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AÇÕES AFIRMATIVAS E A TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL NO ENSINO
SUPERIOR: DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA SUPERAÇÃO DO RACISMO
As ações afirmativas nas universidades brasileiras etnicamente referenciadas, seja por
acesso e permanência, seja por políticas de implementação de formações docentes
referentes a cultura afro-brasileira e africana, dialogam contrariamente com uma
estrutura social cujas relações raciais são pautadas por assimetrias em suas dimensões
simbólicas e materiais para a população negra. Com a implementação das ações
afirmativas em muitas universidades brasileiras nos anos 2000 e com o endosso dessas
políticas por meio da Lei 12.711/2012, as tensões provocadas por uma estrutura racista
brasileira chegam mais volumosas nas universidades que se colocam na obrigação
política e social de lidar com demandas da ordem econômica, social, estética, cultural e
política que os sujeitos coletivos negros e negras trazem de suas experiências para a
academia. Nesse sentido, os textos que compõem este painel trazem a problematização
das ações afirmativas, seja pelo debate de raça e classe no sistema de definição das
cotas na UFES, seja pela análise da experiência Projeto Políticas da Cor na UFMT ou
pela análise do processo de formação inicial docente a partir da disciplina Educação das
Relações Étnico-Raciais do curso de Geografia da UFMT. As pesquisas apontam para a
importância das políticas de ações afirmativas no ensino superior para a população
negra ao mesmo tempo em que destaca o papel da universidade em dialogar com as
demandas e desafios da ordem das práticas discriminatórias e para a importância das
políticas de permanência efetivas e não precarizadas que não podem ser desassociadas
das políticas de acesso, assim como para a inserção de conteúdos no currículo na
perspectiva de construção de valores e de visões de mundo que possibilitem à educação
escolar a superação das epistemologias raciais que ainda alimentam as desigualdades
decorrentes do racismo na sociedade brasileira, e também no ensino superior.
Palavras-chave: Ações Afirmativas. Lei 10.639/2003. Políticas da Cor.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10086ISSN 2177-336X
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PRÁTICA DOCENTE NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Candida Soares da Costa
Universidade Federal de Mato Grosso
Resumo
O presente texto tem por finalidade apresentar resultado de análise de processo de
formação inicial docente que, por intermédio da utilização da pesquisa-ação, buscou
interrogar a Prática de Ensino sobre possíveis construções de alternativas que possam
repercutir na formação docente, no que diz respeito ao preparo de futuros profissionais
da educação básica para que atuem na educação das relações étnico-raciais em
consonância à Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira e às Diretrizes
Curriculares Nacionais de Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Elegeu-se a sala de aula da disciplina
Educação das Relações Étnico-Raciais do curso de licenciatura em Geografia da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) como lócus privilegiado de coleta de
dados, posto o movimento permanente de reflexão-ação em que docência e pesquisa se
articulam na atuação de um mesmo sujeito. O processo desenvolvido e explicitado neste
texto aponta caminhos de construção de práticas educativas no âmbito da formação de
professores que beneficiam a implementação da Educação das relações étnico-raciais,
mas também a qualidade da educação escolar em todos os seus aspectos.
Palavras-chaves: Relações raciais; Prática pedagógica; Formação docente.
A Educação das relações étnico-raciais se incorpora às demandas curriculares
que já não se podem ser consideradas recentes, embora ainda não se encontre
repercussões curriculares de maior ênfase nos processos de formação inicial e
continuada de professores que vêm sendo formados para atuar na educação básica.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira e às Diretrizes Curriculares
Nacionais de Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, a Educação das Relações Étnico-Raciais deve se
efetivar como ingrediente imprescindível à consolidação tanto da cidadania quanto da
democracia em nosso país, à medida que contribui para reparação de injustiças sociais
decorrentes do pouco reconhecimento quanto à importância e significado dos negros
africanos e de seus descendentes na construção da cultura brasileira em suas dimensões
material e imaterial. Sob esse aspecto, pode se afirmar que educação das relações
étnico-raciais se constitui uma política de ação afirmativa, pois sua efetivação
possibilita o combate da discriminação racial, mas, ao mesmo tempo, o reconhecimento
da ancestralidade africana com a mesma relevância que a europeia e a indígena na
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composição do povo brasileiro, bem como no que diz respeito a sua produção histórica
e social. Desse modo, possibilita, ainda, que, por intermédio da educação escolar, que a
sociedade brasileira tenha acesso a conhecimentos que o currículo eurocêntrico vigente,
fundamentado nas teorias raciais do século XIX, particularmente nas teorias eugênicas,
tem impossibilitado.
Enquanto política curricular, a educação das relações étnico-raciais se impõe às
instituições de ensino superior, no sentido de que cumpram com o seu papel de
relevância social, inclusive no que tange às finalidades dos cursos de licenciatura,
particularmente no que se refere à introdução de conteúdos, métodos de ensino e
práticas que contemplem valores e concepções não racializadas sobre o povo brasileiro.
Concepções raciais vigentes na educação têm feito da escola partícipe da produção das
desigualdades raciais, particularmente pela produção do fracasso escolar com maior
prevalência sobre estudantes negros e negras.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana estabelecem
“Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações” como um dos princípios
basilares à atuação dos sistemas de ensino, das unidades escolares e dos professores. No
que diz respeito à educação superior, essas Diretrizes, assentadas nesse princípio,
determinam:
Introdução, nos cursos de formação de professores e de outros profissionais
da educação: de análises das relações sociais e raciais no Brasil; de conceitos
e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância,
preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade,
diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e de
textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do
ensino e aprendizagem da História e Cultura dos Afro-brasileiros e dos
Africanos. (BRASIL, 2004, p. 23).
Com essa determinação, exige-se que as instituições de ensino superior
reconfigurem seus processos de ensino. No que diz respeito às licenciaturas, há de se
convir que comtemplem conhecimentos gerais sobre relações raciais no Brasil, que
possibilite a reeducação de atitudes e práticas individuais e coletivas, mas que, ao
mesmo tempo, a formação também propicie a futuros professores e futuras professoras a
reconfiguração de suas aprendizagens em práticas didático-pedagógicas coerentes a
educação cidadã, democrática e anti-racista, a partir da adoção de “estratégias de
desconstrução das narrativas das identidades nacionais, étnicas e raciais que têm sido
desenvolvidas nos campos teóricos do pós-estruturalismo, dos Estudos Culturais e dos
Estudos Pós-coloniais”. (SILVA, 2007, p. 102).
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No contexto da formação docente, o desenvolvimento dos conteúdos exigem
fundamentos didáticos que possibilitem a condução do ensino de modo que professores
e professoras em formação sejam subsidiados à ressignificação desses conteúdos em
práticas docentes. Parece-nos que, exatamente aí, que se encontra o “x” da questão:
embora o racismo, o preconceito e a discriminação raciais estejam muito presente no
cotidiano social brasileiro, quando se fala em educação escolar como caminho para
superação dos mesmos, esses fenômenos são percebidos com muito maior
complexidade. São comuns alegações de quanto ao despreparo docente e à falta de
material didático que subsidiem atuações voltadas à educação das relações étnico-
raciais no cotidiano educativo escolar. Costa (2013) evidencia a falta ou insuficiência de
formação como um dos principais fatores, apontados pelos sujeitos que participaram de
sua pesquisa (professoras, coordenadoras pedagógicas, membros de equipe gestora),
que, segundo eles, dificultam à implementação da educação das relações étnico-raciais
na educação básica.
Se esse fator está presente no entendimento docente da educação básica, o
mesmo cabe ao entendimento docente das instituições de ensino superior, que formam
os professores para atuar na educação básica? Se a escola reclama de uma formação não
recebida, como dificuldade ao exercício do dever que lhe compete quanto a efetuar
práticas educativas coerentes aos princípios estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, tais como o da “consciência política e histórica da
diversidade”, de maneira que possa conduzir, por exemplo, “à compreensão de que a
sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que
possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem,
na nação brasileira, sua história” (BRASIL, 2004, p. 18), como podem as instituições de
ensino superior que atuam na formação inicial e continuada de professores da educação
básica, se isentar da responsabilidade de construir pontes entre o processo de ensino nos
cursos de licenciaturas e os dos estabelecimentos da educação básica no que diz respeito
à educação antirracista?
