso que ouviste em
sonhos, ou foi coisa diferente?
E o Ménon, que o fato de dispor do “raciocínio causal” poderia tornar a
opinião verdadeira suficientemente estável para que ela seja assimilada ao
conhecimento:
58
Mas a que propósito digo essas coisas? A propósito das opiniões
que são verdadeiras. Pois também as opiniões que são verdadeiras, por
tanto tempo quanto permaneçam, são uma bela coisa e produzem todos os
bens. Só que não se dispõe a ficar muito tempo, mas fogem da alma do
homem, de modo que não são de muito valor, até que alguém as encadeie
por um cálculo de causa. E isso, amigo Mênon, é a reminiscência, como foi
acordado entre nós nas coisas ditas anteriormente. E quando são
encadeadas, em primeiro lugar, tornam-se ciências, em segundo lugar
estáveis. E é por isso que a ciência é de mais valor que a opinião correta, e
é pelo encadeamento que a ciência difere da opinião correta.
(97e – 98a).
Em ambos os Diálogos, o conhecimento é considerado uma perfeição da
opinião verdadeira. Os dois textos põem em relevo noções que hoje nós
traduziríamos por explicação ou algo do gênero. Segundo alguns comentadores79,
Platão em nenhum dos dois Diálogos consegue dar conta adequadamente da
noção de conhecimento e que essa noção, na verdade, se assemelha duplamente às
teorias modernas que, por um lado, representam o conhecimento como uma
opinião verdadeira acompanhada de uma justificação ou de um correto
encadeamento causal sobre o objeto de conhecimento e, por outro, supõem
igualmente que o estado resultante desse aperfeiçoamento é uma espécie de
aprimoramento em relação exatamente às mesmas coisas as quais, anteriormente,
o sujeito do conhecimento possuía apenas opinião.
A República aborda a questão tema em duas ocasiões. A primeira no Livro
V (474b – 480a) e a segunda no Livro X (601b – 602b). Começaremos pela
segunda já que a noção desenvolvida nela se assemelha mais com as noções
encontradas no Mênon e no Teeteto e nos permite aprofundar o que foi dito até
aqui. No Livro X (601b – 602b) a distinção entre conhecimento e opinião
verdadeira é elucidada por meio de uma referência à fabricação e ao uso de um
artefato: para tudo que pode ser fabricado ou utilizado, as competências
necessárias à fabricação serão diferentes daquelas necessárias à utilização. Aquele
que fabrica tem opiniões verdadeiras sobre a confecção das coisas que fabrica,
mas apenas aqueles que utilizam as coisas possuem o conhecimento dessas
mesmas coisas, pois somente eles possuem a experiência das qualidades que
tornam uma coisa boa ou não para o uso apropriado. O conhecimento que possui o
utilizador do que torna uma coisa boa ou má para o uso apropriado é a fonte das
opiniões verdadeiras que o fabricante possui sobre a maneira de fabricá-la.
79 Cf. ANNAS, Julia. Introduction à la Republique de Platon, PUF, Paris, 1994; p. 244.
59
Sócrates ― Há três artes (t e vc na") que correspondem a cada
objeto: as do uso (c ph so mevn hn), da fabricação (po i hvs ousa n) e da imitação
(mim hso m evn hn). Glauco ― Sim, há. Sócrates― Mas qual será o objetivo da
virtude, da beleza, da perfeição de um móvel, de um animal, de uma ação,
senão o uso (c pe i va n), com vista ao qual cada coisa é feita, quer pela
natureza, quer pelo homem? Glauco ― Não será nenhum outro. Sócrates ― Em sendo assim, é forçoso que aquele que utiliza uma coisa seja mais
experimentado (ejm pe ipo vta to vn) e informe (gi vgne sqa i) o fabricante das
qualidades e defeitos da sua obra, baseado no uso que faz dela. Por
exemplo, o tocador de flauta informará o fabricante acerca das flautas que
poderão servir-lhe para tocar; dir-lhe-á como deve fazê-las, e aquele
obedecerá. Glauco ― Indubitavelmente. Sócrates ― Portanto, o que
conhece vai se pronunciar sobre as flautas boas e más, e o outro trabalhará
confiando nele. Glauco ― Certamente. Sócrates ― Assim, em relação ao
mesmo instrumento, o fabricante tem, acerca da sua perfeição ou
imperfeição, uma fé que será exata (pi vs tin ojr qhn)80
porque está em ligação
com aquele que sabe e é obrigado a ouvir as suas opiniões, mas é quem
utiliza quem tem a ciência (o J de ; c pwvm e no" ejpis t hvm hn). Glauco ― Perfeito. Sócrates ― Mas o imitador estará na posse do uso da ciência das
coisas que representa, saberá se elas são belas e corretas ou não, ou terá
delas uma opinião opinião verdadeira (dÒxan Ñrq¾n) porque será obrigado
a conviver com aquele que sabe e a receber as suas instruções, quanto à
maneira de representá-las? Glauco ― Nem uma coisa nem outra.Sócrates ― O imitador não tem, portanto, nem ciência (e i jvse ta i) nem opinião
verdadeira (o jr qa; do xavs e i) no que diz respeito à beleza e aos defeitos das
coisas que imita?
(601d – 602a)
Ainda que não pretenda dar uma definição geral de conhecimento, o tema é
tratado en passant no contexto de uma argumentação em favor da condenação da
poesia estabelecida no Livro III, a passagem nos permite discernir os princípios
mais gerais sobre os quais se apóia a Platão:
― Diferentemente da opinião verdadeira que é, ou pode ser, de segunda
mão, o conhecimento se apóia em uma experiência que é, num certo sentido,
direta.
― O conhecimento permite a possibilidade de formular claramente o que é
o objeto conhecido, e as razões pelas as quais ele é como ele é; isso implica que se
saiba o que permite dar a razão de seu aspecto bom ou mau. A opinião verdadeira
não precisa de nada disso.
O conhecimento é visto, portanto, como um aperfeiçoamento da opinião
verdadeira. Essa noção, como dissemos, se assemelha às noções que encontramos
80 A pivs t i" oj rq h v que se liga à o jrq h v d ovxa, vem, na escala do conhecimento, imediatamente após a d ia vno ia. A imitação e, de uma maneira geral, a arte na medida em que ela é imitativa, surge dessa potência da alma que Platão chama de ei kas iva.
60
no Ménon 97 -98 e no Teeteto 200-201. Entretanto, existem diferenças
importantes que distinguem a visão platônica da noção moderna81. Platão não dá
nenhuma importância a algumas das distinções as quais as análises modernas dão
muito peso, como p.ex., saber que, saber como, e conhecer alguma coisa. Para
ele, saber (e pôr em prática) certas verdades sobre o uso da flauta é apenas uma
parte do fato de saber como usar a flauta, o todo sendo considerado como “possuir
o conhecimento da flauta” Se existe uma entre as nossas expressões idiomáticas
concernindo o “conhecimento” que responde às preocupações de Platão, essa é
“saber o que”. Para Platão, o conhecimento está associado com o fato de saber o
que é uma coisa, de conhecer suas propriedades essenciais:
Pelo menos, há um ponto que, creio, ninguém contestará: além dos
métodos que acabamos de examinar, existe outro, que procura apreender
cientificamente a essência de cada coisa. As demais artes ocupam-se apenas
dos desejos dos homens e dos seus gostos e estão voltadas por inteiro para a
produção e a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais.
Quanto aos que fazem parte da exceção e que, como dissemos, apreendem
algo da essência, a geometria e as artes que lhe são afins, vemos que só
conhecem o Ser por sonhos e que lhes será impossível ter dele uma visão
real enquanto considerarem intangíveis as hipóteses que não os tocam, pois
que vêem-se impossibilitados de explicar o motivo. Na verdade, quando se
toma por princípio algo que não se conhece e as conclusões e as
proposições intermediárias se compõem de elementos desconhecidos,
poderá semelhante raciocínio se tornar uma ciência? (533b-c)
Ocorre o mesmo com o Bem. Dize-me, Glauco: um homem que não
pode compreender a idéia do Bem, separando-a de todas as demais idéias,
e, como num combate, abrir caminho a despeito de todas as objeções,
esforçando-se por vencer as suas provas, não na aparência, mas na
essência; que não possa transpor todos esses obstáculos pela força de uma
lógica infalível, que não conhece nem o bem em si mesmo nem nenhum
outro bem, mas que, se apreende alguma imagem do bem, é pela opinião, e
não pela ciência, que o apreende: não dirás tu que ele passa a vida presente
em estado de sonho e sonolência e que, antes de despertar neste mundo, irá
para o Hades dormir o último sono? (534b-d)
Mas a principal diferença entre a concepção platônica e a tradição pós-
cartesiana é que o gênero de aperfeiçoamento visado por Platão não tem nada a
ver com o aumento de certeza ou de supressão da dúvida. As opiniões do
fabricante são verdadeiras e, dentro de seus limites, bastante convenientes; Platão
jamais sugere que elas poderiam ser falsas ou que nós deveríamos pô-las em
81 Cf. Annas, op. cit. p.. 246 – 275; Robinson, Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 146 - 179
61
dúvida. Se o estado do utilizador é melhor do que aquele do fabricante, não é
porque o primeiro tenha mais certeza do que quer que seja; mas porque ele tem
uma compreensão do seu objeto e do seu conteúdo que o segundo não tem. Se as
opiniões do fabricante são inferiores, não é porque elas sejam falsas ou possam
ser; mas porque elas procedem de um estado que não possui nenhuma
compreensão das razões pelas quais elas são verdadeiras, e não pode dar delas
qualquer explicação. E, de fato, algumas delas poderiam ser falsas, pelo o que o
fabricante sabe delas, mesmo que elas não sejam de uma natureza tal que ele ou
nós mesmos possamos as pôr em dúvida.
Desse modo, é a compreensão, e não a certeza, a marca do conhecimento e
aquilo que o distingue opinião verdadeira. Alguém que possui o conhecimento
não se opõe ao cético, mas àquele que, para fins práticos, retoma de segunda mão,
e de uma maneira irrefletida, as opiniões verdadeiras.
A outra ocasião onde Platão tenta responder ao problema da distinção entre
conhecimento e opinião verdadeira se dá no Livro V (474b – 480a) onde a
questão é analisada de forma mais complexa e mais longa. Passemos a ela.
4.2
República 474b – 480a : a diferença entre aquele que sonha e aquele
que está desperto.
A descrição da cidade ideal desenvolvida nos livros II, III e IV de A
República chega ao final do livro V a um impasse. Sócrates, intimado por Glauco,
hesita em demonstrar de que maneira e em que condições a cidade justa e feliz é
realizável:
Glauco (…)Mas, parece-me, Sócrates, que se te deixamos
prosseguir, nunca mais te lembrarás do assunto que puseste de parte para
entrares em todas essas considerações, isto é, se semelhante governo é
possível e como é possível. (…) Porém, dado que estou de acordo contigo
em que terão todas essa vantagens e muitas outras, se esse governo for
instituído, deixa de me falar dele. Procuremos antes convencer-nos de que
uma tal cidade é possível, de que maneira é possível, e deixemos de lado
todas as outras questões.
(471c-d)
A razão dessa hesitação, explica o próprio Sócrates, é o receio de parecer
ridículo por conta do paradoxo a que a sua proposta leva. No mais, lembra,
62
aumentando o suspense, o objetivo inicial da investigação era estabelecer o que é
a justiça em si mesma e o que seria o homem inteiramente justo e não demonstrar
a possibilidade de existência desses modelos. Mesmo porque, observa, um
possível fracasso de tal demonstração não diminuiria em nada o valor do que foi
estabelecido82, e, além disso, uma vez que, por natureza, discurso e ação não são
jamais plenamente redutíveis, não se poderá exigir, portanto, mais do que uma
demonstração apenas aproximada (473a-b) do plano traçado.
Estando, desse modo, estabelecidos os horizontes da expectativa em torno
de tal demonstração, Sócrates começa, então, a expor o que ele tem em mente.
Sócrates aponta ser necessário apenas uma mudança para que seu projeto possa
ser efetivado: que a cidade ideal seja governada por filósofos, ou que os
governantes tenham formação filosófica, em outras palavras, a convergência, num
mesmo indivíduo, de duas esferas o poder político e a filosofia:
Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que
hoje denominas reis e soberanos não se tornarem verdadeira e seriamente
filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num
mesmo indivíduo, (…)na terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades,
nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós
descrevemos será edificada.
(473 e-d) Como Sócrates previa, seu enunciado causa surpresa e Glauco não resiste e
provoca Sócrates dizendo de que, de fato, diante de proposta tão contrária à
opinião do senso comum, Sócrates corre mesmo um grande risco de ser
ridicularizado pela multidão, a menos que consiga provar que as coisas são
realmente como ele diz.
Sócrates responde que o paradoxo se constitui em razão de uma percepção
equivocada, por parte do senso comum, da figura do filósofo. Sendo assim, torna-
se necessário, primeiro, distinguir a natureza daqueles que são filósofos para que
se entenda porque convém a eles governar a cidade. A discussão sobre esse ponto
se dividirá em dois momentos, cada qual com uma finalidade específica: o
primeiro, que se desenvolve logo em seguida, estabelece a diferença entre os
filósofos e os não filósofos; o segundo, que começa no início do Livro VI, consiste
numa descrição do filósofo e da sua alma.
82 Julgas, então, que o que dissemos seria menos bem dito se fôssemos incapazes de provar que
se pode edificar uma cidade com base nesse modelo? Certamente que não. (472e)
63
No que diz respeito ao primeiro momento, a diferença entre os filósofos e os
não filósofos será estabelecida em relação à determinação do objeto de
conhecimento próprio ao filósofo. Sócrates começa definindo o filósofo como
aquele que deseja (ejpi qu mh t ik ov") a sabedoria (s of iva "), não apenas essa ou
aquela parte, mas a totalidade (pa vs h "). Entretanto, Sócrates não explica em que
consistem as diversas partes dessa totalidade, limitando-se, simplesmente, em
identificá-las a todas as ciências (pa n t o;" ma qh v mat o ", 475c1, c7)83. Descrita
dessa forma, a sabedoria filosófica aparece aqui meramente como uma reunião de
saberes. O f il ovs of on é identificado com o f il o ma qh '84.
Glauco então observa que essa definição geral nos obriga a alinhar entre os
filósofos todos aqueles que amam os espetáculos, os f il o qeavmon e", pelo prazer
(ca ivron t e") que demonstram em aprender (k a t ama n qa vn e in). Inclusive os
desejosos em ouvir, os f il h vk ooi que correm às festas dionisíacas e todos aqueles
que demonstram entusiasmo em aprender semelhantes coisas (ma q h ti k ou;") e que
estudam as artes inferiores (t ecn u d rivon).
A observação de Glauco obriga Sócrates a especializar a sua definição: só
são filósofos aqueles que amam o espetáculo da verdade85, os
t h '" a jl h qeiva " f il oqea vm on a ". Os outros apenas parecem aos filósofos, mas não o
são.
O que distingue os verdadeiramente filósofos daqueles que apenas parecem
filósofos, os amantes de espetáculos (f il oq ea vmo n a"), os amantes das artes
(f il ot e vcn o u ") e os homens práticos (pra k t ik o uv"), é que enquanto a curiosidade
dos últimos se esgota na contemplação dos múltiplos belos que se encontram nas
ações, nos sons, nas cores e nas figuras sensíveis, os primeiros buscam contemplar
o Belo em si mesmo (a u jt ou' t ou ' k a l ou'). No primeiro caso, o pensamento
(diavn oia) é incapaz de ver (ijde i'n) e acolher amorosamente a natureza desse Belo
em si mesmo.
