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Alexandre Jordão Baptista Matemática e Conhecimento na República de Platão Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Filosofia da Puc – Rio como requisito parcial para obtenção do título de doutor em filosofia. Orientador: Profª Maura Iglésias Rio de Janeiro Novembro de 2006

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Alexandre Jordão Baptista

Matemática e Conhecimento na República de Platão

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Puc – Rio como requisito parcial para obtenção do título de doutor em filosofia.

Orientador: Profª Maura Iglésias

Rio de Janeiro Novembro de 2006

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Alexandre Jordão Baptista

“Matemática e conhecimento na República de Platão”

Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Maura Iglésias Orientadora

Departamento de Filosofia da PUC – Rio

Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues UFRJ/IFCS

Prof. Fernando Décio Porto Muniz UFF

Prof. Edson Peixoto de Resende Filho Gama Filho

Profa. Maria Inês Sena Anachoreta PUC – Rio

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade

Coordenador Setorial do Centro de Teologia e de Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 30 de Novembro de 2006

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Alexandre Jordão Baptista

Graduou-se em Filosofia na PUC - Rio em 1999. Obteve o título de Mestre em Filosofia na PUC - Rio em 2002. Lecionou Filosofia no Ensino Médio. Participou de diversos congressos de Filosofia no país. Ficha Catalográfica CDD: 100

Baptista, Alexandre Jordão Matemática e conhecimento na República de Platão / Alexandre Jordão Baptista ; orientadora: Maura Iglésias. – 2006. 113 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Filosofia da Matemática. 3. Teoria do Conhecimento. 4. Platão. 5. Dialética. 6. Hipótese. I. Iglesias, Maura. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

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Agradecimentos À minha orientadora Profa. Dr. Maura Iglésia, pelas importantes contribuições e palavras de apoio. Ao CNPq e à PUC - Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter sido realizado. Aos professores que participaram da Comissão examinadora. Aos professores do Departamento de filosofia da PUC - Rio; aos meus colegas do programa de pós-graduação; e aos funcionários do Departamento, pela ajuda. A todos os meus amigos, especialmente Ludmila de Andrade e Gledson Teixeira, por todo apoio, paciência e compreensão. . Finalmente, à minha família, especialmente à minha mãe, pelo apoio e carinho, e aos meus irmãos.

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Resumo

Baptista, Alexandre Jordão; Iglesias Maura. Matemática e Conhecimento

na República de Platão. Rio de Janeiro, 2007. 113p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A proximidade entre matemática e filosofia em Platão é algo historicamente

estabelecido e que pode ser constatado desde o primeiro contato com a sua obra e

com as linhas gerais de seu pensamento. Nesse sentido, encontramos em alguns

dos seus principais Diálogos, particularmente em A República, concepções sobre

a natureza da matemática relacionadas, sobretudo, à metodologia matemática. Na

República Platão aborda criticamente aspectos referentes ao método e ao status

epistemológico das disciplinas matemáticas em dois momentos. O primeiro no

Livro VI, na célebre passagem da Linha Dividida (509d – 511e), e o segundo no

Livro VII, por ocasião da descrição do programa de estudos preparatórios à

dialética (521c-534e) e, em ambos, considerando-se o que Platão diz em outras

oportunidades, o teor da crítica platônica surpreende. Na Linha, as disciplinas

matemáticas são descritas como formas de conhecimento intermediárias entre a

opinião e a dialética, a única a merecer o título de ciência legítima. No Livro VII

para ilustrar a distinção entre o conhecimento alcançado pelas disciplinas

matemáticas, de um lado, e pela dialética, de outro, é dito que apesar de apreender

alguma coisa da essência o matemático estaria para o dialético como aquele que

dorme e sonha está para aquele que está acordado e vivendo a realidade (533b –

534e). O objetivo desse trabalho, portanto, é investigar por que Platão considera

as matemáticas “ciências intermediárias” e qual a noção de “conhecimento” que

serve de critério para essa classificação.

Palavras-chave

Filosofia; Filosofia da Matemática; Teoria do Conhecimento; Platão; Dialética; Hipótese; Método.

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Abstract

Baptista, Alexandre Jordão; Iglesias Maura. Mathematics and Knowledge

in the Plato’s Republic. Rio de Janeiro, 2007. 113p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The proximity between mathematics and philosophy in Plato is something

historically acknowledged and that can be verified from the first contact with his

work and with the general lines of his thought. Thus, one can find in some of his

main Dialogues, particularly in the Republic, conceptions on the nature of

mathematics mainly related to the mathematical methodology. In the Republic

Plato approaches critically aspects regarding the method and the epistemological

status of the mathematical disciplines in two moments. The first in Book VI, in the

famous fragment of the Divided Line (509d - 511e), and the second in Book VII,

while describing the program of preparatory studies to dialectics (521c-534e) and,

in both cases, considering what Plato says in other fragments, the character of

Plato’s criticism surprises. In the Line, the disciplines of mathematics are

described as a way of knowledge in-between opinion and dialectics, the last being

the only one entitled to be considered a legitimate science. In Book VII, in order to

show the distinction between the knowledge reached by mathematical disciplines,

on one side, and the dialectics, on another, it is stated that despite learning some

of the essence, the mathematician is for the dialectical as one who sleeps and

dreams is for those who are awake and living reality itself (533b 534e).

Therefore, the aim of this work is to investigate why Plato considers the

disciplines of mathematics "in-between sciences" and what notion of "knowledge"

was used as the criteria for that classification.

Keywords

Philosophy; Philosophy of the Mathematics; Theory of the Knowledge; Plato; Dialectics; Hypothesis; Method.

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Sumário 1. Introdução 8 2. A Linha dividida: Rep. VI 509d-511e 17 3. A crítica de Platão aos matemáticos na Rep. VI 509d-511 27 3.1. A noção de “uJpotivqemai” em Platão 27 3.2. A noção de “uJpotivqemai”no Mênon e no Fédon 32 3.3. A noção de lovgon didovnai na passagem da Linha 44 3.4. O uso de imagens sensíveis pelos matemáticos 50 4. Conhecimento na República 56 4.1. A noção de Conhecimento do Livro X (601b – 602b) 56 4.2. República 474b – 480a : a diferença entre aquele que sonha e aquele que está desperto 61 5. A distinção entre diavnoia e novhsi" na passagem da Linha 71 5.1. A diavnoia 71 5.2. A novhsi" 79 6. Conclusão 105 7. Referências Bibliográficas 108

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Introdução:

A proximidade entre matemática e filosofia em Platão é algo historicamente

estabelecido e que pode ser constatado desde o primeiro contato com a sua obra e

com as linhas gerais de seu pensamento. Não apenas os Diálogos estão repletos de

exemplos e noções extraídos do âmbito da matemática, como a singular

concepção platônica dos dois mundos o mundo das idéias e o mundo sensível

parece, do ponto de vista de sua intuição básica1, claramente inspirada no

progresso abstrato2 alcançado pela matemática grega da época de Platão, tanto no

que diz respeito à noção de entidades abstratas, fixas e autônomas servindo como

1 Segundo Aristóteles (Met. 987b9 – 13), Platão atribuía às Idéias (ijdeva") e às Formas o mesmo tipo de função que os pitagóricos atribuíam aos números e às figuras geométricas: modelos ou paradigmas das coisas particulares correspondentes. David Ross (Plato’s Theory of Ideas, Oxford 1951) aponta que tanto esse testemunho quanto um outro (Met. 1078b9 – 12) onde o estagirita afirma que Platão teria, ao fim da vida, identificado as Idéias a números devem ser relativizados não só por que nossa ignorância sobre a história do pitagorismo é profunda e que não há nenhum indício de que no tempo do jovem Platão os pitagóricos chamavam os números-modelos de eijvdh ou ijdevai, mas também por que tampouco há qualquer indício que Platão tenha visitado a Itália antes de 389 ou 388a.C., ou seja, antes de escrever os seus primeiros diálogos, e que em nenhum lugar de sua extensa obra Platão sugere que números-modelos têm alguma coisa a ver com a origem de sua teoria das Idéias. Para Ross, foi antes de tudo o ti estin socrático que levou Platão a reconhecer a existência dos universais como um classe distinta de entidades os quais são nomeados por ele com os termos eij'do" e ijdeva. 2 Cf. Rep. 525d: E, noto agora, depois de ter falado da ciência dos números, quanto ela é bela e

útiL em muitos aspectos, ao nosso propósito, contanto que seja estudada por amor ao saber, e não

para comerciar. Glauco — O que tanto admiras nela? Sócrates — O poder, de que acabo de

falar, de dar à alma um vigoroso impulso para elevá-la à região superior e fazê-la raciocinar

sobre os números em si, sem jamais admitir que se introduzam nos seus raciocínios números

visíveis e palpáveis.

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paradigmas ou modelos das coisas particulares correspondentes, quanto em

relação ao método de investigação e de demonstração no qual o filósofo deve se

apoiar em seu esforço para alcançar um conhecimento verdadeiro3. Ao trabalhar

em geometria ou em aritmética, um matemático grego tinha claro que ele não

investigava diretamente as relações das coisas no cotidiano humano (o mundo

concreto), mas sim noções estáveis destas relações ― um idealizado mundo

perfeito de pontos, linhas, números etc.4 ― tomadas como realidades autônomas e

manejadas sem a necessidade de referência a qualquer realidade concreta por

detrás delas. Se durante o processo de suas investigações, os matemáticos

tivessem que se remeter permanentemente às peculiaridades das coisas reais,

então, em vez de uma ciência (métodos geométricos e aritméticos eficientes), nós

teríamos uma arte algoritmos simples, específicos, obtidos por meio de

tentativas e erros ou em nome de alguma intuição elementar. Os matemáticos do

Oriente Antigo pararam neste nível. Os gregos foram mais adiante. E foi esse

progresso abstrato que levou à criação de um instrumento extremamente eficiente:

a geometria euclidiana5.

O alto grau de abstração presente nas disciplinas matemáticas levou Platão a

considerá-las, entre todas as ciências, as que mais se aproximariam da dialética e

também a melhor preparação para esta. Assim como a dialética, as matemáticas

têm como objeto o ser eterno subtraído à esfera do devir; seus conceitos são

3 Ménon 86e – 87b 4 Em geometria linhas retas têm largura zero e pontos não têm nenhum tamanho. Tais coisas, no entanto, não existem na prática cotidiana. Nela, em vez de linhas retas nós temos faixas mais ou menos regulares, em vez de pontos, manchas de várias formas e tamanhos, etc. Cf. Rep. 510d–e: Então sabes também que os matemáticos utilizam figuras visíveis (oJrwmevnoi" eijvdesi) e

raciocinam sobre elas pensando (dianoouvmenoi) não nessas mesmas figuras, mas nos originais

que elas reproduzem. Os seus raciocínios baseiam-se no quadrado em si mesmo

(tou' tetragwvnou aujtou') e na diagonal em si mesma (diamvtrou aujth'"), e não naquela diagonal

que traçam; o mesmo vale para todas as outras figuras. Todas essas figuras que modelam ou

desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas águas, eles se utilizam como tantas

outras imagens, para tentar ver esses objetos em si mesmos, que, de outro modo, só podem ser

percebidos pelo pensamento (dianoivai). Da mesma forma, em aritmética não se estuda apenas algoritmos praticamente úteis, mas também um tipo de número sem qualquer significado concreto direto. Cf. Rep. 525c: Seria excelente, portanto, Glauco, impor este estudo por uma lei e persuadir

os que têm de desempenhar altas funções públicas a dedicarem-se à ciência do cálculo, não de

modo superficial, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números pela pura

inteligência; e a se dedicar a esta ciência não por interesse das vendas e das compras, como os

negociantes e os mercadores, mas da guerra, e para facilitar a conversão da alma do mundo da

geração para a verdade e a essência. 5 Cf. BOYER, Carl B.: História da Matemática. Trad. Elza F. Gomide. Ed. Edgard Blücher Ltda, São Paulo, 1974; HEATH, Thomas L.: A History of Greek Mathematics, vol. I. Oxford, London,1921). p. 285 - 315.

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apreendidos pela mesma intuição intelectual que as Idéias e o conhecimento deles

possui a mesma origem, a reminiscência:

O que pensas tu, Glauco, que responderiam se alguém lhes

perguntasse: “Amigos, de que números estais a falar? Onde se encontram

as unidades, tais como as imaginais, todas iguais entre si, sem a menor

diferença, e que não são formadas de partes? (…)Penso que diriam que

estavam a falar de números que só se podem apreender pelo pensamento

(…); Rep. 527b: Não temos de admitir também isto? O quê? Que ela tem

por objeto o conhecimento do que existe sempre (tou' ajei; o[nto" gnwvsew"), e não do que nasce e perece. É fácil concordar, uma vez que a geometria é

o conhecimento do que existe sempre (tou' ga;r ajei; o[nto" hJ gewmetrikh; gnw'siv" ejstin).

(Rep. 526a)

Essa proximidade levou Platão a fazer de sua Academia, desde a fundação,

um centro de pesquisas e de estudos matemáticos extremamente engajado, cuja

reputação atraiu alguns dos mais ilustres matemáticos da época que encontravam

nela um local ideal para apresentar suas descobertas matemáticas, ao mesmo

tempo em que freqüentavam aulas de filosofia. Embora não se possa associar ao

próprio Platão nenhuma descoberta matemática original digna de nota6, sua

importância na história da matemática é sublinhada, sobretudo, por seu papel de

inspirador e guia no desenvolvimento da matemática enquanto uma ciência

sistemática pura, como testemunha a segunda parte do Prólogo ao Comentário do

primeiro livro dos Elementos de Euclides do neo-platônico Proclus7:

Depois deles [Hipócrates de Chio e Teodoro de Cirene] viveu Platão

que levou às matemáticas em geral, e à geometria em particular, a um

imenso progresso graças ao zêlo que dedica a elas, o qual é atestado em

seus escritos cheios de discursos matemáticos, e que, a cada instante,

despertam o ardor por essas ciências naqueles que se entregam à filosofia.

Nesse sentido, encontramos em alguns dos seus principais Diálogos, em

especial o Ménon, o Fédon, a República, o Filebo, o Teeteto, e a Carta VII,

concepções sobre a natureza da matemática relacionadas, sobretudo, à

metodologia matemática e à localização dos objetos matemáticos no interior de

uma pressuposta divisão do universo, que, em seu conjunto, configurariam uma 6 Entre os mais variados problemas tratados e abordados por ele e pelos membros da Academia estariam problemas tais como os poliedros regulares e semi-regulares, a construção de poliedros regulares, as médias geométricas entre dois quadrados e dois cubos, a duplicação do quadrado e do cubo, a divisão dos números em fatores, as medianas ou médias proporcionais, o método de construção dos triângulos retângulos de lados inteiros, os incomensuráveis, o “número geométrico” ou “número nupcial” e o par e o impar. Cf. Boyer, op. cit, p. 65. 7 Paul Tannery tentou reconstruir uma história da geometria pré-euclidiana a partir do que ele chamou de “resumo histórico” de Proclus que se encontra no segundo prólogo o qual foi traduzido por Tannery em seu livro La Géometrie Grecque (Arno Press, 1976) nas págs. 66-67. A nossa tradução para o português se baseia nessa tradução para o Francês.

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espécie de “esboço” de uma filosofia da matemática8. Além dos Diálogos, a outra

fonte importante dessa “filosofia da matemática” platônica são as muitas

referências às doutrinas filosóficas de Platão encontradas nos textos de

Aristóteles, em especial na Metafísica, conhecidas como as doutrinas não escritas

(AGRAFOIS DOGMASIN)9. Além das concepções relacionadas à metodologia

matemática e à localização dos objetos matemáticos no interior de uma

pressuposta divisão do universo, Aristóteles atribui a Platão também concepções

relacionadas à geração (não temporal), no interior do reino das Idéias, dos

chamados números ideais, assim como concepções que defendem a explicação do

mundo sensível em termos de espaço e noções matemáticas e a concepção

segundo a qual todas as idéias são números.

No que se refere ao escopo dessa tese, investigaremos apenas as concepções

platônicas referentes à metodologia matemática e ao seu status epistemológico e,

incidentalmente, também às que localizam os objetos matemáticos no interior de

uma pressuposta divisão do universo. E isso por razões metodológicas. Elas são as

únicas que possuem, nos próprios Diálogos, uma base textual minimamente

satisfatória. As outras concepções se baseiam somente no testemunho de

Aristóteles (os dois últimos livros da Metafísica) e esse testemunho, como

defende a maioria dos comentadores, não é suficiente para levar a uma conclusão

correta de como essas teorias devem ser interpretadas10. De modo que, a ausência,

nos Diálogos, de uma referência explícita, não ambígua, tanto do ponto de vista

da doutrina, quanto da terminologia, torna essas teorias irrelevantes para o

propósito desse trabalho. 8 Segundo Brunschvicg (Les étapes de la philosophie mathématique. Presses Universitaires de France, Paris, 1947. p. 69), por exemplo, a filosofia platônica seria uma “filosofia matemática” no duplo sentido da expressão: de um lado, é uma “filosofia matemática”, na medida em que extrai das disciplinas matemáticas uma filosofia; de outro, é uma “filosofia da matemática”, na medida em que procura fundar a matemática numa filosofia. Cf. também WEDBERG, Anders. Plato’s

Philosophy of Mathematics. Stockholm. Almqvist & Wiksell, 1955. p. 9-21 e PRITCHARD, Paul. Plato’s Philosophy of Mathematics. Germany, Academia Verlag – Sankt Augustin, 1995 (International Plato studies: Vol. 5). 9 Expressão usada apenas uma vez por Aristóteles (Física, IV 2, 209b 11-17) para se referir aos ensinamentos orais que Platão ministrava na Academia. Além de Aristóteles, referências a esses ensinamentos são encontrados em comentadores antigos tais como Aristoxeno, Simplício, Teofrasto, Alexandre de Afrodísias, Sexto Empírico e Iâmblico e constituem o que se conhece como a tradição indireta de Platão (Cf. GUTHRIE, W.K.C., A History of Greek Philosophy, v. IV. Cambridge Univesity Press, London, 1980. p.1 – 7.); REALE, GIOVANNI. História da Filosofia

Antiga. Edições Loyola, São Paulo, 1994. p. 20 –30. 10 O centro da polêmica gira em torno do fato que as doutrinas mencionadas por Aristóteles, na maioria das vezes não apenas vão além, como também chegam mesmo a contradizer o que Platão declara explicitamente nos Diálogos. Cf. Wedberg loc.cit..

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Entre os Diálogos mencionados, o locus classicus referente à metodologia

matemática é, sem dúvida, A República. Na República Platão aborda criticamente

aspectos referentes ao método e ao status epistemológico das disciplinas

matemáticas em dois momentos. O primeiro no Livro VI, na célebre passagem da

Linha Dividida (509d – 511e), e o segundo no Livro VII, por ocasião da descrição

do programa de estudos preparatórios à dialética (521c-534e) e, em ambos,

considerando-se o que Platão diz em outras oportunidades, o teor da crítica

platônica surpreende. Na Linha, as disciplinas matemáticas são descritas como

formas de conhecimento intermediárias entre a opinião (doxa) e a dialética, a

única a merecer o status de ciência (ejpisthvmh") legítima. No Livro VII para

ilustrar a distinção entre o conhecimento alcançado pelas disciplinas matemáticas,

de um lado, e pela dialética, de outro, é dito que apesar de apreender alguma coisa

da essência (to; ojvn) o matemático estaria para o dialético como aquele que dorme

e sonha está para aquele que está acordado e vivendo a realidade (533b – 534e):

Pelo menos, há um ponto que, creio, ninguém contestará: além dos

métodos que acabamos de examinar, existe outro, que procura apreender

cientificamente a essência de cada coisa. As demais artes ocupam-se apenas

dos desejos dos homens e dos seus gostos e estão voltadas por inteiro para a

produção e a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais.

Quanto aos que fazem parte da exceção e que, como dissemos, apreendem

algo da essência, a geometria e as artes que lhe são afins, vemos que só

conhecem o Ser por sonhos e que lhes será impossível ter dele uma visão

real enquanto considerarem intangíveis as hipóteses que não os tocam, pois

que vêem-se impossibilitados de explicar o motivo. Na verdade, quando se

toma por princípio algo que não se conhece e as conclusões e as

proposições intermediárias se compõem de elementos desconhecidos,

poderá semelhante raciocínio se tornar uma ciência?

(533b-c). Ocorre o mesmo com o Bem. Dize-me, Glauco: um homem que não

pode compreender a idéia do Bem, separando-a de todas as demais idéias,

e, como num combate, abrir caminho a despeito de todas as objeções,

esforçando-se por vencer as suas provas, não na aparência, mas na

essência; que não possa transpor todos esses obstáculos pela força de uma

lógica infalível, que não conhece nem o bem em si mesmo nem nenhum

outro bem, mas que, se apreende alguma imagem do bem, é pela opinião, e

não pela ciência, que o apreende: não dirás tu que ele passa a vida presente

em estado de sonho e sonolência e que, antes de despertar neste mundo, irá

para o Hades dormir o último sono? (534b-d)

Os argumentos de Platão para justificar esse status epistemológico

intermediário, tanto na passagem da Linha no Livro VI quanto na passagem do

Livro VII, se concentram, basicamente, em torno do que ele considera ser as duas

características metodológicas fundamentais do modo de proceder das disciplinas

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matemáticas, tal como este era comumente concebido pelos seus contemporâneos:

o caráter dedutivo e o uso de imagens ou figuras sensíveis nas demonstrações

geométricas. Aqueles que se ocupam com a geometria, a aritmética e coisas desse

tipo (ta;" gewmetriva" te kai; logismou;"), diz Platão na passagem da Linha,

“supõem” (ujpoqevmenoi) os objetos de seus estudos ― números, figuras

geométricas, ângulos, etc. ― tomando essas suposições (ujpoqevsei") como

perfeitamente claras e evidentes para todo mundo e, portanto, sem necessidade de

qualquer “explicação” ou “justificação” (lovgo") ulterior, e, a partir delas se

encaminham, através de uma seqüência de deduções lógicas coerentes, em direção

à conclusão (teleuthvn) desejada se servindo, nesse processo, de imagens e

figuras sensíveis para representar os objetos de natureza inteligível com que

trabalham.

Essas características do modo de proceder das disciplinas matemáticas são

então contrastadas com o modo de proceder da dialética. O dialético, ao contrário,

trata suas hipóteses não como princípios (ajrcav") de uma dedução, mas realmente

como hipóteses, isto é, como pontos de partida ou de apoio para, no sentido

inverso, remontar em direção, não mais a algo simplesmente suposto, mas ao

princípio mesmo de tudo (panto;" ajrch;n), o princípio não-hipotético

(ajrch;n ajnupovqeton). Atingido esse princípio, o dialético, extraindo as

conseqüências decorrentes dele, só então se encaminha para conclusão

(teleuthvn), sem, no entanto, se servir, nesse processo nem no anterior, de

imagens ou de figuras sensíveis como os matemáticos, mas unicamente das idéias

(eijvdesin) das quais parte e nas quais chega.

À primeira vista não se tem claro o alcance da descrição de Platão. Trata-se

de uma crítica ou Platão está apenas descrevendo o que ele considerava ser, como

dissemos, as duas características metodológicas fundamentais do modo de

proceder das disciplinas matemáticas em sua época? Afinal, não é nenhuma

novidade que as ciências matemáticas, tanto na época de Platão como hoje,

partem de “princípios” que elas não procuram justificar. Mas, do ponto de vista

matemático, isso se explica por esses princípios serem considerados auto-

evidentes e cuja justificação é desnecessária à demonstração que se pretende, além

de matematicamente impossível. Da mesma forma, é verdade que o geômetra faz

uso de imagens ou figuras que ele traça sobre a areia ou o quadro-negro para fazer

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suas demonstrações sem, no entanto, apoiar seu raciocínio sobre essas mesmas

imagens, mas nas noções abstratas que elas representam. Essa distinção é

perfeitamente familiar aos geômetras. Qualquer geômetra sabe muito bem que a

exatidão com que ele traça suas figuras não tem nenhuma importância desde que

ele permaneça de acordo com o que foi estabelecido no início.

O que nos leva a suspeitar de que há algo mais por detrás da descrição de

Platão é que ao contrastar o modo de proceder da matemática e o da dialética no

sentido de que ambos partem de “hipóteses” com a diferença de que o dialético,

ao contrário do matemático, toma suas hipóteses não como pontos de partida de

uma dedução, mas, no sentido inverso, em direção ao princípio que já não admite

hipóteses, o princípio não-hipotético (ajrch;n ajnupovqeton) e que, por isso, o

conhecimento do ser e do inteligível que se adquire pela dialética é mais claro do

que o que se adquire por meio das disciplinas matemáticas, Platão parece não

estar apenas descrevendo, mas também fazendo uma crítica ou uma censura11 ao

modo de proceder dos matemáticos, como se ele quisesse sublinhar que o

matemático não procede como deveria e que por conta disso, as noções ou

princípios supostos de que parte em seus raciocínios e que são tomados por ele

como coisas perfeitamente claras e evidentes para todo mundo e, portanto, sem

necessidade de qualquer “explicação” ou “justificação” (lovgo") ulterior,

permanecem, todavia, meras “hipóteses” enquanto uma tal demonstração (lovgo")

não for oferecida. E, de fato, na continuação da passagem, é dito textualmente que

os matemáticos não possuem a inteligência (nou'n) das noções que estudam,

embora essas noções possam se tornar inteligíveis (nohtw'n) quando apreendidas

junto ao princípio não-hipotético:

Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque tratas de

um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento

(qewrouvmenon) do ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela

ciência da dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron) que aquele que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais

possuem hipóteses como princípios (uJpoqevsei" ajrcai;). É certo que aqueles

(oij qewvmenoi) que se consagram às artes são obrigados a utilizar o

raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin). No entanto, visto que

nas suas investigações não apontam para um princípio (ajrch;n), mas partem

de hipóteses (ejx uJpoqevsewn), julgas que eles não têm a inteligência

(nou'n oujk ijvscein) dos objetos estudados, embora eles sejam inteligíveis

11 É o que apontam Suzanne Mansion. (L’objet des mathématiques et l’objet de la dialectique

selon Platon. in La Revue philosophique de Louvain 67, 1969) e Richard Robinson (Plato’s

Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 152).

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(nohtw'n) quando apreendidos junto com um primeiro princípio. Parece-me

que denominas conhecimento discursivo (diavnoian), e não inteligência

(ouj nou'n), a geometria e outras ciências do mesmo gênero, considerando

esse conhecimento (diavnoian) intermediário entre a opinião (dovxh") e a

inteligência (nou'). (511c-d).

Essa impressão é reforçada pela passagem do Livro VII (533b-d) onde

Platão, depois de classificar e descrever as disciplinas, todas de caráter

matemático, propedêuticas ao estudo da dialética ― a ciência dos números

(ajriqmhtikh; kai; logistikh v), a geometria (gewmetriva), a esteriometria ou a

ciência que estuda os sólidos em si mesmos ou a dimensão de profundidade

(th;n bavqou" au[xh" mevqodon), a astronomia (ajstronomiva) e a música (mousikhv)

― declara que, apesar de apreenderem alguma coisa do ser (to; ojvn), essas

disciplinas só vêem ou conhecem o ser em sonhos (ojneipwvssw) e que

permanecerão assim enquanto considerarem as hipóteses de que partem como

intangíveis por não poderem demonstrá-las ou dar a razão delas (lovgon didovnai).

Pois, como poderia ser ciência o que toma como princípios uma coisa que não

conhece e deduz daí proposições intermediárias e conclusões?

Esse procedimento é novamente contrastado com o procedimento dialético

que é apresentado, então, como o único capaz de dar a razão (lovgon didovnai) das

hipóteses de que parte na medida em que se eleva até o princípio mesmo para

estabelecer solidamente suas conclusões. A passagem termina com uma referência

explícita à passagem da Linha:

Sócrates — Bastará, então, chamar ciência à primeira divisão, conhecimento discursivo à segunda, fé à terceira e imaginação à quarta; a duas últimas denominaremos opinião, e as duas primeiras, inteligência. A opinião terá por objeto a mutabilidade, e a inteligência, a essência. Devemos acrescentar que a essência está para a mutabilidade como a inteligência está para a opinião, a ciência para a fé e o conhecimento discursivo para a imaginação. Quanto a analogia dos objetos a que se aplicam estas relações e à divisão em dois de cada esfera, a da opinião e a do inteligível, deixemos isso, amigo, a fim de não nos lançarmos em discussões muito mais longas do que aquelas que tivemos.

(533e – 534a)

No que diz respeito ao problema que anima essa tese, as discussões giram

em torno das seguintes questões: Em que sentido princípios, auto-evidentes e

indemonstráveis para os matemáticos tornam-se, do ponto de vista de Platão,

simples ujpoqevsei"? Como devemos entender essa exigência de demonstração ou

justificação (lovgon didovnai) exigida para que as “hipóteses” matemáticas

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adquiram inteligibilidade? Será que Platão está pondo em questão a validade das

disciplinas matemáticas, dizendo que seus princípios são falsos? Enfim, qual o

real sentido, se ela existe, da crítica de Platão?

Nesse sentido, começaremos apresentando e discutindo alguns problemas

envolvendo a célebre passagem da Linha dividida (Rep. VI 509d-511e). Depois

investigaremos o uso do verbo uJpotivqemai em Platão, em particular nas

ocorrências onde ele aparece dentro de um contexto matemático, a fim de poder

determinar o que Platão entende como o método hipotético usado pelos

matemáticos e a transposição que ele faz desse método para o contexto filosófico

na República.

A segunda parte de nosso trabalho se concentrará na investigação da

concepção platônica de conhecimento tal como ela é discutida em dois momentos

da República: a primeira no Livro V (474b – 480a) e a segunda no Livro X (601b

– 602b). Como complemento abordaremos a distinção entre as duas formas de

apreensão cognitiva reconhecidas por Platão como diretamente relacionadas ao

conhecimento (em oposição à opinião) e às Idéias (em oposição ao sensível): a

dianoia, relacionada ao modo de proceder das matemáticas, e a noesis,

relacionada à dialética e à filosofia. Nesse sentido, nossa investigação tentará

esclarecer em que consistiria, afinal, a distinção entre a diavnoia e a novhsi"? Será

que haveria uma diferença na natureza desses dois paqhvmata da alma? E no caso

de haver, como podemos compreendê-la?

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A Linha dividida: Rep. VI 509d-511e.

O livro VI da Republica representa, na economia do diálogo, um momento

de transição. Depois de ter provado que o governo dos filósofos é o melhor e que

ele é realizável, dependendo, para isso, do consentimento popular e de dons

naturais dos futuros governantes (Rep. 502c), Sócrates passa a investigar por quais

estudos e por quais ocupações os naturais filosóficos deverão ser educados a fim

de se habilitarem ao governo da cidade ideal:

Sócrates — Muito bem! Já que chegamos, não sem dificuldade, a este

resultado, precisamos tratar do que se segue, isto é, de que maneira, por

quais estudos e por quais ocupações, formaremos os homens capazes de

guardar e manter a constituição e em que idade devemos consagrá-los a

isso. (Rep. 502d)

A passagem da Linha dividida (509d-511e) constitui justamente um dos 4

movimentos através dos quais Platão encaminha a investigação sobre o primeiro

ponto: as ciências apropriadas à formação dos futuros governantes. Os outros são

as igualmente célebres passagens da Analogia do Sol (507-509c) que a antecede, a

Alegoria da Caverna que a sucede (514a-521b), já no Livro VII, e, por fim, a

classificação e descrição das ciências propedêuticas ao estudo da dialética (521c-

534e). Essas 4 passagens tratam, cada uma à sua maneira, do dualismo entre

sensível e inteligível. Dualismo que as une estreitamente e que lhes serve de

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estrutura comum na medida em que cada uma delas percorre essas duas esferas e

mostra como elas são ou podem ser conhecidas.