A análise que aqui apresentamos nasceu do entendimento da urgência e
necessidade de que a prática docente no ensino superior se realize pela reflexão sobre si
mesma. Uma reflexão que resulte na descoberta de possibilidades de construção de
métodos e formas de abordagens de conteúdos que alimentem na formação inicial,
futuros docentes a também elaborarem suas práticas ancoradas em referenciais teóricos
e metodológicos nos quais concepções raciais não encontrem ressonâncias, nem sejam
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realimentadas. Entretanto, como começar um trabalho que possibilite construção de
caminhos que possa desembocar nessa realidade? A resposta a essa pergunta se deu
única: tomar a própria prática como campo de reflexão, análise e intervenção no
decorrer do período letivo. Entretanto, em que concepção teórico-metodológica
encontraria suporte necessário ao desenvolvimento de prática pedagógica cuja
configuração se constituiria pela articulação do ensino e da pesquisa como partes
integrantes de um mesmo processo no âmbito do trabalho docente?
Nesse sentido, a Pesquisa-Ação, entendida segundo Barbier (2002) como a
ciência da práxis, se mostrou como a concepção teórica e metodológica de melhor
ancoragem da proposta, inclusive pela sua finalidade e postulado.
Se por muito tempo o papel da ciência foi descrever, explicar e
prever os fenômenos, impondo ao pesquisador ser um
observador neutro e objetivo, a pesquisa-ação adota um
encaminhamento oposto pela sua finalidade: servir de
instrumento de mudança social . [...] a pesquisa-ação postula que
não se pode dissociar a produção de conhecimento dos esforços
feitos para levar à mudança (BARBIER, 2002, p. 53).
Barbier (op. cit) aponta três pressupostos fundamentais da pesquisa-ação com
relação aos pesquisadores: a) percepção do processo educativo como objeto passível de
ser pesquisado; b) que percebam a natureza social e as consequências da reforma em
curso; e c) que compreendam a pesquisa como uma atividade social, política e
ideológica. Para ele, “O rigor da pesquisa-ação repousa na coerência lógica empírica e
política das interpretações proposta nos diferentes momentos da ação” (p.60).
Isso posto, fez-se necessária a continuidade da discussão, com destaque às
principais etapas do processo, considerando por um lado, como destaca Thiollent (1996,
p. 23), a expectativa científica de produção de conhecimento como um dos objetivos da
Pesquisa-Ação. Por outro, a necessidade de socialização de experiências que possam
contribuir com o debate sobre a implementação de políticas curriculares de educação
das relações étnico-raciais na educação superior, com vista à repercussão no currículo e
na prática educativa da educação básica.
Explicitação do processo
Enquanto docente, ter sobre si a responsabilidade sobre uma disciplina não
significa que se tem, de antemão, o total domínio sobre as diferentes dimensões que a
envolvem. Nesse sentido, uma questão fundamental que se coloca a quem se apresenta
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como ministrante é o que fazer no âmbito da disciplina. Outra, diz respeito ao que o
conjunto de estudantes sabem ou suspeitam sobre a disciplina que será ministrada.
A ementa se constituiu o ponto de partida. Entretanto, começar a partir de qual
ponto? No que diz respeito à disciplina em pauta, Educação das relações étnico-raciais,
essa questão não se relacionava à dúvida quanto ao domínio dos conteúdos previstos,
considerando o fato de a professora ministrante ser pesquisadora da área, mas sim à
consideração das especificidades na qual se configuraria o campo de atuação docente.
Isto é, o curso de Licenciatura em Geografia, da Universidade Federal de Mato Grosso,
a partir do período letivo 2013/1, quando a disciplina se tornou obrigatória no curso.
No âmbito da disciplina Educação das Relações Étnico-Raciais, a fase
exploratória, tem se configurado na semana inicial de cada semestre, em que a
disciplina é ofertada. A decisão pelo desenvolvimento dos conteúdos, estabelecendo
estreita relação entre ensino e pesquisa, impõe a necessidade de elaboração e aplicação
de instrumento de registros que propiciam reflexão e ação no decorrer do processo.
Nessa fase exploratória, utilizou-se o instrumento denominado “Atividade Introdutória
– Primeira aula”, que nada mais é que um questionário, submetido a respostas do corpo
de estudantes que compõem cada turma. A aplicação desse instrumento tem
possibilitado o levantamento de um conjunto de informações referentes a diferentes
aspectos do contexto no qual a disciplina se situa quanto ao perfil da turma, às
prenoções que trazem sobre: relações raciais, racismo e desigualdades raciais no Brasil;
à disciplina e aos conhecimentos dos quais ela se ocupa; assim como sobre as possíveis
resistências do alunado em relação à disciplina. Essas informações permitem avanços na
configuração da prática docente, especialmente no que tange às principais necessidades
de intervenção pedagógica por elas apontadas.
Um dos aspectos que essa atividade inicial tem propiciado nas turmas do curso
de licenciatura em Geografia é a percepção quanto à necessidade de se pautar o
desenvolvimento dos conteúdos de modo a melhor subsidiar os estudantes para que
compreendam o fenômeno educativo no que diz respeito à educação das relações
étnico-raciais, articulando duas dimensões: uma que abrange a formação teórico-
científica e outra que possibilite a formação técnico-prática, tendo em vista sua futura
atuação enquanto docente. Vale destacar, considerando o que já bem pautou Libâneo
(1994, p. 27), que a “organização dos conteúdos da formação do professor em aspectos
teóricos e práticos de modo algum significa considera-los isoladamente. São aspectos
que devem ser articulados”.
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Um fator importante que o processo didático-pedagógico tem evidenciado nas
turmas do curso de licenciatura em Geografia, onde a disciplina “Educação das relações
étnico-raciais” tem sido ministrada, é que os estudantes, embora já cheguem para cursar
a disciplina nos últimos semestres do curso, ainda apresentam limitadíssimas noções
sobre o significado das concepções raciais na composição da organização social e na
produção das desigualdades, que são marcadamente raciais. Apresentam noções sobre
desigualdades sociais profundamente naturalizadas, sem qualquer incômodo por elas
serem marcadamente raciais, com ênfase sobre a população negra. Além disso,
apresentam compreensão sobre a importância indígena, europeia e africana na
elaboração da cultura brasileira ainda sob perspectiva eurocêntrica. A explicitação dessa
compreensão fortalece, ainda mais, a necessidade do desenvolvimento dos conteúdos
sem que se perca de vista que os sujeitos envolvidos na realidade de cada uma dessas
salas de aula são futuros professores e futuras professoras em formação e que, se ainda
não estão em sala de aula, estarão em breve atuando como profissionais da educação
básica.
No que diz respeito à turma na qual foi ministrada a disciplina Educação das
Relações Étnico-Raciais no período letivo 2014/1, vale ressaltar as análises realizadas
por Costa e Oliveira (2015) como importante contribuição para a compreensão dessa
prática docente, que buscam explicitar articulação de ação/reflexão no processo de
formação docente no ensino superior.
O lugar da teoria na formação
No decorrer do processo, à medida que se estabelece um quadro teórico de
referência para a compreensão dos fenômenos que envolvem as relações raciais na
sociedade brasileira e o processo educativo escolar, busca-se estreitar ainda mais a
relação teoria/prática, interrogando-se, individual e coletivamente, sobre o que se ensina
sobre relações raciais no Brasil, ao se ensinar conteúdos de Geografia através dos livros
didáticos adotados em escolas públicas por intermédio do Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD). A partir dessa interrogação, as turmas têm sido instigadas a reflexão
sobre livro didático e atuação docente na área da Geografia. Desse modo, cada
estudante é orientado a escolher um livro didático, adotado em escola da rede pública
estadual, situadas no município de Cuiabá-MT e, com base nos referenciais estudados e
nas orientações recebidas em sala de aula, analisar esses livros, considerando em
aspectos quantitativos e qualitativos, os recortes raciais que os mesmos contemplam. O
resultado desse trabalho aponta que ao fazerem tais análises, os estudantes aprofundam
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os conhecimentos, ao mesmo tempo em que estabelecem interlocuções entre conteúdos
estudados na disciplina e conceitos básicos de sua área específica de formação tais
como paisagem, espaço, territórios, dentre outros.