83 Cf. Laches 182d: — É difícil, Nícias, dizer, de uma ciência (m aqh vm aq t o ") qualquer, que não se
deve aprende-la; caso me parece que existe vantagens em tudo conhecer (pav nt a ej pi vs t a s q ai). 84 Cf. Fédon 82c-e: E quanto à espécie divina, absolutamente ninguém, se não filosofou, se daqui
partiu sem estar totalmente purificado, ninguém tem o direito de atingi-la, a não ser unicamente
aquele que é amigo do saber (filo m aq ei') e 82d-e: Vou dizer-te. É uma coisa bem conhecida dos
amigos do saber(fi lo m aq ei' ") 85 Cf. Fédon 66b-c: E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que
tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos
completamente o objeto de nossos desejos(ejpiq um o u'm e n)! Ora, esse objeto é, como dizíamos, a
verdade (a j lh q ev "). E, sobretudo, 84a-b: [a alma do filósofo] toma o verdadeiro (a j lh q ev "), o divino
(q ei 'on), o que escapa à opinião (ajdo v xas t on), por espetáculo (q ewm ev nh) e também por elemento.
64
Nesse sentido, face àquele que é capaz de se elevar até o Belo em si mesmo
e de ver a sua essência, o falso filósofo, o que conhece as belas coisas, mas
desconhece a Beleza em si mesma, parece, antes, sonhar86 do que viver a
realidade: sonhar (ojv eirw vt t ein) não é, quer se esteja dormindo, quer acordado,
tomar a aparência de uma coisa pela própria coisa
(t o; o Jvmo iovn t w i mh ; oJvmo i on a jl l ja ujt o;
h Jgh 't ai e i\n a i w |i ejvo ik en)?87
O filósofo, ao contrário, na medida em que crê que no Belo em si
(hJgou vmen ov" t ev t i au jto ; k a l o;n) e que pode contemplá-lo (du n avmen o" k aq ora 'n)
em si mesmo (au jt o;) e nos objetos que dele participam, não tomando nunca as
coisas belas pelo Belo nem o Belo pelas coisas belas, vive acordado. Seu
86 Ver tb.: Banquete 175 d-e: (…) Seria bom Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do
mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a água dos copos
cheios que pelo fio de lã escorre do mais cheio ao mais vazio. Se é assim também a sabedoria,
muito aprecio reclinar-me ao teu lado, pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela
sabedoria. A minha seria um tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho (ojvnar),
enquanto que a tua é brilhante e muito desenvolvida (…). Teeteto 157e-158a-d: (…)Nesse caso, será preciso completar o estudo do que ficou por explicar.
Ainda não falamos dos sonhos(no vs o w n), das doenças em geral e, particularmente, da loucura nem
das alterações da vista, as do ouvido e das demais sensações. Como bem sabes, a opinião
unânime é que todos esses casos concorrem para refutar a doutrina exposta agora mesmo, visto se
revelarem de todo o ponto falsas em tais casos nossas sensações, e muito longe de serem as coisas
como se nos afiguram, nada, pelo contrário, existe tal como nos aparece. Teeteto — Só dizes a
verdade, Sócrates. Sócrates — Se é assim, meu filho, que novo argumento poderá aduzir quem diz
que a sensação é conhecimento e que o que parece a cada um de nós é para todos precisamente
como parece ser? Teeteto — Sinto-me acanhado, Sócrates, de declarar que não sei como
responder, pois há pouco me repreendeste por eu ter dito isso mesmo. Mas, para dizer a verdade,
não poderei contestar que os loucos e os sonhadores(o j neirwvt t o nt e") não formam, de fato,
opiniões falsas, como no caso de se imaginarem deuses os primeiros, ou de pensarem
(di anow 'nt ai) os outros, durante o sonho, que têm asas e que podem voar. Sócrates — E não te
ocorre, também, outra objeção no que respeita ao sono e à vigília(p eri; t o u' oj vna r t e ka i; ujvpa r)?
Teeteto — Qual? Sócrates — A que, a meu ver, já deves ter ouvido com freqüência, sobre o
argumento decisivo que poderias apresentar a quem perguntasse de improviso se neste momento
não estamos dormindo (kaq e uvdo m en) e se não é sonho tudo o que pensamos
(ka i; pa vnt a a} d ia no o uvm eq a o j nei rwvt t o m en), ou se estamos realmente acordados e entretidos a
conversar? Teeteto — Em verdade, Sócrates, sinto-me indeciso na escolha do argumento, pois em
ambos os estados tudo se passa exatamente do mesmo modo. Nada impede de admitir que o que
acabamos de conversar tivesse sido dito em sonhos; e quando imaginamos em sonhos contar que
sonhamos, é admirável a semelhança com o que se passa no estado de vigília. Sócrates — Como
vês, não é difícil suscitar controvérsia nesse terreno, pois é possível duvidar até mesmo se estamos
acordados ou dormindo. Além do mais, como é igual o tempo que dedicamos ao sono e o que
passamos acordados, em ambos os estados sustenta nossa alma que são absolutamente
verdadeiras as noções do momento presente, de sorte que numa metade do tempo batemo-nos pela
veracidade de determinadas noções, e na outra metade pela de noções em todo o ponto diferentes,
mas em ambos os casos com igual convicção. Teeteto — Perfeitamente. Sócrates — E outro tanto
não se dá com as doenças e a loucura, se excluirmos a duração, que não é a mesma? 87 Em sonho, luzes e reflexos se confundem; as múltiplas imagens que a imaginação nos apresenta tornam-se assim realidades. Cf. Heráclito (Diels: Vors. I, frgt. 89 [Plut. De superst. 3, p. 106c]: JHpa vc l ei t o " f us i ; t o i'" ej grh g oro vs i n ejv na cai ; coi no ; n co vs m o n eij' nai , t w'n d ev co im wm ev n wn eJvcas t o n ei j " ij vd io n ajp o t revf es qa i. “Para os homens despertos não existe, segundo Heráclito, que um
só e mesmo mundo; mas adormecido, cada um volta-se para um mundo particular”.
65
pensamento (d iavn oia n) tem todo o direito de ser chamado conhecimento, posto
que conhece, (gign w vs k on t o" gn wvmh n) enquanto que o pensamento do falso
filósofo, na medida em que julga sobre aparências e não conhece
(dox a vzein a jl l jou j gign w vs k ein), é apenas opinião (dovx a).
Conhecimento e opinião são descritos como potências ou faculdades
(du vn a mi") distintas entre si, definidas por Platão como o poder através do qual nós
realizamos as operações que nos são próprias, tal como a visão e a audição.
Enquanto potências, não se deixam diferenciar nem pela cor, nem pela forma, ou
por qualquer atributo desse gênero, o que diferencia uma da outra são os
respectivos objetos aos quais elas se aplicam e os efeitos causados por elas.
Quem conhece, conhece alguma coisa que “é”. Tudo o que “é” plenamente
(pa n t el w '") pode ser plenamente conhecido (pa n t el w'" gn w s t ovn). Esse
conhecimento “pleno” é chamado ciência (ejpis t h vmh) e se opõe à ignorância
(a[gn oia) que tem como objeto o que não é, o não-ser. Como não é nem
conhecimento, nem ignorância, uma vez que seu objeto não é nem o ser, nem o
não-ser, a opinião deve ser algo intermediário (met a x uv) entre o conhecimento e a
ignorância e seu objeto algo intermediário (met a x uv) entre o ser e não-ser. A
opinião é então definida como a potência que nos permite julgar sobre as
aparências (477e) e se distinguiria da ciência por essa ser infalível, enquanto que a
opinião não, e o seu objeto seria a multiplicidade do mundo sensível.
A forma de Platão abordar a distinção entre conhecimento e opinião do
Livro V difere da do Livro X em dois aspectos:
Em primeiro lugar, o Livro X supõe que se tem clareza sobre o que é a
opinião verdadeira e se procura, a partir daí, a maneira de aperfeiçoá-la para que
se torne conhecimento. O Livro V, ao contrário, parte de intuições sobre o
conhecimento e é a opinião verdadeira que aparece como problemática. Segundo
Annas (p. 246), com isso Platão tenta evitar as persistentes dificuldades que
acompanham as tentativas de se definir o conhecimento como uma opinião
verdadeira aperfeiçoada, pois, é sempre possível construir exemplos que
correspondam às definições, mas que se oponham às nossas intuições sobre o
conhecimento, as quais parecem mais dignas de fé do que as definições.
Em segundo lugar, enquanto que uma descrição do conhecimento como
“aperfeiçoamento da opinião verdadeira” procura melhorar a relação do sujeito
66
cognoscente com os objetos de sua opinião verdadeira, o Livro V estabelece que
os objetos da opinião verdadeira são distintos daqueles do conhecimento.
Segundo Platão, “quem conhece, conhece alguma coisa que é”. Essa
fórmula, à primeira vista, pode parecer um truísmo, mas na verdade envolve
algumas dificuldades. O termo utilizado por Platão é ei\n a i e, em grego, dizer que
uma coisa “é” tanto pode significar que essa coisa existe quanto que ela é
verdadeira ou ainda que ela é tal ou tal coisa. A plena compreensão da
argumentação de Platão sobre a questão do conhecimento nessa passagem
depende de que possamos determinar claramente qual dessas acepções é a visada
por Platão aqui.
A interpretação de e i\n a i no sentido de “existência” não resiste a uma análise
mais detalhada. Primeiro, por que a idéia de que só o que existe pode ser
conhecido dá margens a muitas controvérsias88. Segundo, por que se encaixa mal
com a fórmula que vem logo a seguir: “Tudo o que é plenamente pode ser
plenamente conhecido”. Nesse caso, seriamos obrigados a afirmar que Platão está
falando aqui de “graus de existência” o que é algo inteiramente sem sentido na
medida em que tudo que “existe” existe na mesma proporção, ou seja, uma coisa
não pode existir mais do que outra. E, terceiro, por que sugere que Platão apóia a
sua argumentação sobre um erro bastante banal: o de concluir do fato de que as
coisas particulares são F e não-F que elas existem e não existem ao mesmo tempo.
Como é difícil acreditar que Platão se prestaria a um erro tão grosseiro, a acepção
“existencial” para ei\n ai deve ser rejeitada aqui.
Isso não significa, entretanto, que Platão exclui a utilização existencial do
verbo ei\n ai; na realidade, uma vez que ele não possui outra palavra para “existe”,
ele muito provavelmente considera que suas conclusões sobre o “ser” das Idéias
têm influência sobre isso que nós chamaríamos “existência”. O que se defende
aqui, tão somente, é que a noção de existência não dá conta da argumentação
como um todo na presente passagem.
A tradução de ei\n a i por “ser verdadeiro”, por sua vez, parece se encaixar
melhor no contexto. De fato, é indubitável, por um lado, que o conhecimento se
refere ao que é verdadeiro e, por outro, que o que é falso não pode ser conhecido.
Além disso, essa interpretação torna a conclusão da argumentação mais
88 Annas, por exemplo, argumenta que nós sabemos muito sobre os antigos deuses gregos e eles, no entanto, não existem. op. cit. pág. 250.
67
compreensível. Ao dizer que o conhecimento trata sobre o que “é” e a opinião
sobre o que “é” e sobre o que “não é”, Platão estaria dizendo que enquanto o
conhecimento nos põe em relação com o que é verdadeiro, a opinião nos põe em
relação tanto ao que é verdadeiro, quanto ao que é falso, o que parece plenamente
aceitável. Alem disso, existe uma passagem, já no final da argumentação, que
parece requerer essa interpretação: as opiniões da multidão com relação ao Belo e
às outras coisas do mesmo gênero se perdem, de alguma forma, entre o que não é
e o que é (476d). Essa afirmação só faz sentido se ela tem, como pressuposto, a
idéia de que as opiniões se relacionam tanto com falsidades, quanto com verdades.
Entretanto, assim como no caso anterior, essa interpretação também não
consegue dar conta da argumentação como um todo. Em 477a-b e em 478b-c, por
exemplo, a opinião é distinguida da ignorância pelo fato de que o objeto dessa
última é “o que não é”:
Sócrates- Logo, se o conhecimento (gn w's i") incide sobre o que é
(o jvnti) e, necessariamente, a ignorância (ajgnws iva) sobre o que não é
(mh ; o jvnti), faz-se necessário descobrir, para o que ocupa o meio entre o ser
e o não-ser, um intermediário (m e ta xu;) entre a ciência (e jpis thvm e ") e a
ignorância (ajgno iva"), supondo-se que exista algo do gênero.
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates- Mas algo do gênero é a opinião (do vxa n)?
Glauco - Com certeza! (477a-b)
Sócrates - Mas a opinião conhece aquilo que a ciência conhece?
Uma mesma coisa pode ser ao mesmo tempo objeto da ciência e da opinião,
ou isso é impossível?
Glauco - E impossível. Com efeito, se potências diferentes
possuem por natureza objetos diferentes, e se, por outro lado, ciência e
opinião são duas potências diferentes, disto decorre que o objeto da ciência
não pode ser o mesmo da opinião.
Sócrates - Logo, se o objeto da ciência é aquilo que é, o da
opinião será algo diferente daquilo que é?
Glauco - Algo diferente.
Sócrates – mais a opinião pode ter como objeto aquilo que não é?
Ou é impossível conhecer através dela aquilo que não é? Reflita: aquele que
opina, opina sobre alguma coisa, ou tanto opinar como não opinar sobre o
que não é?
Glauco – É impossível.
(478b-c)
Aqui, “o que não é” não pode significar “o que não é verdadeiro”, uma vez
que os erros também podem ser objetos de opinião (cf. 479). E igualmente à
acepção “existencial”, essa acepção de ei\n a i como “ser verdadeiro” também
parece se encaixar mal com a fórmula “Tudo o que é plenamente pode ser
68
plenamente conhecido”, uma vez que a noção de “graus de verdade” tampouco faz
algum sentido aqui. Que sentido pode haver em dizer que algo é plenamente
verdadeiro? Não se trata, também aqui, de negar que a noção de verdade não
tenha qualquer relação com a argumentação de Platão. Em muitos casos, o uso
que ele faz de ei\n a i pode, sem problemas, ser entendido como “ser verdadeiro”.
Mas, apenas, sublinhar que ela não nos permite interpretar satisfatoriamente
algumas etapas cruciais da argumentação.
Diante disso, a interpretação segundo a qual e i\n a i deve ser entendido em
sua acepção predicativa parece ser a que melhor se encaixa no contexto da
argumentação. Nesse sentido, o “é” deve ser entendido de maneira elíptica, como
“é F”, sendo F um predicado qualquer. Uma coisa é, se ela é F ― grande,
pequena, alta, branca, etc. Essa interpretação parece se acomodar melhor na
argumentação como um todo e dá sentindo aos dois truísmos mencionados. De
um lado, só o que “é” pode ser conhecido, na medida em que só podemos saber se
um objeto tem uma propriedade se esse objeto efetivamente a tiver; por exemplo,
eu só posso saber se uma coisa é extensa se ela for efetivamente extensa. Se ela
não é extensa eu não tenho como saber que ela é extensa. De outro, só o que é
“plenamente” pode ser plenamente conhecido, por que só o que é plenamente F,
por exemplo, plenamente justo, pode absolutamente ser conhecido como justo.
Essa concepção é confirmada em 477e, onde Glauco afirma que
diferentemente da opinião, o conhecimento é infalível: Sem dúvida. Como um
homem de bom senso poderia confundir o que é infalível com o que não é? Em
outras palavras, se eu conheço uma coisa é impossível que eu me engane a seu
sujeito. O conhecimento exclui a possibilidade do erro. Ora, se temos razões para
supor que esse era de fato o pensamento de Platão, nós podemos compreender por
que ele acredita que um conhecimento absoluto deve ter como objeto coisas ou
ações que sejam absolutamente o que elas são. E, de fato, não há como negar que
somente uma coisa que possui absolutamente uma qualidade, possui essa
qualidade de uma maneira que exclui a possibilidade que possamos incorrer em
erro a seu sujeito. Se uma coisa possui uma qualidade, mas somente em certas
circunstâncias, ou sobre determinado ponto de vista, ou de uma maneira relativa,
então é possível que nós possamos nos enganar ao assumirmos que ela possui essa
qualidade; de forma que nós não podemos ter um conhecimento absoluto dela. De
fato, se o conhecimento é “infalível”, ele exclui não somente o erro real, como
69
também a própria possibilidade de erro; do mesmo modo, um conhecimento
absoluto não pode ter como objeto nada que possa “trair” aquele que aspira o
conhecimento: esse objeto deve possuir “plenamente” e “absolutamente” a
qualidade que é predicada dele.