A passagem da Analogia do Sol (507-509c) parte desse dualismo e mostra

que, em cada um desses dois níveis (sensível e inteligível), a relação entre o

objeto e a faculdade cognitiva deriva de um terceiro elemento que a funda (Sol /

Idéia do Bem). Essa passagem já prefigura a subdivisão, que será levada a cabo na

passagem da Linha, nesses dois níveis na medida em que cada um deles é

iluminado ou não por esse terceiro termo. É assim que o olho pode apreender

distintamente os objetos iluminados pela luz do sol; mas ele pode também,

enfraquecido e como que cego, se fixar apenas nos objetos que a claridade dos

astros noturnos torna discretamente visíveis. No que diz respeito à alma, ela pode

tanto se dirigir aos inteligíveis (nohtav) iluminados pela verdade e pelo ser — que

lhes concede o Bem — quanto empreender esforços inúteis para discernir aquilo

que está obscurecido, a saber, o mundo do devir:

Sócrates: — Tu sabes, logicamente, que os olhos, quando contemplam

objetos cujas cores não são iluminadas pela luz do dia, mas pela claridade

dos astros noturnos, perdem a acuidade e parecem quase cegos, como se

não fossem providos de visão clara.

Adimanto: — Sei-o muito bem.

Sócrates: — Mas, quando se voltam para objetos que o Sol ilumina

(oJ h}lio" katalavmpei), enxergam distintamente (safw'") e mostram que são

providos de visão clara.

Adimanto: — Sem dúvida.

Sócrates: — Concebe, portanto, que se dá o mesmo a respeito da alma.

Quando ela fixa o olhar naquilo que a verdade (ajlhvqeiav) e o ser (to; o[n) iluminam, compreende-o (ejnovhsevn), conhece-o (e[gnw) e mostra que é

dotada de inteligência (nou'n e[cein faivnetai); mas, quando olha para

aquilo que está obscurecido (tw'/ skovtw/ kekramevnon), para o que nasce

(gignovmenovn) e morre (ajpolluvmenon), a sua vista fica embaçada, passa a

ter apenas opiniões (doxavzei), indo sem cessar de uma a outra e parece

desprovida de inteligência (nou'n oujk e[conti). (508c-d)

A passagem da Linha aprofunda o que é dito na analogia do Sol, tanto em

relação ao objeto quanto à faculdade de conhecimento. Retomando a distinção

entre gênero visível e gênero invisível, ela subdivide um e outro e, a cada uma das

quatro espécies assim obtidas, associa respectivamente quatro paqhvmata na alma.

Por fim ela ordena essas espécies pelo grau de claridade (ou obscuridade) na

medida em que seus objetos se relacionam mais ou menos com a verdade:

Sócrates — Do mesmo modo, pega uma linha cortada em dois segmentos

desiguais, representando um o gênero visível (oJrwmevnou gevnou"), o outro o

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inteligível (nooumevnou), e corta de novo cada segmento respeitando a mesma

proporção (ajna; to;n aujto;n lovgon) ; terás então, classificando as divisões

obtidas conforme o seu grau relativo de clareza (safhneivai) ou de

obscuridade (asafeivai), no mundo visível, um primeiro segmento, o das

imagens. Denomino imagens (eijkovne") primeiramente às sombras, depois os

reflexos que se vêem nas águas ou na superfície dos corpos opacos, polidos

e brilhantes, e a todas as representações semelhantes. Compreendes?

Glauco — Lógico que sim.

Sócrates — Considera agora que o segundo segmento corresponde aos

objetos que essas imagens representam, ou seja, os animais que nos cercam,

as plantas e todas as obras de arte.

Glauco — Estou considerando.

Sócrates — Concordas também em dizer que, no que concerne à verdade e

ao seu contrário (ajlhqeiva te kai; mhv) a divisão foi feita de tal modo que a

imagem está para o objeto que reproduz como a opinião está para a ciência

(wJ" to; doxasto;n pro;" to; gnwstovn, oujvtw oJmoiwqe;n pro;" to; wJ'i wJmoiwvqh)?

Glauco — Concordo plenamente.

Sócrates — Vê agora como deve ser dividido o mundo inteligível (noetou'). Glauco — Como?

Sócrates — Na primeira parte desse segmento, a alma, utilizando as

imagens dos objetos que no segmento precedente eram os originais, é

obrigada a estabelecer suas análises partindo de hipóteses (ejx uJpoqevsewn),

seguindo um caminho que a leva, não a um princípio (ajrch;n), mas a

conclusão (teleuthvn). No segundo segmento, a alma parte da hipótese

(ejx uJpoqevsew") para chegar ao princípio absoluto (ajrch;n ajvnupovqeton),

sem lançar mão das imagens (eijkovnwn), como no caso anterior, e desenvolve

a sua análise servindo-se unicamente das idéias (eijvdesi). Glauco — Não compreendo muito bem o que dizes.

Sócrates — Sem dúvida, compreenderás mais facilmente depois de ouvires o

que vou dizer. Sabes, penso eu, que aqueles que se dedicam à geometria, à

aritmética ou às outras ciências do mesmo gênero pressupõem (ujpoqevmenoi) o par e o impar, as figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da

mesma família para cada pesquisa diferente; que, tendo pressuposto essas

coisas (poihsavmenoi ujpoqevsei" aujtav) como se as conhecessem

(wj" eijdovte"), não se dignam a dar a razão (lovgon didovnai) delas nem a si

próprios nem aos outros, considerando que elas são evidentes para todos;

que, finalmente, a partir daí, deduzem o que se segue e acabam por

alcançar, de forma conseqüente, a demonstração que tinham em vista.

Glauco — Sei isso perfeitamente.

Sócrates — Então, sabes também que eles utilizam figuras visíveis

(oJrwmevnoi" eijvdesi) e raciocinam sobre elas pensando (dianoouvmenoi) não

nessas mesmas figuras, mas nos originais que elas reproduzem. Os seus

raciocínios baseiam-se no quadrado em si mesmo (tou' tetragwvnou aujtou') e na diagonal em si mesma (diamvtrou aujth'"), e não naquela diagonal que

traçam; o mesmo vale para todas as outras figuras. Todas essas figuras que

modelam ou desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas águas,

eles se utilizam como tantas outras imagens, para tentar ver esses objetos

em si mesmos, que, de outro modo, só podem ser percebidos pelo

pensamento (dianoivai). Glauco — É verdade.

Sócrates — Eu afirmava que os objetos desse gênero pertencem à classe do

inteligível (nohto;n), mas que, para conseguir conhecê-los, a alma é

obrigada a recorrer a hipóteses (uJpoqesesi), que ela não se encaminha em

direção a um princípio (ajrch;n), uma vez que não pode ir além dessas

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hipóteses, servindo-se destas como de imagens dos mesmos objetos que

produzem sombras no segmento inferior, e que, em relação a essas sombras,

são tidos e considerados como claros (ejnargevsi) e distintos

(tetimhmevnoi").

Glauco — Compreendo que o que dizes se refere à geometria e às ciências

(tevcnai") da mesma natureza.

Sócrates — Percebes agora que entendo por segunda divisão do mundo

inteligível (nohtou') aquela que a razão (ov lovgo") alcança pelo poder da

dialética (dialevgesqai dunavmei), considerando suas hipóteses

(ta;" uJpoqevsei") não princípios (oujk ajrca;") mas simples hipóteses, isto é,

pontos de apoio para se elevar até o princípio universal (panto;" ajrch;n)

que já não admite hipóteses (ajnupoqevtou). Atingido esse princípio, ela se

apega a todas as conseqüências que decorrem dele, até chegar à última

conclusão, sem recorrer a nenhum dado sensível, mas somente às idéias

(eijvdesin), pelas quais procede e às quais chega.

Glauco — Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque

tratas de um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento do

ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela ciência da

dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron) que aquele

que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais possuem

hipóteses como princípios (uJpoqevsei" ajrcai;). É certo que aqueles

(oij qewvmenoi) que se consagram às artes são obrigados a utilizar o

raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin). No entanto, visto que

nas suas investigações não apontam para um princípio (ajrch;n), mas partem

de hipóteses (ejx uJpoqevsewn), julgas que eles não têm a inteligência

(nou'n oujk ijvscein) dos objetos estudados, embora eles sejam inteligíveis

(nohtw'n) quando apreendidas junto com um primeiro princípio. Parece-me

que denominas conhecimento discursivo (diavnoian), e não inteligência

(ouj nou'n), a geometria e outras ciências do mesmo gênero, considerando

esse conhecimento (diavnoian) intermediário entre a opinião (dovxh") e a

inteligência (nou'). Sócrates — Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora a estas quatro

seções estes quatro estados(paqhvmata) da alma: a inteligência (novhsin) à

seção mais elevada, o conhecimento discursivo (diavnoian) à segunda, a fé

(pivstin) à terceira, a imaginação (eijkasivan) à última; e dispõe-nas por

ordem de clareza, partindo do princípio de que, quanto mais seus objetos

participam da verdade (ajlhqeiva"), mais eles são claros (safhveiva").

Glauco — Compreendo. Concordo contigo e adoto a ordem que tu sugeres.

(509d-511E)

A passagem da Linha dividida sempre suscitou inúmeras controvérsias não

só quanto à sua correta interpretação filosófica, mas também no que diz respeito à

sua correta estruturação geométrica. Um problema relativo ao estabelecimento do

texto logo na primeira linha da passagem é crucial para a inteligibilidade da

estrutura geométrica da Linha tal como ela é sugerida por Platão:

wJvsper toivnun grammh;n divca tetmhmevnhn labw;n ajvnisaajvnisaajvnisaajvnisa tmhvmata ou wJvsper

toivnun grammh;n divca tetmhmevnhn labw;n ijvsaijvsaijvsaijvsa tmhvmata, isto é, a linha deve ser

cortada em duas partes desiguais ou iguais?

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A polêmica existe desde a Antigüidade. Iâmblico, por exemplo, lia

ijvsa tmhvmata; enquanto Proclus12 e Plutarco13 (Quaest. Plat.) ajvnisa.

Historicamente, a polêmica permaneceu com alguns comentadores14 seguindo a

leitura de Iâmblico e outros, a de Proclus. Atualmente, entretanto, a questão

parece definitivamente decidida em favor de ajvnisa e isso mais por razões de

ordem matemática do que propriamente de ordem filosófica ou filológica15. Além

do fato de ser encontrada na maioria dos bons manuscritos, enquanto ijvsa é

encontrada em apenas em um (Vindob. 55F), de ter sido adotada por Proclus, um

notável conhecedor da geometria grega, e da idéia de fundo segundo a qual os

dois domínios do sensível e do inteligível sendo manifestadamente desiguais,

devem ser representados por segmentos desiguais, a leitura ajvnisa é a única que

torna inteligível a proporção estabelecida em seguida16: corta de novo cada

segmento “respeitando a mesma proporção” (ajna; to;n aujto;n lovgon). Pois, se

todos os segmentos são iguais, então não há sentido em tentar, em seguida,

estabelecer as proporções entre eles que o texto sugere. Qual poderia ser o sentido

de subdividir cada um dos dois primeiros segmentos “respeitando a mesma

proporção”, se essa proporção é 1:1? A expressão ajna; to;n aujto;n lovgon é uma

expressão técnica e indica que Platão, ao contrário, tinha a intenção clara de

construir uma proporção, uma analogia. De modo que uma analogia do tipo

1:1=1:1, onde a igualdade geométrica de duas relações se reduz à igualdade

aritmética de dois termos 1=1, não teria nenhum interesse para ele, uma vez que

ela descaracteriza a função própria da analogia que é de pensar a igualdade de

relações entre termos desiguais17.

12 Plat. Rep., I. p. 288 ed. Kroll. 13 Plutarco, Moralia. Platonicae Quaestiones, Ed. C. Hubert e H. Dexler, Bibl. Teubner, 1959, vol. VI, fasc. 1, p. 118 – 121. 14 Notadamente Stallbaum e Ast. Outros, como Richter (Fl. Jahrb. 1867 p. 145) and Dümmler (Antisth. p. 80), lêem ajvn jijvsa, o que não muda nada em relação ao sentido. Apud Baccou op.cit., p.

448, n. 441. 15 Cf. Lafrance Yvon. Platon et la géométrie: la contruction de la ligne en République, 509d –

511e. in Dialogue, Vol. XVI, nº 3 (1977). p. 435 e ss.; Robin, Leon. Les Rapports de l’Être et de la

Connaisssance d’après Platon. Paris, P.U.F 1957. p. 17 e Aubenque, Pierre. De L’Égalité des

Segments Intermédiaires das la Ligne de la République. In SOPHIES MAIETORES. "Chercheurs de sagesse", Hommage à Jean Pépin, Collection des Études Augustiniennes. Série Antiquité 131, Paris (Institut d'Études Augustiniennes) 1992, XXXIV. p. 31 – 44. 16 E retomada no Livro VII 534a. 17 Os testemunhos de Architas (Diels-Kranz. Die Fragmente der Vorsokratier, Vol. 1, 47B2.) e de Euclides (Elementos, V, definição 8) são, nesse sentido, decisivos para o abandono da leitura ijvsa tmhvmata. Segundo esses autores, toda proporção ou analogia é construída a partir de quatro

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Entretanto, isso traz uma conseqüência que levou alguns comentadores18 a

defender que é impossível construir a linha em conformidade com as indicações

do fornecidas por Platão. Trata-se da propriedade geral que uma linha possui de,

ao ser dividida segundo uma proporção e depois subdividida segundo a mesma

proporção, ter seus dois segmentos intermediários iguais:

a b c d19

Segundo Platão, a linha deve ser construída de tal maneira que a/b = c/d =

a+b/c+d, de onde se extrai necessariamente: b = c. A demonstração dessa

propriedade é simples. De acordo com a teoria geral das proporções, segue-se de

a/b = c/d, pela inversão dos termos médios, que a/c = b/d; em seguida, pela adição

dos numeradores e denominadores temos que a/c = b/d = a+b/c+d; o que, em

virtude da primeira igualdade estabelecida, a/b = c/d = a+b/c+d, leva ao seguinte

resultado: a/c = b/d = a/b = c/d, de onde se deduz imediatamente: b = c20.

O problema é que essa igualdade entre os dois segmentos intermediários

parece justamente ir contra a intenção inicial que era de estabelecer uma

proporção entre segmentos desiguais. Das duas uma: ou bem dividimos duas

vezes a linha segundo a mesma proporção, e se estabelece uma analogia, mas com

os segmentos intermediários iguais; ou bem dividimos a linha em quatro

segmentos desiguais, mas não estabelecemos a analogia indicada no texto21.

Contra essa objeção, Aubenque22 argumenta, primeiro, que a menção, no texto, a

“segmentos desiguais” se dirige apenas à primeira divisão e que nada é dito, nesse

sentido, em relação à segunda divisão. Em segundo lugar, que a analogia

instituída por Platão nessa passagem, onde os termos médios são iguais é, segundo

a teoria geral das proporções que encontramos em Arquitas e Aristóteles, uma

analogia contínua, no sentido em que o termo médio ― em termos técnicos a

termos ou pelo menos três termos diferentes. Consequentemente, se todos os segmentos são iguais, eles não podem servir para estabelecer uma proporção ou analogia. 18 Em especial R. S. Brumbaugh, Plato’s Divided Line, Review of Metaphysics 5, 1952, p. 529-534. 19 A linha está sendo representada aqui na horizontal meramente por razões de comodidade. Veremos, mais adiante, que a representação mais adequada é a vertical. 20 Esta é apenas uma entre as várias demonstrações possíveis. A demonstração apresentada segue a de Pierre Aubenque, op. cit. p. 37-38. 21 Cf. Brumbaugh, loc.cit. 22

ibid. loc. cit.

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média proporcional ― estabelece uma ligação ou uma mediação entre os termos

extremos. Enquanto que uma analogia descontínua institui apenas uma igualdade

relacional entre os domínios heterogêneos (a e b de um lado, e c e d, de outro), a

média proporcional da analogia contínua tem como característica ser homogênea,

ao mesmo tempo, ao termo inferior e ao termo superior que são ligados por uma

mesma proporção.

Mas os problemas não param por aí. Uma vez acordada a leitura

ajvnisa tmhvmata, duas questões surgem imediatamente: devemos traçar uma linha

vertical ou uma linha horizontal? Qual segmento da linha será maior em relação

ao outro? No que se refere à primeira questão, a maioria das traduções e dos

comentários parece não ver nela qualquer significação filosófica relevante e

tendem a representar horizontalmente a linha apesar da orientação dada na

conclusão da passagem (511d8), onde os quatro paqhvmata da alma (novhsi",

diavnoia, pivsti" e eijkasiva) são associados diretamente aos quatro segmentos

distinguidos na Linha, para que se coloque a novhsi" no segmento mais “alto”

(ajnwvtato"). Segundo Lafrance, que defende uma representação vertical da Linha,

a classificação estabelecida por Platão não deve ser compreendida apenas em

termos de mérito respectivo ou de valor entre os diferentes paqhvmata da alma23,

mas, uma vez que Platão se refere explicitamente aos quatro segmentos da Linha,

essa classificação exige uma correta representação no próprio gráfico geométrico

da Linha. Ao relacionar a novhsi" ao segmento “mais alto”, Platão, de acordo com

Lafrace, estaria dando a direção da Linha: alto/baixo. Essa interpretação parece,

inclusive, encontrar apoio no uso freqüente24 que Platão faz da direção alto/baixo

para se referir ao mundo sensível e ao mundo inteligível, o que não exclui,

entretanto, a idéia de que os paqhvmata recebem um valor correspondente a sua

posição na Linha: o valor maior sendo representado pelo segmento mais alto

porque seus objetos participariam mais da verdade (ajlhvqeia) e da claridade

(safhvneia), mas, apenas, que a representação vertical da Linha foi algo desejado

pelo próprio Platão.

23 Como defende, por exemplo, James Adam, The Republic of Plato, 2ª Ed., Cambridge Univ. Press, 1965, II, p. 63-64. 24 Lafrance lista 7 ocorrências no Livro VI e VII: 509c2; 511a6; 514b3; 515c6-7; 516e3-4; 517a5 e 517b4. op. cit. p. 436.

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24

Quanto à segunda questão, o texto platônico, ao contrário, não nos dá

nenhuma pista decisiva. Ambas as hipóteses ― oJratov" gevno" (o) >

nohtov" gevno" (n) e nohtov" gevno" (n) > oJratov" gevno" (o) ― são igualmente

possíveis. Plutarco, por exemplo, em seu Platonicae Quaestiones, elaborou uma

série razões filosóficas em favor tanto de uma, quanto da outra hipótese25, o

mesmo acontecendo com Proclus26. O critério utilizado por Plutarco e Proclus foi

o da unidade e da multiplicidade. Em virtude desse critério, pode-se postular o > n

por que as cópias do mundo sensível são mais numerosas do que seus respectivos

modelos no mundo inteligível, ou ainda por que o mundo sensível tem o seu

princípio na matéria indeterminada e, consequentemente, pode ser considerada

como ilimitada, ou então por que o conhecimento das coisas sensíveis se realiza

através de vários órgãos enquanto que o conhecimento do inteligível se realiza

através de uma única faculdade, o intelecto. Em resumo, o mundo sensível, na

medida em que é o domínio da multiplicidade, deve ser representado pelo

segmento mais longo. Entretanto, o mesmo critério de unidade e multiplicidade

pode ser usado para defender o < n. Podemos supor o segmento do inteligível

como mais longo, como o faz Proclus, por que o conhecimento intelectual é mais

universal que o conhecimento sensível, ou por que a realidade inteligível tem mais

valor que a realidade sensível, ou ainda, que a realidade inteligível, na medida em

que a realidade sensível participa dela, pode ser entendida como o que contém e

que “o que contém” tem que ser maior do que o que é “contido”.

Os comentadores modernos, tais como Schneider, Steinhart e Adam, se

apóiam em outro critério: o da claridade e da obscuridade. Apesar de esse critério

corresponder mais adequadamente ao texto platônico27, sugerindo uma

luminosidade crescente da Linha que vai de baixo para o alto, ele tampouco

resolve o problema. Nós ainda podemos perguntar se o segmento mais longo deve

representar a parte mais obscura da Linha (o > n) ou se ele deve representar a

parte mais clara (o < n) e, aqui, o texto platônico não nos dá nenhuma pista para

25

loc. cit. 26 loc. cit.. 27 “Classificando as divisões obtidas conforme o seu grau relativo de clareza (safhneivai) ou de

obscuridade (asafeivai)”(509d10-11); “e dispõe-nas por ordem de clareza, partindo do princípio

de que, quanto mais seus objetos participam da verdade (ajlhqeiva"), mais eles são claros

(safhveiva") (511e 2-4)

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25

decidir. Segundo Lafrace28, Platão provavelmente considerou esse problema sem

importância, uma vez que qualquer que seja a hipótese adotada, é sempre possível

construir as proporções indicadas pelo texto. Se alguma das hipóteses deve ser

privilegiada, que seja (o > n), não por razões filosóficas, mas por uma razão de

ordem técnica: ela permite construir proporções geométricas de razão 2, enquanto

que (o < n) nos obriga a construir proporções geométricas de razão ½; e como é

notório, os geômetras e matemáticos gregos privilegiavam os números inteiros29.

A Linha, portanto, deve construída na vertical e dividida, segundo a mesma

proporção, em quatro segmentos, onde dois deles, os intermediários, são iguais. A

disposição dos domínios representados por esses segmentos são estabelecidos

segundo um critério de clareza e obscuridade que sugere uma luminosidade

crescente da Linha que vai de baixo para o alto.

Além das questões relativas à representação geométrica da Linha, existem

outras questões relativas à própria exposição de Platão. Como já vimos, a

passagem da Linha retoma a distinção entre o domínio do visível e o domínio do

invisível estabelecida na passagem da Analogia do Sol, e subdivide um e outro em

dois segmentos e, a cada uma das quatro espécies assim obtidas, associa

respectivamente quatro paqhvmata na alma, ordenando essas espécies pelo grau

de claridade (ou obscuridade) que seus objetos possuem na medida em que

participam mais ou menos à verdade. Num primeiro momento, somos levados a

entender essas divisões como se Platão fizesse corresponder a cada segmento um

tipo de coisa, e cada tipo de coisa uma apreensão cognitiva diferente. E no que diz

respeito à parte referente ao sensível, essa interpretação parece se encaixar

perfeitamente: Sócrates faz claramente uma distinção entre as coisas sensíveis

propriamente ditas (animais, plantas, artefatos produzido pelo homem) e suas

imagens (sombras e reflexos). As primeiras seriam objeto de fé (pivsti"), as

segundas, de conjecturas (eijkasiva). Entretanto, o mesmo parece não ocorrer no

segmento do inteligível onde Sócrates não é claro se há diferença entre os objetos

correspondentes a cada subsegmento. Tudo que é dito aí é que existe uma

diferença nos procedimentos cognitivos envolvidos em cada um deles. Diante da

dificuldade de Glauco para compreender a distinção aqui apresentada, Sócrates

28 Op. cit. p. 437-438. 29 Cf. BOYER, Carl B., op. cit. p. 67 e HEATH, Thomas L.: op. cit. 287.

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26

ilustra o que foi dito associando diretamente a diavnoia ao modo de proceder da

matemática e a novhsi" ao da dialética e da filosofia. Tanto a matemática quanto a

dialética trabalhariam com hipóteses com a diferença de que o dialético, ao

contrário do matemático, toma suas hipóteses não como pontos de partida de uma

dedução, mas no sentido inverso, e sem fazer uso dos sentidos, como degraus e

pontos de apoio para remontar para além delas em direção, não mais a algo

simplesmente postulado a título de hipótese, mas ao princípio mesmo de tudo, o

princípio não-hipotético (ajrch;n ajnupovqeton).

E aqui chegamos ao ponto que nos interessa. No próximo capítulo iremos

investigar um pouco mais de perto esse modo de proceder dos matemáticos em

relação às suas “hipóteses” e o que o distingue do modo de proceder dos

dialéticos.

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3

A crítica de Platão aos matemáticos na Rep. VI 509d-511e

3.1

A noção de “uJpotivqemaiuJpotivqemaiuJpotivqemaiuJpotivqemai” em Platão.

O que Platão fala sobre o modo de proceder das disciplinas matemáticas na

passagem da Linha dividida divide-se em duas partes distintas. A primeira refere-

se à atitude dos matemáticos com relação às hipóteses com trabalha:

Sócrates — Sem dúvida, compreenderás mais facilmente depois

de ouvires o que vou dizer. Sabes, penso eu, que aqueles que se

dedicam à geometria, à aritmética ou às outras ciências do mesmo

gênero tomam como hipóteses (ujpoqevmenoi) o par e o impar, as

figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da mesma família

para cada pesquisa diferente; e que, tomando essas hipóteses

(poihsavmenoi ujpoqevsei" aujtav) como se as conhecessem

(wj" eijdovte"), não se dignam a dar a razão (lovgon didovnai) delas

nem a si próprios nem aos outros, considerando que elas são

evidentes para todos; que, finalmente, a partir daí, deduzem o que se

segue e acabam por alcançar, de forma conseqüente, a demonstração

que tinham em vista. (510c)

O matemático, diz Platão, toma as hipóteses com que trabalha ― números,

figuras geométricas, etc. ― tratando essas hipóteses como coisas perfeitamente

claras/evidentes para todo mundo e que não precisam de nenhuma justificação e a

partir delas ele se encaminha, por uma seqüência de deduções lógicas coerentes,

em direção ao resultado ao qual ele tinha se proposto de início.

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28

A primeira questão que surge é em que sentido os exemplos citados por

Platão ― números, figuras geométricas, etc. ― e tomados por ele como princípios

das ciências matemáticas são “hipóteses”? Ou seja, em que sentido noções

consideradas auto-evidentes e indemonstráveis para os matemáticos são vistas por

Platão como carecendo de demonstração? Como devemos entender esse

lovgon didovnai? Será que Platão está pondo em questão, aqui, a validade das

ciências matemáticas? Dizendo que seus princípios são falsos?

O verbo uJpotivqemai, com o qual Platão se refere ao método empregado

pelos matemáticos (ta;" gewmetriva" te kai; logismou;") na passagem da Linha,

é um verbo derivado de tivqhmi, verbo que aparece inúmeras vezes nos Diálogos30

e quase sempre com o sentido de pôr, colocar, firmar, assentar, supor,

estabelecer, como podemos ver nos seguintes exemplos:

Agora compreendo melhor e estabeleço (tivqhmi), para a arte da

produção duas formas (…). (Sofista 266d5).

Suponha (qe;"), agora, só para argumentar, que na alma há um cunho

de cera (…) Suponho (tivqhmi). (Teeteto 191c8-d2).

Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idéia, que

é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o

suponho (tivqhmi) como sendo verdadeiro (…). (Fédon 100a5).

Apesar de os Diálogos não oferecerem qualquer análise ou exposição sobre

o uso lógico31 de tivqhmi, as passagens onde o verbo ocorre sugerem que o

procedimento por ele nomeado é o seguinte: “pôr” uma proposição é assumir,

consciente e deliberadamente, uma proposição como algo “assentado” ou

“estabelecido” de modo a tornar essa proposição um “ponto de partida” de meus

pensamentos ou de meus raciocínios. A proposição “posta”, no entanto, é sempre

provisória e experimental. Ela é posta somente até “prova contrária”. Nesse caso,

ela é abandonada e outra proposição é posta em seu lugar ou então devemos

suspender o juízo. De forma geral, Tivqhmi, nomeia um procedimento no qual nós,

deliberada e conscientemente, adotamos uma proposição sabendo, no entanto, que

ela, no final, pode se revelar falsa e deverá ser descartada. É importante sublinhar,

entretanto, que quando falamos que tivqhmi é um ato deliberado, estamos

30 Apenas no Livro I da República o termo aparece nesse sentido em pelo menos 7 ocasiões: 331a11, 334e6, 340a-b e 352 d. 31 Ou seja, quando o que é “posto” é uma proposição ou pensamento.

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29

querendo dizer aquilo que não temos necessidade de fazer, mas fazemos

conscientemente, e não deliberado no sentido de necessariamente ser precedido

por uma discussão dos prós e contras. Isso pode tanto acontecer como não.

Quando, por exemplo, Sócrates diz no Górgias (454e) “Suporemos então dois

tipos de persuasão?” essa suposição é tomada como a conseqüência de um

processo dedutivo. Por outro lado, no passo 334e da República a proposição

segundo a qual “amigo é aquele que parece honesto” é posta sem maiores

discussões.

Outro aspecto importante do uso platônico de tivqhmi é que esse

procedimento não envolve proposições consideradas conhecidas e indubitáveis, a

proposição “posta” é, aproximadamente falando, algo que se crê ou se supõe e, na

medida em que esse “pôr” é uma atividade deliberada e consciente, essa crença

pode comportar todos os níveis de confiança, do mais alto ao mais baixo, podendo

até mesmo ser uma crença “simulada”, se isso for de interesse da discussão.

De forma geral, o que é posto, colocado ou suposto é sempre uma tese

(qevsi"); mas o termo, como já apontaram alguns comentadores32, parece ter esse

sentido somente uma vez em Platão (Rep. 335a), embora numerosas vezes em

Aristóteles. Platão, ao contrário de Aristóteles, parece não possuir um nome para

representar uma proposição como tendo sido colocada por alguém e servindo

como ponto de partida de seu pensamento.

Voltando à passagem que nos ocupa, o sentido de uJpotivqemai não diverge

consideravelmente do sentido de tivqhmi. Na verdade, ele simplesmente intensifica

um elemento que já está presente no verbo original. JUpotivqemai ou “su-por” é pôr

como preliminar. JUpotivqemai traz, antes de tudo, a noção de colocar uma

proposição como começo de um processo de pensamento no sentido de raciocinar

com base nisso. No sentido de extrair conseqüências da proposição posta como

hipótese, ou de se rejeitar as proposições tidas como inconsistentes com ela com o

objetivo de se construir um sistemático, ou pelo menos consistente, corpo de

proposições. A proposição colocada como hipótese é, nesse aspecto, uma

proposição especialmente importante. É ela que guia ou orienta o pensamento

subseqüente retornando, muitas vezes, no curso da discussão e constituindo a

parte relativamente permanente e sólida do pensamento ou discurso. 32 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 94

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30

Portanto, na medida em que todo “pôr” (tivqhmi) é essencialmente pôr um

pensamento ou uma proposição como preliminar a um outro pensamento ou a uma

outra proposição, ou pelo menos como ponto de partida para algum tipo de

atividade futura, uJpotivqemai simplesmente intensificaria ou daria ênfase a esse

aspecto. Quando Sócrates e Teeteto, por exemplo, põem o argumento do cunho de

cera no passo 191c do Diálogo que leva o nome do segundo, eles fazem isso em

benefício da explicação futura que ela torna possível sobre a possibilidade da

opinião falsa.

Alguns comentadores defenderam que, apesar de uJpotivqemai e tivqhmi

concordarem no sentido de representar um “pôr” no interesse de uma ação futura,

eles diferem, entretanto, em relação ao fato de que em tivqhmi o “pôr” é precedido

por uma dedução enquanto isso nem sempre ocorre com uJpotivqemai. Tivqhmi

significaria então um “pôr” como o resultado de um raciocínio dedutivo e

uJpotivqemai um “pôr” que não é o resultado de um raciocínio dedutivo, mas o

ponto de partida para subseqüentes afirmações. Entretanto, a análise das

passagens onde o termo ocorre mostra que apesar de Platão ter uma leve tendência

por esse uso, ele nunca o cristaliza. O fato uma proposição ser alcançada algumas

vezes por meio de um raciocínio e outras não é verdadeiro tanto para proposições

“postas” como “supostas”.

Diferenças, ainda que pequenas, existem. Ao contrário de tivqhmi, Platão

muito raramente fala de supor uma proposição que se conhece, de antemão, ser

falsa. Sua concepção de uJpotivqemai dificilmente, ou quase nunca, estende-se ao

completamente falso ou simulado. O único exemplo onde isso parece acontecer é

no passo 246d do Sofista: “suponhamos que concordam em responder-nos de uma

maneira mais cordial do que a de agora”. Isso não significa, no entanto, que Platão

nunca praticou deliberadamente o que nós poderíamos chamar pensamento

hipotético. Ele o faz freqüentemente. Como podemos ver, por exemplo, no passo

42e do Filebo: “Se tal estado não ocorresse nunca ― é o que sempre afirmarei

― que aconteceria necessariamente conosco?”. Mas ele não chama isto

“uJpotivqesqai”. A palavra usada para assumir o que você já sabe ou acredita ser

falso não é uJpotivqesqai mas sugcwrei'n. Isso aparece mais claramente no

Cármides onde encontramos muitas deduções a partir de premissas consideradas

falsas. E a oposição entre os dois termos e as duas noções é sugerida nitidamente

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31

no passo 172c: suponhamos (sugcwrhvsante") que é possível que exista uma

ciência da ciência, e não abandonemos o que colocamos (ejtiqevmeqa) no início,

que a sabedoria (swfrosuvnhn) consiste em saber o que sabemos e o que não

sabemos. Aqui ambas as proposições “é possível uma ciência da ciência e

“sabedoria (swfrosuvnhn) consiste em saber o que sabemos e o que não

sabemos” parecem ser tomadas como insustentáveis. Não obstante, elas serão

assumidas no curso seguinte da discussão e essa assunção é chamada sugcwrei'n.