Ao realizarem esse movimento reflexivo, individual e coletivamente o alunado é
instigado por esse processo de articulação ensino/pesquisa a compreender a própria área
de formação, a Licenciatura em Geografia, também como um campo de atuação em
que, tendo em visa a efetivação da educação das relações étnico-raciais, teoria e prática
se alimentam mutuamente.
Considerações finais
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (p. 14-15),
estabelecem a educação das relações étnico-raciais como uma política curricular cuja
implementação estabelece, dentre seus requisitos, para que “[...] as instituições de
ensino desempenhem a contento o papel de educar, é necessário que se constituam em
espaço democrático de produção e divulgação de conhecimentos e de posturas que
visam a uma sociedade justa”. Sob esse aspecto, processos didático-pedagógicos que se
orientam pelo método Pesquisa-Ação, somente se realizam sob o entendimento da sala
de aula como campo privilegiado para produção de conhecimentos. No que diz respeito
à educação das relações étnico-raciais, cujas concepções e princípios se opõem às
políticas e práticas educativas racializadas que atravessaram o século XX e adentraram
o século XXI profundamente orientadas por concepções eugênicas, a articulação do
ensino com a pesquisa em sala de aula, em busca de produção de novos conhecimentos
didático e metodológico, se configura como uma necessidade imperativa. Não se trata
de mera inserção de conteúdos no currículo, mas de construção de valores e de visões
de mundo que possibilitem à educação escolar a superação das epistemologias raciais
que ainda alimentam as desigualdades decorrentes do racismo na sociedade brasileira.
Sob essa perspectiva, ensino e pesquisa não se dissociam, mas se articulam
como elementos vitalmente complementares no âmbito do processo educativo. Os
resultados que aqui se apresentam são parte de um processo que se estabelece pela
relação com o conhecimento de forma dinâmica: ao mesmo tempo em que
conhecimento elaborado pode servir de suporte à compreensão da realidade, pode
também ser confrontado por essa mesma realidade, de modo a propiciar o surgimento
de um conhecimento novo, mais coerentes às demandas sociais correntes.
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A utilização da Pesquisa-Ação no cotidiano de formação de professores não
constitui caminho único, mas uma possibilidade para a construção de concepções de
educação que possibilite aos estudantes acessar conhecimentos sobre o Brasil e sobre o
povo brasileiro que a educação em suas concepções mais retrógradas e racistas não tem
permitido acessar. Além disso, possibilita avanços no processo de formação docente
cuja efetivação beneficia, qualitativamente, a educação escolar em todos os seus
aspectos.
Referênciais
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BECKER, Howard. Método de pesquisas em ciências sociais. 4. ed. São Paulo: Hucitec,
1999.
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raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília:
MEC/Secad, 2005.
COSTA, Candida Soares da. O negro no livro didático de língua-portuguesa:
imagens e percepções de alunos e professores. Cuiabá-MT: EdUFMT, 2007. (Coletânea
Relações Educação Raciais e Educação, 3).
_____. Educação para as relações étnico-raciais: planejamento escolar e literatura no
Ensino Médio. Cuiabá: EdUFMT, 2013.
COSTA, Candida Soares da, OLIVEIRA, Ozerina Víctor de. Relações raciais,
currículo e prática pedagógica na formação superior: olhar de dentro para fora. In
MULLER, Tânia Mara Pedroso, COELHO, Wilma de Nazareth Baía, FERREIRA,
Paulo Antonio Barbosa (Orgs.). Relações étnico-raciais, formação de professores e
currículo. São Paulo: Editora, Livraria da Física, 2015. (Col. Formação de professores
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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documento de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. Belo horizonte: Autêntica, 1999.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 14. ed. São Paulo: Cortez,
2005.
STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenía: raça, gênero e nação na América Latina.
Trad. Paulo M. Garchet. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
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POR UMA RELAÇÃO ARTICULADA ENTRE RAÇA E CLASSE NAS AÇÕES
AFIRMATIVAS PARA NEGROS E NEGRAS
Sérgio Pereira dos Santos
Universidade Federal de Mato Grosso
Considerações Preliminares
Este artigo, originado de tese de doutorado defendida em novembro de 2014,
investiga as mediações das categorias de raçai e de classe social no processo de
implementação das cotas sociais da Ufes para ingresso nos cursos de graduação entre
2006 a 2012. Essas cotas, para incluir os negrosii no ensino superior do Espírito Santo,
incluíram estritamente os critérios de renda e de origem escolar, não adotando o critério
étnico-racial.
Dessa forma, o problema da temática deste artigo é o pressuposto da
insuficiência da classe social, como mecanismo único e determinante para compreender
as desigualdades raciais que atingem os sujeitos negros no Brasil. Entendemos que a
relação entre raça e classe deve ser considerada na interdependência para abarcar todas
as tensões e contradições extraídas da própria realidade que essas duas categorias
expressam. Nesse sentido, o modelo de cotas adotado em 2008 pela Ufes, tendo apenas
o critério social, mesmo considerando que contemple os negros por muitos serem
pobres e estudantes de escolas públicas, é limitado para abarcar o racismo que a
população negra vive no contexto das relações raciais brasileiras em todas as classes
sociais.
Raça e classe no contexto das Ações Afirmativas
Entenderemos a demanda por Ações Afirmativas, principalmente no ensino
superior brasileiro, como mais um artifício do acúmulo de lutas dos movimentos negros
brasileiros pela educação e conquista da tão desejada cidadania plenaiii
.
Para Gomes (2001) as ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e
privadas com caráter compulsório, facultativo ou voluntário. Elas são entendidas como
mecanismos de combate da discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de
origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada
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no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a
bens fundamentais, como a educação e o emprego. Outros objetivos elas também
cumprem: a) induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica,
visando a tirar do imaginário coletivo a ideia de supremacia racial versus subordinação
racial e/ou de gênero; b) coibir a discriminação do presente; c) eliminar os efeitos
persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado,
que tendem a se perpetuar e que se revelam na discriminação estrutural; d) implantar a
diversidade; e) ampliar a representatividade dos grupos minoritários nos diversos
setores; e f) criar as chamadas personalidades emblemáticas, para servirem de exemplo
às gerações mais jovens e mostrar a elas que podem investir em educação, porque
teriam espaço.
A negativa histórica do direito à educação para os negros, inserida na construção
do Brasil da qual justificaria democraticamente as demandas por cotas para tais grupos
nas universidades brasileiras, nos permite um possível diálogo com a nossa formação de
país que “respinga”, no contexto passado e presente, as relações raciais brasileiras
marcadas por assimetrias raciais entre sujeitos de marcas raciais distintas.
Estudos, como os de Gilberto Freyre (1947), produzidos nos anos de 1930,
alicerçam-se numa compreensão de um padrão de relações raciais baseado num
consenso entre grupos de marcas raciais distintas desde o processo escravista do século
XVI ao XIX, negando o racismo estrutural brasileiro, ao tratar de preconceitos dispersos
na sociedade, pois somos uma sociedade miscigenada e harmônica, e ao apontar que a
pobreza seria a explicação das desigualdades entre negros e brancos.
Já os estudos financiados pela Unesco nos anos de 1950 e 1960, tendo a Escola
de Sociologia Paulista como sua liderança na produção acadêmica, ao dialogar
criticamente com a produção freyreana e a produção sociológica da Escola de Chicago,
denuncia o racismo estrutural brasileiro e “o preconceito de ter preconceito”, como
apontou Florestan Fernandes (2007). Essas pesquisas, especificamente as de Octávio
Ianni (2004) e Florestan Fernandes, entendem que a inserção do Brasil no processo de
modernização ou nas relações capitalistas de trabalho faria com que o ex-escravizado
afro-brasileiro fosse incluído ou o que problema do racismo que vive seria superado.