Entretanto, ainda que a interpretação predicativa do uso de ei\n a i pareça se
acomodar melhor com as premissas iniciais da argumentação empreendida por
Platão, ela não está inteiramente livre de problemas. Enquanto que a proposição
“só o que é pode ser conhecido” se mostra como uma intuição elementar sobre o
conhecimento: eu não posso conhecer uma coisa que não é; se eu penso que uma
coisa é F, eu só posso conhecer isso se essa coisa for efetivamente F, a fórmula
“só o que é plenamente, pode ser plenamente conhecido”, ou seja, eu só posso
conhecer plenamente que uma coisa é F, se ela é plenamente F, se mostra como
bem menos evidente. Alguém poderia perguntar por que eu não posso conhecer
plenamente e absolutamente que uma coisa qualquer é F, mesmo se ela não é F de
maneira plena e integralmente? Para Platão, eu só posso conhecer absolutamente
que uma ação, por exemplo, é justa, se ela for justa de forma absoluta. Mas, por
que eu não poderia reconhecer e levar em conta os defeitos e as restrições que a
justiça de qualquer ação necessariamente possui e conhecer, entretanto, que ela é
justa relativamente? Platão exclui essa possibilidade: eu não posso conhecer que
uma ação é justa de um ponto de vista e injusta de outro; eu só posso conhecer,
propriamente falando e absolutamente, o que é justo absolutamente. Mas por que
uma descrição do conhecimento implicaria essa idéia?
Essa questão só pode ser respondida se levarmos em consideração o fato de
que as exigências de Platão em relação ao conhecimento são muito diferentes
daquelas da tradição pós-cartesiana a qual estamos habituados. Platão acha natural
pensar que o conhecimento se estabelece por graus que variam em função da
inteligibilidade de seu objeto; a razão disso é que ele não considera o
conhecimento como o resultado da eliminação da dúvida cética. Se o
conhecimento é considerado como um estado que não permite correção, parece
não haver nenhuma razão para que seu objeto seja limitado ao que possui
plenamente e absolutamente a qualidade apropriada; o que importa, ante de mais
nada, é a relação entre aquele que conhece e o que é conhecido, que garante, em
cada caso particular, que estejamos protegidos do erro. Mas Platão não se
interessa sobre a questão de saber se é com razão ou sem razão que possuímos a
70
certeza em um tal caso; para ele a progressão em direção ao conhecimento é uma
progressão em direção a uma compreensão cada vez maior, que nada tem a ver
com analisar com um ceticismo crescente os fundamentos de tal ou tal opinião,
mas com a inserção dessa opinião em um contexto mais amplo de nossas opiniões
e das relações pelas quais elas se explicam mutuamente. É por que o
conhecimento se faz acompanhar por um acréscimo na explicação e na
compreensão que Platão acha natural considerá-lo como uma questão de graus ao
invés de uma questão de certeza absoluta. Por conta disso, fica mais fácil aceitar a
fórmula “só o que é plenamente, pode ser plenamente conhecido” que parece
estranha aos nossos olhos.
As passagens encontradas no Livro V e no Livro X da República nos
permitem distinguir as principais características da concepção de conhecimento de
Platão. Em primeiro lugar que, diferentemente da opinião verdadeira que é, ou
pode ser, de segunda mão, o conhecimento se apóia em uma experiência que é,
num certo sentido, direta. Em segundo, que o conhecimento permite a
possibilidade de formular claramente o que é o objeto conhecido, e as razões pelas
as quais ele é como ele é; isso implica que se saiba o que permite dar a razão de
seu aspecto bom ou mau. Em terceiro, que o conhecimento se estabelece por graus
que variam em função da inteligibilidade de seu objeto. Em quarto, que o único
objeto que responde as exigências de Platão, “só o que é plenamente pode ser
plenamente conhecido” são as Idéias. Em quinto, que o conhecimento das Idéias é
infalível. E, por último, que é a compreensão, e não a certeza, a marca do
conhecimento, visto como uma progressão em direção a uma compreensão cada
vez maior dos aspectos relacionados ao objeto conhecido. Alguém que possui o
conhecimento não se opõe ao cético, mas àquele que, para fins práticos, retoma de
segunda mão, e de uma maneira irrefletida, as opiniões verdadeiras.
Antes de confrontarmos essa concepção de conhecimento com o que foi
estabelecido no terceiro capítulo desse trabalho sobre a crítica de Platão ao modo
de proceder dos matemáticos com relação aos seus objetos de estudos, isto é, às
suas “hipóteses”, iremos, no próximo capítulo, abordar a distinção entre os dois
estados (pa qh vma t a) relacionados por Platão, na Linha, ao modo de conhecer da
matemática e da dialética.
5
A distinção entre diavnoia diavnoia diavnoia diavnoia e novhsi" novhsi" novhsi" novhsi" na passagem da Linha
5.1.
A diavnoiadiavnoiadiavnoiadiavnoia
Historicamente, diferenças sutis entre a mera percepção de um objeto ou
objetos, ou seja, a sensação (aijvsqhsi") e uma outra espécie de consciência
psíquica que vai além dos dados dos sentidos e percebe coisas menos tangíveis,
como semelhanças e diferenças entre os objetos, podem ser encontradas já em
Homero, onde a segunda é identificada com o “órgão” chamado novo"89. Mas é
somente a partir da filosofia que essa diferença começa a ser problematizada.
Desde o ataque de Parmênides à percepção sensível em termos de
instabilidade do seu objeto, parece ter se tornado entre os filósofos, uma
necessidade epistemológica distinguir entre os perigos óbvios da aijvsqhsi" e um
“verdadeiro conhecimento" mais ou menos independente dos sentidos, como
sugerem, entre outros, as dúvidas de Empédocles sobre a confiança na nossa
89 SNELL, BRUNO. A Descoberta do Espírito. Trad. Arthur Mourão, Edições 70, Lisboa, 1992. Segundo esse autor, não se pode encontrar em Homero nenhuma palavra que corresponda à concepção de alma como sendo a unidade onde se reúne os fenômenos psíquicos. Estes, estariam, de algum modo, distribuídos entre vários “órgãos”, dos quais se destacam dois: qumov" (sede das emoções) e novo" (sede da intelecção). Curiosamente, o termo yuchv, quando aparece em Homero, significa coisa bem diferente da tradução atual. Em Homero, a yuchv é apenas um simulacro, uma sombra. Entretanto, Snell sublinha que se, por um lado, podemos traçar uma clara distinção entre yuchv e qumov", por outro, no que diz respeito a qumov" e novo", essa distinção já não seria tão clara assim. (p. 28 ss.)
72
percepção sensível e na necessidade de auxílio divino (Fr. 2, Sexto Empírico, Adv.
Math. VII, 122-14)90.
Outro exemplo é Heráclito que suspeita explicitamente da falibilidade da
sensação na apreensão da verdadeira natureza das coisas: a natureza gosta de
ocultar-se (frg. 123)91. Realidade oculta que parece pôr-se definitivamente fora do
alcance dos homens, na medida em que estes se fiam demasiado implicitamente
em seus sentidos (frg. 107 e 132)92. Heráclito, no entanto, não é muito claro com
relação a como é que a outra faculdade que é capaz de discernir o lovgo" oculto
das coisas operaria; de seus fragmentos, sabemos apenas que o nou'" que está
dentro de nós é ativado pelo seu contato, através dos canais da sensação
(aijqhticw'n povrwn), com o logos divino (qei'on lovgon), contato esse que é
mantido de modo atenuado pela respiração durante o sono (frg. 129)93.
Segundo Aristóteles (De an. III, 427a; Meta. 1009b), ainda que
problematizada, os pré-socráticos não estabeleceram, no entanto, uma distinção
real entre a novhsi" e a aijvsqhsi"; e a razão que ele dá para sustentar essa opinião é
que todos eles teriam tentado explicar as operações da alma (yuchv) em termos
puramente físicos, procedimento que, de acordo com Aristóteles (loc. cit.), não
pode explicar o erro uma vez que o semelhante pode conhecer o semelhante94.
Heráclito, p. ex., embora faça uma distinção entre sensação e intelecção (frg. 107),
não se pode dizer que esse filósofo tenha operado uma separação total entre essas
atividades na medida em que, para ele, os sentidos seriam uma espécie de
condição para a novhsi" (frg. 129).
Os fragmentos que chegaram até nós dos pré-socráticos e o testemunho de
Aristóteles nos permite concluir, portanto, que se, na atitude pré-socrática, podem
ser encontrados fortes indícios que caracterizariam uma distinção, no mínimo, em
90 G.S. Kirk, J.E. Raven e M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994. p. 298. 91 Op. cit. p. 192. 92 Loc. cit. 93 Op. cit. Id., p. 190. 94 A teoria dos oJvmoioi é, talvez, a mais vulgar das teorias do conhecimento gregas. Ela se funda basicamente no pressuposto de que o semelhante conhece o semelhante. Expressões dela podem ser encontradas já em Homero, aijei; to;n oJmoi'on ajvgei qeo;" wJ" to;n oJmoi'on (a divindade sempre impele o semelhante em direção ao semelhante, Od. 17, 218). Em Platão temos, p. ex., oJ oJvmoio" tw'i oJmoivwi (fivlo") (o semelhante é amigo do semelhante, Górgias 510b); e em Aristóteles, oJ oJvmoio" wJ" to;n oJmoi'on (o semelhante vai em direção ao semelhante, Ética a
Nicômaco, 8, 1). Cf. F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977. Sub voce oJvmoio".
73
grau, entre o pensamento novhsi" (e seu correlato epistemológico ejpisthvmh) e a
sensação aijvsqhsi" (e seu correlato epistemológico dovxa), parece não haver, no
entanto, nada que nos diga que eles as distinguiam também, em espécie, em
gênero.
É com Platão que essa distinção se opera de modo radical:
Considera, então, que existem dois reis, reinando um sobre o campo do
inteligível (nohtou' gevnou") e o outro, do visível (oJratou'): não digo do céu,
com receio de que penses que brinco com as palavras. Mas consegues
imaginar estes dois gêneros, o visível (oJratovn) e o inteligível (nohtovn)?
(Rep. 509d)
No Fédon, Platão nos oferece uma concepção da alma (yuchv) na qual esta é
descrita como pura e unitária. É essa alma pura e unitária que, sendo
absolutamente de natureza diferente do corpo, torna-se o correlato epistemológico
das ijdevai e pode desempenhar todas as atividades cognitivas que os filósofos pós-
parmenidianos associavam ao nou'" mas foram incapazes de explicar ao nível da
substância (Aristóteles, loc. cit.). Mas Platão inova mesmo é quando, afirmando
que a alma é a ajrch;n de toda atividade cognitiva, faz a sensação depender da
intelecção, invertendo, assim, a relação que até então envolvia aijvsqhsi" e novhsi":
a sensação seria a percepção pela alma através do corpo e a intelecção uma
operação apenas da alma (Fédon 79d). Entretanto, essa concepção unitária da
alma põe Platão diante de paradoxos95 que o levam, nos diálogos posteriores, a
apresentá-la tanto dividida em três partes quanto dividida em quatro partes.
Voltando à passagem da Linha que nos ocupa, vimos, que ao se referir a
atividade noética, Platão acrescenta a essa descrição um certo pormenor. Além da
distinção referida acima entre sensação e intelecção, ficamos sabendo que há mais
do que um tipo de atividade noética: a diavnoia e a novhsi".
95 Não será lugar aqui de tratarmos essa questão mais detalhadamente. A título de ilustração podemos apontar que o mais notório desses paradoxos é o problema da ajkrasiva (fraqueza da vontade) no interior da ética socrática; mas essa concepção teria também sérias implicações epistemológicas. No Fédon a alma é apresentada como a ajrch ; de toda a atividade cognitiva, sensível ou inteligível. A sensação é aí explicada em termos de uma percepção da alma através do corpo. Ora, segundo o mesmo princípio (o semelhante conhece o semelhante) utilizado para definir a natureza da alma com relação às ijdevai, temos que para que alma possa apreender o sensível, é preciso que ela de alguma forma tenha em si algo de sensível, o que caracterizaria o paradoxo. No Timeu (35a ss.), na tentativa de escapar a esse obstáculo, a alma é criada pelo demiurgo como uma mistura complexa onde entram elementos tanto do inteligível quanto do sensível. Para uma análise mais profunda da questão, remetemos ao excelente artigo de Maura Iglésias “Platão: a descoberta da alma”, in Boletim do CPA, nº 5/6, janeiro/ dezembro 1998.
74
Vimos também que a explicação de Platão para tal distinção se concentra
principalmente na definição do correlato metodológico da novhsi", a dialética,
como um estudo das Formas puras, apoiando-se unicamente sobre a razão, sem
fazer uso nem de imagens nem de supostos princípios. E que essas características
levam Platão a tomar a novhsi" como superior à diavnoia e a apresentar a dialética
como a única merecedora verdadeiramente do nome de ciência (ejpisthvmh"):
Glauco — Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque
tratas de um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento
(qewrouvmenon) do ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela
ciência da dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron)
que aquele que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais
possuem hipóteses como princípios (uJpoqevsei" ajrcai;). É certo que aqueles
(oij qewvmenoi) que se consagram às artes são obrigados a utilizar o
raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin). No entanto, visto que
nas suas investigações não apontam para um princípio (ajrch;n), mas partem
de hipóteses (ejx uJpoqevsewn), julgas que eles não têm a inteligência
(nou'n oujk ijvscein) dos objetos estudados, embora eles sejam inteligíveis
(nohtw'n) quando apreendidas junto com um primeiro princípio. Parece-me
que denominas conhecimento discursivo (diavnoian), e não inteligência
(ouj nou'n), a geometria e outras ciências do mesmo gênero, considerando
esse conhecimento (diavnoian) intermediário entre a opinião (dovxh") e a
inteligência (nou'). Sócrates — Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora a estas quatro
seções estes quatro estados(paqhvmata) da alma: a inteligência (novhsin) à
seção mais elevada, o conhecimento discursivo (diavnoian) à segunda, a fé
(pivstin) à terceira, a imaginação (eijkasivan) à última; e dispõe-nas por
ordem de clareza, partindo do princípio de que, quanto mais seus objetos
participam da verdade (ajlhqeiva"), mais eles são claros (safhveiva"). (511c-e)
Mas, fora o fato de se tratar de um “estudo das Formas puras, apoiando-se
unicamente sobre a razão, sem fazer uso nem de imagens nem de supostos
princípios”, que parece pouco explicar, em que consistiria, afinal, a distinção entre
a diavnoia e a novhsi"? Será que devemos associar a diavnoia ao raciocínio
discursivo em geral, silogístico, e a novhsi" à imediata intuição intelectual em
moldes semelhantes àqueles que Aristóteles (Anal. Post. II, 110b) distingue entre
logismov" e nou'"? Segundo Aristóteles, a novhsi" corresponderia a uma espécie de
compreensão intuitiva adquirida a partir de um processo de indução das
experiências individuais que nos levaria ao conceito universal e à proposição
universal, os quais serviriam de premissas não demonstráveis de toda
demonstração. Esse processo não seria um processo discursivo e, ao contrário da
indução perfeita (Anal. pr. II, 68b), não poderia ser reduzida a um tipo de
silogismo.
75
Aristóteles, num passo em que descreve a origem da Teoria das Idéias, faz
notar que Sócrates foi o primeiro a empregar “argumentos indutivos”
(ejpaktikoi; logoi;; Meta. 1078b). Entretanto, ainda que tal compreensão possa
encontrar algum apoio na descrição da dialética encontrada no Fédro (265c-266b)
onde se identifica o caminho ascendente com a operação de generalização, e o
caminho descendente com a operação de divisão, o testemunho de Aristóteles
deve ser relativisado, na medida em que nem a metodologia de Sócrates nem a
terminologia de Platão apontam para um uso estritamente aristotélico96.