Mas quando Sócrates está se referindo a um momento anterior da discussão, antes

dessas proposições serem invalidadas, ele usa tivqemai; pois, naquele momento,

ele não as estava “supondo”, mas “colocando-as”.

Com relação ao substantivo “uJpovqesi"” (hipótese), ele é usado por Platão

com menos freqüência do que o verbo “uJpotivqemai” e menos ainda do que o

verbo tivqhmi. Nos Diálogos, esse substantivo é sempre o substantivo que

corresponde ao verbo “uJpotivqemai”, e adquire seu significado inteiramente dele,

ou seja, uma proposição su-posta como um ponto de partida para um sistema de

proposições.

Segundo Robinson33, a análise das passagens onde o verbo uJpotivqemai

ocorre, nos permite apontar cinco características principais do método hipotético

descrito por Platão em seus Diálogos. Em primeiro lugar, o método implica, por

um lado, que se deva sempre adotar as proposições em questão de uma maneira

consciente e deliberada, em vez de simplesmente “incorrer” nelas e, por outro, que

se deva sempre adotar alguma tese, em vez de simplesmente suspender o juízo34.

Em segundo lugar, o método hipotético é um procedimento essencialmente

dedutivo35 onde fundamentalmente se procura explorar as implicações ou

33 op., cit., p. 105-113. 34 Robinson sublinha que em nenhum dos diálogos Platão desenvolve explicitamente cada uma desses pontos, mas que eles parecem estar implicados, por um lado, pelo que Platão diz sobre o uso das hipóteses, e, por outro, pelo fato de que o método dialético como um todo se funda numa conversa do tipo pergunta-resposta onde o essencial é o princípio de que o que responde deve sempre responder, não devendo alegar ignorância. Caso ele se sinta incapaz de responder, é tarefa ou obrigação do que pergunta trazê-lo de algum modo a um juízo definido, quer revelando-lhe as razões da proposição em questão, ou desenvolvendo mais detalhadamente sua natureza, quer ainda extraindo-a de outras afirmações com as quais ele já concordou. E uma que o que responde concorde com o que pergunta, ainda que de maneira hesitante, a proposição em questão é considerada como aceita. Não que os participantes deixem de distinguir um mero “talvez” de uma afirmação vigora e decidida, mas sim que é essencial ao método colocar toda proposição sugerida em uma das duas categorias, “aceita” ou “rejeitada”. op., cit., p. 105. 35 Robinson sublinha que “dedução” aqui deve ser compreendida, não em oposição à “indução”, mas preferencialmente em oposição à “intuição”. op., cit., p. 106.

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32

conseqüências das hipóteses em questão, a fim de se atingir uma determinada

conclusão, sem se preocupar tanto em justificar essas hipóteses mesmas. Em

terceiro, o método rejeita toda contradição, avaliando como nulo todo conjunto de

proposições que se contradigam, seja diretamente ao afirmar uma mesma

proposição como verdadeira e falsa, ou indiretamente afirmando duas proposições

onde uma delas, em algum momento de seu desenvolvimento, insinua a falsidade

da outra. Em quarto lugar, o método toma as opiniões de que parte

provisoriamente e não dogmaticamente. Se, por um lado, estimula-se a formação

de hipóteses em lugar da suspensão do juízo, por outro, deve-se ter em mente que

estas hipóteses podem ser falsas, e que, portanto, deve-se estar pronto a abandoná-

las se lhes faltar consistência. E, por último, o método de hipóteses é um método

“aproximativo” uma vez que nosso conjunto inteiro de opiniões muda na medida

em que são reveladas contradições entre elas pelo processo de dedução. De modo

que, com o passar do tempo, elas até podem se tornar cada vez mais adequadas,

sem, entretanto poderem ser tomadas definitivamente, de uma vez por todas, já

que a possibilidade de se encontrar uma contradição permanece sempre presente36.

E cabe ressaltar, com Robinson37, que em nenhum lugar dos diálogos, Platão nos

oferece uma descrição de como converter esse “provisório” em “certo”.

3.2

A noção de “uJuJuJuJpotivqemaipotivqemaipotivqemaipotivqemai”no Mênon e no Fédon

Antes da República, a referência ao método hipotético aparece em dois

Diálogos: no Mênon e no Fédon. No Mênon, diante da insistência de Mênon para

que investigue se a virtude é coisa ensinável ou não antes de investigar o que ela é

em si, Sócrates propõe o uso de um artifício que diz tomar emprestado aos

geômetras: o método hipotético. Sócrates explica que quando se pergunta a um

matemático se é possível, dada uma superfície, inscrevê-la como triângulo num

círculo, ele responde:

SO. Ora, Mênon, se eu comandasse não somente a mim mas

também a ti, não examinaríamos antecipadamente se a virtude é

coisa que se ensina ou que não se ensina, antes de primeiro ter

procurado o que ela é, em si mesma. Mas, já que tu não tratas de

comandar-te a ti mesmo, para que sejas livre, enquanto a mim tratas

36 Robinson aponta que se trata aqui mais de uma interpretação que de um comentário. Ele deixa claro que não há nenhum desenvolvimento explícito desse ponto nos diálogos. op., cit., p. 108. 37 Loc. cit.

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33

de comandar e comandas, ceder-te-ei ― pois que se pode fazer?

Parece então que é preciso examinar que tipo de coisa é aquilo

que não sabemos ainda o que é. Se mais não <fizeres>, então, pelo

Menos relaxa um pouco o comando sobre mim e consente que se

examine a partir de uma hipótese (uJpoqevsew") se ela é coisa que

se ensina ou se <é> como quer que seja. Por "a partir de uma

hipótese" (ejx uJpoqevsew") quero dizer a maneira como os geômetras

freqüentemente conduzem suas investigações. Quando alguém lhes

pergunta, por exemplo, sobre uma superfície, se é possível esta

superfície aqui ser inscrita como triângulo neste círculo aqui, um

geômetra diria: “Ainda não sei se isso é assim, mas creio ter

para essa questão como que uma hipótese (uJpovqesin) útil, qual

seja: se esta superfície for tal que, aplicando-a alguém sobre uma

dada linha do círculo, ela fique em falta de uma superfície tal como

for aquela que foi aplicada, parece-me resultar uma certa

conseqüência, e, por outro lado, outra <conseqüência>, se é

impossível que <a superfície> seja passível disso. Fazendo então

uma hipótese (uJpoqevmeno"), estou disposto a dizer-te o que resulta a

propósito de sua inscrição no círculo: se é impossível ou não. (86d-87b) 38.

Não é importante para a questão que nos ocupa saber a qual problema

matemático Platão está se referindo39. No que nos diz respeito, o interesse reside

no sentido em que Platão parece tomar a palavra uJpoqevsi" e ao uso que faz dela.

Segundo Robin40, a palavra é utilizada aqui simplesmente com a intenção de dar

uma idéia do método que Sócrates empregará para examinar a questão das

características da virtude nas condições anormais que lhe foram impostas por

Mênon e cujo esquema geral seria o seguinte: se tais condições se apresentam, o

resultado será este, e em tais outras condições, será aquele41. De modo que

“hipótese” se apresentaria aqui como uma espécie de conjetura onde se procuraria

descobrir a validez ou não de uma proposição a partir da dedução de suas

conseqüências.

Robinson42 nos oferece uma interpretação um pouco mais elaborada, na qual

o método hipotético descrito nessa passagem seria um método para investigar se

uma determinada proposição q é verdadeira ou falsa, não exatamente 38 Em relação às passagens do Mênon citadas nesse trabalho, reproduzo a excelente tradução da profª. Maura Iglésias. Mênon,Ed. Loyola, São Paulo, 2001. 39

A passagem envolve diversas dificuldades de interpretação. Entretanto, a maioria dos comentadores concorda que não é importante identificar de qual problema se trata, mas sim a forma a qual Platão reduz o “uso de hipóteses”. cf. Maura Iglésias, op. cit., n. 29, p. 115; Robin, Léon. Platon, oeuvres complètes Paris, Gallimard 1950. notes; Robinson, R. op. cit., p. 114. 40 op. cit., id., ibid. 41 No caso: se a virtude se ensina e se transmite, de um lado eu tenho mestres com os discípulos e de outro eu tenho a mesma coisa, discípulos com mestres; se ela é uma opinião verdadeira adquirida pela natureza, de um lado eu tenho os pais, homens de valor, mais com os filhos, o outro lado permanece vazio, por ausência de valor, etc. op. cit., id., ibid. 42 op., cit., p. 116.

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34

demonstrando diretamente q, como sugere Robin, mas recorrendo a uma outra

proposição p, equivalente a q, de modo que q deve ser verdadeira se p é

verdadeira, e deve ser falsa se p é falsa. Prova-se ou rejeita-se p diretamente, e a

partir disso sabemos se o objeto original de nossa investigação q é verdadeiro ou

falso, porque q é equivalente a p43. Neste procedimento a proposição p é que é

chamada “hipótese”. No exemplo geométrico o objeto original de investigação é a

proposição “se é possível esta superfície aqui ser inscrita como triângulo neste

círculo aqui”, e a hipótese é o enunciado “se esta superfície for tal que, aplicando-

a alguém sobre uma dada linha do círculo, ela fique em falta de uma superfície tal

como for aquela que foi aplicada” (87a). Na aplicação subseqüente ao caso da

virtude, o objeto original da investigação (q) é a proposição “a virtude é coisa que

se ensina ou não”, e a hipótese (p) é a proposição “a virtude é ciência”. Primeiro,

Sócrates mostra que a hipótese p é equivalente à proposição original q (87b5-c10).

Isso é feito em poucas linhas: essa equivalência é considerada “evidente para todo

o mundo”:

Assim também, sobre a virtude, já que não sabemos nós o que é

nem como é, façamos uma hipótese e examinemos se é coisa que se

ensina ou que não se ensina, dizendo o seguinte: se for que tipo

de coisa, entre as que se referem à alma, será a virtude coisa que se

ensina, ou coisa que não se ensina? Em primeiro lugar, se ela é um

tipo de coisa diferente do tipo de coisa que é a ciência, é, ou não,

coisa que se ensina, ou, como dizíamos há pouco, coisa que pode ser

rememorada? Que não nos importe absolutamente que nome

utilizemos, mas sim: é coisa que se ensina? Ou melhor: não é

evidente para todo o mundo que nada se ensina ao homem a não ser a

ciência?

MEN. Parece-me que sim. SO. E se é uma ciência, a virtude, é evidente que pode ser

ensinada.

MEN. Como não seria?

SO. Dessa questão, vejo, desvencilhamo-nos depressa: se for

uma coisa desse tipo [sc. ciência], é coisa que se ensina, se for de

outro tipo, não.

MEN. Perfeitamente. (87b5-c10)

43 no caso, q seria a proposição de que a virtude é coisa que se ensina, e a hipótese p é que virtude

é conhecimento. loc. cit. Robinson menciona as objeções levantadas por Friedländer e por Cherniss à sua interpretação, mas mesmo reconhecendo que se trata de objeções pertinentes, mantém-se, entretanto, fiel a ela.

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35

Em seguida¸ Sócrates dá uma prova bem mais elaborada da hipótese p

“virtude é ciência” (de 87d a 89d) a partir da qual então Mênon deduz que virtude

é coisa que se ensina, (89c):

SO. Depois disso, segundo parece, é preciso examinar se a

virtude é ciência ou algo de tipo diferente da ciência.

MEN. Parece-me, a mim, que esta é a questão a examinar

depois daquela.

SO. E então? Não dizemos que ela, a virtude, é um bem, e não

nos fica esta hipótese: que ela é um bem? ― MEN. Perfeitamente. -

SO. Então, não é?, se, por um lado, algo há que é um bem e que é

algo outro, distinto da ciência, talvez a virtude seja uma coisa que

não ciência. Mas, se, por outro lado, não há nenhum bem que a

ciência não englobe, estaríamos corretos em suspeitar que ela é uma

ciência. (…)

(87b-d) (…) Logo, é compreensão que afirmamos ser a virtude, seja o

todo <da compreensão> seja uma parte <dela>? -MEN. Parece-me

bem dito o que foi dito, Sócrates. -SO. Se é assim, não é por natureza

que os bons seriam <bons>, não é? -MEN. Parece-me que não.

SO. Com efeito, penso, dar-se-ia o seguinte: se os bons se

tornassem <bons> por natureza, teríamos, penso, pessoas que

reconheceriam, entre os jovens, aqueles que são bons por sua

natureza, e, tendo<-os>, essas pessoas, designado, nós os

tomaríamos e, tendo-os selado mais bem que o ouro, mantê-los-íamos

sob guarda na acrópole, para que ninguém os corrompesse, mas sim,

ao contrário, <para que> assim que atinjam a idade, se tornem úteis

à cidade.

MEN. É bem provável, Sócrates.

SO. Então, já que não é por natureza que os bons se tornam

bons, será que é por aprendizado?

MEN. Já me parece que é necessário que sim. E é evidente,

Sócrates, que, segundo a hipótese, "se realmente a virtude é ciência",

ela é coisa que se ensina.

(89a-c)

A exposição de Platão do método hipotético no Mênon parece terminar aqui.

No restante do Diálogo não há nenhuma outra menção à palavra “hipótese” nem

qualquer observação metodológica de outro tipo. Robinson faz notar, entretanto,

que em seguida Sócrates inverte o argumento e rejeita a proposição “virtude é

coisa que se ensina” concluindo (99a) que uma vez que virtude não é coisa que se

ensina, ela não é ciência. Com isso ele está, embora isso não esteja explicitado no

Diálogo, diretamente contestando a proposição que estava originalmente em

questão e deduzindo daí a falsidade da hipótese considerada como equivalente à

proposição original.

Apesar da elegância, a interpretação de Robinson não é inteiramente

convincente e ele próprio lista as principais possíveis objeções a ela. A primeira é

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que há duas outras proposições que Sócrates chama de “hipóteses” bem mais

explicitamente do que a proposição “virtude é ciência”. Em 89d Sócrates diz que

ele não “retira” a proposição segundo a qual “a virtude é coisa que se ensina, se é

realmente ciência”. O termo grego usado é ajnativqemai que pode ser traduzido

como “retiro a hipótese...”. Em 87d ele chama “hipótese” a proposição segundo a

qual “a virtude é um bem”. Robinson argumenta que, apesar de Platão não nomear

a proposição “virtude é ciência” como uma “hipótese” tão explicitamente como

ele nomeia as duas proposições mencionadas acima, o contexto sugere, pelo modo

como essa proposição se encaixa na descrição geral do método hipotético

apresentada aqui, que a proposição “virtude é ciência” é uma hipótese no diálogo.

Isso é sugerido, de um lado, pela observação obscura de Mênon em 89c: “se

realmente a virtude é ciência, ela é coisa que se ensina” e, de outro, pelo fato de

Sócrates, depois de sua ilustração geométrica, propor pôr a hipótese “isto”, onde

esse “isto” indubitavelmente significa virtude e a hipótese que Sócrates parece ter

em mente é justamente a proposição “virtude é ciência” devido aos argumentos

utilizados em seguida: “se ela é um tipo de coisas diferente do tipo de coisa que é

a ciência” (87b7) e “se for uma coisa desse tipo [sc. ciência]” (87c5).

A segunda possível objeção contra a interpretação de Robinson diz respeito

ao fato de que essa interpretação não faz o método hipotético ser mais hipotético

do que qualquer outro método socrático, pois a hipótese “virtude é ciência” é

demonstrada exatamente do mesmo modo que qualquer demonstração socrática.

Robinson argumenta que, em termos gerais, não é óbvio que o que parece a nós

uma diferença sem importância no procedimento envolvido também parecia sem

importância a Platão. Aristóteles, por exemplo, parece considerar importante essa

diferença em sua doutrina do “silogismo por hipóteses”. Segundo Aristóteles, o

silogismo por hipóteses procede assim: para provar que C é D, você primeiro leva

seu contestador a concordar, como hipótese, que se A é B então C é D. Você então

obtém as premissas necessárias e prova silogisticamente que A é B. (Anal. 50a16-

28.) Aristóteles, entretanto, considera este procedimento inferior. Ele não seria

uma real demonstração porque não deduz diretamente por silogismo que C é D,

no sentido de que suas premissas não decorrem de uma das três figuras de

silogismo. O que se obtém por silogismo é uma outra coisa, isto é, que A é B; e a

passagem disso para a conclusão exigida é simplesmente tomada como hipótese.

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Esse método seria o segundo melhor, só empregado quando você não pode obter

diretamente por silogismo que C é D. Assim o procedimento descrito no Mênon

que, na interpretação de Robinson, se mostrou como uma investigação “a partir de

uma hipótese” seria semelhante ao procedimento que Aristóteles no Analíticos

chamou “o silogismo a partir de hipóteses” e sustentou ser diferente de silogismo

ordinário.

Entretanto, embora a forma de argumentar que Aristóteles tem em mente se

assemelhe àquela que Platão parece ter em mente no Mênon, o que Aristóteles

chama “hipótese” é diferente daquilo que Platão chama “hipótese”, na

interpretação de Robinson. Para Aristóteles a hipótese é a proposição segundo a

qual “se A é B, então C é D”; mas para Platão é a proposição segundo a qual “A é

B”. Porém, esta diferença de nomenclatura não afeta, segundo Robinson, o fato de

que Aristóteles e Platão estão falando sobre a mesma forma de argumentar, e que

Aristóteles considera que essa forma possui uma importante diferença em relação

ao silogismo ordinário, e que, portanto, Platão também pode ter considerado que

esse procedimento possui uma importante diferença em relação à dedução

ordinária.

A terceira dificuldade em relação à interpretação de Robinson é que ela

sugere que o raciocínio, ou boa parte dele, acontece em direção à hipótese e não a

partir dela. Sócrates recorre a duas páginas de silogismos para deduzir a hipótese

segundo a qual virtude é conhecimento, mas só de um passo para ir desta hipótese

para a demonstração de que virtude é coisa que se ensina, um passo que ele

considera “óbvio a todo o mundo” (87c2). Isso traz dois problemas. O primeiro é

que parece estranho esse uso do termo “hipótese” para se referir apenas à última

fase uma de uma série de raciocínios. O segundo é que duas frases presentes na

explicação de Sócrates de seu método parecem insinuar que hipótese realmente

envolvia uma série longa de conseqüências deduzidas disto, e não, como insinua

interpretação de Robinson, apenas a última conseqüência. Um destas frases é

“façamos uma hipótese e examinemos” (87b4), onde “examinemos” sugere uma

cadeia significativa de raciocínio procedendo da hipótese. A outra é “Fazendo

uma hipótese, estou disposto a dizer-te o que resulta a propósito” (87b1) que

sugere o mesmo.

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Contra essa dificuldade, Robinson não parece ter um contra-argumento

realmente convincente. Ainda que o fato de parecer estranho hoje em dia dar o

título de “hipótese” para uma proposição a qual, na estrutura lógica do raciocínio,

aparece por último e é deduzida estritamente do que precedeu, não seja um

argumento forte contra a interpretação de Robinson, é difícil conciliar essa

interpretação com as passagens mencionadas que sugerem claramente a idéia de

significativas séries de raciocínios a partir de hipóteses. Segundo Robinson, essa

dificuldade pode ser superada se assumirmos que as conseqüências de que fala

Platão aqui não são as conseqüências lógicas da proposição colocada como

hipótese, mas as conseqüências práticas do procedimento envolvido, isto é, da

construção de uma cadeia de raciocínio conduzindo à proposição colocada como

hipótese. As conseqüências práticas “da proposição colocada como hipótese”

seriam seus antecedentes lógicos, aqui vistos como conseqüências do processo de

colocar como hipótese a proposição. O problema dessa explicação é que para

reconciliar sua interpretação com as passagens 87b1 e 87b4 Robinson acaba

insinuando que o texto platônico foi escrito de um modo bastante confuso.

Alguns comentadores como Farquharson44 sugeriram que o método que

Platão expõe aqui é o mesmo que os geômetras gregos depois chamarão “análise”.

Este método de análise é descrito pelos historiadores da matemática grega45 como

um procedimento que consiste em colocar como hipótese a proposição a ser

provada e, a partir dessa proposição, deduzir outras proposições até chegar a uma

proposição que você sabe ser verdadeira ou falsa independentemente da

proposição de que se partiu. Pode-se então, se essa proposição for verdadeira, usá-

la como premissa na demonstração da proposição inicial; ou, se ela for falsa, usá-

la para refutar a proposição que se pretendia demonstrar inicialmente. Assim, pela

colocação de uma proposição como hipótese, chega-se, a partir dessa hipótese, à

descoberta de uma prova conclusiva baseada em premissas indubitáveis.

Entretanto, como aponta Robinson46, apesar de o método de análise e o

método hipotético descrito no Mênon incluírem, ambos, a colocação de

proposições como hipóteses, eles não possuem nenhuma outra semelhança 44 CQ XVII 21, apud. Robinson, op. cit., p.121. 45 Cf. BOYER, Carl B.: História da Matemática. Trad. Elza F. Gomide. Ed. Edgard Blücher Ltda, São Paulo, 1974; HEATH, Thomas L.: A History of Greek Mathematics, vol. I. Oxford, London, 1921). p. 285 - 315. 46 Op. Cit. p. 121.

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adicional; na verdade, eles procedem de forma bem diferente. No exemplo

geométrico do Mênon, a análise começaria com a colocação como hipótese da

proposição que ser quer provar ou refutar, isto é, que “se é possível para este

retângulo ser inscrito neste círculo como um triângulo”, e então tira-se

conseqüências desta hipótese; mas Platão descreve o geômetra como colocando

como hipótese alguma outra coisa. Na discussão que se segue, “se virtude é coisa

que se ensina”, o método de análise começaria assumindo que virtude é coisa que

se ensina e tiraria conclusões disto. A princípio, parece que é esse o procedimento

de Sócrates e que a primeira conseqüência que ele tira dessa hipótese é que

virtude é conhecimento; mas, na verdade, ele não tira nenhuma conclusão de

“virtude é conhecimento”, essa hipótese é explicitamente provada por uma

dedução direta.

O método hipotético descrito por Platão no Mênon não é muito parecido

com o método hipotético platônico descrito na primeira parte desse capítulo. É

verdade que ele contém, algo que poderíamos chamar de “pôr como hipótese” e

dedução; mas a dedução é quase inteiramente em direção à hipótese em lugar de

partir dela, e os elementos de provisionalidade e aproximação parecem estar

ausentes, ou presentes somente na medida em que a mesma pergunta é respondida

primeiro no afirmativo e depois no negativo. O método hipotético descrito no

Mênon é bem diferente daquele que encontramos no Fédon e na República nos

quais se baseia a descrição desse método da primeira parte desse capítulo; e

parece diferir da dedução socrática ordinária somente pelo fato de não ser um

silogismo aristotélico, mas alguma outra forma de dedução rígida.

A exposição encontrada no Fédon é o ponto alto da discussão platônica

sobre o método hipotético em Platão. Ela é muito mais séria, completa e precisa

do que a que encontramos no Mênon e na República. O objetivo do Fédon é

estabelecer que “alma é imortal”. Alguns bons argumentos são apresentados; mas

uma objeção minuciosa de Cebes traz novas dúvidas à discussão. Sócrates diz

então que uma investigação geral da causa da geração e destruição das coisas é

necessária (95e); e começa a narrar as suas próprias experiências nesse tipo de

pesquisa. Na mocidade, ele nutrira um enorme interesse pela chamada “ciência

natural”. Entretanto, quanto mais ele se dedicava a esse estudo, mais ignorante e

incompetente ele se sentia em relação a essas questões. Nenhuma das causas

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alegadas parecia ser realmente uma causa. Até que um dia ele ouviu que, segundo

Anaxágoras, a inteligência (nous) era a causa e o ordenadora de tudo e voltou a ter

esperanças de que obteria uma explicação para cada caso de geração ou destruição

ou existência a partir da idéia do melhor; acreditando, que se isso acontecesse,

nenhuma outra causa adicional seria necessária. Mas a esperança logo se dissipou

quando ele leu o livro de Anaxágoras e viu que Anaxágoras tampouco atribuía ao

“melhor” algum papel na geração, destruição e ordenação das coisas. Enfim, todos

pareciam tomar como causa somente aquilo sem o qual a causa não seria causa e

não a causa mesma. Depois de mais essa decepção, Sócrates decide então

empreender o que ele chama de segunda navegação (deuvteron plou'n) ― a

investigação pelas idéias ― e passa a descrever seu método:

E assim, tomando como hipótese (uJpoqevmeno") em cada

ocasião a proposição que julgo ser a mais forte, tudo o que me

parecer estar de acordo (sumfwnei'n) com ela tomo como verdadeiro,

quer no tocante às causas quer a qualquer outro aspecto; se não

[estiver de acordo], como não verdadeiro.

(100a)

O que será que Platão quer dizer com o uso da metáfora do “acordo e

desacordo” nesta passagem? À primeira vista, o mais óbvio e natural parece ser

algo como consistente com ― inconsistente com. Entretanto, se “acordo” significa

“ser consistente com”, então Sócrates está dizendo que basta ser consistente com a

hipótese inicial para que qualquer proposição seja tomada por ele como

verdadeira, o que parece um passo apressado e não autorizado a se fazer, na

medida em que, do ponto de vista lógico, nada nos autoriza a adotar uma

proposição como verdadeira apenas pelo fato dela não poder ser refutada pela

nossa hipótese.

Uma outra possibilidade de interpretação seria ser dedutível de ― não ser

dedutível de. Essa interpretação parece encontrar apoio na continuação da

passagem onde Sócrates, depois de descrever a hipótese que ele tem em vista “A

realidade de um Belo, que existe em si e por si, de um Bem, de um Grande e assim

por diante” (100b), insinua que a próxima coisa a se fazer é tirar deduções disto:

... Se neste ponto me dás razão e aceitas a existência de coisas como

estas, espero bem a partir delas, explicar-te qual seja essa causa e descobrir

o que faz com que a alma seja imortal.

― Que dúvida! – disse Cebes – Conta com o meu assentimento e não

atrases mais as tuas conclusões.

― Observe, então, o que vem a seguir.

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(100b-c)

Aqui esse “o que vem a seguir” parece significar “o que logicamente se

segue”; e “conclusão” parece ser a conclusão lógica.

Entretanto, essa interpretação também envolve uma dificuldade tão séria

quanto aquela da “consistência”. Se “acordo/desacordo aqui deve ser entendido

como ser dedutível de ― não ser dedutível de, então Sócrates estaria dizendo em

100a que sempre que ele não encontra uma proposição dedutível da hipótese

inicial, ele a coloca como falsa. Ora, esta lógica parece muito esquisita realmente.

Ninguém hoje sustentaria que, se p é verdade e q não é dedutível de p, então q

deve ser falso. Parece mesmo difícil de acreditar que Platão tenha sustenta isso ou

incorrido nisso por erro.

As duas interpretações da metáfora do acordo e desacordo, portanto, nos

levam a paradoxos sérios. O problema é que parece não haver uma terceira

interpretação e somos obrigados a escolher entre consistência e dedutibilidade

como significado de “acordo”. Segundo Robinson47, o melhor é consistência. O

paradoxo a que essa interpretação nos leva é bem menos grave do que aquele a

que nos conduz a escolha por dedutibilidade. Estabelecer como verdadeiras

proposições que são consistentes com a nossa hipótese inicial é mais defensável

do que estabelecer como falsas proposições que não são dedutíveis dela. Além

disso, essa interpretação parece ser confirmada pelo uso de Platão das palavras

“acordo” e “discórdia” em outros Diálogos. Enquanto que em nenhum outro

Diálogo encontramos qualquer passagem onde acordo e desacordo pareça indicar,

claramente, dedutibilidade ou a ausência disso; em vários outros, encontramos

passagens onde o uso do termo certamente indica consistência ou inconsistência:

“Nós temos que examinar o que o argumento diz como também o que Hipócrates

diz, e ver se eles concordam” (Fedro 270c); “Mas o que você está dizendo agora

parece a mim nem conseqüente nem de acordo com o que você disse no princípio”

(Górgias. 457e, cf. também 461a).

Uma maneira de diminuir o paradoxo a que essa interpretação leva ―

estabelecer proposições como verdadeiras porque elas são consistentes com a

hipótese inicial ― é assumir que não existe um real paradoxo em pressupor como

47 Op. Cit. p. 127.

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verdadeiro aquilo que é consistente com sua hipótese. É bem razoável pressupor

uma proposição como verdadeira até que o aparecimento de uma inconsistência

nos leve a rejeitá-la. Sócrates segue o princípio de que toda proposição é

verdadeira até que se descubra ser ela incompatível com a hipótese ou com uma

de suas conseqüências, da mesma maneira que todo prisioneiro é inocente até que

se prove que ele é culpado.

O problema é que esse procedimento não configura a um método. O método

hipotético tem a pretensão de chegar a alguma conclusão particular. No caso,

Sócrates deseja estabelecer que a alma é imortal. Ora, meramente pressupor como

verdadeira toda proposição que for consistente com a hipótese inicial não nos leva

a qualquer conclusão de fato, mas apenas nos leva a acumular um monte de

afirmações. De modo que, se isso é feito deliberadamente para chegar à conclusão

desejada, não há nada que impeça de pressupor esta conclusão imediatamente

depois de pressupor a própria hipótese. O método hipotético chegaria ao fim quase

ao mesmo tempo em que ele começasse, sem que, com isso, a conclusão tenha se

tornado um pouco mais provável. Se, por um lado, consistência, ao invés de

dedutibilidade, se mostra como a interpretação mais natural para “acordo”, por

outro lado, o método hipotético descrito por Platão no Fédon e em outros

Diálogos, seguramente envolvia uma dedução de conseqüências a partir da

hipótese inicial e não apenas uma adicional “pressuposição” de proposições

consistentes com a primeira hipótese.

Devemos concluir, portanto, que Platão não diz, aqui, tudo o que ele tem em

mente sobre o método hipotético. Ele se restringe a dizer que o segundo passo do

método é achar proposições consistentes com a hipótese; mas ele acredita que,

com isso, podemos encontrar proposições não apenas consistentes, mas também

dedutíveis da hipótese inicial.

A metáfora do “acordo e desacordo” aparece mais uma vez na continuação

da passagem e de um modo ainda mais enigmático: “E, para o caso do teu

interlocutor se apoiar na hipótese em si mesma, pois bem, despachá-lo-ias sem

resposta, até verificares se os resultados dela decorrentes estão entre si em

concordância ou em discordância” (101 d). Segundo Robinson48, ao usar o termo

oJrmhqevnta (e wJrmhmevnon em 101e), Platão parece conceber “hipótese” como um 48 Op. Cit. p. 127.

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43

impulso que dá origem a um fio de eventos ou que produz uma quantidade de

material. Essa concepção seria a mesma que é encontrada em outros Diálogos tais

como República (510d, 511b), Banquete (185e) e Teeteto (184a). Entretanto,

tampouco nessas outras passagens, a questão se esses resultados são

conseqüências lógicas ou resultados de outro tipo é inteiramente respondida e,

com exceção da presente passagem, não existe nenhuma outra passagem, em

Platão, onde oJrmhqevnta signifique, tecnicamente e indubitavelmente,

conseqüências lógicas tal como sumbaivnonta.

De forma que o que Platão parece estar querendo dizer é: “até que você

tenha considerado as conseqüências lógicas da hipótese, para ver se eles

concordam ou discordam entre si”. Isto nos coloca em uma posição ligeiramente

melhor em relação à questão se “acordo e desacordo” significa “ser dedutível de

― não ser dedutível de” ou “ser consistente com e ser inconsistente com”. Nós

temos um bom argumento para supor que “acordo” aqui significa “dedutível de”.