Ambos também analisam o afro-brasileiro pela via do paralelismo raça e classe, indo na
direção do argumento de que “todo negro é pobre, todo pobre é negro”, mesmo
elencando situações racistas em todas as classes sociais, trazendo a raça como
epifenômeno da classe, de modo que ela é considerada como instrumento de
desigualdade, mas subjugada ou determinada pela classe social. Entretanto, eles
avançam em relação a Freyre, ao destacar variados mecanismos de estereótipos e
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preconceitos vividos por negras e negros no Brasil, ancorados numa estrutura racista
oriunda de uma herança do passado escravista.
Pesquisas também clássicas, como as de Carlos Hasenbalg (2005), George
Andrews (1998) e a própria produção de Abdias do Nascimento (1982), já apontaram a
limitação da classe social no processo compreensivo da existência do racismo na vida
dos afro-brasileiros que o sofrem, pois o racismo, ligado ao padrão de relações raciais
produtor de assimetrias raciais, ocorre em todas as classes sociais, não se limitando a
um passado escravista, já que depois da abolição da escravatura brasileira, o racismo se
metamorfoseou e se ressignificou nas relações interpessoais e institucionais de variadas
formas, como a ideia de “elemento suspeito”, “boa aparência” e outros mecanismos que
a classe social não daria conta, na sua totalidade, de explicar isoladamente. Hasenbalg
(2005) no final dos anos de 1970, traz a raça como uma variável explicativa e
independente, pois considera que a relação entre raça e classe não pode ser
compreendida apenas numa “cortada” ou de uma maneira binária ou polarizada, como
quer muitos intelectuais ou gestores quando diante da definição das dimensões que as
políticas públicas devem tomar, para superar as desigualdades raciais, desconsideram a
raça como uma dimensão explicativa do racismo.
Assim, entendemos que ao considerar o padrão das relações raciais brasileiras
produtor de assimetrias entre negros e brancos, as desigualdades raciais têm na
operacionalização do racismo seu mote ofensivo, ao mesmo tempo em que a classe
social isolada é insuficiente na superação do problema racial do Brasil. Portanto, na
adoção de políticas de combate às desigualdades raciais no ensino superior, caberia
também a utilização de medidas etnicamente referenciadas.
Consideramos a relação entre raça e classe a partir de Stuart Hall (2008) com a
chamada teoria da articulação ou uma abordagem não redutiva. O autor jamaicano
propõe a teoria da articulação que seria uma conexão ou vínculo que não se dá
necessariamente em todos os casos, como fato da vida ou lei, mas algo que requer
condições particulares para sua emergência. Seria algo sustentado por processos
específicos, que não são “eternos” e fixos, mas que sempre se renovam e podem, sob
certas circunstâncias, desaparecer ou ser derrubados, culminando na dissolução de
antigos vínculos e de novas dinâmicas que façam conexões e re-articulações (HALL,
2008). Portanto, endossamos uma dimensão articulada e bifocal das injustiças
simbólicas e econômicas, ao entenderem as dinâmicas entre ambas, deslocando-se de
determinismos classistas que invisibilizam o racismo como instrumento opressor nas
relações sociais, raciais e de gênero (HALL, 2008; FRASER, 2002).
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A Pesquisa
A pesquisa se constituiu como qualitativa, considerando a metodologia dialética,
pois se tentou ressaltar as contradições entre raça e classe no processo de
implementação de ações afirmativas na Ufes. Os sujeitos da pesquisa mais ampla foram
alunos cotistas e não cotistas de diferentes cursos, funcionários da administração da
Ufes, o reitor, um representante do movimento negro capixaba e dois professores de
cada curso escolhido. Os cursos escolhidos para a investigação foram: Pedagogia,
Serviço Social, Medicina, Odontologia, Direito, Filosofia, Arquitetura e Urbanismo,
Psicologia. Tal escolha baseou-se no critério da presença maior ou menor de afro-
brasileiros de maneira a inter-relacionar cursos de muito prestígio social, riqueza e
poder ou de menor prestígio e riqueza e poder com as categorias raça e classe, como
também em razão para contemplar cursos representantes das grandes áreas do
conhecimento, como as Ciências Humanas e Sociais, as Ciências da Saúde e as Ciências
Exatas. Os cursos mais ou menos representativos socialmente valorizados que foram
escolhidos no campo investigativo desta pesquisa têm também como base a análise
relacionada com a renda familiar e raça/cor dos discentes da Ufes contida nos relatórios
da Comissão Coordenadora do Vestibular dessa instituição.
As cotas na Ufes
O debate em 2006, além de externo, principalmente pela imprensa capixaba,
também se dá internamente na Ufes. As passeatas, os piquetes e os enfrentamentos
políticos, em prol dos direitos à universidade pelos sujeitos coletivos raciais e étnicos,
deram o tom da tensão e do conflito que houve na universidade. De um lado, vieram os
representantes dos movimentos negros do Espírito Santo, de escolas públicas, dos
cursinhos populares e outros setores do Estado favoráveis à implantação das Ações
Afirmativas para os afro-brasileiros e os indígenas. De outro, os representantes das
instituições privadas e muitos alunos dos cursinhos pagos trouxeram trios elétricos para
a universidade, com vários cartazes e narizes de palhaço, questionando o processo de
luta dos grupos excluídos em prol do acesso a universidade.
A proposta de cotas para negros e indígenas na Ufes era extremamente rejeitada
pelos representantes das instituições privadas e pela maioria dos alunos dos cursinhos
privados e grupos afins, além de uma parte da imprensa do Espírito Santo,
especificamente alguns jornalistas dos jornais A Tribuna e A Gazeta. Alguns
intelectuais da época chegaram a falar que essa rejeição e embates dos dois grupos se
constituíra numa verdadeira “guerra civil”, simbolicamente representada por propostas a
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10098ISSN 2177-336X
favor e contra o projeto do Movimento Negro e simpatizantes de inclusão étnico-racial e
de alunos originados de escolas públicas na Ufes. A Ufes adota as cotas sociais no
vestibular de 2008 por meio da Resolução de nº. 33/2007.
A preterição/invisibilidade do critério racial pela renda e qualidade da escola
pública
Neste item, enfocaremos especialmente os depoimentos de sujeitos acerca das
políticas afirmativas da Ufes, materializadas nas cotas sociais. Discutiremos sobre a
preterição das cotas étnico-raciais em prol da escola pública e da renda na inclusão na
universidade. Sobre isso, temos:
Para o sistema de cotas, o social é o mais adequado. Entendo que nem todas as pessoas que são brancas são favorecidas financeiramente e nem todas as que são negras são desfavorecidas financeiramente. A gente volta no ponto da questão financeira da família poder permitir uma formação no Ensino Fundamental e Médio em instituições particulares. Infelizmente no nosso país a formação fundamental e o nível médio nas escolas públicas hoje são muito ruins. Não é a universidade o projeto principal, é o Ensino Fundamental e Médio de qualidade [...]. De novo o governo faz essas políticas imediatistas pra poder resolver uma questão que é crônica, e pra mim isso tudo é um paliativo e o aluno continua tendo um ensino básico de péssima qualidade, o que é errado (ANDRESSA
iv, branca
v, professora do
Curso de Odontologia, 12-11-2012).
Muito rico esse depoimento de Andressa para analisar este artigo. Um avanço é
quando ela não associa a pobreza como exclusividade dos negros, evidenciando dessa
forma que há brancos pobres, apesar de que, nesse raciocínio, está embutida a
invisibilidade do racismo, haja vista que, no Brasil, os brancos pobres não sofrem, e os
negros ricos muitas vezes com escolaridade, status social, poder e posses materiais e
econômicas geralmente sofrem. Também encontramos na fala mencionada uma
tendência de entender a universidade como neutra dos problemas sociais e raciais, ao
apontar que esses problemas não devem “ser resolvidos” dentro de seu espaço.
Na tentativa de negar a sub-representação de negros no ensino superior como
fruto das desigualdades raciais, a professora, ao mesmo tempo em que defende um
ensino básico de boa qualidade, coloca a meritocracia, no caso o vestibular, como o
instrumento exclusivo de acesso à universidade. Outra questão é colocar as cotas étnico-
raciais como algo do governo, deslocando-as das desigualdades raciais como um
problema social e coletivo, assim como as subtraindo da luta dos movimentos sociais
negros.