Como se vê, não é de espantar que a passagem da Linha dividida tenha
gerado, e ainda gere, tantas controvérsias quanto à distinção entre esses dois
estados (paqhvmata) envolvidos na atividade intelectiva.
Existem três passagens encontradas no Teeteto, no Filebo e no Sofista que
podem nos ajudar a entender essa distinção.
Chamas pensar (dianoei'sqai) a mesma coisa que eu? Pergunta Sócrates na
seqüência da definição, dada por Teeteto, de “opinião falsa” (ajllodoxivan) como
“pensamento sobre algo existente em que se toma uma coisa pela outra” (Teeteto
189d – 189e). Diante da hesitação de Teeteto, Sócrates descreve o que ele tem em
mente:
Um discurso (lovgon) que a alma faz para ela mesma sobre as coisas que ela
examina. Como ignorante é que te dou essa explicação; mas é assim que
imagino a alma ao pensar (dianooumvnh): não é outra coisa para ela senão
dialogar(dialevgesqai), dirigir-se a si mesma as questões e as respostas,
passando da afirmação à negação. Quando ela se decide, seja avançando
devagar seja um pouco mais depressa, e permanece constante em sua
afirmação e não mais duvida, é isso que afirmamos ser, nela, opinião
(dovxan)(…)
(Teeteto 189e4 – 190a7)
Platão chama pensamento (diavnoia), portanto, o diálogo que a alma formula
para si mesma através de perguntas e respostas, acerca daquilo que ela está
examinando. Quando a alma deixa de duvidar, esse diálogo cessa e a afirmação ou
a negação resultante é o que denominamos opinião (dovxa). Essa mesma definição
é reaparece no Sofista (263e3 – 264b3), acrescida com outros detalhes:
1. Pensamento (diavnoia) e discurso (lovgo") são a mesma coisa. A diferença
é que o pensamento é o diálogo (diavlogo") interior e silencioso da alma consigo 96 F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977
76
própria, enquanto o discurso é entendido como uma emanação da alma que sai
pelos lábios em emissão vocal.
2. Que no discurso há afirmação e negação e que seu correspondente no
pensamento é o que chamamos opinião (dovxa), entendida como a conclusão de
todo pensamento.
3. Quando a opinião se apresenta, não espontaneamente, mas por intermédio
da sensação, a afecção (pathos) na alma é descrita como imaginação (phantasia),
isto é, uma combinação de opinião e sensação que, assim como o discurso, pode
se mostrar, algumas vezes, falsa.
No Filebo (38c2-e7), Platão apresenta uma descrição da gênese psicológica
da dovxa e do “esforço de dovxa” que se apóia na mesma representação de
pensamento como “diálogo interior da alma consigo própria” descrita acima:
Sócrates ─ E nesse particular, não será inevitável proceder da seguinte
maneira? Protarco ─ De que jeito? Sócrates ─ Por vezes, não pode
acontecer que, ao perceber ao longe alguém um objeto que não se deixa
distinguir claramente, não dirás comigo que essa pessoa deseja determinar
o que seja aquilo? Protarco ─ Acho que sim. Sócrates ─ E nessas
circunstâncias, não passará ela a interrogar-se a si mesma? Protarco ─ De
que maneira? Sócrates ─ Que será o que parece estar embaixo daquela
árvore, ao pé do morro? Não és de opinião que esse indivíduo dirija a si
mesmo essa pergunta, quando perceber algo nas condições descritas?
Protarco ─ Sem dúvida. Sócrates ─ E a seguir, se dissesse, como se falasse
a sós consigo: é um homem, não responderia direito? Protarco ─ É
evidente. Sócrates ─ Mas também poderá enganar-se, e, na suposição de
que se trata de obra de algum pastor, dará o nome de imagem ao que
percebesse naquele momento. Protarco ─ Exato. Sócrates ─ E no caso de
haver alguém ao seu lado, explicar-lhe-á por meio da palavra o que falara
para si mesmo, com o que dirá pela segunda vez a mesma coisa,
transformando, assim, em discurso o que antes dera o nome de
opinião(dovxa). Protarco ─ Nem poderá ser de outra maneira. Sócrates ─
Mas se estiver sozinho quando lhe ocorrer semelhante idéia, pode bem dar-
se que por algum tempo ele continue seu passeio sem comunicá-lo a
ninguém.
Trata-se, evidentemente, de uma definição meramente nominal, intuitiva,
quase do senso comum97; Não é a essência (o que é o pensamento?) que ela visa,
97 R.B. Onians (The Origins of European Thought about the Body,the Mind, the Soul, the World,
Time, and Fate, Cambridge, 1951) nas primeiras linhas de seu capítulo sobre os “processos da consciência” ( Parte I, ch. I, “Some Processes of Consciousness”, p. 13), aponta que essa representação do pensamento já está presente na obra de Homero.
77
mas apenas o referente que “cai” sob esse termo: Como ignorante é que te dou
essa explicação.
Três pontos chamam imediatamente a atenção nas passagens citadas. O
primeiro é a forte analogia estabelecida entre o pensamento (diavnoia) e diálogo
(diavlogo"). Platão toma o diálogo, entendido como troca de perguntas e respostas,
como modelo empírico de sua descrição do pensamento. As diferenças apontadas,
a falta da oralidade e da presença de um interlocutor, parecem não representar
qualquer prejuízo: por um lado, as articulações fonéticas do diálogo são
apresentadas como o exato reflexo das articulações silenciosas do pensamento;
por outro, a alma se mostra capaz de tomar a si própria como interlocutor de seu
diálogo interior. O ponto central da analogia se apóia, sobretudo, na estrutura
discursiva e interrogativa particular a ambos, isto é, no movimento de perguntar e
responder. Nesse sentido, a descrição de Platão parece sugerir que a alma, ao
pensar, como que se desdobra sobre si mesma num ir e vir que se reflete sobre a
dupla forma de questão e resposta que lhe arranca de sua imobilidade e unidade
original, mas que, no entanto, não ameaça a sua integridade: é sempre a mesma
alma a ouvir as suas questões (eu me pergunto) e a se responder (e de contestar
suas próprias respostas).
O segundo ponto refere-se ao fato de que é preciso que a alma experimente
incerteza diante dos objetos que ela examina para que o processo do pensamento
seja desencadeado. A alma é levada a pensar, isto é, a dialogar consigo própria,
quando aquilo que ela apreende não se deixa identificar imediata e
espontaneamente. Diante da incerteza, a alma se veria constrangida a determinar
exatamente aquilo que ela percebe, desencadeando, assim, o processo do
pensamento.
O terceiro ponto diz respeito ao fato de no momento exato em que afirma ou
que nega, isto é, que julga, a alma, segundo a descrição de Platão, deixa a esfera
do pensamento e entra no da dovxa: (…) Quando ela se decide, seja avançando
devagar seja um pouco mais depressa, e permanece constante em sua afirmação e
não mais duvida, é isso que afirmamos ser, nela, opinião (dovxa). Opinando, isto é,
determinando, a alma suprime o seu movimento anterior, ela não mais duvida, não
mais oscila (Teet. 190a), retornando, assim, à sua imobilidade original. Ao
experimentar a dovxa, a alma ultrapassa o seu desdobramento, ela se reunifica. Isso
78
por que o objeto também se unifica, ele não provoca mais incertezas e é enfim
tomado como sendo tal como aparece. As passagens mencionadas sugerem que a
inquietude do pensamento nasce da possível diferença entre o ser e o aparecer:
suprimindo essa diferença, a opinião termina o pensamento que a precedia; ela lhe
põe fim e alcança seu objetivo.
Portanto, a alma é provocada a pensar quando experimenta incerteza diante
dos objetos que examina, e só pensa enquanto se interroga, enquanto ela não está
satisfeita com as respostas que ela tenta dar às suas próprias questões. Quando ela
cessa de se interrogar, de dialogar consigo própria, ela se imobiliza, ela é una
consigo mesma, ela não pensa.
Ao compararmos o que Platão chama de diavnoia nos três textos citados e o
que é dito na passagem da Linha surge imediatamente uma questão: se não
haveria uma contradição, ou ao menos, uma ruptura no pensamento de Platão na
medida em que, na passagem da Linha, Platão confere à diavnoia uma situação e
uma função intermediárias que parecem não ter nenhuma relação com o que ele
chama diavnoia nos três textos citados. Segundo esses últimos, a diavnoia,
entendida como diálogo interior, vem sempre antes da dovxa e, segundo o Filebo
pode se aplicar também a objetos sensíveis, enquanto que na passagem da Linha,
ela vem depois da dovxa e se relaciona apenas com objetos inteligíveis. Não
haveria realmente nenhuma relação? Evolução ou imprecisão terminológica?
Passemos à Linha.
A novidade do esquema da Linha em relação às passagens do Teeteto, do
Sofista e do Filebo é que não é mais o processo de pensamento — o diálogo
interior da alma consigo própria — que é chamado diavnoia, mas o próprio
resultado desse processo, isto é, a própria apreensão cognitiva resultante.
E é essa ambigüidade com que Platão utiliza o termo diavnoia que dá a
impressão de uma contradição ou de uma ruptura entre os textos citados. Em
Platão, o termo diavnoia, pensamento, designaria não só o processo, discursivo,
que leva a uma apreensão cognitiva, mas a própria apreensão cognitiva. Platão,
como se sabe, considera sofística a preocupação excessiva com a coerência no uso
das palavras98, uma vez que o importante é saber a que a palavra se refere. Nesse
98 V., por exemplo, Menon 75 e; Teeteto 184 c-d; Timeu 28 b3-4.
79
sentido, a contradição se desfaz se considerarmos que a diavnoia, mencionada no
Teeteto, no Sofista e no Filebo refere-se ao processo — o diálogo interior da alma
consigo própria — que leva a uma apreensão cognitiva; enquanto que a diavnoia
mencionada no esquema da Linha nomeia um tipo de apreensão cognitiva.
Mas que tipo de apreensão e essa? E por que Platão a considera inferior a
novhsi"? No sentido de responder a essa questão vamos analisar algumas das
interpretações que foram dadas a essa questão e ver se podemos extrair daí
algumas conclusões.
5.2. A novhsi"novhsi"novhsi"novhsi"
Platão, na passagem da Linha, define a dialética e a sua maneira de proceder
basicamente contrastando-a com a maneira de proceder das matemáticas. Essa
definição, assim como foi o caso das matemáticas, se dá a partir de dois pontos.
De um lado, a atitude do dialético em relação às hipóteses de que parte em
seus raciocínios:
Sócrates — Percebes agora que entendo por segunda divisão do mundo
inteligível(nohtou') aquela que a razão (ov lovgo") alcança pelo poder da
dialética (dialevgesqai dunavmei), considerando suas hipóteses
(ta;" uJpoqevsei") não princípios (oujk ajrca;") mas simples hipóteses, isto é,
pontos de apoio (ejpibavsei") e trampolins (ojrmav") para se elevar até o
princípio universal (panto;" ajrch;n) que já não admite hipóteses
(ajnupoqevtou). Atingido esse princípio, ela se apega a todas as
conseqüências que decorrem dele, até chegar à última conclusão, (…) (511b)
De outro, o fato de que o dialético não usa imagens sensíveis em seus
raciocínios: “(…) sem recorrer a nenhum dado sensível (aijsqhtw'i), mas somente
às idéias (eijvdesin), pelas quais procede e às quais chega”(511b). O dialético, diz
Platão, parte de hipóteses, as quais ele considera, não princípios, mas simples
pontos de apoio ou trampolins, para se alçar, pela força da dialética, até o
princípio universal, não hipotético. Uma vez atingindo esse princípio, ele retorna,
etapa por etapa, extraindo as conseqüências desse princípio, até a última
conclusão, que não é outra senão a hipótese de que partiu. Nesse percurso (das
hipóteses ao princípio e do princípio à conclusão) ele não faz uso de nenhum dado
sensível (imagens), mas apenas das idéias nas quais se “apóia” e as quais retorna.
80
Ao contrário da descrição dedicada à matemática, não temos nenhuma
dificuldade em identificar, aqui, o que Platão tem em vista quando diz que o
dialético parte de hipóteses: sem recorrer a nenhum dado sensível (aijsqhtw'i),
mas somente às idéias (eijvdesin), pelas quais procede e às quais chega. As
hipóteses do dialético são, portanto, idéias, isto é, a essência una e inalterável de
cada coisa, aquilo, por força do qual, cada coisa é o que é (Mênon 72c-e). Que em
seu manuseio, o dialético exclua todo uso de imagens sensíveis é algo que não traz
maiores problemas, uma vez compreendido a noção de eijvdo" no interior do
pensamento platônico.
O que é obscuro, o que, historicamente, tem gerado tantas controvérsias, é
esse considerando suas hipóteses (ta;" uJpoqevsei") não princípios (oujk ajrca;")
mas simples hipóteses, isto é, pontos de apoio (ejpibavsei") e trampolins (ojrmav")
para se elevar até o princípio universal (panto;" ajrch;n) que já não admite
hipóteses (ajnupoqevtou). O vocabulário usado por Platão, aqui, sugere que o
“movimento” de uma hipótese à outra no processo dialético tem, num primeiro
momento, um caráter “ascendente”. Inicialmente, uma explicação pode ser dada
no sentido de pensar esse movimento como a subsunção de uma hipótese por
outra mais geral, até se chegar a um princípio que não seja ele mesmo uma
hipótese, mas bem ao contrário, algo que justamente não admite mais hipóteses.
Uma vez atingindo esse princípio, o dialético, então, “desceria” agarrando-se às
conseqüências que desse princípio podem ser deduzidas, e que não são outras que
as hipóteses de que, no movimento ascendente, se partia.
Em relação à natureza da novhsi" e da dialética, tal como essa é descrita na
passagem da Linha, existe uma interpretação que se tornou célebre. Trata-se do
trabalho de A. J. Festugière, Contemplation et Vie contemplative selon Platon.
Em sua obra, Festugière se detém, principalmente, sobre o termo utilizado
por Platão para se referir ao modo de conhecimento da novhsi": a qewriva,
traduzido aqui por “contemplação”:
Glauco — Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque tratas de um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento/contemplação (qewrouvmenon) do ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela ciência da dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron) que aquele que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais possuem hipóteses como princípios. É certo que aqueles (oij qewvmenoi) que se consagram às
81
artes são obrigados a utilizar o raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin).
(511c-d)
Remarca-se que a dicotomia operada por Platão no tovpo" nohtov" entre
duas espécies de conhecimento estende-se igualmente ao termo qewriva: de um
lado, os matemáticos são também chamados de oij qewvmenoi e, de outro, o
qewrouvmenon adquirido pela ciência da dialética é visto como “mais claro” do que
àquele adquirido pelas matemáticas.
Em resumo, a tese de Festugìere consiste no seguinte: o termo qewriva, cujo
sentido primeiro se ligava à idéia de visão, mais especificamente uma visão
“atenta”, normalmente dirigida, de um lado, à observação das coisas celestes, dos
fenômenos da natureza e, de outro, no campo religioso, de uma estátua religiosa
ou de uma festa ritual, tem, com Platão, seu sentido especializado e passa a
designar o modo próprio de conhecimento das formas e, principalmente, da Idéia
do Bem (p. 14 e ss.). Para isso, Platão acrescenta, à concepção comum de qewriva,
“um algo mais” que a distingue de uma mera consideração ou abstração das
essências ou dos primeiros princípios (Prefácio, p.5. ). Esse “algo mais” se daria
em termos de “um sentimento de presença”, de um “contato” com o Ser
apreendido em sua existência; apreensão que, pela própria natureza do objeto
próprio de contemplação (qewriva) — o Ser supremo, que é mais que uma Forma,
o “divino” por excelência —, “ultrapassaria a linguagem e a intelecção”.