Pois, se significasse consistência, Platão estaria assumindo uma impossibilidade

lógica na medida em ele estaria assumindo que as conseqüências de uma hipótese

podem se contradizer mutuamente, e elas não podem. As várias proposições que

se seguem de uma dada proposição são necessariamente consistentes tanto em

relação a essa proposição quanto entre si. Este absurdo é evitado se tomarmos

como se ele estivesse dizendo: “você se recusa a responder até que você tenha

considerado as (supostas) conseqüências da hipótese para ver se elas se seguem ou

não umas das outras”. Se elas não se seguem elas não são realmente

conseqüências. Assim o procedimento inteiro consistiria em (1) fazer uma

hipótese, (2) deduzir suas conseqüências, (3) checar estas conseqüências para ver

que elas são realmente se seguem logicamente da hipótese (este é o passo descrito

em nossa passagem presente), e (4) postular estas conseqüências como

verdadeiras (como descrito anteriormente, 100A).

Entretanto, como mostra Robinson49, apesar do aparente absurdo lógico a

que ela parece levar, a opção por “ser consistente com e ser inconsistente com” é

preferível, aqui, à “ser dedutível de ― não ser dedutível de” pelas seguintes

razões: (1) Platão nessa passagem põe uma ênfase desproporcionada sobre a

atividade secundária de conferir os cálculos lógicos envolvidos. (2) nós já vimos

49 Op. Cit. p. 129.

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44

anteriormente que nos textos de Platão a metáfora do “acordo” nunca significa

“dedutível de”, mas, freqüentemente, significa “consistente com”. Na presente

passagem “desacordo” ou diafwnei' parece uma metáfora bem antinatural para

“não se segue de”. (3) parece muito pouco provável que Platão, em duas

passagens tão próximas do ponto de vista temporal e semântico, queria significar

coisas diferentes através da mesma metáfora; e como vimos, no passo anterior, ela

significou “consistente com”. (4) mesmo os comentadores que rejeitam a opção

por consistente com, não propõem, ao invés, que devemos assumir “acordo” como

“dedutível de”, preferindo acreditar ou que Platão comete um erro ou que o texto

foi interpolado. Por estas razões nós devemos sustentar que “acordo” aqui também

significa consistência e que temos que passar por cima do absurdo lógico a que

essa interpretação parece levar.

3.3

A noção de lovgon didovnailovgon didovnailovgon didovnailovgon didovnai na passagem da Linha

Essas características do uso do verbo uJpotivqemai por Platão reforçam a

nossa desconfiança de que há algo mais na passagem da Linha do que uma mera

descrição dos aspectos referentes ao do modo de proceder das disciplinas

matemáticas. Na República, Platão chama de uJpoqevsei", o que o matemático

considera evidente por si mesmo e que não necessita justificação: não se dignam a

dar a razão(lovgon didovnai) delas nem a si próprios nem aos outros,

considerando que elas são evidentes para todos (510c). A questão é que, ao fazer

isso, de acordo com a nossa descrição do significado e do uso do verbo

uJpotivqemai, Platão confere um caráter de provisionalidade e de suspeição a algo

onde, antes, em geral, não havia.

O que incomoda é que, ainda que a terminologia referente aos primeiros

princípios da geometria grega não estivesse ainda definitivamente estabelecida50,

não parece provável que os matemáticos da época não distinguissem, pelo menos

qualitativamente, nos elementos que compõem suas disciplinas, entre princípios

de caráter “axiomático”, auto evidentes e indemonstráveis, e “princípios” de

caráter “hipotético”, conjeturais, provisórios e aproximativos. Que essa distinção

era feita é o que parecem nos sugerir os testemunhos que chegaram até nós51,

50 Yvon Lafrance, Platon et la Géometrie: la méthode dialectique en République 509d-511e, p.57 51 Segundo H.D.P. Lee (Geometrical method and Aristotle’s Account of First Principles, ds. Class. Quart. 29, 1935, p. 117. Apud Yvon Lafrance, op. cit. p. 53), a exposição de Aristóteles nos

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45

assim como as passagens onde Platão trata do método hipotético dentro de um

contexto estritamente geométrico, parecem indicar que ele estava plenamente

consciente de que o que caracterizava o método hipotético entre os matemáticos

era justamente o caráter conjetural, provisório e aproximativo.

É fato bem conhecido, atestado em vários de seus diálogos, que Platão

atribuía às disciplinas matemáticas uma grande importância e que a sua por elas

não tinha nada de exterior ou superficial. É bem provável que, durante a infância

em Atenas, Platão tenha tido aulas de matemática ministradas por mestres

especializados. De acordo com Diógenes Laércio52, após a morte de Sócrates, no

decorrer da longa viagem que fez ao Egito e à África do Norte, Platão conheceu

um dos mais famosos geômetras da época — Teodoro de Cirene — que o iniciou

em seus métodos. Mais tarde, por volta de 389, visitando a Grande - Grécia,

tornou-se amigo de Arquitas de Tarento e, a partir dos trabalhos desse sábio, se

aprofundou nas teorias aritméticas dos pitagóricos. De modo que, quando, no ano

seguinte, ele retorna a Atenas para aí fundar a Academia, ele se encontra de posse

de uma excelente formação em matemática e, indubitavelmente, não ignorava

nenhuma descoberta notável da geometria contemporânea. Entretanto, o fato é

que, apesar de toda essa admiração e respeito, Platão simplesmente passa por cima

das distinções utilizadas pelos matemáticos de seu tempo com referência aos

princípios de suas disciplinas. Onde o matemático distinguia entre axiomas,

postulados, hipóteses e definições, Platão só vê “hipóteses”53.

Mas será que isso quer dizer que Platão desconhecia tais distinções? Isso

seria de se espantar, considerando-se o envolvimento que Platão tinha com as

disciplinas matemáticas e que, certamente, esboços ou formulações diferentes de

Segundos Analíticos 76b-77a dos primeiros princípios da ciência ou da demonstração segundo a ordem lógica é, em realidade, uma exposição dos primeiros princípios da geometria grega . Tais distinções são retomadas por Euclides em seus Elementos com a diferença que, em Euclides, o postulado é um princípio que não se tem necessidade de definir, enquanto que, em Aristóteles, um postulado deve ser demonstrado na medida em que ele é contrário a opinião daquele que aprende. Também é digno de nota a referência de Proclus sobre a existência, na Academia, de um tratado de elementos da geometria de um certo Theudios onde provavelmente se encontravam essas noções de axioma, de definição, de hipóteses e de postulados formuladas diferentemente. Cf. também Robinson, op. cit. p. 102. 52 apud Baccou, Robert. Introdução e notas à República, Ed. Guarnier, Paris, 1950. p. 456, n. 492. 53 Yvon Lafrance (op., cit., p. 57) nos faz saber que, em nenhum lugar de seus diálogos, Platão utiliza os termos aijvthma (postulado) e ajxivwma (axioma) em um sentido técnico e geométrico, apenas em um sentido puramente literário.

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tais distinções já eram conhecidas em seu tempo54. A particularidade da

concepção platônica dos princípios das disciplinas matemáticas gregas nos parece,

portanto, estar menos num pretenso desconhecimento dessa terminologia e de suas

respectivas distinções e mais numa extensão consciente do uso do termo

“hipóteses” para além das fronteiras estabelecidas nessas mesmas disciplinas55.

Segundo Platão as disciplinas matemáticas só vêem ou conhecem o ser em

sonhos (ojneipwvssw) e que permanecerão assim enquanto considerarem as

hipóteses de que partem como intangíveis por não poderem demonstrá-las ou dar

a razão delas (lovgon didovnai). Mas o que isso significa?

Segundo R.M. Hare, Platão teria concebido as hipóteses em matemática,

não como proposições, mas como coisas ou entidades postuladas (postulated

entities): o par e o impar, as figuras geométricas e as três espécies de ângulos56.

Em sua interpretação, Hare se apóia, por um lado, em duas passagens do Timeu,

onde as hipóteses aí mencionadas podem realmente ser compreendidas como

coisas ou entidades:

(…) O novo começo de nossa descrição do universo exige uma

divisão mais ampla que a anterior. Na primeira distinguimos dois

gêneros; porém agora precisaremos revelar mais um. Para o discurso

anterior, bastavam aqueles: um, postulado (uJpoteqevn) como modelo

(paradeivgmato" eijvdo"), inteligível (nohto;n) e sempre o mesmo; o

segundo, cópia desse modelo (mivmhma de; paradeivgmato" ), visível

(oJratovn) e sujeito ao nascimento(…).

(48e) (…) Todos os triângulos são derivados de dois triângulos com

um ângulo reto e dois agudos. Um desses triângulos tem de cada lado

uma parte do ângulo reto dividido por lados iguais; o outro, partes

desiguais de um ângulo reto divididas por lados desiguais. Essa é a

origem (ajrch;n) que atribuímos (uJpotiqevmeqa) ao fogo e aos demais

54 F.M. Cornford. Mathematics and Dialectic in the Republic VI-VII. p. 63. 55 O que estaria totalmente de acordo com a tradição, em se tratando de Platão, de ser pouco fiel quanto ao que realmente foi dito por seus contemporâneos. Sobre isso, Cornford (La Teoria

Platónica del Conhecimento, Ed. Paidós, Buenos Aires, 1968. p.42.) tece um comentário revelador: “(…) nem Platão, nem Aristóteles fazem história da filosofia: eles mesmos filosofam, e procuram utilizar unicamente os elementos aproveitáveis, sem que lhes seja muito importante de onde provêem. Não devemos supor nunca, como coisa evidente, que a apresentação que fazem das doutrinas de outros filósofos se ajuste (exatamente) à verdade.(…)”.

De onde podemos acrescentar que Platão, no nosso caso, tampouco parece estar preocupado em fazer história da matemática, ou em apresentar testemunhos inequívocos de como os matemáticos contemporâneos definiam os primeiros princípios de suas disciplinas. 56 “The hypotheses here must be things, not proposition … it is impossible for them to be

propositions here” (Plato and the Mathematicians, ds. New Essays on Plato and Aristotle, ed. By R. Bambrough, London, 1963, p.23.) apud. Yvon Lafrance, op., cit.

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corpos, de acordo com o método (to;n lovgon)que concilia a

necessidade com a probabilidade. (…)

(53d).

Hare traduz lovgon didovnai como “dar a definição de” e argumenta que,

como não faz sentido pedir que se dê a definição de proposições, o que Platão

reprovaria no método dos matemáticos era, portanto, o de não fornecerem a

definição das coisas ou das entidades que eles estudavam.

Cornford, ao contrário de Hare, afirma que Platão concebeu as hipóteses em

matemática como proposições e defende uma leitura existencial dessa passagem:

hypotheses are assumptions of the existence of things defined (hipóteses são

suposições da existência de coisas definidas)57. Segundo esse autor, o termo

ujpoqevsei" na República 510c deve ser tomado no mesmo sentido que o toma

Aristóteles no Segundos Analíticos 76b31 – 77a4, ou seja, como suposições que

assumem a existência das coisas definidas58. De forma que o que Platão criticaria

nos matemáticos era assumir a existência do par e do impar e das diversas figuras

e dos diversos ângulos, sem se preocupar em “provar” (lovgon didovnai) essa

existência.

A meio caminho dessas duas leituras e, mutatis mutandis, a igual distância

da verdade, temos a interpretação de Archer-Hind segundo a qual Platão utiliza o

termo ujpoqevsei" em A República 510c-d para indicar proposições definitórias:

(…)The hypothesis is the notion or definition, logos, under which the object to be

explained falls (…)(A hipótese é a noção ou definição, logos, sob a qual o objeto a

57 F.M. Cornford. Mathematics and Dialectic in the Republic VI-VII., ds. Mind (1932), reproduzido no Studies in Plato’s Metaphysics, London – New York, 1965, p. 65. apud Yvon Lafrance (op., cit., p. 59) 58 Neste texto, Aristóteles distingue como princípios da ciência, os axiomas, as definições e as hipóteses. Os axiomas seriam os princípios comuns a várias ciências e seriam primeiros na demonstração, isto é, indemonstráveis (76b 14-15; 71b 26-27). Ele acrescenta que o axioma é uma verdade necessária por ela mesma e que se mostra evidente como tal (76b 23-24). O segundo princípio da ciência seria a definição. As definições não seriam como os axiomas, princípios comuns a várias ciências, mas princípios particulares a cada ciência. A definição seria, por conseqüência, uma tese, isto é, alguma coisa que é posta pelo mestre sem demonstração, e onde se pede simplesmente que se compreenda (72a 21). Entretanto, as definições não se deixariam confundir com as hipóteses: estas constituiriam o terceiro gênero dos princípios da ciência. A diferença estaria no fato de que, enquanto a definição exprimiria o que significam os termos utilizados, a hipótese suporia a existência da coisa quando esta não fosse evidente (76b 35-36;72a 18-21). Deve-se ainda distinguir entre “hipótese” no sentido absoluto do termo e “hipótese” no sentido relativo. Em sentido absoluto, a hipótese suporia a existência da coisa definida, enquanto que, em sentido relativo, a hipótese seria colocada pelo mestre sem demonstração, ainda que sendo demonstrável, a partir do consentimento daquele que aprende. Quando aquele que aprende é de opinião contrária ou não tem opinião, a hipótese relativa é chamada então postulado (76b 27-34).

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ser explicado cai)59. Archer-Hind expressou essa opinião ao analisar uma

passagem do Fédon (100a – 101e) que a maioria dos comentadores considera

como intimamente ligada à passagem de A República 510c, por estar em jogo,

justamente, o método hipotético. Nesse sentido, Archer-Hind parece se inspirar

em Proclus que, em seu comentário aos Elementos de Euclides, identifica as

hipóteses em geometria com definições60.

O maior problema de todas essas interpretações é a sua frágil base textual —

conseqüência, entre outras, da tentativa de explicar a “regra” recorrendo-se a

exceções. No caso de Hare61, por exemplo, as passagens apontadas, onde

hipóteses são consideradas como coisas ou entidades (na primeira o modelo

inteligível e a cópia desse modelo, e na segunda o triângulo como princípio do

fogo) constituem apenas casos isolados face às indicações muito mais numerosas

onde Platão associa o sentido de hipóteses a proposições tomadas como pontos de

partida de uma argumentação e assumidas em prol dessa mesma argumentação62.

De modo que elas não poderiam ser consideradas como indicações seguras de que,

na passagem de A República 509d – 511e, ujpoqevsei" deva ser compreendida

como coisas ou entidades.

Além disso, a tradução de lovgon didovnai por “dar a definição de”, inspirada

na passagem 533c onde Platão também critica os matemáticos por não “darem” o

lovgon de suas hipóteses, se encaixa mal com o contexto geral da passagem da

Linha onde a crítica platônica parece estar mais dirigida ao fato de os matemáticos

não se elevarem das hipóteses até ao primeiro princípio (511a5) e que estas, por

sua vez, só se tornam inteligíveis quando ligadas a esse primeiro princípio

(511d3-4), do que ao fato de os matemáticos não darem a “definição” das coisas

com que se ocupam. Ainda que se leve em conta a notória dificuldade de se

compreender o uso dessa expressão no vocabulário platônico, a passagem do

Fédon 101d7, onde, em pleno contexto geométrico, Platão utiliza a expressão

lovgon didovnai no sentido de “dar conta” de uma hipótese ligando-a a uma

hipótese superior, parece ser decisiva, nesse caso, contra a tese de Hare. E, 59 The Phaedo of Plato, p. 102, n. 8. apud Lafrance, op., cit., p.59 60 Ed. Friedlein, p. 178. apud Lafrance, op., cit., p.82 61 Os argumentos aqui expostos são desenvolvidos notadamente por C.C.W. Taylor em seu artigo Plato and the mathematicians: an examination of professor Hare’s Views e referendados por Yvon Lafrance (op., cit., p. 58). 62 p. ex., Fédon 100b5-7; Parmênides 135e9 – 136e; Protágoras 339d2-3, Eutidemo 11e; Teeteto 183b3-4; Mênon 87d3.

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ademais, como entender que Platão critique os matemáticos por não darem a

“definição” daquilo de que eles se ocupam, se o uso de definições era prática

corrente entre os matemáticos bem antes de Platão63?

A interpretação de Cornford, por sua vez, peca, como argumentam alguns

comentadores64, por estar apoiada na pressuposição, não demonstrada, de que a

concepção aristotélica de hipóteses se identifica à de Platão. Pressuposição que

parece mesmo ir contra o texto platônico, na medida em que uma leitura mais

atenta aponta antes para uma identificação da hipótese platônica com a noção

aristotélica de axioma65. Ainda que se possa encontrar alguns casos onde

ujpoqevsei" são tomadas como proposições existenciais: (…)por aí começarei,

pois, tomando por pressuposto (uJpoqevmeno") a realidade de um Belo, que existe

(eij'naiv) em si e por si mesmo(…)(Fédon 100b5-6) e (…)Desenvolve idêntico

esforço partindo da hipótese (uJpoqh'i) de que a semelhança existe (evjstin) ou não

existe (mh; ejvstin)(…)(Parmênides 136b2-4) nada parece indicar, no entanto, que

esse seja o caso na passagem de A República 510c-d onde o teor da crítica

platônica se concentra, principalmente, no fato de serem, os matemáticos,

incapazes de ligarem suas hipóteses a um princípio primeiro (511a).

A interpretação de Archer-Hind tampouco resiste a uma leitura mais atenta.

Quando Sócrates propõe a Cebes colocar como hipóteses o Belo em si e por si, o

Bem e o Grande, ele tem em vista evidentemente a existência dessas formas

inteligíveis e não as suas definições. Da mesma forma, na descrição do método

hipotético um pouco mais adiante (101d-e) nada é dito que nos autorize a assumir

que uma hipótese seja uma definição. É verdade que podemos encontrar

passagens onde hipóteses são concebidas como definições como, por exemplo,

Eutífron 9d1-8 (definição da ação piedosa), Cármide 163a6-7 (definição da

sabedoria) e Teeteto 165d1 (definição da ciência), mas em todos esses casos as

hipóteses em questão são proposições provisórias que servem de ponto de partida

à discussão socrática, e que serão posteriormente descartadas pela refutação

socrática, e não proposições conhecidas e evidentes para todos como aparece na

passagem de A República que nos ocupa.

63 C.C.W. Taylor. Plato and the mathematicians: an examination of professor Hare’s Views, p. 121; p. Tannery. La Geometrie Greque, p. 108-120. apud Yvon Lafrance (op., cit., p. 59) 64 notadamente Lafrance (op., cit., p. 60) e C.C.W. Taylor (op., cit., p. 199) 65 cf. nota 9

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Evidentemente, não se trata aqui de negar que, absolutamente, Platão não

possa ter pensado as hipóteses em geometria como entidades ou como proposições

existenciais, ou ainda como definições; mas apenas sublinhar que não se pode, a

partir das referências oferecidas, concluir que Platão tinha unicamente em vista,

em A República 510c-d, qualquer uma dessas opções. Mas o que, então, Platão

tinha em vista? Lembremos que o testemunho de Platão, nessa passagem,

restringe-se a afirmar que o que ele considera “hipóteses” são proposições

conhecidas e evidentes para todos e que servem de princípios à geometria e à

matemática. Mas antes de prosseguirmos, façamos uma breve análise da segunda

parte da descrição de Platão do modo de proceder das disciplinas matemáticas na

passagem da Linha dividida.

3.4

O uso de imagens sensíveis pelos matemáticos:

A segunda parte da descrição de Platão sobre o modo de proceder dos

matemáticos refere-se ao uso de imagens sensíveis em seus raciocínios sobre as

realidades supra-sensíveis de que tratam:

Sócrates — Então, sabes também que eles utilizam figuras

visíveis (oJrwmevnoi" eijvdesi) e raciocinam sobre elas pensando

(dianoouvmenoi) não nessas mesmas figuras, mas nos originais que

elas reproduzem. Os seus raciocínios baseiam-se no quadrado em si

mesmo (tou' tetragwvnou aujtou') e na diagonal em si mesma

(diamvtrou aujth'"), e não naquela diagonal que traçam; o mesmo vale

para todas as outras figuras. Todas essas figuras que modelam ou

desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas águas, eles

se utilizam como tantas outras imagens, para tentar ver esses objetos

em si mesmos, que, de outro modo, só podem ser percebidos pelo

pensamento (dianoivai). (510d-e)

A pergunta que imediatamente se coloca é se existiria, ou não, uma conexão

necessária entre as duas características da matemática/diavnoia mencionadas por

Platão: de um lado, a atitude dos matemáticos com relação às hipóteses e o

conseqüente estatuto “hipotético” de seus princípios e, de outro, o recurso a

imagens sensíveis em seus raciocínios sobre as realidades supra-sensíveis de que

tratam. Será que Platão está dizendo que a geometria tem que usar hipóteses como

faz — seguindo um caminho que a leva, não a um princípio (ajrch;n), mas a

conclusão (teleuthvn) — por causa de seu emprego de imagens, ou que tem que

usar imagens por causa do modo como trata as hipóteses — que, tendo

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pressuposto essas coisas (poihsavmenoi ujpoqevsei" aujtav) como se as

conhecessem (wj" eijdovte"), não se dignam a dar a razão (lovgon didovnai) delas

nem a si próprios nem aos outros, considerando (ajxiou'si) que elas são evidentes

para todos (wj" panti; fanerw'n) — ou ambos? Ou será que aqui há apenas uma

ligação casual, acidental, característica da matemática de sua época?

Segundo Burnet66, a existência de uma conexão necessária entre o método

hipotético e o uso de imagens é sugerida pelo fato de “usando as imagens”, na

passagem 510b, estar ligado como um particípio ao uso de hipóteses no verbo

principal:

Na primeira parte desse segmento, a alma, usando as imagens

dos objetos que no segmento precedente eram os originais, é obrigada

a estabelecer suas análises partindo de hipóteses

(hJ'i to; me;n aujtou' toi'" tovte mimhqei'sin wJ" eijkovsin crwmevnh yuch; zhtei'n ajnagkavzetai ejx uJpoqevsewn).

(510b)

Robinson67, no entanto, contesta essa hipótese de Burnet. Segundo

Robinson, o fato de que “usando as imagens” estar ligado como um particípio ao

uso de hipóteses no verbo principal sugeriria uma conexão necessária, entre

“partir” de hipóteses e o recurso a imagens, e não uma conexão meramente

histórica é ilusória. A posição de Robinson é que Platão até pode ter encontrado

algumas conexões entre esse dois aspectos pela razão de que ele via o

procedimento matemático como um tipo distinto de atividade mental (novhsi" X

diavnoia). Mas isso é tudo. Não haveria na República nenhuma declaração que

associe necessariamente o método hipotético e o uso de imagens.

Por outro lado, segundo Robinson68, se, no Fédon (99d-100a), se declara

que o método hipotético não faz uso dos sentidos, isto não significaria, tampouco,

que aquele método “necessita” não usar os sentidos; nada é dito aí sobre haver

uma conexão necessária, ou não, entre esses dois aspectos. Ademais, continua ele,

segundo a passagem que nos ocupa, as matemáticas não são as únicas a usar

hipóteses; a dialética também as usa. E essa é uma das curiosidades dessa

passagem: quando Platão diz que as matemáticas partem de hipóteses

(ejx uJpoqevsewn), ficamos esperando que ele diga que a dialética, ao contrário, não

parte de hipóteses, mas o que ele diz é que também a dialética parte de hipóteses 66 Greek Philosophy, p. 229, apud ROBINSON, R., op. cit., loc. cit. 67 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 155. 68 Ibid. p. 154.

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(ejx uJpoqevsewn). Uma coisa, no entanto, segundo Robinson, é certa: a dialética

não recorre a imagens.

Robinson69 defende que o mais provável é supor que Platão conectou o

procedimento geométrico ao uso de imagens não porque os geômetras partem de

hipóteses, mas porque eles “falham” ao usar o método hipotético. A perspectiva

de Platão, segundo Robinson, era de que os geômetras tomavam seus princípios

como certos e evidentes quando deveriam tomá-los como hipóteses, que é o que

eles são, embora o geômetra não reconheça isso. Platão desconfiava que o que

fazia os matemáticos tão convencidos de suas hipóteses era que elas pareciam ser

dadas diretamente em intuição sensível. E essa passagem seria uma crítica,

portanto, para que não se confundisse a tendência à intuição do espaço com a

reivindicação de que aqueles postulados são “certezas”. Segundo Robinson70, os

contemporâneos de Platão aceitavam ambos. Platão e o século XX rejeitam

ambos.

Entretanto, nos parece que a passagem que nos ocupa está mais para uma

descrição esquemática do método dos geômetras do que para uma “crítica” desse

mesmo método. De modo que, apesar de concordarmos, em suas linhas gerais,

com os argumentos de Robinson, devemos tentar esclarecer melhor em que

sentido podemos entender esse porque eles falham ao usar o método hipotético71.

Se compararmos com a análise de Suzanne Mansion72, essa “falha” no uso

do método hipotético parece dever-se menos a um pretenso “mau” uso do método

hipotético e estaria relacionada muito mais com a própria natureza dos objetos

matemáticos. Partindo do pressuposto de que, assim como foi o caso para o

segmento do sensível, a divisão em dois subsegmentos no inteligível também é

fundada sobre a natureza mesma de seus respectivos objetos73, Mansion defende

que as duas características da matemática mencionadas estão intimamente

relacionadas e que as figuras traçadas pelo geômetra possuem um papel crucial na

demonstração de suas hipóteses. Haveria casos, p. ex., em que a demonstração só

69Loc. cit. 70 op. cit. p. 156. 71 “A much more problabe suggestion is that Plato is connecting geometry’s use of the senses not with its use of hypothetical method but with its failure to use the hypothetical method” (op., cit., p.155) 72 L’objet des mathématiques et l’objet de la dialectique selon Platon, in La Revue philosophique de Louvain 67 (1969) 365-388. 73

op. cit. p.366

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é possível com a ajuda de uma construção, isto é, linhas, ângulos e figuras que se

acrescenta à figura de que se partiu74. De modo que o papel das imagens em

geometria iria muito além de um mero auxílio à razão por intermédio da

imaginação, e isto nem tanto pela sua condição de objetos materiais individuais,

mas porque elas representam os verdadeiros objetos da geometria: o triângulo ou

o quadrado enquanto tais.

Segundo Mansion, essa distinção é perfeitamente familiar aos geômetras.

Qualquer geômetra sabe muito bem que a exatidão com que ele traça suas figuras

não tem nenhuma importância desde que ele permaneça de acordo com a hipótese

colocada no início. Por outro lado, ele sabe também que ele não encontrará a

solução de seu problema a menos que ele descubra a construção a ser feita; esta,

por sua vez, deve ser uma construção que se justifique geometricamente, que deve

estar de acordo com as definições, axiomas e postulados de que a geometria parte

e que lhe fornecerão o intermediário necessário ao seu raciocínio para chegar à

conclusão.

A interpretação de Mansion nos coloca diante do já mencionado problema

sobre as famosas entidades matemáticas intermediárias citadas por Aristóteles em

Metafísica A6. Afinal, teria, ou não, Platão concebido as entidades matemáticas

como nohta; intermediários?

Não iremos aqui nos envolver diretamente com essa questão, uma vez que

ela excede largamente ao escopo desse trabalho. Entretanto, gostaríamos de fazer

algumas considerações, inspiradas por Mansion, e no sentido de complementar o

que foi dito até aqui, que talvez mostrem que tal concepção, em se tratando de

Platão, não é tão tola assim75.

A questão que imediatamente se coloca é por que Platão alinha as noções

matemáticas numa classe diferente daquela das Idéias puras? Alguns

comentadores76 sustentam que tal distinção se deve somente a uma diferença entre

os respectivos métodos e não a uma diferença entre a natureza dessas entidades. E,

de fato, enquanto Platão faz claramente uma distinção entre a natureza das coisas

74 op. cit. p.368 – 369. 75 É o que pensa Shorey (Plato, The Republic with na English Translation by Paul Shorey, The Loeb Classical Library, Cambridge, Massachusetts, vol. II, p. 164, note a.). apud. Mansion, op.,

cit. 76 P. ex., Lafrance (op., cit., p. 78);

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54

que compõem os dois subsegmentos do âmbito sensível, o mesmo parece não

ocorrer no âmbito do inteligível, onde Sócrates não é claro sobre se há diferença

entre os objetos correspondentes a cada subsegmento. Tudo que é dito aí é que

existe uma diferença nos procedimentos cognitivos envolvidos em cada um deles.

Por outro lado, a crítica de Platão quanto aos matemáticos, de serem incapazes de

ligar suas hipóteses a um princípio primeiro, sugere que a única coisa que falta ao

conhecimento matemático para se tornar verdadeiramente ejpisthvmh é um

fundamento independente, que não seja ele mesmo hipotético (ajnupovqeto"). De

maneira que, as matemáticas pareceriam pertencer ao âmbito da diavnoia, apenas

por causa de seu lado “prático”.

Apesar de considerarmos salutar o zelo de tentar não se ir além do que diz a

letra platônica, consideramos, no entanto, que essa explicação não é inteiramente

convincente na medida em que não são apenas as hipóteses matemáticas que

devem buscar confirmação em um princípio superior não hipotético, as hipóteses

de que parte o dialético também devem buscar a mesma confirmação. De forma

que não se vê, a partir daí, por que Platão teria alinhado as hipóteses do

matemático em uma classe inferior.

Se, então, Platão divide o mundo inteligível em duas seções, é porque, para

ele, os nohta; inferiores são claramente distintos dos nohta; superiores. Há um

outro aspecto do testemunho de Platão sobre as matemáticas que talvez nos ajude

a entender melhor em que sentido se funda tal distinção: as chamadas antinomias

matemáticas e geométricas. De acordo com a interpretação de Cherniss77 da

Teoria das Idéias, temos que a sua principal inspiração (da Teoria das Idéias) é

permitir ao espírito escapar às contradições inerentes ao âmbito sensível. A

questão é que essas contradições podem ser encontradas igualmente no âmbito das

entidades matemáticas e geométricas como nos mostram as passagens de A

República 523e – 525b e Fédon 96e. E queremos crer que a causa disso é que os

objetos matemáticos, ainda que indubitavelmente distintos do objetos sensíveis,

possuem, contudo, uma certa natureza espacial ou, ao menos, quantitativa que,

assim como ocorre no sensível, é um obstáculo para a sua plena inteligibilidade.

Natureza essa que confere algo de paradoxal a esses objetos e que forçariam o

espírito a procurar seu fundamento num plano superior, puramente lógico. Sendo

77 op., cit.

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assim, poderíamos dizer que as noções matemáticas como que guardam um “pé”

no sensível e outro no inteligível, isto é, que elas não são idéias puras, mas

imagens dessas idéias misturadas à representações sensíveis, o que configuraria,

senão entidades intermediárias, ao menos, noções algo mistas.

Daí a necessidade dos matemáticos, nas suas hipóteses, de recorrerem a

imagens sensíveis em seu raciocínio sobre as realidades supra sensíveis de que

tratam: como as relações entre as noções matemáticas são também de ordem

espacial ou quantitativa e não apenas lógicas, o matemático, na demonstração de

suas hipóteses, tem que se apoiar não apenas em seu rigor dedutivo, mas também

em imagens que complementariam essa mesma dedução78.

78 Mansion, op., cit., p. 370

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4 Conhecimento na República.

4.1 A noção de Conhecimento do Livro X (601b – 602b)

Se, por um lado, os matemáticos são criticados por Platão por não serem

capazes de dar a razão (l ovgon dido vn a i) dos hipóteses principais de suas

disciplinas, por outro, o dialético/filósofo é apresentado, justamente, como aquele

capaz disso, na medida em que, em seu modo de proceder, trata suas hipóteses não

como princípios (ajrca v") de uma dedução, mas realmente como hipóteses, isto é,

como pontos de partida ou de apoio para, no sentido inverso, remontar em

direção, não mais a algo simplesmente suposto, mas ao princípio mesmo de tudo

(pa n t o;" a jrch ;n), o princípio não-hipotético (ajr ch ;n a jn u povqet o n). E é isso que faz

da dialética a única a poder ostentar legitimamente o título de conhecimento ou

ciência (ejpis th v mh) (533b – 534a).

Existe, portanto, uma estreita relação entre a noção de ciência (ejpis t h vmh) e

a capacidade de dar a razão (l ovgon did ovn a i) entendida aqui como a capacidade

de fundar proposições hipotéticas em um princípio não hipotético. Aquele que

conhece, ou seja, quem detém uma ciência, é capaz estabelecer os nexos causais

entre as hipóteses de que parte em suas pesquisas e um princípio considerado

como não hipotético.