Entendemos que a contínua melhora da escola pública não é incompatível com a
implementação de cotas étnico-raciais, uma não exclui a outra. O problema é quando o
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pressuposto da melhoria da escola pública ou do acesso à renda vem para invisibilisar
ou desconsiderar a operacionalidade da raça como produtora de desigualdades raciais.
Hall (2008) e Fraser (2002) nos ajudam na análise de implementação das políticas
públicas afirmativas etnicamente referenciadas. Esses autores nos induzem a pensar
sobre a interdependência e as singularidades da diversidade cultural e das condições
materiais, já que ambas fazem parte negativa ou positivamente na vida de milhares de
brasileiros com marcas raciais distintas.
“Iguais mas separados”: algumas práticas discriminadoras
Este item tratará de estigmas, mecanismos distintivos e discriminatórios,
institucionais ou interpessoais, acerca da relação dos cotistas com os não cotistas e
professores, assim como da instituição com os não cotistas e cotistas. Tais práticas não
tiram a importância das Ações Afirmativas como mecanismos inclusivos, mas
evidenciam formas pelas quais os sujeitos coletivos excluídos da universidade são
tratados nela, assim como lançam interrogações para a universidade acerca das “novas”
relações produzidas em seus espaços a partir das cotas.
Um mecanismo distintivo, criado por alguns discentes do Curso de Direito, foi o
chamado “Direito Vip”. Tal grupo foi criado logo após as cotas sociais e a incorporação
no Direito de alunos que tradicionalmente não fazem parte do perfil de seus quadros
acadêmicos ou que são sub-representados neles. Sobre ele, Alisson nos diz:
A turma do segundo período criou uma comunidade secreta no Facebook chamada „Direito Vip‟. Quem me contou falou que o critério para ser do „Direito Vip‟ tem que ser gente que geralmente estudou no Darwin ou no Leonardo da Vinci, e quem não participava eram os cotistas. Inclusive eu soube de um caso de uma menina que estudou no Leonardo da
Vinci que, em tese seria da turma do „Direito Vip‟, mas como ela se associou aos cotistas, foi excluída do grupo. Certamente é uma forma
de exclusão, agora é natural [...]. Acho uma perversão total dentro da universidade as pessoas fazendo isso (ALISSON, branco, não
cotista, Direito, 14-12-2012).
Segundo Alisson, o “Direito Vip” foi criado “secretamente” no Facebook por
alunos de classe média e ex-estudantes de escolas privadas de grande prestígio e
onerosas do Espírito Santo, como Darwin e Leonardo da Vinci. O objetivo de seus
proponentes era se distinguir de cotistas e pobres.
Entendemos que, na criação de grupos como o “Direito Vip”, não há nada de
natural.
Considerando, no entendimento de muitas pessoas, que não se deve ou pode acabar
com acordos sociais legítimos ou conquistas sociais, como as políticas de cotas, ou o
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extremo de matar cotistas por essa condição pelo simples fato de serem contra,
estudantes criam mecanismos de distinção de classe e de status, ou até de raça, para
manter a reprodução social medida pela homogeneidade dos tipos de amizade, de
classe, vestimenta, linguagem, estética etc. Acontecendo por meio de mecanismos
excludentes no interior de práticas afirmativas inclusivas, nessa lógica, o “Direito Vip”
operaria, no contexto de alunos incluídos por cotas, como um mecanismo para separá-
los dos não cotistas, alunos ricos e elitizados, com o objetivo de distingui-los,
perpetuando, dessa maneira, os jogos de classes sociais, culminando no que Bourdieu
(2013) intitulou de “conciliação dos contrários”.
Esse autor indica que, no interior do sistema educativo, “amplamente aberto” a
todos, mas estritamente reservado a poucos, como o Curso de Direito da Ufes, com o
objetivo da perpetuação das lógicas de poder, a instituição consegue a façanha de reunir
as aparências da “democratização” com a realidade da reprodução que se realiza num
grau superior de dissimulação, portanto com um efeito grande de legitimação social. A
escola sempre excluiu, mas, a partir de agora, ela o faz com base em uma exclusão
contínua, em todos os seus níveis de ensino, mantendo em seu seio aqueles que
excluem, contentando-se em relegá-los aos ramos mais ou menos valorizados. A esses
excluídos intitula-se “excluídos no interior”, que são votados a oscilar – em função das
flutuações e oscilações de sanções aplicadas – entre a adesão maravilhada à ilusão que
ela propõe e a resignação a seus veredictos, entre a submissão ansiosa e a revolta
impotente (BOURDIEU, 2013). Talvez a “submissão ansiosa” ou a “revolta impotente”
explicariam o silêncio e o isolamento de alguns alunos que não fazem parte do “Direito
Vip”, como aponta Marta.
Outra exclusão articulada à ideia de “excluídos no interior”, agora de forma mais
institucional, foi a separação das pautas em cursos como o de Arquitetura, Medicina e
Odontologia, cujos critérios foram os alunos cotistas e os não cotistas, como vemos na
fala da professora Vanilda:
Quando entrei aqui, todo mundo falava que não tinha nada de separação de cotista e não cotista. Aí, numa matéria que eu peguei de Embriologia, vi: „Uai, mas por que o meu nome não tá na letra J junto com fulano de tal?‟. Aí cheguei para as pessoas e perguntei: „Vem cá, vocês são
cotistas?‟. Aí elas: „Não‟! Aí, já me liguei: „Gente, mas por que isso?‟. Só que aí a gente nem chegou a pressionar a professora sobre o
assunto. É estranho, tipo, pra que essa divisão, entendeu? Mas eu
não me senti inferior, não (JUREMA, branca, cotista, Odontologia,
7-11-2012).
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10101ISSN 2177-336X
No momento em que se implementaram as cotas, a Prograd cometeu
um deslize gravíssimo de separar as turmas do primeiro período. Eu
tive muito problema, porque uma turma era de alunos não cotas e uma
de cotas. Não que a qualidade de uma fosse melhor, muito pelo
contrário, os cotistas eram muito mais interessados e dedicados do que
os não cotistas. Mas a turma de aluno não cotista tratava os cotistas
como ‘os outros’, porque os não cotistas achavam que a
universidade pertencia a eles, e que os cotistas estavam aqui de
intrusos. Eles achavam que os outros, os cotistas, não eram dignos
de estar aqui [...]. Era uma arrogância impressionante dos não
cotistas, foi um clima pesado! Tive muitas dificuldades, reclamei
muito com o coordenador do curso e, quando ele foi na Prograd
reclamar, ele descobriu que não era só a Arquitetura que tinha esse
problema, porque tinha outros cursos que estavam acontecendo isso
(VANILDA, parda, professora do Curso de Arquitetura, 6-3-2013).
Como observamos nos depoimentos, todos os sujeitos pesquisados rejeitaram a
prática da divisão de turmas baseada no critério de cotista ou não cotista, pois defendem
que as turmas sejam misturadas, colocadas em ordem alfabética ou no critério de
coeficiente. Verificamos que a reação dos alunos cotistas diante da divisão de turmas
era um misto de indignação, consentimento e resignação. Jurema, cotista, mesmo
estando numa sala só com cotistas, evidenciada por uma estrutura discriminatória, não
se sentiu inferior. No entanto, ela acredita mesmo que a divisão poderia ser justificada
pelo fato de os cotistas terem nota de corte inferior a dos não cotistas.
A professora Vanilda aponta, depois da divisão oficial, a relação dos não cotistas
aos cotistas, tratando-os como se fossem “os outros”, “os intrusos” que estavam
ocupando um espaço que não era deles, já que a universidade pertencia aos não cotistas,
e “os cotistas não eram dignos” de estar nela, culminando numa “arrogância
impressionante” dos não cotistas e num “clima pesado” entre ambos, com muitas
“dificuldades” para ela como professora das duas turmas.