E é a tal contato, a uma tal união que nos conduziria a dialética ascendente
do Banquete e da República, pelo menos “é o que nos mostram esses diálogos se
concordamos em dar às palavras seus sentidos óbvios, ao invés de tomá-las como
metáforas”, diz Festugière (Prefácio, p.6.). Interpretada à luz do Banquete, a
dialética mencionada na passagem de A República, adquire contornos de uma
experiência “purificadora”. Ela é descrita como um processo que visa preparar o
noûs, afastando-o o máximo possível do corpo e de toda representação sensível,
para o salto em direção a esse primeiro princípio que ultrapassaria a intelecção, a
esse Ser que estaria para além da ousia, e cuja existência só pode ser apreendida,
como presença, por uma “visão”: “e a dialética ela mesma pode ser chamada, por
conseguinte, uma espécie de purificação, não mais dos hábitos, mas do espírito.”
Como se vê, não é à toa que a interpretação de Festugière é considerada
mística… Mas não vamos tão rápido e tratemos de nos deter um pouco mais nos
82
argumentos de Festugière. Para começar, o pressuposto básico que norteia a tese
de Festugière é esse: é a natureza do objeto de conhecimento que determina a
maneira de conhecê-lo e o gênero de conhecimento adquirido (p.42).
Em relação ao primeiro ponto, segundo Festugière (p. 110 e ss.), podemos
distinguir, a partir das conclusões do Crátilo (439d – 440b) e das premissas do
Fédon, três proposições principais da “epistemologia” platônica.
Primeiro, o divórcio radical aijvsqhsi" e novhsi". Os sentidos só se dirigem
ao o que é mutável; eles não alcançam, portanto, nem a verdade nem o Ser. Só
existe conhecimento do que é imutável, de modo que o objeto de conhecimento
deve ser de um gênero diferente dos aijvsqhta. O Ser está, portanto, alhures,
invisível aos sentidos, mas visível a um outro “órgão” do conhecimento, a um
outro olho, o olho da alma. A distinção entre mutável e imutável leva à distinguir
dois mundos: o sensível(aijsqhtovn) e o inteligível (nohtovn). A qewriva, por sua
vez, só se dirige ao nohtovn.
Segundo, que, apesar de distintos, esses dois domínios não são separados;
existe uma relação entre o sensível e o inteligível: o inteligível seria a causa
material e formal do sensível.
Terceiro, a escolha do melhor é o que nos guia em nossas ações.
Paralelamente, o que determina a ordem atual do mundo, é que tal ordem, para o
mundo, é a melhor. Essa causa última não é outra que a Idéia do Bem. Causa
final, a Idéia do Bem, é também a causa eficiente do conhecimento, do real e do
agir.
A maneira como Festugière relaciona essas três proposições se apóia sobre o
status “hipotético” da própria Teoria das Idéias. Se o eijvdo", do ponto de vista
lógico, resolve o problema do conhecimento e da existência sensível ao
subordinar o sensível múltiplo e cambiante ao inteligível uno e sempre igual a si
mesmo, isso não garante, no entanto, que do ponto de vista ontológico, as idéias
devam existir necessariamente. A necessidade lógica não se desdobra em
necessidade existencial (p.102). Para que as idéias deixem de ser “hipóteses”, elas
devem, por sua vez estar ligadas a um princípio que não seja ele mesmo uma
hipótese, a um princípio não hipotético. Além disso, o problema do Um e do
Múltiplo, resolvido uma primeira vez pela passagem do sensível ao inteligível,
83
uma segunda vez pela passagem do maqhmatikovvn ao puramente formal, volta a se
por com toda a força, como vemos no Parmênides, no centro mesmo do
nohtou' gevnou". De forma que uma vez que o eijvdo" é ao mesmo tempo uno e
múltiplo, ele pode ser considerado também uma espécie de mictav, e como tal
exigiria também um princípio unificador.
Deve existir, portanto, um princípio tal que cumpra, no âmbito das idéias, a
mesma função que a idéia em relação ao sensível. Isso nos levaria a colocar no
mais alto grau de hierarquia a Unidade pura, um UM absoluto, não composto, sem
mistura, que seria princípio e causa, não mais categoria, do ser. E é, justamente,
esse princípio supremo, que seria o objeto, por excelência, da qewriva (p. 202) .
Veremos um pouco mais adiante que Festugière, no que se refere à distinção entre
os modos de apreensão respectivos a cada uma das seções do inteligível, reserva
tal distinção apenas à esse UM supremo; entre os princípios dos matemáticos e as
formas haveria praticamente uma assimilação entre a diavnoia e a novhsi".
Mas será que esse UM supremo, causa formal e final das idéias,
consequentemente do sensível, enfim, do universo todo inteiro, pode ser
considerado Deus? Festugière defende que, se por um lado, Platão não diz isso
diretamente, por outro, de acordo com a doutrina “eminentemente” platônica na
qual o summum do ser e da inteligibilidade corresponde ao summum do divino,
Platão deixaria a entender que é bem esse o caso (p.205).
Mas isso não nos deve levar a pensar que Platão está simplesmente
operando uma síntese entre dois gêneros de contemplação usuais (o matemático e
o religioso). Segundo Festugière, seria mais correto falar em uma “transposição”
dos aspectos principais à cada âmbito para uma noção de qewriva concebida, antes,
como a contrapartida exigida pela “sublimação” do objeto de conhecimento
operada por Platão ao longo de seus diálogos, especialmente no Fédon. A qewriva
platônica se ligaria somente ao inteligível, e isso a diferencia radicalmente de uma
qewriva religiosa. Entretanto, para Platão, o inteligível, por si só, não é capaz de
justificar sua existência, ele exige, por sua vez, um princípio onde a essência
determine sua existência (p. 168), a saber, o Ser Perfeito ou, em sua expressão
religiosa, Deus.
84
Portanto, Festugière associa o princípio não hipotético / Idéia do Bem à
Divindade. Uma vez determinado o objeto próprio à qewriva, devemos nos deter
agora na maneira como esse objeto deve ser conhecido, isto é, ao método.
Já nos referimos aqui àquela que é, talvez, a mais vulgar das teorias do
conhecimento gregas, a teoria dos oJvmoioi, que se fundaria, basicamente, no
pressuposto de que o semelhante conhece o semelhante. Pois bem, segundo
Festugière, esse pressuposto está também na base da teoria do conhecimento de
Platão (p.107). Ora, se o conhecimento é o encontro de dois oJvmoia99 e se o objeto
próprio à qewriva é o Ser perfeito absolutamente uno e puro, então esse objeto de
conhecimento exige, para ser conhecido, um “órgão” que, por sua vez, também
seja uno e puro (p. 105 e ss.).
Mas como conformar essa necessidade com a noção de uma alma plural que
aparece na República (tripartida em IV (435c ss.) e quadripartida em República
VI), e com a noção de uma alma “misturada” que aparece no Timeu (35a)?
Em relação às divisões apresentadas na República IV (435c ss.), temos que
elas se referem principalmente às fontes de motivação da ação humana: o
elemento racional fonte da razão e do desejo de conhecimento; o elemento
concupiscível fonte dos desejos ligados à existência corporal; e por último, o
elemento irascível, espécie de “instinto” moral que nos permite distinguir entre o
justo e o injusto, fonte da indignação, da coragem e da honra e que se ligaria tanto
à parte racional quanto à concupiscível. Essa tripartição, longe de ser arbitrária,
segue um rigoroso princípio de economia explicativo com o objetivo de dar conta
dos inúmeros paradoxos a que a noção de alma como una e pura que aparece no
Fédon nos leva. Entre esses paradoxos está, principalmente o problema da
ajkrasiva (fraqueza da vontade). Se a alma é una, então razão e desejo se
assimilam. Ora, se todo desejo é desejo do melhor, se o melhor é o conhecimento
e se alma é inteiramente racional, então como explicar que tenhamos ações
contrárias ao que consideramos certo? A tripartição da alma resolve esse problema
na medida em opera uma tripartição dos desejos, reconhecidos como originários e
irredutíveis uns aos outros e, portanto, passíveis de conflito. Nesse sentido, a
99 É curioso notar que Platão explica a apreensão sensível (vide Teeteto 156a-e) também em termos de uma teoria dos oJvmoioi. O que nos leva a perguntar apesar de todo esforço de distinção, o quanto a noção de apreensão do inteligível é devedor do modelo da experiência sensível. Festugière parece indicar que ela é paradigmática (op. cit. p.114).
85
harmonia da alma consistiria na realização, em cada uma das partes, do bem que
lhe é próprio.
A quadripartição da alma, vista na passagem que inspira essa dissertação,
segue uma outra motivação, de caráter mais epistemológico: distinguir quatro
graus, pelo critério de “clareza”, na apreensão cognitiva da alma. Essa nova
maneira de dividir a alma não se choca com a anterior pois tais distinções dizem
respeito apenas à parte, distinguida acima, como a racional (logistikovn); que vem
a ser, como já mencionamos anteriormente, a ajrch;n de toda atividade cognitiva.
No que se refere aos quatro graus de clareza, temos que eles dependem da
natureza dos objetos a serem conhecidos: (…) e ordena-as por ordem de clareza,
partindo da noção de que, quanto mais seus objetos participam da verdade, mais
eles têm clareza (511d-e). Esses objetos são basicamente de duas naturezas:
sensíveis visíveis, de um lado, e inteligíveis “invisíveis”, de outro.
Entretanto, essa descrição de Platão nos leva a uma dificuldade. Como
compreender que a alma, e mais propriamente a parte dela distinguida como
racional, cuja natureza é definida como correlata `a natureza dos objetos
inteligíveis “invisíveis”, pode apreender os objetos sensíveis visíveis, cuja
natureza, até aqui, é descrita em termos opostos? O mesmo princípio dos oJvmoioi
utilizado para justificar a possibilidade de apreensão cognitiva no âmbito
inteligível não seria um obstáculo à possibilidade de apreensão cognitiva no
âmbito sensível? A menos que …
A menos que a alma tenha em si algo do sensível. É o que parece ser o caso
se levarmos em consideração a descrição dos elementos que compõem a “alma do
mundo” apresentada no Timeu (35a ss.)100 e que são, basicamente, os mesmos que
entram na constituição da parte intelectiva da alma humana, se bem que numa
mistura já bem degradada. Platão nos diz, portanto, que a alma é composta de três
elementos: da substância indivisível correspondente ao inteligível sempre idêntico
a si mesmo; da substância divisível correspondente ao sensível submetido ao
devir; e de uma terceira substância, produzida pela mistura das duas primeiras. De
modo que composta por três elementos, alma seria essencialmente um mictav.
100 Não há consenso, entre os comentadores, quanto a quais sejam exatamente os ingredientes dessa mistura. O problema parece envolver, inclusive, diferenças no estabelecimento do texto (Iglésias, loc. cit.). No que se segue, nos mantemos estritamente no texto de Festugière cujo interesse é, basicamente, sublinhar o caráter “impuro” da alma humana.
86
Mas se alma é um mictav, como ela pode conhecer o Ser uno e puro?
Voltamos aqui a questão inicial. A resposta, segundo Festugière (118 ss.), é que,
ainda que misturadas num todo, cada parte manteria a sua identidade, que de outra
forma, inviabilizaria a ascensão do sensível ao inteligível, ou seja, o processo de
conhecimento. Na medida, portanto, em que o verdadeiro objeto de conhecimento
não é outro que o inteligível sempre idêntico a si mesmo, a parte da alma própria a
conhecê-lo, o nou'", deve, por um lado, se afastar, o máximo possível, de tudo
aquilo que é estranho à natureza do puro inteligível, e , por outro, ela deve ser, ela
mesma, depurada.
E aqui temos o cerne da interpretação de Festugière: o objeto próprio à
qewriva é o ser supremo, essencialmente uno e puro. Esse objeto exige em
contrapartida, para ser apreendido, um “órgão” com as mesmas características.
Entretanto, por um lado nossa alma é essencialmente um mictav, por outro, os
entes que nos fazem “lembrar” dele são também essencialmente um mictav (p.201)
De modo que para que haja qewriva, tanto a alma quanto o objeto de conhecimento
devem passar por um processo de “purificação” onde se procura liberar a alma e o
de conhecimento de tudo que é estranho à natureza desse ser supremo.
É aí que entra em jogo a cavtarsi", procedimento que, segundo Festugière,
Platão transpõe dos rituais do culto religioso e que ganha, com ele, um novo
significado ao ser associada a todo um sistema moral que determinaria uma
revolução do espírito (p.145).
Essa cavtarsi" operaria em duas frentes. Em primeiro lugar, a alma como
um todo deve se purificar do corpo. Na medida, porém, que essa purificação não é
um fim em si própria, ela deve ser comandada por uma “mística”, isto é, por um
desejo de se assemelhar o máximo possível ao ser supremo (p.127).
Se existe um Bem em si que nós podemos conhecer, então a verdadeira
virtude consiste em se pôr de acordo com ele, em o imitar (p.145). Ora, o ser
supremo é essencialmente justo e bom101, logo o homem deve se esforçar em se
tornar, o máximo possível, justo e bom. Nota-se, que essa primeira cavtarsi" se
refere, antes de tudo, àquela noção da alma dividida em três partes que aparece em
República IV. Nesse sentido, ela parece se dirigir especialmente à parte
101 Essa tese sobre o Bem corresponde à primeira das leis normativas que Platão estabelece para a uma “sã” teologia, República 379a.
87
denominada irascível que é, na passagem mencionada, concebida como uma
espécie de contrapeso às duas partes radicalmente antagônicas, a racional e a
concupiscível, podendo se ligar tanto a uma quanto à outra. De forma que para
que a parte racional realize o bem que lhe é próprio, ela deve trazer a parte
irascível para o seu lado, para, assim, sobrepujar a parte concupiscível vista como
obstáculo. Ora, como esse elemento irascível é definido como uma espécie de
“instinto” moral que nos permite distinguir entre o justo e o injusto, como fonte da
indignação, da coragem e da honra, a cavtarsi" , nesse momento, opera,
principalmente, em termos de uma “purificação” dos hábitos, visando afastar a
parte irascível o máximo possível da parte concupiscível para aproximá-la da
parte racional: é vivendo numa cidade virtuosa e exercendo atos virtuosos que se
aprende a ser virtuoso.
Segundo Festugière (p. 148), há um exato paralelismo entre a descrição, nos
Livros II e III de A República, do programa de educação e de seleção dos cidadãos
e a doutrina esboçada no Fédon sobre como a alma, se separando do corpo, se
dispõe, purificada, à contemplação. Enquanto que no Fédon, sublinha-se,
principalmente, o quanto a justiça, a temperança e a força favorecem à ascese que
separa a alma do corpo, a República, mostraria como essa cavtarsi" se
organizaria e qual a ordem em que elas levam à harmonia.
Entretanto, essa purificação moral não basta para o exercício pleno da
qewriva. Ela é certamente uma condição necessária por afastar os obstáculos que
impedem a contemplação, mas não é o suficiente. É preciso ainda que o “olho” da
alma se habitue a discernir, naquilo que é apenas um reflexo, a fonte, justamente,
de toda luminosidade, e que, tendo-lhe discernido, ela se acostume a olhá-lo
diretamente. Essa segunda purificação, segundo Festugière, que concerne tanto ao
nou'" quanto ao nohtovn, é uma tarefa da dialética (p. 157).
Mas o que cauda maior surpresa na interpretação de Festugière sobre a
natureza e o status da novhsi" e de seu correlato metodológico, a dialética, é que
ele defende que a dialética não é do âmbito da novhsi", mas permaneceria ligada
essencialmente à diavnoia.