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Nesse sentido, essa noção de conhecimento pode ser aproximada das

descrições encontradas no Ménon 97 -98 e no Teeteto 200-201, onde conhecer ou

a ter a ciência de algo é mais do que o simples fato de ter razão, ou de possuir

uma opinião verdadeira. O Teeteto, por exemplo, sugere que conhecimento

poderia ser a “opinião verdadeira acompanhada de Justificação (l ovgo"):

Teeteto ― Sobre isso, Sócrates, esquecera-me o que vi alguém

dizer; porém agora volto a recordar-me. Disse essa pessoa que

conhecimento é opinião verdadeira acompanhada da explicação racional, e

que sem esta deixava de ser conhecimento. As coisas que não encontram

explicações não podem ser conhecidas ― era como ele se expressava ―

sendo, ao revés disso, objeto do conhecimento todas as que podem ser

explicadas.

Sócrates― Falas muito bem. Porém dize-me como ele distingue as

conhecidas das que não são, para vermos se eu e tu ouvimos a mesma

cantiga.

Teeteto ― Não sei se poderei recordar-me; porém se alguém fizer

essa exposição, penso

que me será fácil acompanhá-lo.

Sócrates― Então, que vá um sonho em troca de outro. Eu também,

parece-me ter ouvido de certa pessoa que os denominados elementos

primitivos de que somos compostos, como tudo o mais, não admitem

explicação. A cada um só poderás dar nome, sem nada mais acrescentar,

nem que é nem que não é, pois isso já implicaria atribuir-lhe existência ou

não-existência, o que não seria lícito, se quiseres falar dele, apenas dele.

Como também não devemos determiná-los com expressões como: Mesmo,

Aquilo, Cada um, ou: Só, Isto e muitas outras do mesmo tipo. Porque

semelhantes determinações circulam por tudo e em tudo aderem, sendo

diferentes das coisas a que se juntam, quando o importante para aqueles

elementos, no caso de nos ser possível defini-los e de comportar cada um

sua explicação particular, seria serem enunciados à parte de tudo, sem

acréscimo de qualquer natureza. A verdade, em suma, é que nenhum desses

elementos admite explicação; só podem ser nomeados; é só o que tem:

nome. Diferentemente se passa com os compostos desses elementos: por

serem complexos, são expressos por uma combinação de nomes, pois a

essência da definição consiste numa combinação de nomes. A esse modo, as

letras são inexplicáveis e desconhecidas, porém percebidas pelos sentidos,

ao passo que as sílabas são conhecíveis, explicáveis e podem ser objeto da

opinião verdadeira. Por isso, quando alguém forma opinião verdadeira de

qualquer objeto, sem a racional explicação, fica sua alma de posse da

verdade a respeito desse objeto, porém sem conhecê-lo. Pois quem não sabe

nem dar nem receber explicação de alguma coisa, carece do conhecimento

dessa coisa; porém se a essa opinião acrescentar a explicação racional,

então ficará perfeito em matéria de conhecimento. Foi isso que ouviste em

sonhos, ou foi coisa diferente?

E o Ménon, que o fato de dispor do “raciocínio causal” poderia tornar a

opinião verdadeira suficientemente estável para que ela seja assimilada ao

conhecimento:

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Mas a que propósito digo essas coisas? A propósito das opiniões

que são verdadeiras. Pois também as opiniões que são verdadeiras, por

tanto tempo quanto permaneçam, são uma bela coisa e produzem todos os

bens. Só que não se dispõe a ficar muito tempo, mas fogem da alma do

homem, de modo que não são de muito valor, até que alguém as encadeie

por um cálculo de causa. E isso, amigo Mênon, é a reminiscência, como foi

acordado entre nós nas coisas ditas anteriormente. E quando são

encadeadas, em primeiro lugar, tornam-se ciências, em segundo lugar

estáveis. E é por isso que a ciência é de mais valor que a opinião correta, e

é pelo encadeamento que a ciência difere da opinião correta.

(97e – 98a).

Em ambos os Diálogos, o conhecimento é considerado uma perfeição da

opinião verdadeira. Os dois textos põem em relevo noções que hoje nós

traduziríamos por explicação ou algo do gênero. Segundo alguns comentadores79,

Platão em nenhum dos dois Diálogos consegue dar conta adequadamente da

noção de conhecimento e que essa noção, na verdade, se assemelha duplamente às

teorias modernas que, por um lado, representam o conhecimento como uma

opinião verdadeira acompanhada de uma justificação ou de um correto

encadeamento causal sobre o objeto de conhecimento e, por outro, supõem

igualmente que o estado resultante desse aperfeiçoamento é uma espécie de

aprimoramento em relação exatamente às mesmas coisas as quais, anteriormente,

o sujeito do conhecimento possuía apenas opinião.

A República aborda a questão tema em duas ocasiões. A primeira no Livro

V (474b – 480a) e a segunda no Livro X (601b – 602b). Começaremos pela

segunda já que a noção desenvolvida nela se assemelha mais com as noções

encontradas no Mênon e no Teeteto e nos permite aprofundar o que foi dito até

aqui. No Livro X (601b – 602b) a distinção entre conhecimento e opinião

verdadeira é elucidada por meio de uma referência à fabricação e ao uso de um

artefato: para tudo que pode ser fabricado ou utilizado, as competências

necessárias à fabricação serão diferentes daquelas necessárias à utilização. Aquele

que fabrica tem opiniões verdadeiras sobre a confecção das coisas que fabrica,

mas apenas aqueles que utilizam as coisas possuem o conhecimento dessas

mesmas coisas, pois somente eles possuem a experiência das qualidades que

tornam uma coisa boa ou não para o uso apropriado. O conhecimento que possui o

utilizador do que torna uma coisa boa ou má para o uso apropriado é a fonte das

opiniões verdadeiras que o fabricante possui sobre a maneira de fabricá-la.

79 Cf. ANNAS, Julia. Introduction à la Republique de Platon, PUF, Paris, 1994; p. 244.

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Sócrates ― Há três artes (t e vc na") que correspondem a cada

objeto: as do uso (c ph so mevn hn), da fabricação (po i hvs ousa n) e da imitação

(mim hso m evn hn). Glauco ― Sim, há. Sócrates― Mas qual será o objetivo da

virtude, da beleza, da perfeição de um móvel, de um animal, de uma ação,

senão o uso (c pe i va n), com vista ao qual cada coisa é feita, quer pela

natureza, quer pelo homem? Glauco ― Não será nenhum outro. Sócrates ― Em sendo assim, é forçoso que aquele que utiliza uma coisa seja mais

experimentado (ejm pe ipo vta to vn) e informe (gi vgne sqa i) o fabricante das

qualidades e defeitos da sua obra, baseado no uso que faz dela. Por

exemplo, o tocador de flauta informará o fabricante acerca das flautas que

poderão servir-lhe para tocar; dir-lhe-á como deve fazê-las, e aquele

obedecerá. Glauco ― Indubitavelmente. Sócrates ― Portanto, o que

conhece vai se pronunciar sobre as flautas boas e más, e o outro trabalhará

confiando nele. Glauco ― Certamente. Sócrates ― Assim, em relação ao

mesmo instrumento, o fabricante tem, acerca da sua perfeição ou

imperfeição, uma fé que será exata (pi vs tin ojr qhn)80

porque está em ligação

com aquele que sabe e é obrigado a ouvir as suas opiniões, mas é quem

utiliza quem tem a ciência (o J de ; c pwvm e no" ejpis t hvm hn). Glauco ― Perfeito. Sócrates ― Mas o imitador estará na posse do uso da ciência das

coisas que representa, saberá se elas são belas e corretas ou não, ou terá

delas uma opinião opinião verdadeira (dÒxan Ñrq¾n) porque será obrigado

a conviver com aquele que sabe e a receber as suas instruções, quanto à

maneira de representá-las? Glauco ― Nem uma coisa nem outra.Sócrates ― O imitador não tem, portanto, nem ciência (e i jvse ta i) nem opinião

verdadeira (o jr qa; do xavs e i) no que diz respeito à beleza e aos defeitos das

coisas que imita?

(601d – 602a)

Ainda que não pretenda dar uma definição geral de conhecimento, o tema é

tratado en passant no contexto de uma argumentação em favor da condenação da

poesia estabelecida no Livro III, a passagem nos permite discernir os princípios

mais gerais sobre os quais se apóia a Platão:

― Diferentemente da opinião verdadeira que é, ou pode ser, de segunda

mão, o conhecimento se apóia em uma experiência que é, num certo sentido,

direta.

― O conhecimento permite a possibilidade de formular claramente o que é

o objeto conhecido, e as razões pelas as quais ele é como ele é; isso implica que se

saiba o que permite dar a razão de seu aspecto bom ou mau. A opinião verdadeira

não precisa de nada disso.

O conhecimento é visto, portanto, como um aperfeiçoamento da opinião

verdadeira. Essa noção, como dissemos, se assemelha às noções que encontramos

80 A pivs t i" oj rq h v que se liga à o jrq h v d ovxa, vem, na escala do conhecimento, imediatamente após a d ia vno ia. A imitação e, de uma maneira geral, a arte na medida em que ela é imitativa, surge dessa potência da alma que Platão chama de ei kas iva.

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no Ménon 97 -98 e no Teeteto 200-201. Entretanto, existem diferenças

importantes que distinguem a visão platônica da noção moderna81. Platão não dá

nenhuma importância a algumas das distinções as quais as análises modernas dão

muito peso, como p.ex., saber que, saber como, e conhecer alguma coisa. Para

ele, saber (e pôr em prática) certas verdades sobre o uso da flauta é apenas uma

parte do fato de saber como usar a flauta, o todo sendo considerado como “possuir

o conhecimento da flauta” Se existe uma entre as nossas expressões idiomáticas

concernindo o “conhecimento” que responde às preocupações de Platão, essa é

“saber o que”. Para Platão, o conhecimento está associado com o fato de saber o

que é uma coisa, de conhecer suas propriedades essenciais:

Pelo menos, há um ponto que, creio, ninguém contestará: além dos

métodos que acabamos de examinar, existe outro, que procura apreender

cientificamente a essência de cada coisa. As demais artes ocupam-se apenas

dos desejos dos homens e dos seus gostos e estão voltadas por inteiro para a

produção e a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais.

Quanto aos que fazem parte da exceção e que, como dissemos, apreendem

algo da essência, a geometria e as artes que lhe são afins, vemos que só

conhecem o Ser por sonhos e que lhes será impossível ter dele uma visão

real enquanto considerarem intangíveis as hipóteses que não os tocam, pois

que vêem-se impossibilitados de explicar o motivo. Na verdade, quando se

toma por princípio algo que não se conhece e as conclusões e as

proposições intermediárias se compõem de elementos desconhecidos,

poderá semelhante raciocínio se tornar uma ciência? (533b-c)

Ocorre o mesmo com o Bem. Dize-me, Glauco: um homem que não

pode compreender a idéia do Bem, separando-a de todas as demais idéias,

e, como num combate, abrir caminho a despeito de todas as objeções,

esforçando-se por vencer as suas provas, não na aparência, mas na

essência; que não possa transpor todos esses obstáculos pela força de uma

lógica infalível, que não conhece nem o bem em si mesmo nem nenhum

outro bem, mas que, se apreende alguma imagem do bem, é pela opinião, e

não pela ciência, que o apreende: não dirás tu que ele passa a vida presente

em estado de sonho e sonolência e que, antes de despertar neste mundo, irá

para o Hades dormir o último sono? (534b-d)

Mas a principal diferença entre a concepção platônica e a tradição pós-

cartesiana é que o gênero de aperfeiçoamento visado por Platão não tem nada a

ver com o aumento de certeza ou de supressão da dúvida. As opiniões do

fabricante são verdadeiras e, dentro de seus limites, bastante convenientes; Platão

jamais sugere que elas poderiam ser falsas ou que nós deveríamos pô-las em

81 Cf. Annas, op. cit. p.. 246 – 275; Robinson, Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 146 - 179

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dúvida. Se o estado do utilizador é melhor do que aquele do fabricante, não é

porque o primeiro tenha mais certeza do que quer que seja; mas porque ele tem

uma compreensão do seu objeto e do seu conteúdo que o segundo não tem. Se as

opiniões do fabricante são inferiores, não é porque elas sejam falsas ou possam

ser; mas porque elas procedem de um estado que não possui nenhuma

compreensão das razões pelas quais elas são verdadeiras, e não pode dar delas

qualquer explicação. E, de fato, algumas delas poderiam ser falsas, pelo o que o

fabricante sabe delas, mesmo que elas não sejam de uma natureza tal que ele ou

nós mesmos possamos as pôr em dúvida.

Desse modo, é a compreensão, e não a certeza, a marca do conhecimento e

aquilo que o distingue opinião verdadeira. Alguém que possui o conhecimento

não se opõe ao cético, mas àquele que, para fins práticos, retoma de segunda mão,

e de uma maneira irrefletida, as opiniões verdadeiras.

A outra ocasião onde Platão tenta responder ao problema da distinção entre

conhecimento e opinião verdadeira se dá no Livro V (474b – 480a) onde a

questão é analisada de forma mais complexa e mais longa. Passemos a ela.

4.2

República 474b – 480a : a diferença entre aquele que sonha e aquele

que está desperto.

A descrição da cidade ideal desenvolvida nos livros II, III e IV de A

República chega ao final do livro V a um impasse. Sócrates, intimado por Glauco,

hesita em demonstrar de que maneira e em que condições a cidade justa e feliz é

realizável:

Glauco (…)Mas, parece-me, Sócrates, que se te deixamos

prosseguir, nunca mais te lembrarás do assunto que puseste de parte para

entrares em todas essas considerações, isto é, se semelhante governo é

possível e como é possível. (…) Porém, dado que estou de acordo contigo

em que terão todas essa vantagens e muitas outras, se esse governo for

instituído, deixa de me falar dele. Procuremos antes convencer-nos de que

uma tal cidade é possível, de que maneira é possível, e deixemos de lado

todas as outras questões.

(471c-d)

A razão dessa hesitação, explica o próprio Sócrates, é o receio de parecer

ridículo por conta do paradoxo a que a sua proposta leva. No mais, lembra,

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aumentando o suspense, o objetivo inicial da investigação era estabelecer o que é

a justiça em si mesma e o que seria o homem inteiramente justo e não demonstrar

a possibilidade de existência desses modelos. Mesmo porque, observa, um

possível fracasso de tal demonstração não diminuiria em nada o valor do que foi

estabelecido82, e, além disso, uma vez que, por natureza, discurso e ação não são

jamais plenamente redutíveis, não se poderá exigir, portanto, mais do que uma

demonstração apenas aproximada (473a-b) do plano traçado.

Estando, desse modo, estabelecidos os horizontes da expectativa em torno

de tal demonstração, Sócrates começa, então, a expor o que ele tem em mente.

Sócrates aponta ser necessário apenas uma mudança para que seu projeto possa

ser efetivado: que a cidade ideal seja governada por filósofos, ou que os

governantes tenham formação filosófica, em outras palavras, a convergência, num

mesmo indivíduo, de duas esferas o poder político e a filosofia:

Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que

hoje denominas reis e soberanos não se tornarem verdadeira e seriamente

filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num

mesmo indivíduo, (…)na terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades,

nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós

descrevemos será edificada.

(473 e-d) Como Sócrates previa, seu enunciado causa surpresa e Glauco não resiste e

provoca Sócrates dizendo de que, de fato, diante de proposta tão contrária à

opinião do senso comum, Sócrates corre mesmo um grande risco de ser

ridicularizado pela multidão, a menos que consiga provar que as coisas são

realmente como ele diz.

Sócrates responde que o paradoxo se constitui em razão de uma percepção

equivocada, por parte do senso comum, da figura do filósofo. Sendo assim, torna-

se necessário, primeiro, distinguir a natureza daqueles que são filósofos para que

se entenda porque convém a eles governar a cidade. A discussão sobre esse ponto

se dividirá em dois momentos, cada qual com uma finalidade específica: o

primeiro, que se desenvolve logo em seguida, estabelece a diferença entre os

filósofos e os não filósofos; o segundo, que começa no início do Livro VI, consiste

numa descrição do filósofo e da sua alma.

82 Julgas, então, que o que dissemos seria menos bem dito se fôssemos incapazes de provar que

se pode edificar uma cidade com base nesse modelo? Certamente que não. (472e)

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No que diz respeito ao primeiro momento, a diferença entre os filósofos e os

não filósofos será estabelecida em relação à determinação do objeto de

conhecimento próprio ao filósofo. Sócrates começa definindo o filósofo como

aquele que deseja (ejpi qu mh t ik ov") a sabedoria (s of iva "), não apenas essa ou

aquela parte, mas a totalidade (pa vs h "). Entretanto, Sócrates não explica em que

consistem as diversas partes dessa totalidade, limitando-se, simplesmente, em

identificá-las a todas as ciências (pa n t o;" ma qh v mat o ", 475c1, c7)83. Descrita

dessa forma, a sabedoria filosófica aparece aqui meramente como uma reunião de

saberes. O f il ovs of on é identificado com o f il o ma qh '84.

Glauco então observa que essa definição geral nos obriga a alinhar entre os

filósofos todos aqueles que amam os espetáculos, os f il o qeavmon e", pelo prazer

(ca ivron t e") que demonstram em aprender (k a t ama n qa vn e in). Inclusive os

desejosos em ouvir, os f il h vk ooi que correm às festas dionisíacas e todos aqueles

que demonstram entusiasmo em aprender semelhantes coisas (ma q h ti k ou;") e que

estudam as artes inferiores (t ecn u d rivon).

A observação de Glauco obriga Sócrates a especializar a sua definição: só

são filósofos aqueles que amam o espetáculo da verdade85, os

t h '" a jl h qeiva " f il oqea vm on a ". Os outros apenas parecem aos filósofos, mas não o

são.

O que distingue os verdadeiramente filósofos daqueles que apenas parecem

filósofos, os amantes de espetáculos (f il oq ea vmo n a"), os amantes das artes

(f il ot e vcn o u ") e os homens práticos (pra k t ik o uv"), é que enquanto a curiosidade

dos últimos se esgota na contemplação dos múltiplos belos que se encontram nas

ações, nos sons, nas cores e nas figuras sensíveis, os primeiros buscam contemplar

o Belo em si mesmo (a u jt ou' t ou ' k a l ou'). No primeiro caso, o pensamento

(diavn oia) é incapaz de ver (ijde i'n) e acolher amorosamente a natureza desse Belo

em si mesmo.

83 Cf. Laches 182d: — É difícil, Nícias, dizer, de uma ciência (m aqh vm aq t o ") qualquer, que não se

deve aprende-la; caso me parece que existe vantagens em tudo conhecer (pav nt a ej pi vs t a s q ai). 84 Cf. Fédon 82c-e: E quanto à espécie divina, absolutamente ninguém, se não filosofou, se daqui

partiu sem estar totalmente purificado, ninguém tem o direito de atingi-la, a não ser unicamente

aquele que é amigo do saber (filo m aq ei') e 82d-e: Vou dizer-te. É uma coisa bem conhecida dos

amigos do saber(fi lo m aq ei' ") 85 Cf. Fédon 66b-c: E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que

tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos

completamente o objeto de nossos desejos(ejpiq um o u'm e n)! Ora, esse objeto é, como dizíamos, a

verdade (a j lh q ev "). E, sobretudo, 84a-b: [a alma do filósofo] toma o verdadeiro (a j lh q ev "), o divino

(q ei 'on), o que escapa à opinião (ajdo v xas t on), por espetáculo (q ewm ev nh) e também por elemento.

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Nesse sentido, face àquele que é capaz de se elevar até o Belo em si mesmo

e de ver a sua essência, o falso filósofo, o que conhece as belas coisas, mas

desconhece a Beleza em si mesma, parece, antes, sonhar86 do que viver a

realidade: sonhar (ojv eirw vt t ein) não é, quer se esteja dormindo, quer acordado,

tomar a aparência de uma coisa pela própria coisa

(t o; o Jvmo iovn t w i mh ; oJvmo i on a jl l ja ujt o;

h Jgh 't ai e i\n a i w |i ejvo ik en)?87

O filósofo, ao contrário, na medida em que crê que no Belo em si

(hJgou vmen ov" t ev t i au jto ; k a l o;n) e que pode contemplá-lo (du n avmen o" k aq ora 'n)

em si mesmo (au jt o;) e nos objetos que dele participam, não tomando nunca as

coisas belas pelo Belo nem o Belo pelas coisas belas, vive acordado. Seu

86 Ver tb.: Banquete 175 d-e: (…) Seria bom Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do

mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a água dos copos

cheios que pelo fio de lã escorre do mais cheio ao mais vazio. Se é assim também a sabedoria,

muito aprecio reclinar-me ao teu lado, pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela

sabedoria. A minha seria um tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho (ojvnar),

enquanto que a tua é brilhante e muito desenvolvida (…). Teeteto 157e-158a-d: (…)Nesse caso, será preciso completar o estudo do que ficou por explicar.

Ainda não falamos dos sonhos(no vs o w n), das doenças em geral e, particularmente, da loucura nem

das alterações da vista, as do ouvido e das demais sensações. Como bem sabes, a opinião

unânime é que todos esses casos concorrem para refutar a doutrina exposta agora mesmo, visto se

revelarem de todo o ponto falsas em tais casos nossas sensações, e muito longe de serem as coisas

como se nos afiguram, nada, pelo contrário, existe tal como nos aparece. Teeteto — Só dizes a

verdade, Sócrates. Sócrates — Se é assim, meu filho, que novo argumento poderá aduzir quem diz

que a sensação é conhecimento e que o que parece a cada um de nós é para todos precisamente

como parece ser? Teeteto — Sinto-me acanhado, Sócrates, de declarar que não sei como

responder, pois há pouco me repreendeste por eu ter dito isso mesmo. Mas, para dizer a verdade,

não poderei contestar que os loucos e os sonhadores(o j neirwvt t o nt e") não formam, de fato,

opiniões falsas, como no caso de se imaginarem deuses os primeiros, ou de pensarem

(di anow 'nt ai) os outros, durante o sonho, que têm asas e que podem voar. Sócrates — E não te

ocorre, também, outra objeção no que respeita ao sono e à vigília(p eri; t o u' oj vna r t e ka i; ujvpa r)?

Teeteto — Qual? Sócrates — A que, a meu ver, já deves ter ouvido com freqüência, sobre o

argumento decisivo que poderias apresentar a quem perguntasse de improviso se neste momento

não estamos dormindo (kaq e uvdo m en) e se não é sonho tudo o que pensamos

(ka i; pa vnt a a} d ia no o uvm eq a o j nei rwvt t o m en), ou se estamos realmente acordados e entretidos a

conversar? Teeteto — Em verdade, Sócrates, sinto-me indeciso na escolha do argumento, pois em

ambos os estados tudo se passa exatamente do mesmo modo. Nada impede de admitir que o que

acabamos de conversar tivesse sido dito em sonhos; e quando imaginamos em sonhos contar que

sonhamos, é admirável a semelhança com o que se passa no estado de vigília. Sócrates — Como

vês, não é difícil suscitar controvérsia nesse terreno, pois é possível duvidar até mesmo se estamos

acordados ou dormindo. Além do mais, como é igual o tempo que dedicamos ao sono e o que

passamos acordados, em ambos os estados sustenta nossa alma que são absolutamente

verdadeiras as noções do momento presente, de sorte que numa metade do tempo batemo-nos pela

veracidade de determinadas noções, e na outra metade pela de noções em todo o ponto diferentes,

mas em ambos os casos com igual convicção. Teeteto — Perfeitamente. Sócrates — E outro tanto

não se dá com as doenças e a loucura, se excluirmos a duração, que não é a mesma? 87 Em sonho, luzes e reflexos se confundem; as múltiplas imagens que a imaginação nos apresenta tornam-se assim realidades. Cf. Heráclito (Diels: Vors. I, frgt. 89 [Plut. De superst. 3, p. 106c]: JHpa vc l ei t o " f us i ; t o i'" ej grh g oro vs i n ejv na cai ; coi no ; n co vs m o n eij' nai , t w'n d ev co im wm ev n wn eJvcas t o n ei j " ij vd io n ajp o t revf es qa i. “Para os homens despertos não existe, segundo Heráclito, que um

só e mesmo mundo; mas adormecido, cada um volta-se para um mundo particular”.

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pensamento (d iavn oia n) tem todo o direito de ser chamado conhecimento, posto

que conhece, (gign w vs k on t o" gn wvmh n) enquanto que o pensamento do falso

filósofo, na medida em que julga sobre aparências e não conhece

(dox a vzein a jl l jou j gign w vs k ein), é apenas opinião (dovx a).

Conhecimento e opinião são descritos como potências ou faculdades

(du vn a mi") distintas entre si, definidas por Platão como o poder através do qual nós

realizamos as operações que nos são próprias, tal como a visão e a audição.

Enquanto potências, não se deixam diferenciar nem pela cor, nem pela forma, ou

por qualquer atributo desse gênero, o que diferencia uma da outra são os

respectivos objetos aos quais elas se aplicam e os efeitos causados por elas.

Quem conhece, conhece alguma coisa que “é”. Tudo o que “é” plenamente

(pa n t el w '") pode ser plenamente conhecido (pa n t el w'" gn w s t ovn). Esse

conhecimento “pleno” é chamado ciência (ejpis t h vmh) e se opõe à ignorância

(a[gn oia) que tem como objeto o que não é, o não-ser. Como não é nem

conhecimento, nem ignorância, uma vez que seu objeto não é nem o ser, nem o

não-ser, a opinião deve ser algo intermediário (met a x uv) entre o conhecimento e a

ignorância e seu objeto algo intermediário (met a x uv) entre o ser e não-ser. A

opinião é então definida como a potência que nos permite julgar sobre as

aparências (477e) e se distinguiria da ciência por essa ser infalível, enquanto que a

opinião não, e o seu objeto seria a multiplicidade do mundo sensível.

A forma de Platão abordar a distinção entre conhecimento e opinião do

Livro V difere da do Livro X em dois aspectos:

Em primeiro lugar, o Livro X supõe que se tem clareza sobre o que é a

opinião verdadeira e se procura, a partir daí, a maneira de aperfeiçoá-la para que

se torne conhecimento. O Livro V, ao contrário, parte de intuições sobre o

conhecimento e é a opinião verdadeira que aparece como problemática. Segundo

Annas (p. 246), com isso Platão tenta evitar as persistentes dificuldades que

acompanham as tentativas de se definir o conhecimento como uma opinião

verdadeira aperfeiçoada, pois, é sempre possível construir exemplos que

correspondam às definições, mas que se oponham às nossas intuições sobre o

conhecimento, as quais parecem mais dignas de fé do que as definições.

Em segundo lugar, enquanto que uma descrição do conhecimento como

“aperfeiçoamento da opinião verdadeira” procura melhorar a relação do sujeito

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cognoscente com os objetos de sua opinião verdadeira, o Livro V estabelece que

os objetos da opinião verdadeira são distintos daqueles do conhecimento.

Segundo Platão, “quem conhece, conhece alguma coisa que é”. Essa

fórmula, à primeira vista, pode parecer um truísmo, mas na verdade envolve

algumas dificuldades. O termo utilizado por Platão é ei\n a i e, em grego, dizer que

uma coisa “é” tanto pode significar que essa coisa existe quanto que ela é

verdadeira ou ainda que ela é tal ou tal coisa. A plena compreensão da

argumentação de Platão sobre a questão do conhecimento nessa passagem

depende de que possamos determinar claramente qual dessas acepções é a visada

por Platão aqui.

A interpretação de e i\n a i no sentido de “existência” não resiste a uma análise

mais detalhada. Primeiro, por que a idéia de que só o que existe pode ser

conhecido dá margens a muitas controvérsias88. Segundo, por que se encaixa mal

com a fórmula que vem logo a seguir: “Tudo o que é plenamente pode ser

plenamente conhecido”. Nesse caso, seriamos obrigados a afirmar que Platão está

falando aqui de “graus de existência” o que é algo inteiramente sem sentido na

medida em que tudo que “existe” existe na mesma proporção, ou seja, uma coisa

não pode existir mais do que outra. E, terceiro, por que sugere que Platão apóia a

sua argumentação sobre um erro bastante banal: o de concluir do fato de que as

coisas particulares são F e não-F que elas existem e não existem ao mesmo tempo.

Como é difícil acreditar que Platão se prestaria a um erro tão grosseiro, a acepção

“existencial” para ei\n ai deve ser rejeitada aqui.

Isso não significa, entretanto, que Platão exclui a utilização existencial do

verbo ei\n ai; na realidade, uma vez que ele não possui outra palavra para “existe”,

ele muito provavelmente considera que suas conclusões sobre o “ser” das Idéias

têm influência sobre isso que nós chamaríamos “existência”. O que se defende

aqui, tão somente, é que a noção de existência não dá conta da argumentação

como um todo na presente passagem.

A tradução de ei\n a i por “ser verdadeiro”, por sua vez, parece se encaixar

melhor no contexto. De fato, é indubitável, por um lado, que o conhecimento se

refere ao que é verdadeiro e, por outro, que o que é falso não pode ser conhecido.

Além disso, essa interpretação torna a conclusão da argumentação mais

88 Annas, por exemplo, argumenta que nós sabemos muito sobre os antigos deuses gregos e eles, no entanto, não existem. op. cit. pág. 250.

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compreensível. Ao dizer que o conhecimento trata sobre o que “é” e a opinião

sobre o que “é” e sobre o que “não é”, Platão estaria dizendo que enquanto o

conhecimento nos põe em relação com o que é verdadeiro, a opinião nos põe em

relação tanto ao que é verdadeiro, quanto ao que é falso, o que parece plenamente

aceitável. Alem disso, existe uma passagem, já no final da argumentação, que

parece requerer essa interpretação: as opiniões da multidão com relação ao Belo e

às outras coisas do mesmo gênero se perdem, de alguma forma, entre o que não é

e o que é (476d). Essa afirmação só faz sentido se ela tem, como pressuposto, a

idéia de que as opiniões se relacionam tanto com falsidades, quanto com verdades.

Entretanto, assim como no caso anterior, essa interpretação também não

consegue dar conta da argumentação como um todo. Em 477a-b e em 478b-c, por

exemplo, a opinião é distinguida da ignorância pelo fato de que o objeto dessa

última é “o que não é”:

Sócrates- Logo, se o conhecimento (gn w's i") incide sobre o que é

(o jvnti) e, necessariamente, a ignorância (ajgnws iva) sobre o que não é

(mh ; o jvnti), faz-se necessário descobrir, para o que ocupa o meio entre o ser

e o não-ser, um intermediário (m e ta xu;) entre a ciência (e jpis thvm e ") e a

ignorância (ajgno iva"), supondo-se que exista algo do gênero.

Glauco - Sem dúvida.

Sócrates- Mas algo do gênero é a opinião (do vxa n)?

Glauco - Com certeza! (477a-b)

Sócrates - Mas a opinião conhece aquilo que a ciência conhece?

Uma mesma coisa pode ser ao mesmo tempo objeto da ciência e da opinião,

ou isso é impossível?

Glauco - E impossível. Com efeito, se potências diferentes

possuem por natureza objetos diferentes, e se, por outro lado, ciência e

opinião são duas potências diferentes, disto decorre que o objeto da ciência

não pode ser o mesmo da opinião.

Sócrates - Logo, se o objeto da ciência é aquilo que é, o da

opinião será algo diferente daquilo que é?

Glauco - Algo diferente.

Sócrates – mais a opinião pode ter como objeto aquilo que não é?

Ou é impossível conhecer através dela aquilo que não é? Reflita: aquele que

opina, opina sobre alguma coisa, ou tanto opinar como não opinar sobre o

que não é?

Glauco – É impossível.

(478b-c)

Aqui, “o que não é” não pode significar “o que não é verdadeiro”, uma vez

que os erros também podem ser objetos de opinião (cf. 479). E igualmente à

acepção “existencial”, essa acepção de ei\n a i como “ser verdadeiro” também

parece se encaixar mal com a fórmula “Tudo o que é plenamente pode ser

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plenamente conhecido”, uma vez que a noção de “graus de verdade” tampouco faz

algum sentido aqui. Que sentido pode haver em dizer que algo é plenamente

verdadeiro? Não se trata, também aqui, de negar que a noção de verdade não

tenha qualquer relação com a argumentação de Platão. Em muitos casos, o uso

que ele faz de ei\n a i pode, sem problemas, ser entendido como “ser verdadeiro”.

Mas, apenas, sublinhar que ela não nos permite interpretar satisfatoriamente

algumas etapas cruciais da argumentação.