Assim, práticas segregacionistas invisibilizam e negam a afirmação de direitos
que as ações afirmativas se propõem ao impor uma estrutura institucional que separa os
sujeitos por uma condição utilizada simplesmente no processo de acesso aos cursos de
graduação com o objetivo de inclusão. Como vimos acima, a partir de uma divisão
oficial no quotidiano, em razão da permanência de ranços contrários às cotas, mesmo
elas acontecendo e implementadas, houve a criação de estereótipos, em que os cotistas
foram compreendidos como “os outros”, “os intrusos”, “os indignos” ou como sujeitos
que não têm “o direito de ter direito” legítimo de estar em cursos como o de Arquitetura
ou outro qualquer da universidade.
O papel pedagógico das cotas
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
10102ISSN 2177-336X
Mesmo com os preconceitos interpessoais e institucionais na/da universidade
esboçados neste artigo, assim como a não compreensão de muitos sujeitos da
universidade acerca das ações afirmativas como instrumentos inclusivos e
democráticos, foram encontrados depoimentos que entendem as cotas como
mecanismos pedagógicos para a universidade e para a sociedade, como abaixo:
As cotas ajudam a criar outro imaginário social para os negros. As
cotas sociais também têm um papel importante de levar a
universidade às pessoas que não têm condições. Mas as cotas raciais
são muito mais radicais, no sentido de mudar uma visão de quem
pode entrar na universidade, trazendo um choque na sociedade. Isso
é importante para nós entendermos que ela é racista. O debate das
cotas é importante para compreendermos que essa democracia racial,
a harmonia das raças é muito bonita, mas não para o negro. Acho
que as cotas têm um papel muito mais pedagógico para a sociedade
do que meramente ter um papel de fazer com que aquele indivíduo
ascenda socialmente (ROSA, negra, cotista, Direito, 14-12-2012).
Rosa aponta a viabilidade das cotas étnico-raciais como uma compensação às
desigualdades vividas pelos negros, principalmente na universidade. Essa possibilidade
política atingiria uma mudança do imaginário social dos papéis entre brancos e negros
colocados dentro da lógica das relações raciais brasileiras, pautada em locais fixos e
muitas vezes estereotipados para os negros, como também desestabilizaria o perfil
hegemônico e homogeneizante histórico de acesso ao ensino superior brasileiro,
principalmente em cursos considerados elitizados e prestigiados.
Rosa também ressalta muito bem a importância das cotas sociais, já que atingiria
grupos sociais marcados pela pobreza e pela pauperização social, condições essas que
impedem ou facilitam uma entrada dolorosa na universidade. Não obstante, ela enfatiza
a radicalidade das cotas raciais que seriam mecanismos promotores de um “choque
social” quanto aos instrumentos de racismo e discriminação social que o mito da
democracia racial invisibilisa ou torna inexistente. Nessa direção, Rosa destaca o papel
pedagógico que as cotas raciais teriam para a sociedade como um todo para além de um
beneficio individual ou corporativista para os negros.
A entrada de sujeitos coletivos marcados por suas histórias, muitas vezes por
sofrimentos e desigualdades, faz com que eles tragam para a universidade todo um
acúmulo de vida marcado pela dinâmica social conflituosa que exige que a academia
não enfatize apenas o ensino, como o professor Fernando aponta, mas que um curso,
como o Direito da Ufes, se envolva com projetos de extensão ligados aos quilombolas,
como é o Balcão de Direitos, e em mais pesquisas e temáticas vinculadas à realidade do
País que seus próprios alunos vivenciam, cotistas ou não.
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10103ISSN 2177-336X
Trazendo a ideia de uma repolitização de processos que marcam os sujeitos
coletivos como inferiores por serem diferentes, Arroyo (2012) indica que, na medida em
que os Outros desconstroem as imagens em que foram pensados, isso abriria o caminho
para reconfirmar o próprio campo do conhecimento, das histórias e pedagogias
socioeducativas que se configuraram nessa forma de pensá-los e de pensar-se. Assim, as
ações e presenças afirmativas dos coletivos têm uma contribuição relevante de repensar
as teorias e pedagogias socioeducativas dos Outros, como também para repensar as
formas como têm sido entendidos os Outros, os diversos e os diferentes em classe, raça,
etnia, gênero, campo, periferia, “normalidade”. A Ação Afirmativa cumpre também este
papel social e pedagógico não apenas de redistribuir alguns espaços sub-representados
pela diversidade, cumprindo com a democratização no ensino superior, como também
de ressignificar padrões sociais dos sujeitos e da própria sociedade.
Considerações Finais
O artigo apontou para uma “oxigenação” da Ufes após uma entrada maior de
negros e pobres, principalmente nos cursos mais elitizados, pois as cotas operam uma
dimensão pedagógica de ampliar a diversidade na academia, trazendo outras demandas,
lógicas de sociedade para a única universidade pública do Espírito Santo. Indica que os
mecanismos discriminatórios interpessoais e institucionais, vividos no contexto das
cotas sociais, não inviabilizam a importância das ações afirmativas, pois apontam para a
universidade repensar suas práticas pedagógicas para ampliar a ideia de democratização
de seus espaços. Reitera que a raça, em seu viés político e cultural, é operante de forma
relacional e independente com a classe social nas relações raciais brasileiras, pois a
ação de uma não nega a da outra, mesmo na relação entre ambas. Portanto, as ações
afirmativas para negros se contrapõem a um real, cujo racismo opera tanto material
quanto simbolicamente.
Diante disso, ressaltamos que a implementação das cotas étnico-raciais nas
universidades brasileiras é e continua sendo um instrumento legítimo de luta pela
educação, um direito social de oportunidade dos grupos historicamente apartados de
princípios constituidores da emancipação, da cidadania, dos direitos humanos, da justiça
social e da diferença, assim como o reconhecimento social do racismo, como
mecanismo operante produtor de desigualdades raciais, cujo pressuposto se contrapõe à
ideia de democracia racial legítima.
REFERÊNCIAS:
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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mudando os horizontes: as relações de raça e classe na implementação das cotas
sociais no processo seletivo par cursos de graduação da UFES – 2006 – 2012. Tese de
Doutorado em Educação – UFES, Centro de Educação, 2014.
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10105ISSN 2177-336X
1
POLÍTICA AFIRMATIVA DE PERMANÊNCIA NA UFMT: BALANÇO
DE UMA EXPERIÊNCIA
Maria Lúcia Rodrigues Müller
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Instituto de Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Relações Raciais e Educação.
Resumo
O trabalho pretende apresentar a experiência do Projeto Políticas da Cor na UFMT
(Universidade Federal de Mato Grosso). Trata-se de um projeto de ação afirmativa visando
garantir a permanência de jovens negros, alunos de cursos de graduação da Universidade.
Foram contemplados vinte e sete bolsistas, alunos de treze cursos de graduação da
Universidade. O projeto teve a duração de vinte meses e está em fase de conclusão. Obteve
financiamento através da participação no Concurso Nacional Cor no Ensino Superior
(LPP/UERJ/Fundação Ford). No presente artigo são apresentados os objetivos propostos:
garantir condições materiais e apoio pedagógico e garantir um espaço de discussão das
questões subjacentes às desigualdades raciais no Brasil. Em seguida é relatado o processo de
implantação do projeto e os resultados obtidos. Faz-se também algumas considerações sobre
aspectos considerados importantes para a execução de políticas afirmativas que garantam a
permanência de estudantes negros no Ensino Superior brasileiro.
Palavras-chave: Políticas afirmativas no ensino superior; Estudantes negros; Políticas de
Permanência na Universidade
Introdução:
O objetivo deste trabalho é revisitar a experiência de uma política afirmativa de
permanência, Projeto Políticas da Cor na UFMT. Iniciativa do NEPRE (Núcleo de Estudos e
Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação) que obteve financiamento através do Concurso
Nacional Cor no Ensino Superior (Laboratório de Políticas Públicas da UERJ com uma
dotação da Fundação Ford); trata-se de uma política afirmativa que objetivou assegurar a
permanência de alunos negros e afro-descendentes nos cursos de graduação da Universidade
Federal de Mato Grosso. Inicialmente pretendia atender 25 estudantes de cinco cursos de
graduação. Entretanto, como será explicado mais adiante, o projeto terminou por incorporar
27 alunos de 13 cursos de graduação. O projeto foi formulado a partir de uma parceria com o
Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira(PENESB)/UFF que tem um
projeto semelhante. A parceria entre as duas Universidades foi realizada na esfera acadêmica,
por meio de ações conjuntas visando à formulação do projeto, ao seu acompanhamento e à
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10106ISSN 2177-336X
2
sua avaliação nas duas Instituições. Pretendia-se atuar sobre duas questões fundamentais
ligadas aos afro-brasileiros no sistema oficial de ensino superior, o ingresso e a permanência
de negros e mestiços pobres no 3o grau nessas duas universidades públicas. A questão do
ingresso foi tratada por meio da sensibilização e da mobilização da comunidade universitária
a fim de colocar em discussão, e obter apoio para a aprovação de um projeto sobre política de
cotas, ou outra forma alternativa de políticas afirmativas para negros na UFMT2.