Por dialética, Festugière entende principalmente o método socrático de
perguntas e respostas que visa circunscrever o objeto a definir. Nesse sentido, ele
explicitamente passa por cima de qualquer consideração sobre a evolução da
88
noção de dialética no interior do pensamento de Platão (p.164). A distinção entre
períodos defendida, p. ex., não é sequer sugerida por ele, mas, ao contrário, o que
se vê é uma assimilação das “diferentes” descrições da dialética características a
cada período, todas interpretadas à luz do mesmo paradigma: a ascensão em
direção ao Belo em si descrita no Banquete.
Festugière identifica, na descrição mencionada, dois movimentos que
definem o papel da dialética em relação à circunscrição do objeto a ser aprendido:
uma abstração de ordem qualitativa e uma abstração de ordem quantitativa:
primeiro, passamos da beleza vulgar à beleza mais nobre; depois, da
multiplicidade dos vários belos à unidade da Beleza em si. A dialética, portanto,
tenderia a unificar o objeto a ser apreendido pelo nou'", definindo-o como um
objeto que é único e que é um. Essa unificação é vista em termos de uma
apreensão sinóptica (sunagwghv) nos mesmos moldes descritos no Fédro (265c-
266b), ou seja, identificando o caminho ascendente com a operação de
generalização (p.167 e 187). Nesse mesmo movimento, a dialética unificaria
também o nou'".
Festugière vê um exato paralelismo entre a descrição do Banquete e os
movimentos, já citados por nós, presentes na República, que tratam do dualismo
entre sensível e inteligível: a passagem da Analogia do Sol (507-509c), a
passagem da Linha dividida (509D-511E), a passagem da Alegoria da Caverna
(514a-521b) e, por fim, a passagem referente à descoberta das ciências
preparatórias à mais alta educação (521c-534e). Nesse sentido, o Banquete
determinaria o objeto a ser conhecido e a necessidade de se educar o olho da alma,
já as exposições encontradas na República, descreveriam essa educação (p.168).
No que se refere à passagem da Linha, a diavnoia é vista como algo
intermediário entre a opinião e a intuição (novhsi"), e compreenderia aquilo a que
se chama razão discursiva. Como tal, ela seria relativa, essencialmente, às
ciências matemáticas e, também, à dialética. A diferença entre a geometria e
dialética, segundo Festugière, se limitaria basicamente a uma diferença de atitude
frente aos “princípios” de que partem, geômetras e dialéticos, em seus raciocínios.
Enquanto o matemático considera os princípios de sua ciência primeiros na ordem
do raciocínio, o dialético considera os princípios de sua ciência apenas hipóteses
cuja validade dependeria de um princípio, ele mesmo não hipotético. Neste
89
sentido, enquanto que, na matemática, o movimento seria em apenas uma direção
— do princípio à conclusão —, na dialética, de acordo com o modelo do Fedro, a
alma se dirigiria em duas direções, de um lado, da hipótese ao princípio, e, do
outro, do princípio à conclusão. Mas tanto o movimento ascendente quanto o
descendente da dialética permaneceriam estritamente relacionados à esfera da
diavnoia (p.170).
Festugière vê a dialética como o último degrau antes do qewrei'n, que ele
sustenta como sendo de outra ordem. Nesse sentido, a apreensão do
panto;" ajrch;n seria obra apenas do nou'" (loc. cit.). A diferença entre dialética e
qewriva é definida em termos de uma diferença entre discurso e intuição (p. 186).
A dialética seria uma espécie de caminho, de viagem, que corresponderia ao
esforço ascensional pelo qual a alma se eleva, de gênero em gênero, na tentativa
de apreender todas as ligações que os une. Já a qewriva é definida essencialmente
como uma visão, voltada para a apreensão, simples e imediata, do múltiplo no um.
Entretanto, a qewriva se definiria também por um sentimento de presença,
sentimento, que seria a garantia de que se alcançou o Ser supremo, o Ser existente,
divino por excelência. Tal experiência é explicada em termos de um contato que
vai além de uma simples intelecção das essências e se constituiria em sentir o Ser
como existente (p.187). É essa sensação que garantiria que o dialético não está
sonhando…
Festugière explica que o modo próprio à qewriva é concebido por Platão
como correlato exato desse Ser supremo, que, segundo Platão, não é essência mas
está muito acima desta em dignidade e poder. Ora, conhecer, para Platão, é
conhecer a essência. Mas trata-se aqui da definição de conhecimento discursivo.
Na medida, porém, em que este Ser supremo é ilimitado, ele não pode servir a um
conhecimento distinto no qual seria definido pelos seus caracteres negativos, em
se declarando o que ele não é. Circunscrito, ele não seria mais que uma essência.
De modo que se a dialética nos leva à postulá-lo, ela, no entanto, é ineficaz em sua
apreensão. Entretanto, o nou'", apontado por Platão como a parte da alma que
participa ao Divino, purificado pelo longo processo de cavtarsi", no qual se
inclui a dialética, e portanto livre dos elementos estranhos à sua origem divina,
torna-se apto a “sentir” o Ser em sua existência, a tocá-lo. O princípio continua o
mesmo, o semelhante conhece o semelhante, e como, no Ser, essência e existência
90
se confundem (p.234), a sensação de sua presença corresponderia à apreensão de
sua essência. Esse contato, segundo Festugière, se configuraria como uma espécie
de êxtase, que não seria outra coisa que o prazer advindo do reencontro do nou'"
com a sua origem.
De modo que segundo a interpretação de Festugière, o modo próprio de
intelecção da novhsi" se definiria em termos outros que aqueles que definem o
modo próprio de intelecção da diavnoia. E como tal se definiria como uma espécie
de contato para além da apreensão das essências, como uma união inexprimível,
onde o nou'", perdido em seu objeto, o toca sem poder definir isso que ele toca,
não tendo outro sentimento que o sentimento de sua presença (p.226). E essa
experiência, por sua própria natureza, não pode ser traduzida por nenhum
discurso, ela é inefável (p.191).
Apesar de célebre, a interpretação mística de Festugìere nunca foi, no
entanto, unanimidade. Já na época de sua aparição Emile Bréhier102 lhe dirigia
sérias reservas, nas quais foi seguido mais tarde por H. Joly103. Mais
recentemente, entre os trabalhos que retomam a questão, destaca-se o artigo de
Yvon Lafrance, Platon et la Géometrie: la méthode dialectique en République
509d-511e, cuja motivação, explicitamente, não é outra que a de enterrar de vez
tal interpretação.
Afinal, pergunta Lafrance (p. 48) como compreender, por um lado, que a
Forma inteligível do Bem apresentada na passagem da Linha em tanto que
princípio não hipotético como o mais claro do saber e, por conseqüência, o mais
inteligível, torna-se de acordo com a interpretação mística o menos inteligível de
todos os princípios do saber já que ele não pertence nem mesmo ao âmbito do
conhecimento? E, por outro, que Platão, chame a atenção aos matemáticos e
geomêtras de seu tempo para as ambigüidades de suas tevcnai fundadas só em
hipóteses e ofereça em troca uma espécie de experiência mística de ascensão do
espírito em direção ao inefável e ao indefinível?
Em oposição à interpretação mística de Festugìere, Lafrance propõe uma
leitura “geométrica” da Linha, onde os métodos aí expostos seriam, pelo lado da
102 Revue des Études Grecques, 51, 1938, p. 489- 498. apud. Yvon Lafrance, Platon et la
Géometrie: la méthode dialectique en République 509d-511e. p. 46 103 Le Renversement platonicien, Paris, Vrin, 1974, p. 97-109. . apud. Yvon Lafrance, loc. cit.
91
diavnoia, uma retomada do método hipotético dos geômetras gregos, e, pelo lado
da novhsi", uma retomada do método analítico e sintético originário, também, da
geometria grega, e que, portanto, todos os processos envolvidos na descrição de
Platão permaneceriam estritamente relacionados à esfera racional (p.49). segundo
Lafrance, se tantas controvérsias surgiram é porque erradamente se super
valorizou a distinção entre a diavnoia e a novhsi".
O engano estaria em se acreditar que a distinção entre diavnoia e a novhsi"
com relação a diferença de método sublinhada por Platão — por um lado, o
matemático que toma certas hipóteses como ponto de partida e segue em linha
descendente até chegar a conclusão do que ele se tinha proposto anteriormente:
um teorema a demonstrar ou um problema a resolver; por outro, o dialético que
parte igualmente dessas hipóteses, mas com um fim contrário, o de as ultrapassar.
Usando-as como trampolins, de onde se lança em direção ao ponto mais alto: o
Princípio Absoluto.— se funda, em última análise, na identificação da novhsi"
como um processo ascendente e regressivo onde se recorreria a intuição e a
diavnoia como um processo descendente e progressivo onde se progrediria por
dedução, nos mesmos moldes descritos no Fédro (265c-266b) e no método
socrático de perguntas e respostas.
Lafrance visa, aqui, principalmente, Robinson que em sua interpretação
distingue cinco características do método hipotético (hipótese, dedução,
compatibilidade, provisório e aproximativo)104, descrito por Platão, que o
afastariam de uma origem geométrica e o aproximariam do método socrático de
perguntas e respostas. Entretanto, segundo Lafrance, ainda que tal interpretação
esteja de acordo com a ênfase dada por Platão ao caráter essencialmente dedutivo
das matemáticas, ela se encaixaria mal na passagem da Linha, e por duas razões:
Em primeiro lugar, não se vê como os exemplos dados por Platão, para ilustrar as
hipóteses de que partem os matemáticos (o par e o impar; os ângulos e as figuras),
possam ser consideradas como opiniões provisórias e não como verdades de base.
Em segundo lugar, tampouco se vê como associar à demonstração geométrica um
caráter provisório e aproximativo. Como sublinha Lafrance (p.64), a
104 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 256. Yvon Lafrance, op. cit. p. 64.
92
demonstração geométrica, uma vez estabelecida e aceita, é considerada definitiva
e completa em relação ao objeto que ela queria provar.
Segundo Lafrance, além dessa versão socrática do método hipotético,
haveria uma outra, sobre a qual pouco se falou, e que parece se encaixar melhor
no contexto: a versão que Proclus apresenta em seu comentário sobre Euclides.
Nesse texto, Proclus105 diz que todo procedimento geométrico, seja a
solução de problemas seja a construção teoremas, consiste de seis etapas: a
proposição, a exposição, a determinação, a construção, a demonstração e a
conclusão. Para Lafrance, essa descrição de Proclus, reproduziria, de forma mais
fidedigna, os mecanismos do raciocínio geométrico na medida em que, ainda que
possam ser encontrados casos que não concentrem todas essas seis etapas, de
acordo com Proclus, pelo menos três delas estariam sempre presentes
necessariamente: a proposição, a demonstração e a conclusão. O quê, a
aproximaria, perfeitamente, da descrição de Platão.
Segundo Lafrance, Platão estava suficientemente a par dos mecanismos
matemáticos de sua época, para desconhecer os procedimentos descritos por
Proclus. Se Platão se limita a descrever o procedimento matemático, apenas em
termos da atitude dos matemáticos face aos princípios de que partem em seus
raciocínios e no uso de imagens, isso se deveria menos à ignorância de Platão, e
mais à preocupação epistemológica de sublinhar dois aspectos fundamentais da
ciência geométrica.
De modo que a “deficiência”, apontada por Platão, com relação ao método
hipotético dos geômetras, não seria por causa do caráter provisório e aproximativo
de seus resultados, como defendeu Robinson, mas por causa do caráter derivativo
dos princípios de que partem. Segundo Lafrance, Platão não estaria negando a
validade, do ponto de vista da diavnoia, da matemática e da geometria, mas
simplesmente apontando que, do ponto de vista da novhsi", elas não poderiam ser
consideradas ciências perfeitas, na medida em que ainda haveria lugar para um
saber superior capaz de levar a uma maior inteligibilidade do real. O fato de
Platão ter considerado os princípios da geometria e das matemáticas como simples
hipóteses, isto é, como princípios derivados, responderia, portanto, à sua
105 apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 66.
93
convicção na possibilidade do espírito humano de atingir um saber absoluto,
universal e infalível (p.71).
Mas isso não quer dizer que Platão, em contrapartida, esteja oferecendo um
método de uma outra “natureza”, mesmo por que, acrescenta Lafrance (p.72), a
preocupação em se alcançar um princípio unificador era prática comum entre os
geômetras e matemáticos de sua época.
Lafrance se apóia, novamente aqui, em Proclus. Segundo Lafrance, Proclus
faz referência a três espécies de métodos utilizados pelos geômetras gregos: o
método analítico-sintético, o método de divisão e o método de redução ao
absurdo. Entre eles, o analítico-sintético era considerado o mais “belo” por levar a
investigação a um princípio comum.
A descrição desse método, no entanto, Lafrance vai buscar no testemunho
de Pappus, um dos mais importantes comentadores gregos da matemática e que
viveu no final do séc. III de nossa era106. Segundo Lafrance, Pappus nos descreve
o método analítico-sintético como sendo composto de dois momentos: o primeiro,
chamado analítico por seu caráter regressivo, consistia em supor o que é
procurado como estando já produzido e depois examinar o antecedente de onde
ele poderia ter resultado e novamente examinar o antecedente desse último, e
assim sucessivamente até se chegar a alguma coisa já conhecida ou da ordem de
um primeiro princípio. Já o segundo momento, a síntese, consistia no caminho
oposto. Tomando como já produzido o que se alcançou em último lugar pela
análise, e arranjando segundo sua ordem natural as conseqüências que
anteriormente eram antecedentes, ligando umas as outras, chega-se finalmente ao
estabelecimento do que era procurado.
Lafrance vê nesse método, justamente, a fonte de inspiração de Platão na
formulação do método dialético apresentado na passagem da Linha dividida.
Assim como foi o caso na descrição da diavnoia, o manancial de Platão,
permaneceria, aqui também, a própria matemática. Contra a opinião de Proclus107,
de que teria sido Platão, o inventor do método analítico, Lafrance argumenta que
devemos compreendê-la nos mesmos termos em que se diz que Aristóteles teria
sido o inventor do silogismo, ou seja, assim como, antes de Aristóteles, já se
106 LINTZ, Rubens G.. História da matemática, vol. I, Ed. da FURB, Blumenau, 1999. p. 105. 107 apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 78.
94
utilizava o silogismo sem se estar plenamente consciente de todas suas
implicações lógicas, também os geômetras anteriores a Platão já utilizariam o
método analítico sem estarem plenamente conscientes de suas implicações
epistemológicas e metodológicas (p.78).
Mas, o mais importante para a compreensão do tipo de mecanismo que
Platão tem em vista quando tenta descrever a dinâmica da potência noética,
segundo Lafrance, é o caráter das implicações lógicas desse método analítico.
Examinando melhor esse método vemos que sua validade supõe a
reciprocidade ou a equivalência das proposições envolvidas. E isso só é possível
se, em ambos os momentos, o processo envolver dedução. E aqui esbarramos no
ponto central da tese de Lafrance. Isso por que não é fácil mostrar como as
premissas de uma demonstração podem se tornar as conseqüências de uma
conclusão108.
Para Aristóteles, p. ex., a análise envolvida na novhsi", não envolve dedução,
mas, antes, corresponderia a uma espécie de compreensão intuitiva adquirida a
partir de um processo de indução das experiências individuais que nos levaria ao
conceito universal e à proposição universal, os quais serviriam de premissas não
demonstráveis de toda demonstração (Meta. 1051a 21ss; Ética a Nicômaco 1112b
20ss). Esse processo não seria um processo discursivo e, ao contrário da indução
perfeita (Anal. pr. II, 68b), não poderia ser reduzida a um tipo de silogismo.
Lafrance defende, no entanto, que a explicação de Aristóteles é parcial e
que, de fato, existiriam, na geometria grega, duas formas de análise: de um lado, a
de caráter intuitivo, mencionada por Aristóteles, e de outro, a de caráter dedutivo
que aparece nas obras de Euclides, Arquimedes e Pappus. Segundo Lafrance, a
reciprocidade ou a equivalência das proposições geométricas figuraria, entre os
geômetras gregos, uma espécie de ideal a alcançar, como se pode ver no esforço
de Euclides, em seus Elementos, no sentido de mostrar a reciprocidade das
proposições geométricas aí apresentadas. É bem verdade que eram conhecidos
casos em que as proposições geométricas não admitiam reciprocidade, mas essas
representariam, ao olhos dos geômetras, um escândalo da mesma forma que, para
os pitagóricos, os números irracionais eram motivo de espanto (p. 82 ss.).