Diante disso, a interpretação segundo a qual e i\n a i deve ser entendido em

sua acepção predicativa parece ser a que melhor se encaixa no contexto da

argumentação. Nesse sentido, o “é” deve ser entendido de maneira elíptica, como

“é F”, sendo F um predicado qualquer. Uma coisa é, se ela é F ― grande,

pequena, alta, branca, etc. Essa interpretação parece se acomodar melhor na

argumentação como um todo e dá sentindo aos dois truísmos mencionados. De

um lado, só o que “é” pode ser conhecido, na medida em que só podemos saber se

um objeto tem uma propriedade se esse objeto efetivamente a tiver; por exemplo,

eu só posso saber se uma coisa é extensa se ela for efetivamente extensa. Se ela

não é extensa eu não tenho como saber que ela é extensa. De outro, só o que é

“plenamente” pode ser plenamente conhecido, por que só o que é plenamente F,

por exemplo, plenamente justo, pode absolutamente ser conhecido como justo.

Essa concepção é confirmada em 477e, onde Glauco afirma que

diferentemente da opinião, o conhecimento é infalível: Sem dúvida. Como um

homem de bom senso poderia confundir o que é infalível com o que não é? Em

outras palavras, se eu conheço uma coisa é impossível que eu me engane a seu

sujeito. O conhecimento exclui a possibilidade do erro. Ora, se temos razões para

supor que esse era de fato o pensamento de Platão, nós podemos compreender por

que ele acredita que um conhecimento absoluto deve ter como objeto coisas ou

ações que sejam absolutamente o que elas são. E, de fato, não há como negar que

somente uma coisa que possui absolutamente uma qualidade, possui essa

qualidade de uma maneira que exclui a possibilidade que possamos incorrer em

erro a seu sujeito. Se uma coisa possui uma qualidade, mas somente em certas

circunstâncias, ou sobre determinado ponto de vista, ou de uma maneira relativa,

então é possível que nós possamos nos enganar ao assumirmos que ela possui essa

qualidade; de forma que nós não podemos ter um conhecimento absoluto dela. De

fato, se o conhecimento é “infalível”, ele exclui não somente o erro real, como

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também a própria possibilidade de erro; do mesmo modo, um conhecimento

absoluto não pode ter como objeto nada que possa “trair” aquele que aspira o

conhecimento: esse objeto deve possuir “plenamente” e “absolutamente” a

qualidade que é predicada dele.

Entretanto, ainda que a interpretação predicativa do uso de ei\n a i pareça se

acomodar melhor com as premissas iniciais da argumentação empreendida por

Platão, ela não está inteiramente livre de problemas. Enquanto que a proposição

“só o que é pode ser conhecido” se mostra como uma intuição elementar sobre o

conhecimento: eu não posso conhecer uma coisa que não é; se eu penso que uma

coisa é F, eu só posso conhecer isso se essa coisa for efetivamente F, a fórmula

“só o que é plenamente, pode ser plenamente conhecido”, ou seja, eu só posso

conhecer plenamente que uma coisa é F, se ela é plenamente F, se mostra como

bem menos evidente. Alguém poderia perguntar por que eu não posso conhecer

plenamente e absolutamente que uma coisa qualquer é F, mesmo se ela não é F de

maneira plena e integralmente? Para Platão, eu só posso conhecer absolutamente

que uma ação, por exemplo, é justa, se ela for justa de forma absoluta. Mas, por

que eu não poderia reconhecer e levar em conta os defeitos e as restrições que a

justiça de qualquer ação necessariamente possui e conhecer, entretanto, que ela é

justa relativamente? Platão exclui essa possibilidade: eu não posso conhecer que

uma ação é justa de um ponto de vista e injusta de outro; eu só posso conhecer,

propriamente falando e absolutamente, o que é justo absolutamente. Mas por que

uma descrição do conhecimento implicaria essa idéia?

Essa questão só pode ser respondida se levarmos em consideração o fato de

que as exigências de Platão em relação ao conhecimento são muito diferentes

daquelas da tradição pós-cartesiana a qual estamos habituados. Platão acha natural

pensar que o conhecimento se estabelece por graus que variam em função da

inteligibilidade de seu objeto; a razão disso é que ele não considera o

conhecimento como o resultado da eliminação da dúvida cética. Se o

conhecimento é considerado como um estado que não permite correção, parece

não haver nenhuma razão para que seu objeto seja limitado ao que possui

plenamente e absolutamente a qualidade apropriada; o que importa, ante de mais

nada, é a relação entre aquele que conhece e o que é conhecido, que garante, em

cada caso particular, que estejamos protegidos do erro. Mas Platão não se

interessa sobre a questão de saber se é com razão ou sem razão que possuímos a

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certeza em um tal caso; para ele a progressão em direção ao conhecimento é uma

progressão em direção a uma compreensão cada vez maior, que nada tem a ver

com analisar com um ceticismo crescente os fundamentos de tal ou tal opinião,

mas com a inserção dessa opinião em um contexto mais amplo de nossas opiniões

e das relações pelas quais elas se explicam mutuamente. É por que o

conhecimento se faz acompanhar por um acréscimo na explicação e na

compreensão que Platão acha natural considerá-lo como uma questão de graus ao

invés de uma questão de certeza absoluta. Por conta disso, fica mais fácil aceitar a

fórmula “só o que é plenamente, pode ser plenamente conhecido” que parece

estranha aos nossos olhos.

As passagens encontradas no Livro V e no Livro X da República nos

permitem distinguir as principais características da concepção de conhecimento de

Platão. Em primeiro lugar que, diferentemente da opinião verdadeira que é, ou

pode ser, de segunda mão, o conhecimento se apóia em uma experiência que é,

num certo sentido, direta. Em segundo, que o conhecimento permite a

possibilidade de formular claramente o que é o objeto conhecido, e as razões pelas

as quais ele é como ele é; isso implica que se saiba o que permite dar a razão de

seu aspecto bom ou mau. Em terceiro, que o conhecimento se estabelece por graus

que variam em função da inteligibilidade de seu objeto. Em quarto, que o único

objeto que responde as exigências de Platão, “só o que é plenamente pode ser

plenamente conhecido” são as Idéias. Em quinto, que o conhecimento das Idéias é

infalível. E, por último, que é a compreensão, e não a certeza, a marca do

conhecimento, visto como uma progressão em direção a uma compreensão cada

vez maior dos aspectos relacionados ao objeto conhecido. Alguém que possui o

conhecimento não se opõe ao cético, mas àquele que, para fins práticos, retoma de

segunda mão, e de uma maneira irrefletida, as opiniões verdadeiras.

Antes de confrontarmos essa concepção de conhecimento com o que foi

estabelecido no terceiro capítulo desse trabalho sobre a crítica de Platão ao modo

de proceder dos matemáticos com relação aos seus objetos de estudos, isto é, às

suas “hipóteses”, iremos, no próximo capítulo, abordar a distinção entre os dois

estados (pa qh vma t a) relacionados por Platão, na Linha, ao modo de conhecer da

matemática e da dialética.

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5

A distinção entre diavnoia diavnoia diavnoia diavnoia e novhsi" novhsi" novhsi" novhsi" na passagem da Linha

5.1.

A diavnoiadiavnoiadiavnoiadiavnoia

Historicamente, diferenças sutis entre a mera percepção de um objeto ou

objetos, ou seja, a sensação (aijvsqhsi") e uma outra espécie de consciência

psíquica que vai além dos dados dos sentidos e percebe coisas menos tangíveis,

como semelhanças e diferenças entre os objetos, podem ser encontradas já em

Homero, onde a segunda é identificada com o “órgão” chamado novo"89. Mas é

somente a partir da filosofia que essa diferença começa a ser problematizada.

Desde o ataque de Parmênides à percepção sensível em termos de

instabilidade do seu objeto, parece ter se tornado entre os filósofos, uma

necessidade epistemológica distinguir entre os perigos óbvios da aijvsqhsi" e um

“verdadeiro conhecimento" mais ou menos independente dos sentidos, como

sugerem, entre outros, as dúvidas de Empédocles sobre a confiança na nossa

89 SNELL, BRUNO. A Descoberta do Espírito. Trad. Arthur Mourão, Edições 70, Lisboa, 1992. Segundo esse autor, não se pode encontrar em Homero nenhuma palavra que corresponda à concepção de alma como sendo a unidade onde se reúne os fenômenos psíquicos. Estes, estariam, de algum modo, distribuídos entre vários “órgãos”, dos quais se destacam dois: qumov" (sede das emoções) e novo" (sede da intelecção). Curiosamente, o termo yuchv, quando aparece em Homero, significa coisa bem diferente da tradução atual. Em Homero, a yuchv é apenas um simulacro, uma sombra. Entretanto, Snell sublinha que se, por um lado, podemos traçar uma clara distinção entre yuchv e qumov", por outro, no que diz respeito a qumov" e novo", essa distinção já não seria tão clara assim. (p. 28 ss.)

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percepção sensível e na necessidade de auxílio divino (Fr. 2, Sexto Empírico, Adv.

Math. VII, 122-14)90.

Outro exemplo é Heráclito que suspeita explicitamente da falibilidade da

sensação na apreensão da verdadeira natureza das coisas: a natureza gosta de

ocultar-se (frg. 123)91. Realidade oculta que parece pôr-se definitivamente fora do

alcance dos homens, na medida em que estes se fiam demasiado implicitamente

em seus sentidos (frg. 107 e 132)92. Heráclito, no entanto, não é muito claro com

relação a como é que a outra faculdade que é capaz de discernir o lovgo" oculto

das coisas operaria; de seus fragmentos, sabemos apenas que o nou'" que está

dentro de nós é ativado pelo seu contato, através dos canais da sensação

(aijqhticw'n povrwn), com o logos divino (qei'on lovgon), contato esse que é

mantido de modo atenuado pela respiração durante o sono (frg. 129)93.

Segundo Aristóteles (De an. III, 427a; Meta. 1009b), ainda que

problematizada, os pré-socráticos não estabeleceram, no entanto, uma distinção

real entre a novhsi" e a aijvsqhsi"; e a razão que ele dá para sustentar essa opinião é

que todos eles teriam tentado explicar as operações da alma (yuchv) em termos

puramente físicos, procedimento que, de acordo com Aristóteles (loc. cit.), não

pode explicar o erro uma vez que o semelhante pode conhecer o semelhante94.

Heráclito, p. ex., embora faça uma distinção entre sensação e intelecção (frg. 107),

não se pode dizer que esse filósofo tenha operado uma separação total entre essas

atividades na medida em que, para ele, os sentidos seriam uma espécie de

condição para a novhsi" (frg. 129).

Os fragmentos que chegaram até nós dos pré-socráticos e o testemunho de

Aristóteles nos permite concluir, portanto, que se, na atitude pré-socrática, podem

ser encontrados fortes indícios que caracterizariam uma distinção, no mínimo, em

90 G.S. Kirk, J.E. Raven e M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1994. p. 298. 91 Op. cit. p. 192. 92 Loc. cit. 93 Op. cit. Id., p. 190. 94 A teoria dos oJvmoioi é, talvez, a mais vulgar das teorias do conhecimento gregas. Ela se funda basicamente no pressuposto de que o semelhante conhece o semelhante. Expressões dela podem ser encontradas já em Homero, aijei; to;n oJmoi'on ajvgei qeo;" wJ" to;n oJmoi'on (a divindade sempre impele o semelhante em direção ao semelhante, Od. 17, 218). Em Platão temos, p. ex., oJ oJvmoio" tw'i oJmoivwi (fivlo") (o semelhante é amigo do semelhante, Górgias 510b); e em Aristóteles, oJ oJvmoio" wJ" to;n oJmoi'on (o semelhante vai em direção ao semelhante, Ética a

Nicômaco, 8, 1). Cf. F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977. Sub voce oJvmoio".

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grau, entre o pensamento novhsi" (e seu correlato epistemológico ejpisthvmh) e a

sensação aijvsqhsi" (e seu correlato epistemológico dovxa), parece não haver, no

entanto, nada que nos diga que eles as distinguiam também, em espécie, em

gênero.

É com Platão que essa distinção se opera de modo radical:

Considera, então, que existem dois reis, reinando um sobre o campo do

inteligível (nohtou' gevnou") e o outro, do visível (oJratou'): não digo do céu,

com receio de que penses que brinco com as palavras. Mas consegues

imaginar estes dois gêneros, o visível (oJratovn) e o inteligível (nohtovn)?

(Rep. 509d)

No Fédon, Platão nos oferece uma concepção da alma (yuchv) na qual esta é

descrita como pura e unitária. É essa alma pura e unitária que, sendo

absolutamente de natureza diferente do corpo, torna-se o correlato epistemológico

das ijdevai e pode desempenhar todas as atividades cognitivas que os filósofos pós-

parmenidianos associavam ao nou'" mas foram incapazes de explicar ao nível da

substância (Aristóteles, loc. cit.). Mas Platão inova mesmo é quando, afirmando

que a alma é a ajrch;n de toda atividade cognitiva, faz a sensação depender da

intelecção, invertendo, assim, a relação que até então envolvia aijvsqhsi" e novhsi":

a sensação seria a percepção pela alma através do corpo e a intelecção uma

operação apenas da alma (Fédon 79d). Entretanto, essa concepção unitária da

alma põe Platão diante de paradoxos95 que o levam, nos diálogos posteriores, a

apresentá-la tanto dividida em três partes quanto dividida em quatro partes.

Voltando à passagem da Linha que nos ocupa, vimos, que ao se referir a

atividade noética, Platão acrescenta a essa descrição um certo pormenor. Além da

distinção referida acima entre sensação e intelecção, ficamos sabendo que há mais

do que um tipo de atividade noética: a diavnoia e a novhsi".

95 Não será lugar aqui de tratarmos essa questão mais detalhadamente. A título de ilustração podemos apontar que o mais notório desses paradoxos é o problema da ajkrasiva (fraqueza da vontade) no interior da ética socrática; mas essa concepção teria também sérias implicações epistemológicas. No Fédon a alma é apresentada como a ajrch ; de toda a atividade cognitiva, sensível ou inteligível. A sensação é aí explicada em termos de uma percepção da alma através do corpo. Ora, segundo o mesmo princípio (o semelhante conhece o semelhante) utilizado para definir a natureza da alma com relação às ijdevai, temos que para que alma possa apreender o sensível, é preciso que ela de alguma forma tenha em si algo de sensível, o que caracterizaria o paradoxo. No Timeu (35a ss.), na tentativa de escapar a esse obstáculo, a alma é criada pelo demiurgo como uma mistura complexa onde entram elementos tanto do inteligível quanto do sensível. Para uma análise mais profunda da questão, remetemos ao excelente artigo de Maura Iglésias “Platão: a descoberta da alma”, in Boletim do CPA, nº 5/6, janeiro/ dezembro 1998.

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Vimos também que a explicação de Platão para tal distinção se concentra

principalmente na definição do correlato metodológico da novhsi", a dialética,

como um estudo das Formas puras, apoiando-se unicamente sobre a razão, sem

fazer uso nem de imagens nem de supostos princípios. E que essas características

levam Platão a tomar a novhsi" como superior à diavnoia e a apresentar a dialética

como a única merecedora verdadeiramente do nome de ciência (ejpisthvmh"):

Glauco — Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque

tratas de um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento

(qewrouvmenon) do ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela

ciência da dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron)

que aquele que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais

possuem hipóteses como princípios (uJpoqevsei" ajrcai;). É certo que aqueles

(oij qewvmenoi) que se consagram às artes são obrigados a utilizar o

raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin). No entanto, visto que

nas suas investigações não apontam para um princípio (ajrch;n), mas partem

de hipóteses (ejx uJpoqevsewn), julgas que eles não têm a inteligência

(nou'n oujk ijvscein) dos objetos estudados, embora eles sejam inteligíveis

(nohtw'n) quando apreendidas junto com um primeiro princípio. Parece-me

que denominas conhecimento discursivo (diavnoian), e não inteligência

(ouj nou'n), a geometria e outras ciências do mesmo gênero, considerando

esse conhecimento (diavnoian) intermediário entre a opinião (dovxh") e a

inteligência (nou'). Sócrates — Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora a estas quatro

seções estes quatro estados(paqhvmata) da alma: a inteligência (novhsin) à

seção mais elevada, o conhecimento discursivo (diavnoian) à segunda, a fé

(pivstin) à terceira, a imaginação (eijkasivan) à última; e dispõe-nas por

ordem de clareza, partindo do princípio de que, quanto mais seus objetos

participam da verdade (ajlhqeiva"), mais eles são claros (safhveiva"). (511c-e)

Mas, fora o fato de se tratar de um “estudo das Formas puras, apoiando-se

unicamente sobre a razão, sem fazer uso nem de imagens nem de supostos

princípios”, que parece pouco explicar, em que consistiria, afinal, a distinção entre

a diavnoia e a novhsi"? Será que devemos associar a diavnoia ao raciocínio

discursivo em geral, silogístico, e a novhsi" à imediata intuição intelectual em

moldes semelhantes àqueles que Aristóteles (Anal. Post. II, 110b) distingue entre

logismov" e nou'"? Segundo Aristóteles, a novhsi" corresponderia a uma espécie de

compreensão intuitiva adquirida a partir de um processo de indução das

experiências individuais que nos levaria ao conceito universal e à proposição

universal, os quais serviriam de premissas não demonstráveis de toda

demonstração. Esse processo não seria um processo discursivo e, ao contrário da

indução perfeita (Anal. pr. II, 68b), não poderia ser reduzida a um tipo de

silogismo.

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Aristóteles, num passo em que descreve a origem da Teoria das Idéias, faz

notar que Sócrates foi o primeiro a empregar “argumentos indutivos”

(ejpaktikoi; logoi;; Meta. 1078b). Entretanto, ainda que tal compreensão possa

encontrar algum apoio na descrição da dialética encontrada no Fédro (265c-266b)

onde se identifica o caminho ascendente com a operação de generalização, e o

caminho descendente com a operação de divisão, o testemunho de Aristóteles

deve ser relativisado, na medida em que nem a metodologia de Sócrates nem a

terminologia de Platão apontam para um uso estritamente aristotélico96.

Como se vê, não é de espantar que a passagem da Linha dividida tenha

gerado, e ainda gere, tantas controvérsias quanto à distinção entre esses dois

estados (paqhvmata) envolvidos na atividade intelectiva.

Existem três passagens encontradas no Teeteto, no Filebo e no Sofista que

podem nos ajudar a entender essa distinção.

Chamas pensar (dianoei'sqai) a mesma coisa que eu? Pergunta Sócrates na

seqüência da definição, dada por Teeteto, de “opinião falsa” (ajllodoxivan) como

“pensamento sobre algo existente em que se toma uma coisa pela outra” (Teeteto

189d – 189e). Diante da hesitação de Teeteto, Sócrates descreve o que ele tem em

mente:

Um discurso (lovgon) que a alma faz para ela mesma sobre as coisas que ela

examina. Como ignorante é que te dou essa explicação; mas é assim que

imagino a alma ao pensar (dianooumvnh): não é outra coisa para ela senão

dialogar(dialevgesqai), dirigir-se a si mesma as questões e as respostas,

passando da afirmação à negação. Quando ela se decide, seja avançando

devagar seja um pouco mais depressa, e permanece constante em sua

afirmação e não mais duvida, é isso que afirmamos ser, nela, opinião

(dovxan)(…)

(Teeteto 189e4 – 190a7)

Platão chama pensamento (diavnoia), portanto, o diálogo que a alma formula

para si mesma através de perguntas e respostas, acerca daquilo que ela está

examinando. Quando a alma deixa de duvidar, esse diálogo cessa e a afirmação ou

a negação resultante é o que denominamos opinião (dovxa). Essa mesma definição

é reaparece no Sofista (263e3 – 264b3), acrescida com outros detalhes:

1. Pensamento (diavnoia) e discurso (lovgo") são a mesma coisa. A diferença

é que o pensamento é o diálogo (diavlogo") interior e silencioso da alma consigo 96 F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977

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própria, enquanto o discurso é entendido como uma emanação da alma que sai

pelos lábios em emissão vocal.

2. Que no discurso há afirmação e negação e que seu correspondente no

pensamento é o que chamamos opinião (dovxa), entendida como a conclusão de

todo pensamento.

3. Quando a opinião se apresenta, não espontaneamente, mas por intermédio

da sensação, a afecção (pathos) na alma é descrita como imaginação (phantasia),

isto é, uma combinação de opinião e sensação que, assim como o discurso, pode

se mostrar, algumas vezes, falsa.

No Filebo (38c2-e7), Platão apresenta uma descrição da gênese psicológica

da dovxa e do “esforço de dovxa” que se apóia na mesma representação de

pensamento como “diálogo interior da alma consigo própria” descrita acima:

Sócrates ─ E nesse particular, não será inevitável proceder da seguinte

maneira? Protarco ─ De que jeito? Sócrates ─ Por vezes, não pode

acontecer que, ao perceber ao longe alguém um objeto que não se deixa

distinguir claramente, não dirás comigo que essa pessoa deseja determinar

o que seja aquilo? Protarco ─ Acho que sim. Sócrates ─ E nessas

circunstâncias, não passará ela a interrogar-se a si mesma? Protarco ─ De

que maneira? Sócrates ─ Que será o que parece estar embaixo daquela

árvore, ao pé do morro? Não és de opinião que esse indivíduo dirija a si

mesmo essa pergunta, quando perceber algo nas condições descritas?

Protarco ─ Sem dúvida. Sócrates ─ E a seguir, se dissesse, como se falasse

a sós consigo: é um homem, não responderia direito? Protarco ─ É

evidente. Sócrates ─ Mas também poderá enganar-se, e, na suposição de

que se trata de obra de algum pastor, dará o nome de imagem ao que

percebesse naquele momento. Protarco ─ Exato. Sócrates ─ E no caso de

haver alguém ao seu lado, explicar-lhe-á por meio da palavra o que falara

para si mesmo, com o que dirá pela segunda vez a mesma coisa,

transformando, assim, em discurso o que antes dera o nome de

opinião(dovxa). Protarco ─ Nem poderá ser de outra maneira. Sócrates ─

Mas se estiver sozinho quando lhe ocorrer semelhante idéia, pode bem dar-

se que por algum tempo ele continue seu passeio sem comunicá-lo a

ninguém.

Trata-se, evidentemente, de uma definição meramente nominal, intuitiva,

quase do senso comum97; Não é a essência (o que é o pensamento?) que ela visa,

97 R.B. Onians (The Origins of European Thought about the Body,the Mind, the Soul, the World,

Time, and Fate, Cambridge, 1951) nas primeiras linhas de seu capítulo sobre os “processos da consciência” ( Parte I, ch. I, “Some Processes of Consciousness”, p. 13), aponta que essa representação do pensamento já está presente na obra de Homero.

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mas apenas o referente que “cai” sob esse termo: Como ignorante é que te dou

essa explicação.

Três pontos chamam imediatamente a atenção nas passagens citadas. O

primeiro é a forte analogia estabelecida entre o pensamento (diavnoia) e diálogo

(diavlogo"). Platão toma o diálogo, entendido como troca de perguntas e respostas,

como modelo empírico de sua descrição do pensamento. As diferenças apontadas,

a falta da oralidade e da presença de um interlocutor, parecem não representar

qualquer prejuízo: por um lado, as articulações fonéticas do diálogo são

apresentadas como o exato reflexo das articulações silenciosas do pensamento;

por outro, a alma se mostra capaz de tomar a si própria como interlocutor de seu

diálogo interior. O ponto central da analogia se apóia, sobretudo, na estrutura

discursiva e interrogativa particular a ambos, isto é, no movimento de perguntar e

responder. Nesse sentido, a descrição de Platão parece sugerir que a alma, ao

pensar, como que se desdobra sobre si mesma num ir e vir que se reflete sobre a

dupla forma de questão e resposta que lhe arranca de sua imobilidade e unidade

original, mas que, no entanto, não ameaça a sua integridade: é sempre a mesma

alma a ouvir as suas questões (eu me pergunto) e a se responder (e de contestar

suas próprias respostas).

O segundo ponto refere-se ao fato de que é preciso que a alma experimente

incerteza diante dos objetos que ela examina para que o processo do pensamento

seja desencadeado. A alma é levada a pensar, isto é, a dialogar consigo própria,

quando aquilo que ela apreende não se deixa identificar imediata e

espontaneamente. Diante da incerteza, a alma se veria constrangida a determinar

exatamente aquilo que ela percebe, desencadeando, assim, o processo do

pensamento.

O terceiro ponto diz respeito ao fato de no momento exato em que afirma ou

que nega, isto é, que julga, a alma, segundo a descrição de Platão, deixa a esfera

do pensamento e entra no da dovxa: (…) Quando ela se decide, seja avançando

devagar seja um pouco mais depressa, e permanece constante em sua afirmação e

não mais duvida, é isso que afirmamos ser, nela, opinião (dovxa). Opinando, isto é,

determinando, a alma suprime o seu movimento anterior, ela não mais duvida, não

mais oscila (Teet. 190a), retornando, assim, à sua imobilidade original. Ao

experimentar a dovxa, a alma ultrapassa o seu desdobramento, ela se reunifica. Isso

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por que o objeto também se unifica, ele não provoca mais incertezas e é enfim

tomado como sendo tal como aparece. As passagens mencionadas sugerem que a

inquietude do pensamento nasce da possível diferença entre o ser e o aparecer:

suprimindo essa diferença, a opinião termina o pensamento que a precedia; ela lhe

põe fim e alcança seu objetivo.

Portanto, a alma é provocada a pensar quando experimenta incerteza diante

dos objetos que examina, e só pensa enquanto se interroga, enquanto ela não está

satisfeita com as respostas que ela tenta dar às suas próprias questões. Quando ela

cessa de se interrogar, de dialogar consigo própria, ela se imobiliza, ela é una

consigo mesma, ela não pensa.

Ao compararmos o que Platão chama de diavnoia nos três textos citados e o

que é dito na passagem da Linha surge imediatamente uma questão: se não

haveria uma contradição, ou ao menos, uma ruptura no pensamento de Platão na

medida em que, na passagem da Linha, Platão confere à diavnoia uma situação e

uma função intermediárias que parecem não ter nenhuma relação com o que ele

chama diavnoia nos três textos citados. Segundo esses últimos, a diavnoia,

entendida como diálogo interior, vem sempre antes da dovxa e, segundo o Filebo

pode se aplicar também a objetos sensíveis, enquanto que na passagem da Linha,

ela vem depois da dovxa e se relaciona apenas com objetos inteligíveis. Não

haveria realmente nenhuma relação? Evolução ou imprecisão terminológica?

Passemos à Linha.

A novidade do esquema da Linha em relação às passagens do Teeteto, do

Sofista e do Filebo é que não é mais o processo de pensamento — o diálogo

interior da alma consigo própria — que é chamado diavnoia, mas o próprio

resultado desse processo, isto é, a própria apreensão cognitiva resultante.

E é essa ambigüidade com que Platão utiliza o termo diavnoia que dá a

impressão de uma contradição ou de uma ruptura entre os textos citados. Em

Platão, o termo diavnoia, pensamento, designaria não só o processo, discursivo,

que leva a uma apreensão cognitiva, mas a própria apreensão cognitiva. Platão,

como se sabe, considera sofística a preocupação excessiva com a coerência no uso

das palavras98, uma vez que o importante é saber a que a palavra se refere. Nesse

98 V., por exemplo, Menon 75 e; Teeteto 184 c-d; Timeu 28 b3-4.

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sentido, a contradição se desfaz se considerarmos que a diavnoia, mencionada no

Teeteto, no Sofista e no Filebo refere-se ao processo — o diálogo interior da alma

consigo própria — que leva a uma apreensão cognitiva; enquanto que a diavnoia

mencionada no esquema da Linha nomeia um tipo de apreensão cognitiva.

Mas que tipo de apreensão e essa? E por que Platão a considera inferior a

novhsi"? No sentido de responder a essa questão vamos analisar algumas das

interpretações que foram dadas a essa questão e ver se podemos extrair daí

algumas conclusões.

5.2. A novhsi"novhsi"novhsi"novhsi"

Platão, na passagem da Linha, define a dialética e a sua maneira de proceder

basicamente contrastando-a com a maneira de proceder das matemáticas. Essa

definição, assim como foi o caso das matemáticas, se dá a partir de dois pontos.

De um lado, a atitude do dialético em relação às hipóteses de que parte em

seus raciocínios:

Sócrates — Percebes agora que entendo por segunda divisão do mundo

inteligível(nohtou') aquela que a razão (ov lovgo") alcança pelo poder da

dialética (dialevgesqai dunavmei), considerando suas hipóteses

(ta;" uJpoqevsei") não princípios (oujk ajrca;") mas simples hipóteses, isto é,

pontos de apoio (ejpibavsei") e trampolins (ojrmav") para se elevar até o

princípio universal (panto;" ajrch;n) que já não admite hipóteses

(ajnupoqevtou). Atingido esse princípio, ela se apega a todas as

conseqüências que decorrem dele, até chegar à última conclusão, (…) (511b)

De outro, o fato de que o dialético não usa imagens sensíveis em seus

raciocínios: “(…) sem recorrer a nenhum dado sensível (aijsqhtw'i), mas somente

às idéias (eijvdesin), pelas quais procede e às quais chega”(511b). O dialético, diz

Platão, parte de hipóteses, as quais ele considera, não princípios, mas simples

pontos de apoio ou trampolins, para se alçar, pela força da dialética, até o

princípio universal, não hipotético. Uma vez atingindo esse princípio, ele retorna,

etapa por etapa, extraindo as conseqüências desse princípio, até a última

conclusão, que não é outra senão a hipótese de que partiu. Nesse percurso (das

hipóteses ao princípio e do princípio à conclusão) ele não faz uso de nenhum dado

sensível (imagens), mas apenas das idéias nas quais se “apóia” e as quais retorna.

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Ao contrário da descrição dedicada à matemática, não temos nenhuma

dificuldade em identificar, aqui, o que Platão tem em vista quando diz que o

dialético parte de hipóteses: sem recorrer a nenhum dado sensível (aijsqhtw'i),

mas somente às idéias (eijvdesin), pelas quais procede e às quais chega. As

hipóteses do dialético são, portanto, idéias, isto é, a essência una e inalterável de

cada coisa, aquilo, por força do qual, cada coisa é o que é (Mênon 72c-e). Que em

seu manuseio, o dialético exclua todo uso de imagens sensíveis é algo que não traz

maiores problemas, uma vez compreendido a noção de eijvdo" no interior do

pensamento platônico.

O que é obscuro, o que, historicamente, tem gerado tantas controvérsias, é

esse considerando suas hipóteses (ta;" uJpoqevsei") não princípios (oujk ajrca;")

mas simples hipóteses, isto é, pontos de apoio (ejpibavsei") e trampolins (ojrmav")

para se elevar até o princípio universal (panto;" ajrch;n) que já não admite

hipóteses (ajnupoqevtou). O vocabulário usado por Platão, aqui, sugere que o

“movimento” de uma hipótese à outra no processo dialético tem, num primeiro

momento, um caráter “ascendente”. Inicialmente, uma explicação pode ser dada

no sentido de pensar esse movimento como a subsunção de uma hipótese por

outra mais geral, até se chegar a um princípio que não seja ele mesmo uma

hipótese, mas bem ao contrário, algo que justamente não admite mais hipóteses.

Uma vez atingindo esse princípio, o dialético, então, “desceria” agarrando-se às

conseqüências que desse princípio podem ser deduzidas, e que não são outras que

as hipóteses de que, no movimento ascendente, se partia.

Em relação à natureza da novhsi" e da dialética, tal como essa é descrita na

passagem da Linha, existe uma interpretação que se tornou célebre. Trata-se do

trabalho de A. J. Festugière, Contemplation et Vie contemplative selon Platon.

Em sua obra, Festugière se detém, principalmente, sobre o termo utilizado

por Platão para se referir ao modo de conhecimento da novhsi": a qewriva,

traduzido aqui por “contemplação”:

Glauco — Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente, porque tratas de um tema muito difícil. Queres estabelecer que o conhecimento/contemplação (qewrouvmenon) do ser (ojvnto") e do inteligível (nohtou'), que é adquirido pela ciência da dialética (dialevgesqai ejpisthvmh"), é mais claro (safevsteron) que aquele que é adquirido pelo que denominamos artes (tecnw'n), as quais possuem hipóteses como princípios. É certo que aqueles (oij qewvmenoi) que se consagram às

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artes são obrigados a utilizar o raciocínio (dianoivai), e não os sentidos (aijsqhvsesin).