Antecedentes:
Este tópico será iniciado com um breve histórico do NEPRE. Um grupo de professores
e alunas do Programa de Pós-Graduação em Educação decidiram juntar seus esforços e criar o
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (NEPRE) em dezembro de
2001. Até então os estudos sobre relações raciais e educação vinham sendo desenvolvidos no
Programa de Pós Graduação em Educação, sem um Grupo de Pesquisa específico que
nucleasse essas pesquisas e discussões. Essa fase é marcada por uma preocupação com o que
poderíamos chamar de uma leitura político-pedagógica da questão. O objetivo geral do
Núcleo foi, desde o começo, realizar ações pedagógicas de extensão, estudos e pesquisas
sobre a dimensão racial do fenômeno educativo paralelamente à disseminação dos
conhecimentos sobre o Tema. Como objetivos específicos, o NEPRE pretendia nuclear
pesquisadores e alunos interessados no tema das Relações Raciais e Educação, no que se
refere a negros e afro-descendentes; divulgar os conhecimentos sobre relações raciais e
educação junto à população em geral e, em especial, junto aos profissionais da educação;
promover eventos, tais como palestras, mesas-redondas, jornadas, encontros, seminários, etc.
e produzir publicações sobre o tema.
Até então, na UFMT, as políticas afirmativas para a população negra eram
preocupações basicamente acadêmicas, da discussão teórica de sua validade. Não se cogitava
que a Universidade tivesse forças para formular e implementar tais políticas. Entretanto, no
contato e nas articulações dos pesquisadores que viriam a fundar o NEPRE com os
pesquisadores do Programa de Estudos sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB) da
Universidade Federal Fluminense (UFF) surgiu a perspectiva das duas instituições pensarem
atividades em comum. O Concurso Cor no Ensino Superior propiciou nesse momento a
materialização da parceria institucional no projeto de ação afirmativa. O primeiro entrave a
2 Deve-se assinalar que a reserva de vagas só foi conquistada quase 10 anos depois.
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ser transposto era a falta de dados fidedignos sobre a composição racial dos alunos da UFMT.
Havia poucas informações sobre o perfil dos alunos. O último levantamento sócio-econômico
realizado na Universidade datava de 1996. Contudo, este levantamento não contemplava o
quesito “cor”. Dispunha-se dos dados da PNAD/97 que apresentavam a população do Estado
de Mato Grosso como majoritariamente não-branca (3,9% de pretos e 51,3% de pardos). A
falta de dados terminou por impor a opção de definir com um certo grau de arbitrariedade os
cursos a serem contemplados. Estabeleceu-se como único critério na definição do cursos o
haver neles professores que fossem ligados ao NEPRE, disponíveis para exercer a função de
orientadores pedagógicos dos bolsistas. Dessa maneira, ficou definido no projeto que seriam
escolhidos bolsistas nos cursos de Pedagogia (do campus de Cuiabá e de Vila Bela da
Santíssima Trindade); Economia; Enfermagem e Medicina. Pretendia-se que os bolsistas de
Medicina fossem acompanhados por uma das integrantes do NEPRE, professora do curso de
Enfermagem. Sobre a escolha dos alunos de Vila Bela vale uma explicação. A UFMT
desenvolve um programa de formação de Professores que oferece licenciaturas em várias
cidades do interior do Estado. Dentro dessa iniciativa era oferecida a Licenciatura de
Pedagogia na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, cuja população é majoritariamente
negra. Essa característica da população permitiu que a turma da licenciatura oferecida em Vila
Bela fosse formada por 90% de afro-descendentes.
As instâncias superiores da UFMT foram receptivas ao projeto, em especial a Pró-
Reitoria responsável pelos assuntos de extensão, que dispôs-se a incluir o quesito cor no seu
questionário sócio-econômico e responsabilizar-se pela seleção sócio-econômica dos
candidatos, além de garantir, como contrapartida da Universidade parte do valor da bolsa, R$
75,00 (Setenta e Cinco Reais) que era o valor mensal da “Bolsa Atividade” concedida à
alunos de poucos recursos.
Entre a intenção e o gesto – a intenção (o que foi proposto no Projeto)
Os objetivos a que o projeto pretendia atender eram os seguintes: garantir recursos
materiais necessários à permanência e à conclusão do curso; garantir orientação e apoio
acadêmicos, com vistas ao alcance de um padrão de excelência no desempenho; participação
em um processo de discussão sistemática da questão racial considerando sua historicidade e
contemporaneidade; estimular uma formação acadêmica comprometida com a reivindicação
individual e coletiva dos direitos de cidadania da população em geral e particularmente da
população negra.
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A seleção dos candidatos deveria constar de duas etapas. Na primeira etapa seria
realizada uma primeira seleção pela equipe de assistentes sociais da Pró-Reitoria de Vivência
Acadêmica e Social responsável, na UFMT, pela seleção dos alunos mais pobres, candidatos à
obtenção das “Bolsas Atividades”. Essas bolsas teriam que ser complementadas pelos
recursos do Programa Políticas da Cor. O processo de seleção ocorria da seguinte maneira, os
alunos interessados preenchiam um questionário sócio-econômico e participavam de uma
entrevista com as assistentes sociais. Finalizada a seleção a Pró-Reitoria enviaria ao NEPRE a
relação de alunos que se autodeclararam pretos e pardos e que estivessem matriculados nos
cursos escolhidos para a intervenção. Na segunda etapa a equipe do NEPRE realizaria mais
uma seleção através de entrevistas com os candidatos.
As atividades previstas, comuns aos alunos, em caráter obrigatório seriam a de receber
orientação e apoio acadêmico, com vistas ao alcance de um padrão de excelência no
desempenho – os bolsistas deveriam receber o apoio e a orientação de um professor de seu
curso, com encontros quinzenais para verificar o desenvolvimento dos alunos, dar suporte as
suas dificuldades acadêmicas, propor leituras e discussões, e, na medida do possível, esses
professores deveriam incluir os bolsistas nas pesquisas que estivessem desenvolvendo.;
participação em um processo de discussão sistemática da questão racial considerando sua
historicidade e contemporaneidade; estimular uma formação acadêmica comprometida com a
reivindicação individual e coletiva dos direitos de cidadania da população em geral e
particularmente da população negra; participação nos Seminários de Cultura e Cidadania com
periodicidade bimestral que teriam como objetivo contextualizar e aprofundar os estudos
sobre a condição do negro no Brasil e no Mundo. Esses Seminários seriam formatados em
palestras; mesas redondas, simpósios ou conferências. Os Seminários deveriam também estar
abertos à comunidade universitária e à comunidade em geral. Além dessas atividades, os
bolsistas deveriam participar de um Curso de Análise e Produção de Textos com carga horária
de 120 horas de duração. A dinâmica do curso deveria envolver análise e produção literária e
gramática, incorporando a discussão de produções sobre e pelos negros como parte da
formação para a identificação e comprometimento político com a questão racial e estimulando
a expressão verbal e escrita dos alunos. Previa-se também a organização de um laboratório de
informática com o fim de possibilitar aos bolsistas utilizarem o computador como uma
ferramenta de pesquisa e também para digitarem seus trabalhos acadêmicos. O projeto deveria
oferecer curso, com duração de 20 horas, para uso de computador, processadores de textos,
excel e acesso à internet. Finalmente previa-se que, no segundo ano de concessão da bolsa, os
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alunos deveriam participar de atividade semanal ligada aos movimentos sociais ou
comunitários, preferencialmente atividades ligadas aos movimentos negros.