108 Essa seria a razão por que Cornford (citado por Lafrance) rejeitaria uma interpretação dedutiva da análise.
95
Lafrance apresenta um exemplo, tirado de Robinson109, que ilustra a
possibilidade110 de haver conseqüências lógicas nos dois sentidos da análise e da
síntese:
(1) 3x = 4y (3) 3x + 2y =6y (2) 3x + y =5y (2) 3x + y =5y (3) 3x + 2y =6y (1) 3x = 4y
A partir daí, Lafrance conclui que este duplo movimento de análise e de
síntese assim como a reciprocidade das proposições geométricas constituíam, aos
olhos de Platão, o arquétipo por excelência de toda metodologia científica, e que é
essa versão do método analítico que Platão tem em vista quando tenta nos
descrever a dinâmica da potência noética. Nesse sentido, Lafrance distingue
quatro características do método analítico-sintético dos geômetras gregos que
podem ser encontradas nas exposições metodológicas de Platão adaptadas à
argumentação filosófica: 1) o duplo movimento de regressão em direção a um
princípio e de progressão em direção a uma conclusão. 2) o uso de hipóteses em
diversos sentidos, seja como verdades de base ou como proposições provisórias.
3) o processo de dedução na maioria dos casos, o processo de indução sendo
considerado um “mal passo”, o último recurso. 4) a possibilidade de redução ao
absurdo ou ao impossível.
No caso da passagem da Linha, segundo Lafrance, seu esquema geral
reproduziria, mais do que qualquer outra, os traços essenciais do método analítico
– sintético: a noesis consistiria em considerar os princípios das ciências
matemáticas como princípios derivados, isto é, hipóteses, e a se elevar dessas
hipóteses a um princípio universal e não hipotético, num movimento regressivo
inspirado na descrição de Pappus e, portanto, de caráter dedutivo. Uma vez
atingido esse princípio, o movimento noético consistiria em deduzir desse
princípio universal certas propriedades para chegar à conclusão última, e mais
uma vez o modelo aqui seria aquele descrito por Pappus em relação a síntese. A
noésis em seu movimento descendente se confundiria, portanto, com a dianóia
enquanto que se distinguiria dela pelo seu movimento ascendente que lhe é
característico (p. 88).
109 R. Robinson, Analysis in Greek Geometry, p. 469 e 472. apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 82. 110 Alguns comentadores (Lafrance cita Cornford) rejeitariam essa baseados na dificuldade em se mostrar como as premissas de uma demonstração podem se tornar as conseqüências de uma conclusão.
96
Lafrance, entretanto, sublinha que essa afinidade entre o método analítico –
sintético dos geômetras gregos e o método dialético apresentado por Platão na
passagem da Linha, não deve ser entendida em termos de uma simples redução.
Isso seria ir contra o texto explícito de Platão onde é dito, claramente, que há uma
diferença entre o método matemático e a dianóia, de um lado, e o método
dialético e noésis, de outro. A sua proposta é que se considere esse método
analítico – sintético dos geômetras gregos como o arquétipo comum sobre o qual
trabalha Platão e, do qual, suas descrições metodológicas seriam uma espécie de
variação.
Segundo Lafrance, o que autorizaria Platão a apresentar o seu método
dialético como diferente do método das matemáticas, era a introdução de duas
idéias novas mais do que um novo método: a idéia de um saber universal e
infalível e a idéia do valor metodológico da intuição, que os geômetras de sua
época tendiam a descartar em favor da dedução. Mas que, no entanto, quando
Platão tenta nos descrever a dinâmica da potência noética e da dialética, ele dá
mostras de estar desprovido dos meios metodológicos e que, portanto, é bem
provável que seu ponto de referência permanecesse o mesmo: a geometria e a
matemática (p. 88).
Lafrance aponta que é, sobretudo, em relação à última etapa do método
dialético — a intuição do princípio não hipotético — que a interpretação de
Festugière funda sua interpretação “mística” do método dialético. E, que nesse
sentido, ele se apóia, principalmente, no uso repetido dos verbos aJvptetai (511b4)
e aJyavmeno" (551b7), que sugeririam a metáfora do “tocar”.
Para Lafrance, no entanto, nada indicaria aqui que esse “toque do espírito”
implique uma experiência de ordem “mística”. Ele vê, no texto, antes de tudo, o
esquema de uma classificação das ciências e de graus de conhecimento fundada
sobre graus de realidade. Tampouco ele vê, na série de metáforas sugestivas da
Alegoria da Caverna, algo que remeta a um gênero de experiência que fosse
propriamente “mística”, elas lembrariam, antes, uma experiência de ordem moral.
E quanto ao:
(…) Admite, portanto, que as coisas inteligíveis não recebem do Bem apenas
a sua inteligibilidade, mas também retiram dele a sua existência e a sua
essência, apesar de o Bem não ser a essência, mas está muito acima desta
em dignidade e poder.
97
(Rep. VI. 509 a-b).
Lafrance afirma que essa passagem indicaria, sem dúvida, uma prioridade
da forma inteligível do Bem sobre as outras formas inteligíveis, mas, daí, supor
que esse Bem estaria para além da ordem normal de conhecimento, é um passo
que o texto não autorizaria. Se o Bem aparece como causa da ciência e da verdade
e como para além da essência é, justamente, porque os princípios da ciência
derivam todos da forma inteligível do Bem, em tanto que princípio não hipotético,
e não porque o Bem não pertence à esfera inteligível. A distinção fundamental
subentendida tanto na passagem da Linha dividida (509D-511E), assim como nas
igualmente famosas passagens da analogia do sol (507-509c) que a antecede, a
alegoria da caverna que a sucede (514a-521b) e, por fim, a descoberta das ciências
preparatórias à mais alta educação (521c-534e), é uma distinção entre opinião e
ciência, ou seja, duas experiências fundamentais do espírito humano, não se
vendo, portanto, como uma experiência “mística” poderia tomar lugar no interior
dessa distinção (p.90).
No que se refere especificamente a essa intuição, Lafrance segue
Robinson111 e afirma que devemos entender essa intuição do princípio não
hipotético não em seu sentido moderno de saber assegurado mas não obtido
através de um método, mas como o resultado e o produto do método dedutivo: O
movimento ascendente do espírito dialético em direção ao princípio não hipotético
imitaria o movimento analítico ou regressivo do espírito geométrico que
“caminha” de hipótese em hipótese por via dedutiva. Nesse percurso em direção
ao princípio não hipotético, pode acontecer que o dialético ponha uma hipótese
cujas conseqüências sejam contraditórias entre si. Nesse caso ele deve procurar
uma outra hipótese e examinar de novo suas conseqüências. Se as conseqüências
não são contraditórias, então o dialético deve retornar sobre a hipótese em si
mesma e se perguntar se ela não é derivada de uma outra mais fundamental, e
assim sucessivamente. O dialético, continua Lafrance, deve continuar nesse
processo até o dia em que a última hipótese, após ter passado por um longo
proceso de reflexão nas quais suas conseqüências não apresentaram nenhuma
contradição entre elas, aparecerá como uma verdade absoluta, universal e
111 R. Robinson, L’emploi des hypothèses selon Platon, p. 262-266. apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 90.
98
infalível. Nesse momento, essa última hipotése torna-se não hipotética e, nessa
última etapa, a dedução é substituída pela intuição.
Lafrance conclui que Platão considerava a intuição racional como o
complemento de um processo dedutivo e, portanto, todos os mecanismos
envolvidos permanecem estritamente relacionados à esfera racional. De modo que
Platão reprovaria aos geômetras de seu tempo, não só o fato de tomarem seus
princípios como primeiros na ordem do conhecimento, mas também e,
principalmente, de negligenciarem a parte devida à intuição na busca pelo saber.
Lafrance termina seu artigo reconhecendo que seja possível encontrar
aspectos do pensamento de Platão profundamente marcados por um certo
misticismo. Mas descarta, veementemente, a possibilidade de fundar esse
misticismo do platonismo sobre o método dialético já que esse não seria o caso
nem no que diz respeito à dianóia nem à noésis, e nem, tampouco, à intuição do
princípio não hipotético. Mas, ao contrário, o método dialético representaria o
cerne estritamente racional da filosofia de Platão e exprimiria seu esforço último
para escapar à esfera do irracional e atingir os fundamentos indubitáveis do saber
humano.
Antes de passarmos à conclusão desse trabalho, gostaríamos de fazer
algumas considerações sobre as duas interpretações analisadas: a chamada
interpretação mística de Festugière e a versão geométrica de Lafrance.
Se há um ponto, com relação à passagem da Linha, com o qual todos os
comentadores consultados concordam, é a existência de uma tensão, na descrição
de Platão, entre, por um lado, a certeza e a importância no que se refere ao fim a
atingir pela dialética, e, por outro, a imprecisão referente aos meios de alcançá-lo.
E, de fato, uma leitura mais atenta não deixa dúvidas quanto a isso: de um lado,
nada mais nada menos, que o panto;" ajrch;n, isto é, não um princípio qualquer,
mas, justamente, o Princípio que faz com que todas as coisas sejam o que são, de
outro, uma exposição do método dialético fundada, basicamente, a partir do
contraste com o método matemático, mas que, ao mesmo tempo, sugere uma
relação não explicitada entre ambos os métodos.
Dois caminhos se oferecem, portanto à interpretação: um em torno do fim a
alcançar, o outro em torno da relação não explícita entre o método dialético e o
99
método matemático. Para além das conclusões radicalmente contrárias a que
chegam as interpretações de Festugière e Lafrance quanto à índole da experiência
noética, nota-se entre elas, antes de tudo, uma diferença na ênfase dada a cada um
desses aspectos. Festugière se concentra, principalmente, em torno do
panto;" ajrch;n, que, segundo ele, é considerado por Platão como o divino por
excelência, o princípio supremo ou, em uma palavra, Deus. Já Lafrance detém-se
basicamente na questão do método e na sua inspiração matemática, vendo nesse
panto;" ajrch;n não mais que um postulado lógico.
Queremos crer que é justamente essa diferença na ênfase dada a cada um
dos aspectos mencionados, o que determina o antagonismo dessas interpretações
e, também, arriscamos, seus respectivos “excessos”.
Vejamos primeiro a interpretação de Festugière:
Para começar, é preciso ser dito, a favor da tese de Festugière, que existem
pelo menos três indícios que levam a argumentar no sentido de que o Bem
platônico tem claras conotações religiosas e teológicas:
Em primeiro lugar, a forma analógica como Platão decide apresentar o Bem.
Com efeito, ao comparar a posição do Bem e suas funções no mundo inteligível
com a posição do Sol e suas funções no mundo sensível, Platão se esforça em
matizar que o ponto de comparação, ao que, por outro lado, denomina engendrado
do Bem (Rep. 507a), não é só em termos de um objeto em condição de igualdade
ao resto dos objetos do mundo sensível, mas uma divindade:
Sócrates — Qual é, então, na tua opinião, de todos os deuses do céu, aquele
que pode realizar essa união, aquele cuja luz faz com que os olhos vejam da
melhor maneira possível, e que os objetos visíveis sejam vistos? Glauco — O mesmo que tu e todas as pessoas reconhecem como senhor: o
Sol. (Rep. 508 a)
Por outro lado, a validez dessa metáfora parece não se apoiar somente em
razões formais (isomorfia estrutural e funcional), mas em razões ontológicas. Pois
o elemento análogo ao Bem, a divindade solar, não é algo absolutamente distinto
do Bem, mas o qual o Bem engendrou análogo a si mesmo (Rep. 508b). Portanto,
dado que em toda geração tem de existir necessariamente uma certa co-
naturalidade entre o gerado e o que gera, é evidente que somente o divino pode
proceder do divino. Além disso, sendo o Bem o Absoluto, o princípio único
100
fundante e não condicionado de tudo o que tem ser, a perfeição mesma não
participada, é possível pensar que o Bem não é outra coisa que a divindade, não
algo divino, mas a divindade em si mesma.
Em segundo lugar, é conveniente recordar o caráter divino que Platão
outorga sempre às idéias, ao modelo eterno. No Hípias Maior (297c-d), Sócrates
afirma que a beleza “dos deuses” participa da Beleza em si112 e, levando-se em
conta a identidade platônica entre Beleza e Bem, também a sua bondade e
perfeição. Portanto, na medida em que Platão apresenta o Bem na República como
Absoluto e fundamento das idéias, na medida em que o modelo eterno é o divino,
o Bem pode ser compreendido aqui como o divino em si mesmo.
Em terceiro lugar, a caracterização que Platão faz do Bem, uma
caracterização não isenta de conotações religiosas e teológicas:
a) o Bem é um absoluto — é a fonte e o fundamento de todo o existente,
mas o mesmo não se acha determinado em sua existência. É, pois, manancial do
Ser, mas ele mesmo não é alterável, não cabem fissuras no Bem, diferenciações,
possibilidade de predicação, pois no domínio do Bem não existe distinção alguma.
Portanto, se recordarmos, a propósito disso, um dos princípios normativos que
Platão estabelece no Livro II de A República (379 a-383c) como demarcador da
validez teológica, veremos que, para Platão, a divindade era algo simples no duplo
sentido de que: a) nela não cabe diferenciação ou multiplicidade alguma e b) no
sentido de que não pode aparatar-se da forma ou do estado que lhe é próprio. As
coisas mais perfeitas, portanto, são aquelas que sofrem as menores transformações
por causa de outras coisas. Mas a divindade, diz Platão, é o verdadeiramente
perfeito. Logo não cabe mutação nela, nem sequer por vontade própria. Toda ação
da divindade é devida à necessidade.
b) o Bem é causa de todo reto e belo que existe em todas as coisas — por
ser o Bem a perfeição mesma e por ser a causa de todo o existente, do eidético e,
indiretamente, de todo o resto, o Bem está participando em tudo e é, por isso,
causa do bom e belo que existe em todas as coisas. O Bem não pode ser causa do
mal. Essa tese sobre o Bem corresponde, portanto, à primeira das leis normativas
112 Devemos sublinhar, no entanto, que a expressão aujto to calon, que aparece no texto, não implica o sentido metafísico que lhe dará Platão no diálogos da maturidade. (ver E. Chambry, notice sobre Hípias Maior, ed.Garnier, 1947)
101
que Platão estabelece para a uma “sã” teologia113: que a divindade é
essencialmente boa e não pode ser, em conseqüência, causa do mal.
c) o Bem é a causa produtora de todo o existente — no Timeu, Platão
apresenta a imagem de um “demiurgo” que fabrica todas as coisas do mundo
atendo-se ao modelo perfeito das Idéias. Isso já foi interpretado no sentido de que
o Bem de A República seria apenas um princípio lógico. Contudo, em A
República, é o Bem quem dá o ser e a essência das Idéias. Além do mais, o Bem
engendra (sem mediação de demiurgo algum) Helios à sua semelhança que, por
sua vez, é a causa do ser e da essência do que devém no mundo sensível. (Rep.
508b-c, 517c). Na República, por conseguinte, é tudo produção do Bem. De modo
que a hipótese do “demiurgo” no Timeu não desmentiria uma interpretação
teológica do Bem na República.
d) O Bem é inefável e incomunicável — o que equipararia a experiência do
Bem não a uma experiência cognoscitiva, mas a uma experiência místico-
religiosa.
Além disso, a tese platônica segundo a qual o Bem não é essência mas está
muito acima desta em dignidade e poder (Rep. 509b) tem evidentes
conseqüências no que se refere à possibilidade de conhecimento Bem e ao seu
estatuto ontológico. Com efeito, se o Bem é algo que está para além de toda
essência, devemos considerar seriamente a hipótese da impossibilidade do
conhecimento de o que o Bem é em si. Segundo Platão, o conhecimento é
conhecimento somente de essências, de idéias. Conhecemos uma coisa quando
nossa alma transcende o particular sensível para apreender seu eidos, aquilo que é
comum à multiplicidade, aquilo que faz com que cada coisa seja o que é.