(511c-d)

Remarca-se que a dicotomia operada por Platão no tovpo" nohtov" entre

duas espécies de conhecimento estende-se igualmente ao termo qewriva: de um

lado, os matemáticos são também chamados de oij qewvmenoi e, de outro, o

qewrouvmenon adquirido pela ciência da dialética é visto como “mais claro” do que

àquele adquirido pelas matemáticas.

Em resumo, a tese de Festugìere consiste no seguinte: o termo qewriva, cujo

sentido primeiro se ligava à idéia de visão, mais especificamente uma visão

“atenta”, normalmente dirigida, de um lado, à observação das coisas celestes, dos

fenômenos da natureza e, de outro, no campo religioso, de uma estátua religiosa

ou de uma festa ritual, tem, com Platão, seu sentido especializado e passa a

designar o modo próprio de conhecimento das formas e, principalmente, da Idéia

do Bem (p. 14 e ss.). Para isso, Platão acrescenta, à concepção comum de qewriva,

“um algo mais” que a distingue de uma mera consideração ou abstração das

essências ou dos primeiros princípios (Prefácio, p.5. ). Esse “algo mais” se daria

em termos de “um sentimento de presença”, de um “contato” com o Ser

apreendido em sua existência; apreensão que, pela própria natureza do objeto

próprio de contemplação (qewriva) — o Ser supremo, que é mais que uma Forma,

o “divino” por excelência —, “ultrapassaria a linguagem e a intelecção”.

E é a tal contato, a uma tal união que nos conduziria a dialética ascendente

do Banquete e da República, pelo menos “é o que nos mostram esses diálogos se

concordamos em dar às palavras seus sentidos óbvios, ao invés de tomá-las como

metáforas”, diz Festugière (Prefácio, p.6.). Interpretada à luz do Banquete, a

dialética mencionada na passagem de A República, adquire contornos de uma

experiência “purificadora”. Ela é descrita como um processo que visa preparar o

noûs, afastando-o o máximo possível do corpo e de toda representação sensível,

para o salto em direção a esse primeiro princípio que ultrapassaria a intelecção, a

esse Ser que estaria para além da ousia, e cuja existência só pode ser apreendida,

como presença, por uma “visão”: “e a dialética ela mesma pode ser chamada, por

conseguinte, uma espécie de purificação, não mais dos hábitos, mas do espírito.”

Como se vê, não é à toa que a interpretação de Festugière é considerada

mística… Mas não vamos tão rápido e tratemos de nos deter um pouco mais nos

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argumentos de Festugière. Para começar, o pressuposto básico que norteia a tese

de Festugière é esse: é a natureza do objeto de conhecimento que determina a

maneira de conhecê-lo e o gênero de conhecimento adquirido (p.42).

Em relação ao primeiro ponto, segundo Festugière (p. 110 e ss.), podemos

distinguir, a partir das conclusões do Crátilo (439d – 440b) e das premissas do

Fédon, três proposições principais da “epistemologia” platônica.

Primeiro, o divórcio radical aijvsqhsi" e novhsi". Os sentidos só se dirigem

ao o que é mutável; eles não alcançam, portanto, nem a verdade nem o Ser. Só

existe conhecimento do que é imutável, de modo que o objeto de conhecimento

deve ser de um gênero diferente dos aijvsqhta. O Ser está, portanto, alhures,

invisível aos sentidos, mas visível a um outro “órgão” do conhecimento, a um

outro olho, o olho da alma. A distinção entre mutável e imutável leva à distinguir

dois mundos: o sensível(aijsqhtovn) e o inteligível (nohtovn). A qewriva, por sua

vez, só se dirige ao nohtovn.

Segundo, que, apesar de distintos, esses dois domínios não são separados;

existe uma relação entre o sensível e o inteligível: o inteligível seria a causa

material e formal do sensível.

Terceiro, a escolha do melhor é o que nos guia em nossas ações.

Paralelamente, o que determina a ordem atual do mundo, é que tal ordem, para o

mundo, é a melhor. Essa causa última não é outra que a Idéia do Bem. Causa

final, a Idéia do Bem, é também a causa eficiente do conhecimento, do real e do

agir.

A maneira como Festugière relaciona essas três proposições se apóia sobre o

status “hipotético” da própria Teoria das Idéias. Se o eijvdo", do ponto de vista

lógico, resolve o problema do conhecimento e da existência sensível ao

subordinar o sensível múltiplo e cambiante ao inteligível uno e sempre igual a si

mesmo, isso não garante, no entanto, que do ponto de vista ontológico, as idéias

devam existir necessariamente. A necessidade lógica não se desdobra em

necessidade existencial (p.102). Para que as idéias deixem de ser “hipóteses”, elas

devem, por sua vez estar ligadas a um princípio que não seja ele mesmo uma

hipótese, a um princípio não hipotético. Além disso, o problema do Um e do

Múltiplo, resolvido uma primeira vez pela passagem do sensível ao inteligível,

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uma segunda vez pela passagem do maqhmatikovvn ao puramente formal, volta a se

por com toda a força, como vemos no Parmênides, no centro mesmo do

nohtou' gevnou". De forma que uma vez que o eijvdo" é ao mesmo tempo uno e

múltiplo, ele pode ser considerado também uma espécie de mictav, e como tal

exigiria também um princípio unificador.

Deve existir, portanto, um princípio tal que cumpra, no âmbito das idéias, a

mesma função que a idéia em relação ao sensível. Isso nos levaria a colocar no

mais alto grau de hierarquia a Unidade pura, um UM absoluto, não composto, sem

mistura, que seria princípio e causa, não mais categoria, do ser. E é, justamente,

esse princípio supremo, que seria o objeto, por excelência, da qewriva (p. 202) .

Veremos um pouco mais adiante que Festugière, no que se refere à distinção entre

os modos de apreensão respectivos a cada uma das seções do inteligível, reserva

tal distinção apenas à esse UM supremo; entre os princípios dos matemáticos e as

formas haveria praticamente uma assimilação entre a diavnoia e a novhsi".

Mas será que esse UM supremo, causa formal e final das idéias,

consequentemente do sensível, enfim, do universo todo inteiro, pode ser

considerado Deus? Festugière defende que, se por um lado, Platão não diz isso

diretamente, por outro, de acordo com a doutrina “eminentemente” platônica na

qual o summum do ser e da inteligibilidade corresponde ao summum do divino,

Platão deixaria a entender que é bem esse o caso (p.205).

Mas isso não nos deve levar a pensar que Platão está simplesmente

operando uma síntese entre dois gêneros de contemplação usuais (o matemático e

o religioso). Segundo Festugière, seria mais correto falar em uma “transposição”

dos aspectos principais à cada âmbito para uma noção de qewriva concebida, antes,

como a contrapartida exigida pela “sublimação” do objeto de conhecimento

operada por Platão ao longo de seus diálogos, especialmente no Fédon. A qewriva

platônica se ligaria somente ao inteligível, e isso a diferencia radicalmente de uma

qewriva religiosa. Entretanto, para Platão, o inteligível, por si só, não é capaz de

justificar sua existência, ele exige, por sua vez, um princípio onde a essência

determine sua existência (p. 168), a saber, o Ser Perfeito ou, em sua expressão

religiosa, Deus.

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Portanto, Festugière associa o princípio não hipotético / Idéia do Bem à

Divindade. Uma vez determinado o objeto próprio à qewriva, devemos nos deter

agora na maneira como esse objeto deve ser conhecido, isto é, ao método.

Já nos referimos aqui àquela que é, talvez, a mais vulgar das teorias do

conhecimento gregas, a teoria dos oJvmoioi, que se fundaria, basicamente, no

pressuposto de que o semelhante conhece o semelhante. Pois bem, segundo

Festugière, esse pressuposto está também na base da teoria do conhecimento de

Platão (p.107). Ora, se o conhecimento é o encontro de dois oJvmoia99 e se o objeto

próprio à qewriva é o Ser perfeito absolutamente uno e puro, então esse objeto de

conhecimento exige, para ser conhecido, um “órgão” que, por sua vez, também

seja uno e puro (p. 105 e ss.).

Mas como conformar essa necessidade com a noção de uma alma plural que

aparece na República (tripartida em IV (435c ss.) e quadripartida em República

VI), e com a noção de uma alma “misturada” que aparece no Timeu (35a)?

Em relação às divisões apresentadas na República IV (435c ss.), temos que

elas se referem principalmente às fontes de motivação da ação humana: o

elemento racional fonte da razão e do desejo de conhecimento; o elemento

concupiscível fonte dos desejos ligados à existência corporal; e por último, o

elemento irascível, espécie de “instinto” moral que nos permite distinguir entre o

justo e o injusto, fonte da indignação, da coragem e da honra e que se ligaria tanto

à parte racional quanto à concupiscível. Essa tripartição, longe de ser arbitrária,

segue um rigoroso princípio de economia explicativo com o objetivo de dar conta

dos inúmeros paradoxos a que a noção de alma como una e pura que aparece no

Fédon nos leva. Entre esses paradoxos está, principalmente o problema da

ajkrasiva (fraqueza da vontade). Se a alma é una, então razão e desejo se

assimilam. Ora, se todo desejo é desejo do melhor, se o melhor é o conhecimento

e se alma é inteiramente racional, então como explicar que tenhamos ações

contrárias ao que consideramos certo? A tripartição da alma resolve esse problema

na medida em opera uma tripartição dos desejos, reconhecidos como originários e

irredutíveis uns aos outros e, portanto, passíveis de conflito. Nesse sentido, a

99 É curioso notar que Platão explica a apreensão sensível (vide Teeteto 156a-e) também em termos de uma teoria dos oJvmoioi. O que nos leva a perguntar apesar de todo esforço de distinção, o quanto a noção de apreensão do inteligível é devedor do modelo da experiência sensível. Festugière parece indicar que ela é paradigmática (op. cit. p.114).

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harmonia da alma consistiria na realização, em cada uma das partes, do bem que

lhe é próprio.

A quadripartição da alma, vista na passagem que inspira essa dissertação,

segue uma outra motivação, de caráter mais epistemológico: distinguir quatro

graus, pelo critério de “clareza”, na apreensão cognitiva da alma. Essa nova

maneira de dividir a alma não se choca com a anterior pois tais distinções dizem

respeito apenas à parte, distinguida acima, como a racional (logistikovn); que vem

a ser, como já mencionamos anteriormente, a ajrch;n de toda atividade cognitiva.

No que se refere aos quatro graus de clareza, temos que eles dependem da

natureza dos objetos a serem conhecidos: (…) e ordena-as por ordem de clareza,

partindo da noção de que, quanto mais seus objetos participam da verdade, mais

eles têm clareza (511d-e). Esses objetos são basicamente de duas naturezas:

sensíveis visíveis, de um lado, e inteligíveis “invisíveis”, de outro.

Entretanto, essa descrição de Platão nos leva a uma dificuldade. Como

compreender que a alma, e mais propriamente a parte dela distinguida como

racional, cuja natureza é definida como correlata `a natureza dos objetos

inteligíveis “invisíveis”, pode apreender os objetos sensíveis visíveis, cuja

natureza, até aqui, é descrita em termos opostos? O mesmo princípio dos oJvmoioi

utilizado para justificar a possibilidade de apreensão cognitiva no âmbito

inteligível não seria um obstáculo à possibilidade de apreensão cognitiva no

âmbito sensível? A menos que …

A menos que a alma tenha em si algo do sensível. É o que parece ser o caso

se levarmos em consideração a descrição dos elementos que compõem a “alma do

mundo” apresentada no Timeu (35a ss.)100 e que são, basicamente, os mesmos que

entram na constituição da parte intelectiva da alma humana, se bem que numa

mistura já bem degradada. Platão nos diz, portanto, que a alma é composta de três

elementos: da substância indivisível correspondente ao inteligível sempre idêntico

a si mesmo; da substância divisível correspondente ao sensível submetido ao

devir; e de uma terceira substância, produzida pela mistura das duas primeiras. De

modo que composta por três elementos, alma seria essencialmente um mictav.

100 Não há consenso, entre os comentadores, quanto a quais sejam exatamente os ingredientes dessa mistura. O problema parece envolver, inclusive, diferenças no estabelecimento do texto (Iglésias, loc. cit.). No que se segue, nos mantemos estritamente no texto de Festugière cujo interesse é, basicamente, sublinhar o caráter “impuro” da alma humana.

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Mas se alma é um mictav, como ela pode conhecer o Ser uno e puro?

Voltamos aqui a questão inicial. A resposta, segundo Festugière (118 ss.), é que,

ainda que misturadas num todo, cada parte manteria a sua identidade, que de outra

forma, inviabilizaria a ascensão do sensível ao inteligível, ou seja, o processo de

conhecimento. Na medida, portanto, em que o verdadeiro objeto de conhecimento

não é outro que o inteligível sempre idêntico a si mesmo, a parte da alma própria a

conhecê-lo, o nou'", deve, por um lado, se afastar, o máximo possível, de tudo

aquilo que é estranho à natureza do puro inteligível, e , por outro, ela deve ser, ela

mesma, depurada.

E aqui temos o cerne da interpretação de Festugière: o objeto próprio à

qewriva é o ser supremo, essencialmente uno e puro. Esse objeto exige em

contrapartida, para ser apreendido, um “órgão” com as mesmas características.

Entretanto, por um lado nossa alma é essencialmente um mictav, por outro, os

entes que nos fazem “lembrar” dele são também essencialmente um mictav (p.201)

De modo que para que haja qewriva, tanto a alma quanto o objeto de conhecimento

devem passar por um processo de “purificação” onde se procura liberar a alma e o

de conhecimento de tudo que é estranho à natureza desse ser supremo.

É aí que entra em jogo a cavtarsi", procedimento que, segundo Festugière,

Platão transpõe dos rituais do culto religioso e que ganha, com ele, um novo

significado ao ser associada a todo um sistema moral que determinaria uma

revolução do espírito (p.145).

Essa cavtarsi" operaria em duas frentes. Em primeiro lugar, a alma como

um todo deve se purificar do corpo. Na medida, porém, que essa purificação não é

um fim em si própria, ela deve ser comandada por uma “mística”, isto é, por um

desejo de se assemelhar o máximo possível ao ser supremo (p.127).

Se existe um Bem em si que nós podemos conhecer, então a verdadeira

virtude consiste em se pôr de acordo com ele, em o imitar (p.145). Ora, o ser

supremo é essencialmente justo e bom101, logo o homem deve se esforçar em se

tornar, o máximo possível, justo e bom. Nota-se, que essa primeira cavtarsi" se

refere, antes de tudo, àquela noção da alma dividida em três partes que aparece em

República IV. Nesse sentido, ela parece se dirigir especialmente à parte

101 Essa tese sobre o Bem corresponde à primeira das leis normativas que Platão estabelece para a uma “sã” teologia, República 379a.

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denominada irascível que é, na passagem mencionada, concebida como uma

espécie de contrapeso às duas partes radicalmente antagônicas, a racional e a

concupiscível, podendo se ligar tanto a uma quanto à outra. De forma que para

que a parte racional realize o bem que lhe é próprio, ela deve trazer a parte

irascível para o seu lado, para, assim, sobrepujar a parte concupiscível vista como

obstáculo. Ora, como esse elemento irascível é definido como uma espécie de

“instinto” moral que nos permite distinguir entre o justo e o injusto, como fonte da

indignação, da coragem e da honra, a cavtarsi" , nesse momento, opera,

principalmente, em termos de uma “purificação” dos hábitos, visando afastar a

parte irascível o máximo possível da parte concupiscível para aproximá-la da

parte racional: é vivendo numa cidade virtuosa e exercendo atos virtuosos que se

aprende a ser virtuoso.

Segundo Festugière (p. 148), há um exato paralelismo entre a descrição, nos

Livros II e III de A República, do programa de educação e de seleção dos cidadãos

e a doutrina esboçada no Fédon sobre como a alma, se separando do corpo, se

dispõe, purificada, à contemplação. Enquanto que no Fédon, sublinha-se,

principalmente, o quanto a justiça, a temperança e a força favorecem à ascese que

separa a alma do corpo, a República, mostraria como essa cavtarsi" se

organizaria e qual a ordem em que elas levam à harmonia.

Entretanto, essa purificação moral não basta para o exercício pleno da

qewriva. Ela é certamente uma condição necessária por afastar os obstáculos que

impedem a contemplação, mas não é o suficiente. É preciso ainda que o “olho” da

alma se habitue a discernir, naquilo que é apenas um reflexo, a fonte, justamente,

de toda luminosidade, e que, tendo-lhe discernido, ela se acostume a olhá-lo

diretamente. Essa segunda purificação, segundo Festugière, que concerne tanto ao

nou'" quanto ao nohtovn, é uma tarefa da dialética (p. 157).

Mas o que cauda maior surpresa na interpretação de Festugière sobre a

natureza e o status da novhsi" e de seu correlato metodológico, a dialética, é que

ele defende que a dialética não é do âmbito da novhsi", mas permaneceria ligada

essencialmente à diavnoia.

Por dialética, Festugière entende principalmente o método socrático de

perguntas e respostas que visa circunscrever o objeto a definir. Nesse sentido, ele

explicitamente passa por cima de qualquer consideração sobre a evolução da

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noção de dialética no interior do pensamento de Platão (p.164). A distinção entre

períodos defendida, p. ex., não é sequer sugerida por ele, mas, ao contrário, o que

se vê é uma assimilação das “diferentes” descrições da dialética características a

cada período, todas interpretadas à luz do mesmo paradigma: a ascensão em

direção ao Belo em si descrita no Banquete.

Festugière identifica, na descrição mencionada, dois movimentos que

definem o papel da dialética em relação à circunscrição do objeto a ser aprendido:

uma abstração de ordem qualitativa e uma abstração de ordem quantitativa:

primeiro, passamos da beleza vulgar à beleza mais nobre; depois, da

multiplicidade dos vários belos à unidade da Beleza em si. A dialética, portanto,

tenderia a unificar o objeto a ser apreendido pelo nou'", definindo-o como um

objeto que é único e que é um. Essa unificação é vista em termos de uma

apreensão sinóptica (sunagwghv) nos mesmos moldes descritos no Fédro (265c-

266b), ou seja, identificando o caminho ascendente com a operação de

generalização (p.167 e 187). Nesse mesmo movimento, a dialética unificaria

também o nou'".

Festugière vê um exato paralelismo entre a descrição do Banquete e os

movimentos, já citados por nós, presentes na República, que tratam do dualismo

entre sensível e inteligível: a passagem da Analogia do Sol (507-509c), a

passagem da Linha dividida (509D-511E), a passagem da Alegoria da Caverna

(514a-521b) e, por fim, a passagem referente à descoberta das ciências

preparatórias à mais alta educação (521c-534e). Nesse sentido, o Banquete

determinaria o objeto a ser conhecido e a necessidade de se educar o olho da alma,

já as exposições encontradas na República, descreveriam essa educação (p.168).

No que se refere à passagem da Linha, a diavnoia é vista como algo

intermediário entre a opinião e a intuição (novhsi"), e compreenderia aquilo a que

se chama razão discursiva. Como tal, ela seria relativa, essencialmente, às

ciências matemáticas e, também, à dialética. A diferença entre a geometria e

dialética, segundo Festugière, se limitaria basicamente a uma diferença de atitude

frente aos “princípios” de que partem, geômetras e dialéticos, em seus raciocínios.

Enquanto o matemático considera os princípios de sua ciência primeiros na ordem

do raciocínio, o dialético considera os princípios de sua ciência apenas hipóteses

cuja validade dependeria de um princípio, ele mesmo não hipotético. Neste

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sentido, enquanto que, na matemática, o movimento seria em apenas uma direção

— do princípio à conclusão —, na dialética, de acordo com o modelo do Fedro, a

alma se dirigiria em duas direções, de um lado, da hipótese ao princípio, e, do

outro, do princípio à conclusão. Mas tanto o movimento ascendente quanto o

descendente da dialética permaneceriam estritamente relacionados à esfera da

diavnoia (p.170).

Festugière vê a dialética como o último degrau antes do qewrei'n, que ele

sustenta como sendo de outra ordem. Nesse sentido, a apreensão do

panto;" ajrch;n seria obra apenas do nou'" (loc. cit.). A diferença entre dialética e

qewriva é definida em termos de uma diferença entre discurso e intuição (p. 186).

A dialética seria uma espécie de caminho, de viagem, que corresponderia ao

esforço ascensional pelo qual a alma se eleva, de gênero em gênero, na tentativa

de apreender todas as ligações que os une. Já a qewriva é definida essencialmente

como uma visão, voltada para a apreensão, simples e imediata, do múltiplo no um.

Entretanto, a qewriva se definiria também por um sentimento de presença,

sentimento, que seria a garantia de que se alcançou o Ser supremo, o Ser existente,

divino por excelência. Tal experiência é explicada em termos de um contato que

vai além de uma simples intelecção das essências e se constituiria em sentir o Ser

como existente (p.187). É essa sensação que garantiria que o dialético não está

sonhando…

Festugière explica que o modo próprio à qewriva é concebido por Platão

como correlato exato desse Ser supremo, que, segundo Platão, não é essência mas

está muito acima desta em dignidade e poder. Ora, conhecer, para Platão, é

conhecer a essência. Mas trata-se aqui da definição de conhecimento discursivo.

Na medida, porém, em que este Ser supremo é ilimitado, ele não pode servir a um

conhecimento distinto no qual seria definido pelos seus caracteres negativos, em

se declarando o que ele não é. Circunscrito, ele não seria mais que uma essência.

De modo que se a dialética nos leva à postulá-lo, ela, no entanto, é ineficaz em sua

apreensão. Entretanto, o nou'", apontado por Platão como a parte da alma que

participa ao Divino, purificado pelo longo processo de cavtarsi", no qual se

inclui a dialética, e portanto livre dos elementos estranhos à sua origem divina,

torna-se apto a “sentir” o Ser em sua existência, a tocá-lo. O princípio continua o

mesmo, o semelhante conhece o semelhante, e como, no Ser, essência e existência

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se confundem (p.234), a sensação de sua presença corresponderia à apreensão de

sua essência. Esse contato, segundo Festugière, se configuraria como uma espécie

de êxtase, que não seria outra coisa que o prazer advindo do reencontro do nou'"

com a sua origem.

De modo que segundo a interpretação de Festugière, o modo próprio de

intelecção da novhsi" se definiria em termos outros que aqueles que definem o

modo próprio de intelecção da diavnoia. E como tal se definiria como uma espécie

de contato para além da apreensão das essências, como uma união inexprimível,

onde o nou'", perdido em seu objeto, o toca sem poder definir isso que ele toca,

não tendo outro sentimento que o sentimento de sua presença (p.226). E essa

experiência, por sua própria natureza, não pode ser traduzida por nenhum

discurso, ela é inefável (p.191).

Apesar de célebre, a interpretação mística de Festugìere nunca foi, no

entanto, unanimidade. Já na época de sua aparição Emile Bréhier102 lhe dirigia

sérias reservas, nas quais foi seguido mais tarde por H. Joly103. Mais

recentemente, entre os trabalhos que retomam a questão, destaca-se o artigo de

Yvon Lafrance, Platon et la Géometrie: la méthode dialectique en République

509d-511e, cuja motivação, explicitamente, não é outra que a de enterrar de vez

tal interpretação.

Afinal, pergunta Lafrance (p. 48) como compreender, por um lado, que a

Forma inteligível do Bem apresentada na passagem da Linha em tanto que

princípio não hipotético como o mais claro do saber e, por conseqüência, o mais

inteligível, torna-se de acordo com a interpretação mística o menos inteligível de

todos os princípios do saber já que ele não pertence nem mesmo ao âmbito do

conhecimento? E, por outro, que Platão, chame a atenção aos matemáticos e

geomêtras de seu tempo para as ambigüidades de suas tevcnai fundadas só em

hipóteses e ofereça em troca uma espécie de experiência mística de ascensão do

espírito em direção ao inefável e ao indefinível?

Em oposição à interpretação mística de Festugìere, Lafrance propõe uma

leitura “geométrica” da Linha, onde os métodos aí expostos seriam, pelo lado da

102 Revue des Études Grecques, 51, 1938, p. 489- 498. apud. Yvon Lafrance, Platon et la

Géometrie: la méthode dialectique en République 509d-511e. p. 46 103 Le Renversement platonicien, Paris, Vrin, 1974, p. 97-109. . apud. Yvon Lafrance, loc. cit.

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diavnoia, uma retomada do método hipotético dos geômetras gregos, e, pelo lado

da novhsi", uma retomada do método analítico e sintético originário, também, da

geometria grega, e que, portanto, todos os processos envolvidos na descrição de

Platão permaneceriam estritamente relacionados à esfera racional (p.49). segundo

Lafrance, se tantas controvérsias surgiram é porque erradamente se super

valorizou a distinção entre a diavnoia e a novhsi".

O engano estaria em se acreditar que a distinção entre diavnoia e a novhsi"

com relação a diferença de método sublinhada por Platão — por um lado, o

matemático que toma certas hipóteses como ponto de partida e segue em linha

descendente até chegar a conclusão do que ele se tinha proposto anteriormente:

um teorema a demonstrar ou um problema a resolver; por outro, o dialético que

parte igualmente dessas hipóteses, mas com um fim contrário, o de as ultrapassar.

Usando-as como trampolins, de onde se lança em direção ao ponto mais alto: o

Princípio Absoluto.— se funda, em última análise, na identificação da novhsi"

como um processo ascendente e regressivo onde se recorreria a intuição e a

diavnoia como um processo descendente e progressivo onde se progrediria por

dedução, nos mesmos moldes descritos no Fédro (265c-266b) e no método

socrático de perguntas e respostas.

Lafrance visa, aqui, principalmente, Robinson que em sua interpretação

distingue cinco características do método hipotético (hipótese, dedução,

compatibilidade, provisório e aproximativo)104, descrito por Platão, que o

afastariam de uma origem geométrica e o aproximariam do método socrático de

perguntas e respostas. Entretanto, segundo Lafrance, ainda que tal interpretação

esteja de acordo com a ênfase dada por Platão ao caráter essencialmente dedutivo

das matemáticas, ela se encaixaria mal na passagem da Linha, e por duas razões:

Em primeiro lugar, não se vê como os exemplos dados por Platão, para ilustrar as

hipóteses de que partem os matemáticos (o par e o impar; os ângulos e as figuras),

possam ser consideradas como opiniões provisórias e não como verdades de base.

Em segundo lugar, tampouco se vê como associar à demonstração geométrica um

caráter provisório e aproximativo. Como sublinha Lafrance (p.64), a

104 ROBINSON, R. Plato’s Earlier Dialectic. Oxford, Oxford University Press, 1953. p. 256. Yvon Lafrance, op. cit. p. 64.

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demonstração geométrica, uma vez estabelecida e aceita, é considerada definitiva

e completa em relação ao objeto que ela queria provar.

Segundo Lafrance, além dessa versão socrática do método hipotético,

haveria uma outra, sobre a qual pouco se falou, e que parece se encaixar melhor

no contexto: a versão que Proclus apresenta em seu comentário sobre Euclides.

Nesse texto, Proclus105 diz que todo procedimento geométrico, seja a

solução de problemas seja a construção teoremas, consiste de seis etapas: a

proposição, a exposição, a determinação, a construção, a demonstração e a

conclusão. Para Lafrance, essa descrição de Proclus, reproduziria, de forma mais

fidedigna, os mecanismos do raciocínio geométrico na medida em que, ainda que

possam ser encontrados casos que não concentrem todas essas seis etapas, de

acordo com Proclus, pelo menos três delas estariam sempre presentes

necessariamente: a proposição, a demonstração e a conclusão. O quê, a

aproximaria, perfeitamente, da descrição de Platão.

Segundo Lafrance, Platão estava suficientemente a par dos mecanismos

matemáticos de sua época, para desconhecer os procedimentos descritos por

Proclus. Se Platão se limita a descrever o procedimento matemático, apenas em

termos da atitude dos matemáticos face aos princípios de que partem em seus

raciocínios e no uso de imagens, isso se deveria menos à ignorância de Platão, e

mais à preocupação epistemológica de sublinhar dois aspectos fundamentais da

ciência geométrica.

De modo que a “deficiência”, apontada por Platão, com relação ao método

hipotético dos geômetras, não seria por causa do caráter provisório e aproximativo

de seus resultados, como defendeu Robinson, mas por causa do caráter derivativo

dos princípios de que partem. Segundo Lafrance, Platão não estaria negando a

validade, do ponto de vista da diavnoia, da matemática e da geometria, mas

simplesmente apontando que, do ponto de vista da novhsi", elas não poderiam ser

consideradas ciências perfeitas, na medida em que ainda haveria lugar para um

saber superior capaz de levar a uma maior inteligibilidade do real. O fato de

Platão ter considerado os princípios da geometria e das matemáticas como simples

hipóteses, isto é, como princípios derivados, responderia, portanto, à sua

105 apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 66.

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convicção na possibilidade do espírito humano de atingir um saber absoluto,

universal e infalível (p.71).

Mas isso não quer dizer que Platão, em contrapartida, esteja oferecendo um

método de uma outra “natureza”, mesmo por que, acrescenta Lafrance (p.72), a

preocupação em se alcançar um princípio unificador era prática comum entre os

geômetras e matemáticos de sua época.

Lafrance se apóia, novamente aqui, em Proclus. Segundo Lafrance, Proclus

faz referência a três espécies de métodos utilizados pelos geômetras gregos: o

método analítico-sintético, o método de divisão e o método de redução ao

absurdo. Entre eles, o analítico-sintético era considerado o mais “belo” por levar a

investigação a um princípio comum.

A descrição desse método, no entanto, Lafrance vai buscar no testemunho

de Pappus, um dos mais importantes comentadores gregos da matemática e que

viveu no final do séc. III de nossa era106. Segundo Lafrance, Pappus nos descreve

o método analítico-sintético como sendo composto de dois momentos: o primeiro,

chamado analítico por seu caráter regressivo, consistia em supor o que é

procurado como estando já produzido e depois examinar o antecedente de onde

ele poderia ter resultado e novamente examinar o antecedente desse último, e

assim sucessivamente até se chegar a alguma coisa já conhecida ou da ordem de

um primeiro princípio. Já o segundo momento, a síntese, consistia no caminho

oposto. Tomando como já produzido o que se alcançou em último lugar pela

análise, e arranjando segundo sua ordem natural as conseqüências que

anteriormente eram antecedentes, ligando umas as outras, chega-se finalmente ao

estabelecimento do que era procurado.

Lafrance vê nesse método, justamente, a fonte de inspiração de Platão na

formulação do método dialético apresentado na passagem da Linha dividida.

Assim como foi o caso na descrição da diavnoia, o manancial de Platão,

permaneceria, aqui também, a própria matemática. Contra a opinião de Proclus107,

de que teria sido Platão, o inventor do método analítico, Lafrance argumenta que

devemos compreendê-la nos mesmos termos em que se diz que Aristóteles teria

sido o inventor do silogismo, ou seja, assim como, antes de Aristóteles, já se

106 LINTZ, Rubens G.. História da matemática, vol. I, Ed. da FURB, Blumenau, 1999. p. 105. 107 apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 78.

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utilizava o silogismo sem se estar plenamente consciente de todas suas

implicações lógicas, também os geômetras anteriores a Platão já utilizariam o

método analítico sem estarem plenamente conscientes de suas implicações

epistemológicas e metodológicas (p.78).

Mas, o mais importante para a compreensão do tipo de mecanismo que

Platão tem em vista quando tenta descrever a dinâmica da potência noética,

segundo Lafrance, é o caráter das implicações lógicas desse método analítico.

Examinando melhor esse método vemos que sua validade supõe a

reciprocidade ou a equivalência das proposições envolvidas. E isso só é possível

se, em ambos os momentos, o processo envolver dedução. E aqui esbarramos no

ponto central da tese de Lafrance. Isso por que não é fácil mostrar como as

premissas de uma demonstração podem se tornar as conseqüências de uma

conclusão108.

Para Aristóteles, p. ex., a análise envolvida na novhsi", não envolve dedução,

mas, antes, corresponderia a uma espécie de compreensão intuitiva adquirida a

partir de um processo de indução das experiências individuais que nos levaria ao

conceito universal e à proposição universal, os quais serviriam de premissas não

demonstráveis de toda demonstração (Meta. 1051a 21ss; Ética a Nicômaco 1112b

20ss). Esse processo não seria um processo discursivo e, ao contrário da indução

perfeita (Anal. pr. II, 68b), não poderia ser reduzida a um tipo de silogismo.