Conhecer é reduzir a multiplicidade de nossa experiência sensível à idéia
correspondente, isto é, é o processo e o termo pelo qual encontramos um princípio
unificador (eidos) da multiplicidade da experiência.
O conhecimento é possível porque, ainda que o concreto esteja em um devir
perpétuo, a realidade espaço-temporal tem uma certa consistência ontológica,
consistência que lhe vem por ser “participação” ou “imitação” imperfeita no
modelo eterno. Se o real concreto não participasse de algum modo desse modelo
113 Rep. 379a
102
eterno, careceria de harmonia, de estrutura, de consistência e, assim, seria
absolutamente irredutível a um princípio unificador, isto é, seria incognoscível.
Conhecer é, pois, conhecer a essência. De modo que afirmar que o Bem é algo
que está para além de toda essência sugere sim que o em si do Bem é
incognoscível, ao menos, nos moldes de um conhecimento pela essência.
Mas será que podemos concluir, a partir daí, que o que Platão tinha em vista
era uma espécie de experiência mística nos moldes de uma mística cristã como
defende Festugière apoiado na tradição neoplatônica?
A nossa opinião é que o texto não permite isso, nem que Platão tenha
concebido a Idéia do Bem com as características que normalmente se associa a
Deus em nossa cultura cristã. A questão é que Festugière não se dá conta que se,
por um lado, a Idéia do Bem não é eijvdo", uma vez que sua natureza não é
essencial, ela permanece, todavia, uma ijdeva (ajgaqou' ijdevan) e que, portanto, toma
parte da realidade imutável e eterna do tovpo" nohtov". Esse aspecto deve nos pôr
em alerta contra a tendência de se tomar muito ao pé da letra esse para além da
essência. Se Platão desejava caracterizar a Idéia do Bem como sendo
absolutamente de outra ordem de conhecimento, não se entende por que então
essa caracterização aparece no meio de uma classificação das “ciências”. A
própria “tensão” mencionada entre, por um lado, a certeza e a importância no que
se refere ao fim a atingir pela dialética, e, por outro, a imprecisão referente aos
meios de alcançá-lo fica completamente esvaziada de sentido na medida em que
Festugière coloca a dialética, contra o texto explícito de Platão, no âmbito da
diavnoia. Reduzida a uma espécie de purificação do espírito, a dialética adquire
um papel apenas secundário na apreensão da Idéia do Bem, o que também vai
contra o texto platônico. Em suma, a interpretação de Festugière cria um tal hiato
entre o modo de conhecimento ordinário representado pela diavnoia e o modo de
conhecimento envolvido na novhsi" que realmente só através de uma “visão” ou
de um “salto” que ultrapassaria a intelecção, seria possível transpô-lo.
Mas será então que Lafrance tem razão e que devemos nos esforçar em
“exorcizar”, de uma vez por todas, a interpretação mística e sua influência na
compreensão dos textos platônicos por ela distorcer a real inspiração de seu autor
no que se refere ao método dialético aí apresentado assim como à essência do
platonismo? Não vamos tão rápido.
103
O grande mérito da interpretação de Lafrance é, sem dúvida, revelar uma
certa continuidade entre a diavnoia e a novhsi" que torna o contraste sublinhado
por Platão nesses dois níveis de inteligibilidade um pouco mais coerente.
Entretanto, como Lafrance mesmo sublinha, a relação entre o método dialético e o
método geométrico não pode ser vista em termos de mera redução na medida em
que o texto explícito de Platão defende uma distinção clara entre o método dos
matemáticos e a diavnoia de um lado, e o método dialético e novhsi", de outro.
Apesar de seus esforços, a interpretação de Lafrance não consegue, no entanto,
definir bem esses limites na medida em que reduz o momento “ascendente” da
dialética a um mero processo dedutivo. Pois não se entende como simples
desdobramentos tautológicos tais como os que ele apresenta como exemplos de
reciprocidade entre as proposições, característica do método dedutivo, expostos
por Platão no Mênon: a virtude é ciência, logo, a virtude se ensina; a virtude se
ensina, logo, a virtude possui mestres e discípulos, pode produzir ou resultar na
intuição do summum principium.
E é justamente nesse ponto que vemos o ponto fraco da interpretação de
Lafrance. Ele parece não dar muita importância à distinção ontológica que Platão
confere a Idéia do Bem face às outra idéias. Para Lafrance (p. 92), a intuição do
princípio não hipotético da Idéia do Bem na dialética platônica seria tão “mística”
quanto a intuição do cogito no pensamento cartesiano ou aquela dos primeiros
princípios das ciências de Aristóteles. Entretanto, não nos parece claro que o
princípio da não contradição aristotélico ou o cogito cartesiano respondam às
mesmas exigências que Platão reclama para o seu primeiro princípio (Rep.VI.
509a ):
Confessa, então, que o que derrama a luz da verdade sobre os objetos do
conhecimento e proporciona ao indivíduo o poder de conhecer é a Idéia do
Bem. Podes concebê-la como objeto de conhecimento por ela ser o princípio
da ciência e da verdade, mas, por mais belas que sejam estas duas coisas, a
ciência e a verdade, não te equivocarás se pensares que a idéia do Bem é
distinta delas e as ultrapassa em beleza. Como no mundo visível se
considera, e com razão, que a luz e a visão são semelhantes ao Sol, mas se
acredita, erroneamente que são o Sol, da mesma forma no mundo inteligível
é correto pensar que a ciência e a verdade são, uma e outra, semelhantes ao
bem, mas é errado julgar que uma ou outra seja o Bem; a natureza do Bem
deve ser considerada muito mais preciosa.
104
De modo que acreditamos que nem a interpretação de Festugière nem a
interpretação de Lafrance conseguem dar conta de todas as questões envolvidas na
mencionada tensão, na passagem da Linha, entre, por um lado, a certeza e a
importância no que se refere ao fim a atingir pela dialética, e, por outro, a
imprecisão referente aos meios de alcançá-lo. Ao super valorizarem um aspecto
em detrimento do outro, cada uma delas tende a oferecer uma visão apenas parcial
dos liames que ligam esses dois pólos.
E aqui terminamos as análises dos textos a que nos propomos no início
desse trabalho. É chegada a hora de tirarmos algumas conclusões …
6
Conclusão
Na República, Platão chama de uJpoqevsei", portanto, o que o matemático
considera evidente por si mesmo e que não necessita justificação: não se dignam a
dar a razão (lovgon didovnai) delas nem a si próprios nem aos outros, considerando
que elas são evidentes para todos (510c). A questão é que, ao fazer isso, Platão
confere um caráter de provisionalidade e de suspeição a algo onde, antes, em
geral, não havia. É verdade que as ciências matemáticas partem de “princípios”
que elas não procuram justificar; mas do ponto de vista matemático, isso se
explica por esses princípios serem considerados auto evidentes e cuja justificação
é desnecessária à demonstração que se pretende, além de “matematicamente”
impossível. De modo que o que se deve ser esclarecido aqui é em que sentido
princípios, auto evidentes e indemonstráveis para os matemáticos, tornam-se, do
ponto de vista da filosofia, simples ujpoqevsei".
A resposta, como apontaram, contemporaneamente, alguns eminentes
comentadores1, parece estar mais perto do que se supunha e deve ser procurada à
luz da Teoria das Idéias. Nesse sentido, o artigo, tornado clássico, de H.F.
Cherniss2 nos ajuda a “iluminar” a questão. Segundo Cherniss, a Teoria das Idéias
1 Notadamente Yvon Lafrance (op., cit.), Suzanne Mansion. (op., cit.) e Richard Robinson (op.,
cit.) 2 H. F. Cherniss. A Economia Filosófica da Teoria das Idéias. Trad. Irley Franco in “O que nos faz pensar”, cadernos do depto. de filosofia da PUC-RJ, n 2, p. 109-118.
106
tem como inspiração principal oferecer uma explicação das diversas esferas da
experiência humana — ética, epistemológica e ontológica — que, ao integrar
umas às outras, apresente um cosmos racionalmente unificado. Neste aspecto, A
Teoria das Formas pode ser considerada a contrapartida de Platão às teses
relativistas dos sofistas na medida em que funda a possibilidade de um saber
absoluto: é a teoria que fornece uma ontologia adequada à fundamentação de uma
epistemologia, por sua vez adequada a uma fundamentação da ética.
O âmago da teoria platônica, portanto, está nessa estruturação hierárquica
onde cada esfera se funda naquela que, na ordem lógica, lhe é imediatamente
superior, remontando-se assim até a esfera ontológica, fundada, por sua vez, em
um princípio ele mesmo não fundado e do qual todas elas se originam, a
ajrch; ajnupovqeto" (510b; 511b).
Voltando agora para a passagem da Linha, vemos que o teor da crítica
platônica parece se concentrar, principalmente, no fato de serem, os matemáticos,
incapazes de ligar suas hipóteses a um princípio primeiro:
Sócrates — Eu afirmava que os objetos desse gênero pertencem à classe do
inteligível (nohto;n), mas que, para conseguir conhecê-los, a alma é
obrigada a recorrer a hipóteses (uJpoqesesi), que ela não se encaminha em
direção a um princípio (ajrch;n), uma vez que não pode ir além dessas
hipóteses, servindo-se destas como de imagens dos mesmos objetos que
produzem sombras no segmento inferior, e que, em relação a essas sombras,
são tidos e considerados como claros (ejnargevsi) e distintos
(tetimhmevnoi"). (511a)
Entretanto, não devemos pensar que Platão está querendo chamar a atenção
aqui para o fato de que os matemáticos não buscavam remontar até aos princípios
primeiros de suas respectivas ciências. O testemunho de Proclus mostra que eles
não só faziam isso como procuraram mesmo subordinar o princípio da geometria
ao princípio da matemática (entenda-se aritmética)3. O que está em jogo é, antes,
que Platão não reconhece, nos princípios matemáticos, as características que ele
exige para todo aquele que, do ponto de vista filosófico, se pretende princípio. É
bem verdade que os exemplos trazidos por Platão para ilustrar sua crítica mais
confundem do que esclarecem — o par e o impar, as figuras geométricas e as três 3 “o ponto é a unidade que , além disso, toma uma posição.” Commentaire sur la République, trad. A.J. Festugière, Paris, 1970, t. II, pp. 95-96. O que caracterizaria a dependência do princípio do ponto ao da unidade e a conseqüente subordinação da geometria à aritmética. Lafrance remarca ainda que, na passagem 521c – 532 onde Platão classifica as disciplinas matemáticas, a aritmética vem em primeiro lugar e a geometria em segundo, (op., cit., p. 72).
107
espécies de ângulos — pois não parece provável que os matemáticos da época os
reconhecessem como “princípios” de suas disciplinas. Mas, mesmo que
apelássemos para o ponto e a mônada, p. ex., parece claro que, por mais primeiros
que eles sejam4, não são, contudo, princípios primeiros de todas as coisas; eles são
válidos dentro da esfera matemática5, mas a matemática permanece apenas mais
uma esfera, entre outras, da experiência humana, havendo, portanto, de acordo
com a estruturação hierárquica da Teoria das Idéias, espaço para uma investigação
mais além sobre a natureza das entidades das quais ela parte.
Conhecer, segundo Platão, é conhecer a essência, a idéia. Conhecemos uma
coisa quando nossa alma transcende o particular sensível para apreender seu
eij'do", aquilo que é comum à multiplicidade, aquilo que faz com que cada coisa
seja o que é. Conhecer é reduzir a multiplicidade de nossa experiência sensível à
idéia correspondente, isto é, é o processo e o termo pelo qual encontramos um
princípio unificador (eij'do") da multiplicidade da experiência. Para Platão, os
princípios matemáticos, ainda que nohtav — eu afirmava que os objetos desse
gênero pertencem à classe do inteligível (nohto;n) (511a) — somente adquirem
plena inteligibilidade, do ponto de vista de uma saber absoluto, filosófico, quando
ligados, primeiro, aos seus respectivos princípios (ajrcaiv), isto é, às suas
respectivas formas inteligíveis: a idéia do ponto, a idéia da unidade, etc. e, por
fim, à Idéia do Bem6.
Portanto, se os “princípios” matemáticos têm, por sua vez, seus “princípios”
nas idéias que lhes correspondem, isso significa, então, que eles já não seriam
4 Segundo Proclus (op., cit., p.96-104.), o ponto é o princípio de todas as figuras geométricas e a mônada o princípio de todos os números. 5 A unidade podendo ser considerada como a ajrch;n ajnupovqeton da aritmética e o ponto a ajrch;n ajnupovqeton da geometria. 6 O que pode confundir são as expressões tou' tetragwvnou aujtou' e diamevtrou aujth'" que Platão, um pouco mais acima, utiliza para se referir aos objetos de estudo dos matemáticos. Segundo Baccou (op., cit, n. 448), não se trata aqui, absolutamente, da forma inteligível do quadrado ou da diagonal, nem tampouco de um quadrado qualquer, mas do quadrado matemático cuja noção estaria a meio caminho entre esses dois. Interpretada assim, a concepção de Platão com relação aos objetos matemáticos mencionados nessa passagem remete ao testemunho de Aristóteles em Metafísica A6 sobre as famosas entidades matemáticas intermediárias. Não iremos aqui nos envolver na querela histórica que envolve essa questão, quanto à legitimidade ou não de se fazer um paralelo entre o testemunho de Aristóteles e o que é dito por Platão nessa passagem. Para uma exposição abrangente das posições tomadas pelos principais comentadores e as objeções levantadas, cf. J.A. Brentlingler, The Divided Line and Plato’s “Theory of Intermediates”, in Phronesis, VIII, 1963, p. 146-166; E. de Strycker, La distinction entre l’entedement (dianoia) et
l’intellect (nous) dans la République de Platon, in Estudios de la Filosofia em homenaje al
Professor R. Mondolfo, tucuman, 1957, Fasc. 1, p. 209-226.
108
“primeiros”, mas “derivados”. De modo que se pode entender, agora, por que
Platão os chama de “hipóteses”: enquanto “derivados”, do ponto de vista
filosófico, eles teriam o mesmo estatuto conjetural, provisório e aproximativo que
Platão reconhece, de maneira geral, em sua concepção de hipóteses.
Em resumo, quando Platão reprova os matemáticos e geômetras de seu
tempo de não “darem a razão” (lovgon didovnai) de seus princípios, ele não está
querendo dizer que os matemáticos não davam a definição das entidades que eles
estudavam, ou que não formulavam as proposições de que partiam, ou que não
provavam a sua existência, ou ainda, como defendeu A.E. Taylor7, que as
proposições que os matemáticos e os geômetras adotavam, como princípios de
suas disciplinas, eram falsas. Para Platão, as matemáticas constituem disciplinas
sérias, as quais apresenta mesmo como propedêuticas à dialética (522b –532a),
devendo ser, por isso, prescritas por lei (525c). Não nos parece, portanto, que
Platão esteja pondo em questão a validade das matemáticas, ou a legitimidade
delas de postularem seus princípios iniciais, ou ainda a força coercitiva de suas
demonstrações. Ao contrário, o rigor lógico com que o matemático caminha da
hipótese à conclusão é, antes, o arquétipo privilegiado, para Platão, do modelo de
ciência que ele quer instituir. Entretanto, do ponto de vista filosófico, as
disciplinas matemáticas não podem ser consideradas ciências (ejpisthvmh) no
sentido forte do termo (511a); elas permaneceriam, todavia, “limitadas”, na
medida em que seus princípios, enquanto derivados, não podem ser considerados
primeiros na ordem do conhecimento.
7 TAYLOR, A.E. Note on Plato’s Republic, VI, 510c2-5, ds Mind 43, 1934, p. 81-84.
7
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