Lafrance defende, no entanto, que a explicação de Aristóteles é parcial e

que, de fato, existiriam, na geometria grega, duas formas de análise: de um lado, a

de caráter intuitivo, mencionada por Aristóteles, e de outro, a de caráter dedutivo

que aparece nas obras de Euclides, Arquimedes e Pappus. Segundo Lafrance, a

reciprocidade ou a equivalência das proposições geométricas figuraria, entre os

geômetras gregos, uma espécie de ideal a alcançar, como se pode ver no esforço

de Euclides, em seus Elementos, no sentido de mostrar a reciprocidade das

proposições geométricas aí apresentadas. É bem verdade que eram conhecidos

casos em que as proposições geométricas não admitiam reciprocidade, mas essas

representariam, ao olhos dos geômetras, um escândalo da mesma forma que, para

os pitagóricos, os números irracionais eram motivo de espanto (p. 82 ss.).

108 Essa seria a razão por que Cornford (citado por Lafrance) rejeitaria uma interpretação dedutiva da análise.

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Lafrance apresenta um exemplo, tirado de Robinson109, que ilustra a

possibilidade110 de haver conseqüências lógicas nos dois sentidos da análise e da

síntese:

(1) 3x = 4y (3) 3x + 2y =6y (2) 3x + y =5y (2) 3x + y =5y (3) 3x + 2y =6y (1) 3x = 4y

A partir daí, Lafrance conclui que este duplo movimento de análise e de

síntese assim como a reciprocidade das proposições geométricas constituíam, aos

olhos de Platão, o arquétipo por excelência de toda metodologia científica, e que é

essa versão do método analítico que Platão tem em vista quando tenta nos

descrever a dinâmica da potência noética. Nesse sentido, Lafrance distingue

quatro características do método analítico-sintético dos geômetras gregos que

podem ser encontradas nas exposições metodológicas de Platão adaptadas à

argumentação filosófica: 1) o duplo movimento de regressão em direção a um

princípio e de progressão em direção a uma conclusão. 2) o uso de hipóteses em

diversos sentidos, seja como verdades de base ou como proposições provisórias.

3) o processo de dedução na maioria dos casos, o processo de indução sendo

considerado um “mal passo”, o último recurso. 4) a possibilidade de redução ao

absurdo ou ao impossível.

No caso da passagem da Linha, segundo Lafrance, seu esquema geral

reproduziria, mais do que qualquer outra, os traços essenciais do método analítico

– sintético: a noesis consistiria em considerar os princípios das ciências

matemáticas como princípios derivados, isto é, hipóteses, e a se elevar dessas

hipóteses a um princípio universal e não hipotético, num movimento regressivo

inspirado na descrição de Pappus e, portanto, de caráter dedutivo. Uma vez

atingido esse princípio, o movimento noético consistiria em deduzir desse

princípio universal certas propriedades para chegar à conclusão última, e mais

uma vez o modelo aqui seria aquele descrito por Pappus em relação a síntese. A

noésis em seu movimento descendente se confundiria, portanto, com a dianóia

enquanto que se distinguiria dela pelo seu movimento ascendente que lhe é

característico (p. 88).

109 R. Robinson, Analysis in Greek Geometry, p. 469 e 472. apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 82. 110 Alguns comentadores (Lafrance cita Cornford) rejeitariam essa baseados na dificuldade em se mostrar como as premissas de uma demonstração podem se tornar as conseqüências de uma conclusão.

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Lafrance, entretanto, sublinha que essa afinidade entre o método analítico –

sintético dos geômetras gregos e o método dialético apresentado por Platão na

passagem da Linha, não deve ser entendida em termos de uma simples redução.

Isso seria ir contra o texto explícito de Platão onde é dito, claramente, que há uma

diferença entre o método matemático e a dianóia, de um lado, e o método

dialético e noésis, de outro. A sua proposta é que se considere esse método

analítico – sintético dos geômetras gregos como o arquétipo comum sobre o qual

trabalha Platão e, do qual, suas descrições metodológicas seriam uma espécie de

variação.

Segundo Lafrance, o que autorizaria Platão a apresentar o seu método

dialético como diferente do método das matemáticas, era a introdução de duas

idéias novas mais do que um novo método: a idéia de um saber universal e

infalível e a idéia do valor metodológico da intuição, que os geômetras de sua

época tendiam a descartar em favor da dedução. Mas que, no entanto, quando

Platão tenta nos descrever a dinâmica da potência noética e da dialética, ele dá

mostras de estar desprovido dos meios metodológicos e que, portanto, é bem

provável que seu ponto de referência permanecesse o mesmo: a geometria e a

matemática (p. 88).

Lafrance aponta que é, sobretudo, em relação à última etapa do método

dialético — a intuição do princípio não hipotético — que a interpretação de

Festugière funda sua interpretação “mística” do método dialético. E, que nesse

sentido, ele se apóia, principalmente, no uso repetido dos verbos aJvptetai (511b4)

e aJyavmeno" (551b7), que sugeririam a metáfora do “tocar”.

Para Lafrance, no entanto, nada indicaria aqui que esse “toque do espírito”

implique uma experiência de ordem “mística”. Ele vê, no texto, antes de tudo, o

esquema de uma classificação das ciências e de graus de conhecimento fundada

sobre graus de realidade. Tampouco ele vê, na série de metáforas sugestivas da

Alegoria da Caverna, algo que remeta a um gênero de experiência que fosse

propriamente “mística”, elas lembrariam, antes, uma experiência de ordem moral.

E quanto ao:

(…) Admite, portanto, que as coisas inteligíveis não recebem do Bem apenas

a sua inteligibilidade, mas também retiram dele a sua existência e a sua

essência, apesar de o Bem não ser a essência, mas está muito acima desta

em dignidade e poder.

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(Rep. VI. 509 a-b).

Lafrance afirma que essa passagem indicaria, sem dúvida, uma prioridade

da forma inteligível do Bem sobre as outras formas inteligíveis, mas, daí, supor

que esse Bem estaria para além da ordem normal de conhecimento, é um passo

que o texto não autorizaria. Se o Bem aparece como causa da ciência e da verdade

e como para além da essência é, justamente, porque os princípios da ciência

derivam todos da forma inteligível do Bem, em tanto que princípio não hipotético,

e não porque o Bem não pertence à esfera inteligível. A distinção fundamental

subentendida tanto na passagem da Linha dividida (509D-511E), assim como nas

igualmente famosas passagens da analogia do sol (507-509c) que a antecede, a

alegoria da caverna que a sucede (514a-521b) e, por fim, a descoberta das ciências

preparatórias à mais alta educação (521c-534e), é uma distinção entre opinião e

ciência, ou seja, duas experiências fundamentais do espírito humano, não se

vendo, portanto, como uma experiência “mística” poderia tomar lugar no interior

dessa distinção (p.90).

No que se refere especificamente a essa intuição, Lafrance segue

Robinson111 e afirma que devemos entender essa intuição do princípio não

hipotético não em seu sentido moderno de saber assegurado mas não obtido

através de um método, mas como o resultado e o produto do método dedutivo: O

movimento ascendente do espírito dialético em direção ao princípio não hipotético

imitaria o movimento analítico ou regressivo do espírito geométrico que

“caminha” de hipótese em hipótese por via dedutiva. Nesse percurso em direção

ao princípio não hipotético, pode acontecer que o dialético ponha uma hipótese

cujas conseqüências sejam contraditórias entre si. Nesse caso ele deve procurar

uma outra hipótese e examinar de novo suas conseqüências. Se as conseqüências

não são contraditórias, então o dialético deve retornar sobre a hipótese em si

mesma e se perguntar se ela não é derivada de uma outra mais fundamental, e

assim sucessivamente. O dialético, continua Lafrance, deve continuar nesse

processo até o dia em que a última hipótese, após ter passado por um longo

proceso de reflexão nas quais suas conseqüências não apresentaram nenhuma

contradição entre elas, aparecerá como uma verdade absoluta, universal e

111 R. Robinson, L’emploi des hypothèses selon Platon, p. 262-266. apud. Yvon Lafrance, op. cit., p. 90.

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infalível. Nesse momento, essa última hipotése torna-se não hipotética e, nessa

última etapa, a dedução é substituída pela intuição.

Lafrance conclui que Platão considerava a intuição racional como o

complemento de um processo dedutivo e, portanto, todos os mecanismos

envolvidos permanecem estritamente relacionados à esfera racional. De modo que

Platão reprovaria aos geômetras de seu tempo, não só o fato de tomarem seus

princípios como primeiros na ordem do conhecimento, mas também e,

principalmente, de negligenciarem a parte devida à intuição na busca pelo saber.

Lafrance termina seu artigo reconhecendo que seja possível encontrar

aspectos do pensamento de Platão profundamente marcados por um certo

misticismo. Mas descarta, veementemente, a possibilidade de fundar esse

misticismo do platonismo sobre o método dialético já que esse não seria o caso

nem no que diz respeito à dianóia nem à noésis, e nem, tampouco, à intuição do

princípio não hipotético. Mas, ao contrário, o método dialético representaria o

cerne estritamente racional da filosofia de Platão e exprimiria seu esforço último

para escapar à esfera do irracional e atingir os fundamentos indubitáveis do saber

humano.

Antes de passarmos à conclusão desse trabalho, gostaríamos de fazer

algumas considerações sobre as duas interpretações analisadas: a chamada

interpretação mística de Festugière e a versão geométrica de Lafrance.

Se há um ponto, com relação à passagem da Linha, com o qual todos os

comentadores consultados concordam, é a existência de uma tensão, na descrição

de Platão, entre, por um lado, a certeza e a importância no que se refere ao fim a

atingir pela dialética, e, por outro, a imprecisão referente aos meios de alcançá-lo.

E, de fato, uma leitura mais atenta não deixa dúvidas quanto a isso: de um lado,

nada mais nada menos, que o panto;" ajrch;n, isto é, não um princípio qualquer,

mas, justamente, o Princípio que faz com que todas as coisas sejam o que são, de

outro, uma exposição do método dialético fundada, basicamente, a partir do

contraste com o método matemático, mas que, ao mesmo tempo, sugere uma

relação não explicitada entre ambos os métodos.

Dois caminhos se oferecem, portanto à interpretação: um em torno do fim a

alcançar, o outro em torno da relação não explícita entre o método dialético e o

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método matemático. Para além das conclusões radicalmente contrárias a que

chegam as interpretações de Festugière e Lafrance quanto à índole da experiência

noética, nota-se entre elas, antes de tudo, uma diferença na ênfase dada a cada um

desses aspectos. Festugière se concentra, principalmente, em torno do

panto;" ajrch;n, que, segundo ele, é considerado por Platão como o divino por

excelência, o princípio supremo ou, em uma palavra, Deus. Já Lafrance detém-se

basicamente na questão do método e na sua inspiração matemática, vendo nesse

panto;" ajrch;n não mais que um postulado lógico.

Queremos crer que é justamente essa diferença na ênfase dada a cada um

dos aspectos mencionados, o que determina o antagonismo dessas interpretações

e, também, arriscamos, seus respectivos “excessos”.

Vejamos primeiro a interpretação de Festugière:

Para começar, é preciso ser dito, a favor da tese de Festugière, que existem

pelo menos três indícios que levam a argumentar no sentido de que o Bem

platônico tem claras conotações religiosas e teológicas:

Em primeiro lugar, a forma analógica como Platão decide apresentar o Bem.

Com efeito, ao comparar a posição do Bem e suas funções no mundo inteligível

com a posição do Sol e suas funções no mundo sensível, Platão se esforça em

matizar que o ponto de comparação, ao que, por outro lado, denomina engendrado

do Bem (Rep. 507a), não é só em termos de um objeto em condição de igualdade

ao resto dos objetos do mundo sensível, mas uma divindade:

Sócrates — Qual é, então, na tua opinião, de todos os deuses do céu, aquele

que pode realizar essa união, aquele cuja luz faz com que os olhos vejam da

melhor maneira possível, e que os objetos visíveis sejam vistos? Glauco — O mesmo que tu e todas as pessoas reconhecem como senhor: o

Sol. (Rep. 508 a)

Por outro lado, a validez dessa metáfora parece não se apoiar somente em

razões formais (isomorfia estrutural e funcional), mas em razões ontológicas. Pois

o elemento análogo ao Bem, a divindade solar, não é algo absolutamente distinto

do Bem, mas o qual o Bem engendrou análogo a si mesmo (Rep. 508b). Portanto,

dado que em toda geração tem de existir necessariamente uma certa co-

naturalidade entre o gerado e o que gera, é evidente que somente o divino pode

proceder do divino. Além disso, sendo o Bem o Absoluto, o princípio único

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fundante e não condicionado de tudo o que tem ser, a perfeição mesma não

participada, é possível pensar que o Bem não é outra coisa que a divindade, não

algo divino, mas a divindade em si mesma.

Em segundo lugar, é conveniente recordar o caráter divino que Platão

outorga sempre às idéias, ao modelo eterno. No Hípias Maior (297c-d), Sócrates

afirma que a beleza “dos deuses” participa da Beleza em si112 e, levando-se em

conta a identidade platônica entre Beleza e Bem, também a sua bondade e

perfeição. Portanto, na medida em que Platão apresenta o Bem na República como

Absoluto e fundamento das idéias, na medida em que o modelo eterno é o divino,

o Bem pode ser compreendido aqui como o divino em si mesmo.

Em terceiro lugar, a caracterização que Platão faz do Bem, uma

caracterização não isenta de conotações religiosas e teológicas:

a) o Bem é um absoluto — é a fonte e o fundamento de todo o existente,

mas o mesmo não se acha determinado em sua existência. É, pois, manancial do

Ser, mas ele mesmo não é alterável, não cabem fissuras no Bem, diferenciações,

possibilidade de predicação, pois no domínio do Bem não existe distinção alguma.

Portanto, se recordarmos, a propósito disso, um dos princípios normativos que

Platão estabelece no Livro II de A República (379 a-383c) como demarcador da

validez teológica, veremos que, para Platão, a divindade era algo simples no duplo

sentido de que: a) nela não cabe diferenciação ou multiplicidade alguma e b) no

sentido de que não pode aparatar-se da forma ou do estado que lhe é próprio. As

coisas mais perfeitas, portanto, são aquelas que sofrem as menores transformações

por causa de outras coisas. Mas a divindade, diz Platão, é o verdadeiramente

perfeito. Logo não cabe mutação nela, nem sequer por vontade própria. Toda ação

da divindade é devida à necessidade.

b) o Bem é causa de todo reto e belo que existe em todas as coisas — por

ser o Bem a perfeição mesma e por ser a causa de todo o existente, do eidético e,

indiretamente, de todo o resto, o Bem está participando em tudo e é, por isso,

causa do bom e belo que existe em todas as coisas. O Bem não pode ser causa do

mal. Essa tese sobre o Bem corresponde, portanto, à primeira das leis normativas

112 Devemos sublinhar, no entanto, que a expressão aujto to calon, que aparece no texto, não implica o sentido metafísico que lhe dará Platão no diálogos da maturidade. (ver E. Chambry, notice sobre Hípias Maior, ed.Garnier, 1947)

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que Platão estabelece para a uma “sã” teologia113: que a divindade é

essencialmente boa e não pode ser, em conseqüência, causa do mal.

c) o Bem é a causa produtora de todo o existente — no Timeu, Platão

apresenta a imagem de um “demiurgo” que fabrica todas as coisas do mundo

atendo-se ao modelo perfeito das Idéias. Isso já foi interpretado no sentido de que

o Bem de A República seria apenas um princípio lógico. Contudo, em A

República, é o Bem quem dá o ser e a essência das Idéias. Além do mais, o Bem

engendra (sem mediação de demiurgo algum) Helios à sua semelhança que, por

sua vez, é a causa do ser e da essência do que devém no mundo sensível. (Rep.

508b-c, 517c). Na República, por conseguinte, é tudo produção do Bem. De modo

que a hipótese do “demiurgo” no Timeu não desmentiria uma interpretação

teológica do Bem na República.

d) O Bem é inefável e incomunicável — o que equipararia a experiência do

Bem não a uma experiência cognoscitiva, mas a uma experiência místico-

religiosa.

Além disso, a tese platônica segundo a qual o Bem não é essência mas está

muito acima desta em dignidade e poder (Rep. 509b) tem evidentes

conseqüências no que se refere à possibilidade de conhecimento Bem e ao seu

estatuto ontológico. Com efeito, se o Bem é algo que está para além de toda

essência, devemos considerar seriamente a hipótese da impossibilidade do

conhecimento de o que o Bem é em si. Segundo Platão, o conhecimento é

conhecimento somente de essências, de idéias. Conhecemos uma coisa quando

nossa alma transcende o particular sensível para apreender seu eidos, aquilo que é

comum à multiplicidade, aquilo que faz com que cada coisa seja o que é.

Conhecer é reduzir a multiplicidade de nossa experiência sensível à idéia

correspondente, isto é, é o processo e o termo pelo qual encontramos um princípio

unificador (eidos) da multiplicidade da experiência.

O conhecimento é possível porque, ainda que o concreto esteja em um devir

perpétuo, a realidade espaço-temporal tem uma certa consistência ontológica,

consistência que lhe vem por ser “participação” ou “imitação” imperfeita no

modelo eterno. Se o real concreto não participasse de algum modo desse modelo

113 Rep. 379a

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eterno, careceria de harmonia, de estrutura, de consistência e, assim, seria

absolutamente irredutível a um princípio unificador, isto é, seria incognoscível.

Conhecer é, pois, conhecer a essência. De modo que afirmar que o Bem é algo

que está para além de toda essência sugere sim que o em si do Bem é

incognoscível, ao menos, nos moldes de um conhecimento pela essência.

Mas será que podemos concluir, a partir daí, que o que Platão tinha em vista

era uma espécie de experiência mística nos moldes de uma mística cristã como

defende Festugière apoiado na tradição neoplatônica?

A nossa opinião é que o texto não permite isso, nem que Platão tenha

concebido a Idéia do Bem com as características que normalmente se associa a

Deus em nossa cultura cristã. A questão é que Festugière não se dá conta que se,

por um lado, a Idéia do Bem não é eijvdo", uma vez que sua natureza não é

essencial, ela permanece, todavia, uma ijdeva (ajgaqou' ijdevan) e que, portanto, toma

parte da realidade imutável e eterna do tovpo" nohtov". Esse aspecto deve nos pôr

em alerta contra a tendência de se tomar muito ao pé da letra esse para além da

essência. Se Platão desejava caracterizar a Idéia do Bem como sendo

absolutamente de outra ordem de conhecimento, não se entende por que então

essa caracterização aparece no meio de uma classificação das “ciências”. A

própria “tensão” mencionada entre, por um lado, a certeza e a importância no que

se refere ao fim a atingir pela dialética, e, por outro, a imprecisão referente aos

meios de alcançá-lo fica completamente esvaziada de sentido na medida em que

Festugière coloca a dialética, contra o texto explícito de Platão, no âmbito da

diavnoia. Reduzida a uma espécie de purificação do espírito, a dialética adquire

um papel apenas secundário na apreensão da Idéia do Bem, o que também vai

contra o texto platônico. Em suma, a interpretação de Festugière cria um tal hiato

entre o modo de conhecimento ordinário representado pela diavnoia e o modo de

conhecimento envolvido na novhsi" que realmente só através de uma “visão” ou

de um “salto” que ultrapassaria a intelecção, seria possível transpô-lo.

Mas será então que Lafrance tem razão e que devemos nos esforçar em

“exorcizar”, de uma vez por todas, a interpretação mística e sua influência na

compreensão dos textos platônicos por ela distorcer a real inspiração de seu autor

no que se refere ao método dialético aí apresentado assim como à essência do

platonismo? Não vamos tão rápido.

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O grande mérito da interpretação de Lafrance é, sem dúvida, revelar uma

certa continuidade entre a diavnoia e a novhsi" que torna o contraste sublinhado

por Platão nesses dois níveis de inteligibilidade um pouco mais coerente.

Entretanto, como Lafrance mesmo sublinha, a relação entre o método dialético e o

método geométrico não pode ser vista em termos de mera redução na medida em

que o texto explícito de Platão defende uma distinção clara entre o método dos

matemáticos e a diavnoia de um lado, e o método dialético e novhsi", de outro.

Apesar de seus esforços, a interpretação de Lafrance não consegue, no entanto,

definir bem esses limites na medida em que reduz o momento “ascendente” da

dialética a um mero processo dedutivo. Pois não se entende como simples

desdobramentos tautológicos tais como os que ele apresenta como exemplos de

reciprocidade entre as proposições, característica do método dedutivo, expostos

por Platão no Mênon: a virtude é ciência, logo, a virtude se ensina; a virtude se

ensina, logo, a virtude possui mestres e discípulos, pode produzir ou resultar na

intuição do summum principium.

E é justamente nesse ponto que vemos o ponto fraco da interpretação de

Lafrance. Ele parece não dar muita importância à distinção ontológica que Platão

confere a Idéia do Bem face às outra idéias. Para Lafrance (p. 92), a intuição do

princípio não hipotético da Idéia do Bem na dialética platônica seria tão “mística”

quanto a intuição do cogito no pensamento cartesiano ou aquela dos primeiros

princípios das ciências de Aristóteles. Entretanto, não nos parece claro que o

princípio da não contradição aristotélico ou o cogito cartesiano respondam às

mesmas exigências que Platão reclama para o seu primeiro princípio (Rep.VI.

509a ):

Confessa, então, que o que derrama a luz da verdade sobre os objetos do

conhecimento e proporciona ao indivíduo o poder de conhecer é a Idéia do

Bem. Podes concebê-la como objeto de conhecimento por ela ser o princípio

da ciência e da verdade, mas, por mais belas que sejam estas duas coisas, a

ciência e a verdade, não te equivocarás se pensares que a idéia do Bem é

distinta delas e as ultrapassa em beleza. Como no mundo visível se

considera, e com razão, que a luz e a visão são semelhantes ao Sol, mas se

acredita, erroneamente que são o Sol, da mesma forma no mundo inteligível

é correto pensar que a ciência e a verdade são, uma e outra, semelhantes ao

bem, mas é errado julgar que uma ou outra seja o Bem; a natureza do Bem

deve ser considerada muito mais preciosa.

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De modo que acreditamos que nem a interpretação de Festugière nem a

interpretação de Lafrance conseguem dar conta de todas as questões envolvidas na

mencionada tensão, na passagem da Linha, entre, por um lado, a certeza e a

importância no que se refere ao fim a atingir pela dialética, e, por outro, a

imprecisão referente aos meios de alcançá-lo. Ao super valorizarem um aspecto

em detrimento do outro, cada uma delas tende a oferecer uma visão apenas parcial

dos liames que ligam esses dois pólos.

E aqui terminamos as análises dos textos a que nos propomos no início

desse trabalho. É chegada a hora de tirarmos algumas conclusões …

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Conclusão

Na República, Platão chama de uJpoqevsei", portanto, o que o matemático

considera evidente por si mesmo e que não necessita justificação: não se dignam a

dar a razão (lovgon didovnai) delas nem a si próprios nem aos outros, considerando

que elas são evidentes para todos (510c). A questão é que, ao fazer isso, Platão

confere um caráter de provisionalidade e de suspeição a algo onde, antes, em

geral, não havia. É verdade que as ciências matemáticas partem de “princípios”

que elas não procuram justificar; mas do ponto de vista matemático, isso se

explica por esses princípios serem considerados auto evidentes e cuja justificação

é desnecessária à demonstração que se pretende, além de “matematicamente”

impossível. De modo que o que se deve ser esclarecido aqui é em que sentido

princípios, auto evidentes e indemonstráveis para os matemáticos, tornam-se, do

ponto de vista da filosofia, simples ujpoqevsei".

A resposta, como apontaram, contemporaneamente, alguns eminentes

comentadores1, parece estar mais perto do que se supunha e deve ser procurada à

luz da Teoria das Idéias. Nesse sentido, o artigo, tornado clássico, de H.F.

Cherniss2 nos ajuda a “iluminar” a questão. Segundo Cherniss, a Teoria das Idéias

1 Notadamente Yvon Lafrance (op., cit.), Suzanne Mansion. (op., cit.) e Richard Robinson (op.,

cit.) 2 H. F. Cherniss. A Economia Filosófica da Teoria das Idéias. Trad. Irley Franco in “O que nos faz pensar”, cadernos do depto. de filosofia da PUC-RJ, n 2, p. 109-118.

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tem como inspiração principal oferecer uma explicação das diversas esferas da

experiência humana — ética, epistemológica e ontológica — que, ao integrar

umas às outras, apresente um cosmos racionalmente unificado. Neste aspecto, A

Teoria das Formas pode ser considerada a contrapartida de Platão às teses

relativistas dos sofistas na medida em que funda a possibilidade de um saber

absoluto: é a teoria que fornece uma ontologia adequada à fundamentação de uma

epistemologia, por sua vez adequada a uma fundamentação da ética.

O âmago da teoria platônica, portanto, está nessa estruturação hierárquica

onde cada esfera se funda naquela que, na ordem lógica, lhe é imediatamente

superior, remontando-se assim até a esfera ontológica, fundada, por sua vez, em

um princípio ele mesmo não fundado e do qual todas elas se originam, a

ajrch; ajnupovqeto" (510b; 511b).

Voltando agora para a passagem da Linha, vemos que o teor da crítica

platônica parece se concentrar, principalmente, no fato de serem, os matemáticos,

incapazes de ligar suas hipóteses a um princípio primeiro:

Sócrates — Eu afirmava que os objetos desse gênero pertencem à classe do

inteligível (nohto;n), mas que, para conseguir conhecê-los, a alma é

obrigada a recorrer a hipóteses (uJpoqesesi), que ela não se encaminha em

direção a um princípio (ajrch;n), uma vez que não pode ir além dessas

hipóteses, servindo-se destas como de imagens dos mesmos objetos que

produzem sombras no segmento inferior, e que, em relação a essas sombras,

são tidos e considerados como claros (ejnargevsi) e distintos

(tetimhmevnoi"). (511a)

Entretanto, não devemos pensar que Platão está querendo chamar a atenção

aqui para o fato de que os matemáticos não buscavam remontar até aos princípios

primeiros de suas respectivas ciências. O testemunho de Proclus mostra que eles

não só faziam isso como procuraram mesmo subordinar o princípio da geometria

ao princípio da matemática (entenda-se aritmética)3. O que está em jogo é, antes,

que Platão não reconhece, nos princípios matemáticos, as características que ele

exige para todo aquele que, do ponto de vista filosófico, se pretende princípio. É

bem verdade que os exemplos trazidos por Platão para ilustrar sua crítica mais

confundem do que esclarecem — o par e o impar, as figuras geométricas e as três 3 “o ponto é a unidade que , além disso, toma uma posição.” Commentaire sur la République, trad. A.J. Festugière, Paris, 1970, t. II, pp. 95-96. O que caracterizaria a dependência do princípio do ponto ao da unidade e a conseqüente subordinação da geometria à aritmética. Lafrance remarca ainda que, na passagem 521c – 532 onde Platão classifica as disciplinas matemáticas, a aritmética vem em primeiro lugar e a geometria em segundo, (op., cit., p. 72).

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espécies de ângulos — pois não parece provável que os matemáticos da época os

reconhecessem como “princípios” de suas disciplinas. Mas, mesmo que

apelássemos para o ponto e a mônada, p. ex., parece claro que, por mais primeiros

que eles sejam4, não são, contudo, princípios primeiros de todas as coisas; eles são

válidos dentro da esfera matemática5, mas a matemática permanece apenas mais

uma esfera, entre outras, da experiência humana, havendo, portanto, de acordo

com a estruturação hierárquica da Teoria das Idéias, espaço para uma investigação

mais além sobre a natureza das entidades das quais ela parte.

Conhecer, segundo Platão, é conhecer a essência, a idéia. Conhecemos uma

coisa quando nossa alma transcende o particular sensível para apreender seu

eij'do", aquilo que é comum à multiplicidade, aquilo que faz com que cada coisa

seja o que é. Conhecer é reduzir a multiplicidade de nossa experiência sensível à

idéia correspondente, isto é, é o processo e o termo pelo qual encontramos um

princípio unificador (eij'do") da multiplicidade da experiência. Para Platão, os

princípios matemáticos, ainda que nohtav — eu afirmava que os objetos desse

gênero pertencem à classe do inteligível (nohto;n) (511a) — somente adquirem

plena inteligibilidade, do ponto de vista de uma saber absoluto, filosófico, quando

ligados, primeiro, aos seus respectivos princípios (ajrcaiv), isto é, às suas

respectivas formas inteligíveis: a idéia do ponto, a idéia da unidade, etc. e, por

fim, à Idéia do Bem6.

Portanto, se os “princípios” matemáticos têm, por sua vez, seus “princípios”

nas idéias que lhes correspondem, isso significa, então, que eles já não seriam

4 Segundo Proclus (op., cit., p.96-104.), o ponto é o princípio de todas as figuras geométricas e a mônada o princípio de todos os números. 5 A unidade podendo ser considerada como a ajrch;n ajnupovqeton da aritmética e o ponto a ajrch;n ajnupovqeton da geometria. 6 O que pode confundir são as expressões tou' tetragwvnou aujtou' e diamevtrou aujth'" que Platão, um pouco mais acima, utiliza para se referir aos objetos de estudo dos matemáticos. Segundo Baccou (op., cit, n. 448), não se trata aqui, absolutamente, da forma inteligível do quadrado ou da diagonal, nem tampouco de um quadrado qualquer, mas do quadrado matemático cuja noção estaria a meio caminho entre esses dois. Interpretada assim, a concepção de Platão com relação aos objetos matemáticos mencionados nessa passagem remete ao testemunho de Aristóteles em Metafísica A6 sobre as famosas entidades matemáticas intermediárias. Não iremos aqui nos envolver na querela histórica que envolve essa questão, quanto à legitimidade ou não de se fazer um paralelo entre o testemunho de Aristóteles e o que é dito por Platão nessa passagem. Para uma exposição abrangente das posições tomadas pelos principais comentadores e as objeções levantadas, cf. J.A. Brentlingler, The Divided Line and Plato’s “Theory of Intermediates”, in Phronesis, VIII, 1963, p. 146-166; E. de Strycker, La distinction entre l’entedement (dianoia) et

l’intellect (nous) dans la République de Platon, in Estudios de la Filosofia em homenaje al

Professor R. Mondolfo, tucuman, 1957, Fasc. 1, p. 209-226.

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“primeiros”, mas “derivados”. De modo que se pode entender, agora, por que

Platão os chama de “hipóteses”: enquanto “derivados”, do ponto de vista

filosófico, eles teriam o mesmo estatuto conjetural, provisório e aproximativo que

Platão reconhece, de maneira geral, em sua concepção de hipóteses.

Em resumo, quando Platão reprova os matemáticos e geômetras de seu

tempo de não “darem a razão” (lovgon didovnai) de seus princípios, ele não está

querendo dizer que os matemáticos não davam a definição das entidades que eles

estudavam, ou que não formulavam as proposições de que partiam, ou que não

provavam a sua existência, ou ainda, como defendeu A.E. Taylor7, que as

proposições que os matemáticos e os geômetras adotavam, como princípios de

suas disciplinas, eram falsas. Para Platão, as matemáticas constituem disciplinas

sérias, as quais apresenta mesmo como propedêuticas à dialética (522b –532a),

devendo ser, por isso, prescritas por lei (525c). Não nos parece, portanto, que

Platão esteja pondo em questão a validade das matemáticas, ou a legitimidade

delas de postularem seus princípios iniciais, ou ainda a força coercitiva de suas

demonstrações. Ao contrário, o rigor lógico com que o matemático caminha da

hipótese à conclusão é, antes, o arquétipo privilegiado, para Platão, do modelo de

ciência que ele quer instituir. Entretanto, do ponto de vista filosófico, as

disciplinas matemáticas não podem ser consideradas ciências (ejpisthvmh) no

sentido forte do termo (511a); elas permaneceriam, todavia, “limitadas”, na

medida em que seus princípios, enquanto derivados, não podem ser considerados

primeiros na ordem do conhecimento.

7 TAYLOR, A.E. Note on Plato’s Republic, VI, 510c2-5, ds Mind 43, 1934, p. 81-84.

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