Esperava-se que ao final do projeto seriam obtidos os seguintes resultados: ampliação
do debate sobre as relações raciais, no Brasil e em Mato Grosso, no conjunto da Universidade
Federal de Mato Grosso; obtenção do apoio da comunidade universitária com vistas à
elaboração, defesa e aprovação de propostas de políticas de cotas e de propostas alternativas
para ingresso de negros na UFMT; mobilização da rede pública de Ensino Médio de Cuiabá e
da baixada cuiabana (conjunto de municípios vizinhos à capital) para melhoria da qualidade
do seu trabalho pedagógico, comprometido com a promoção do aluno negro; ter os 25
bolsistas dos cinco cursos previstos, com capacidade intelectual e conteúdo acadêmico acima
da média dos alunos de cada curso, prontos para multiplicar a discussão em torno da questão
racial no Brasil e a atuar de forma competente no campo da luta contra o racismo e a
discriminação. E também com capacidade para identificar, decodificar e criticar mensagens e
estereótipos racistas veiculados pelos diversos materiais didáticos colocados a sua disposição.
Também pretendia-se que, ao final dos dois anos, que os alunos graduados estivessem aptos a
conseguir boas colocações no mercado de trabalho e ou em iniciativas de continuação de seus
estudos em nível de mestrado.
Entre a intenção e o gesto – o gesto (o que deixou de ser projeto e se
transformou em realidade)
Aprovados no Concurso Cor e Ensino Superior. Começou o caminho da implantação
do projeto. Havia sido solicitado Duzentos e Vinte Mil Reais (R$ 220.000,00), o que incluía,
além do valor das bolsas e do pagamento do curso de análise e produção de texto,
equipamentos para o laboratório de informática e recursos para a vinda de conferencistas para
os Seminários Cultura e Cidadania. No entanto, foi concedido ao Projeto Políticas da Cor na
UFMT a quantia de Cento e Quatro Mil Reais (R$ 104.000,00), o que equivalia a um pouco
mais de 47% do valor solicitado. Cortou-se praticamente tudo do orçamento inicial,
mantiveram-se apenas a rubrica de bolsas; a rubrica do curso de análise e produção de textos e
uma rubrica no valor de dois mil reais (R$ 2.000,00) para compra de material de consumo.
Ademais, a equipe começava a tomar contato com os complicados caminhos da burocracia do
Estado brasileiro. A primeira parcela dos recursos só chegou em junho e só ficou à disposição
do NEPRE em julho. Entretanto, iniciou-se a divulgação do projeto e providenciou-se seu
lançamento. Para isso, organizou-se uma solenidade o mais formal possível, com a presença
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do Reitor e da Pró-Reitora de Vivência Acadêmica, de representantes do movimento negro e
de professores e alunos da Universidade. Foram convidadas como conferencistas as Profas.
Iolanda de Oliveira, coordenadora do PENESB/UFF, e a Profa. Maria Alice Rezende
Gonçalves, naquele momento coordenadora do Projeto Políticas da Cor. O translado da Profa.
Iolanda de Oliveira correu por conta do PENESB. Um órgão público estadual (a Secretaria de
Planejamento do Estado de Mato Grosso) financiou a vinda e a hospedagem da Profa. Maria
Alice Rezende Gonçalves. O evento foi bastante bem divulgado na Universidade e na
imprensa, em geral. Soube-se que existiram reações contrárias à existência na UFMT de um
projeto de ação afirmativa para estudantes negros, mas essas reações não adquiriram grandes
proporções, restringindo-se a discussões mais ou menos indignadas em um outro setor da
instituição.
Um outro apoio garantiu a confecção de cartazes para a divulgação da seleção de
bolsistas. Esse material gráfico foi espalhado em todos os setores da universidade, assim
como foram acionadas a imprensa escrita, as emissoras de rádio e televisão para que fosse
amplamente divulgada a seleção. Contudo, foi uma surpresa descobrir o número de
candidatos inscritos na primeira etapa da seleção. Só dezesseis se inscreveram. Todos eles
havendo se auto-declarados „pretos‟. É importante retomar o que foi afirmado mais acima. A
seleção para bolsistas do Projeto Políticas da Cor na UFMT, previa bolsas só para candidatos
dos cursos de pedagogia (Cuiabá e Vila Bela), economia, enfermagem e medicina. Não havia
dados sobre a composição racial dos alunos da Universidade, portanto também não havia
como aferir se esse número de inscritos nesses cursos era proporcional ao número de pretos e
pardos realmente existentes nos cursos3. Procurou-se então formas de abranger um número
maior de possíveis candidatos. Isto devido ao pequeno número de inscritos, devido à já
mencionada falta de dados e também aos rumores de que haveria uma resistência surda, em
certos setores e em certos cursos, à implantação de políticas afirmativas para alunos negros na
Universidade. A equipe decidiu enviar correspondência a todos os alunos (independentemente
do curso que estudava) que se inscreveram para a seleção das bolsas atividade convidando-os
a se inscreverem também –caso considerassem que lhes cabia, por serem negros ou afro-
descendentes– na seleção para bolsistas do Projeto Políticas da Cor na UFMT. Foram
enviadas 120 cartas. Inscreveram-se aproximadamente 80 candidatos. Desses, muitos não
3 No início de 2003 o PENESB e o NEPRE realizaram os Censo Étnico-Racial da UFF e da UFMT, os dados
preliminares, já publicados, informam que nesses cursos a distribuição racial é a seguinte: Pedagogia (Cuiabá):
Pardos: 50,96%, Pretos: 11,88%; Economia: Pardos: 39,16%, Pretos: 9,04%; Enfermagem: Pardos: 47,83%,
Pretos: 8,7%; Medicina: Pardos: 34,17, Pretos: 5,0%.
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tinham o fenótipo que aparentasse ser afro-brasileiro (entendendo assim a cor da pele, o tipo
de feições, o tipo de cabelo), mas sim aparentavam necessitar muito de uma bolsa de estudos.
Vale assinalar duas questões importantes na implantação desse tipo de política. A
primeira delas é o racismo implícito na sociedade brasileira, implícito, em especial, em
situações ou instituições que propiciam ou possam propiciar oportunidades de mobilidade
social, como é o caso da Universidade. Não é casual o pequeno número de inscritos
inicialmente na seleção. Efetivamente ocorreram diferentes formas de pressão para que alunos
negros não se inscrevessem. Essas formas variaram do deboche aberto à afirmação que esse
tipo de Projeto (de política afirmativa) só viria provar que o negro só “sobe na vida” quando
recebe “algum tipo de favor”. E, de fato, muitos alunos sentiram-se constrangidos em pleitear
a bolsa por esses motivos.
A outra questão que deve ser assinalada é a permanência do mito de que somos uma
sociedade miscigenada. Portanto, todos nós –ou quase todos nós– podemos nos considerar
afro-descendentes. Em que pese a suposta generosidade de tal afirmação, na prática, como se
viu na UFMT, os mais longinquamente afro-descendentes se achavam no legítimo direito de
concorrer a uma bolsa que objetivava favorecer justamente aqueles cujo fenótipo mais os
desfavorecia socialmente. Isso ficou claro nas entrevistas, era evidente o desconforto de
alguns candidatos em comprometer-se com as questões das desigualdades raciais no Brasil.
Ou, então, sua indignação quando sabiam que o projeto pretendia incorporar
preferencialmente os mais escuros. É possível que o avanço das lutas pelas políticas
afirmativas e pela valorização de nossa herança africana –com o conseqüente avanço dos
benefícios auferidos pelos afro-brasileiros – traga como conseqüência negativa o esforço de
alguns em auferir benefícios, em detrimento daqueles que historicamente se viram impedidos
de avançar em seus direitos de cidadania devido à “marca” de sua ascendência africana. É isso
que ainda hoje volta e meia vemos pelos jornais, denúncias que estudantes não-negros
ingressaram na Universidade através de falsa declaração de pertença racial.
Voltando ao histórico da implantação do projeto. Quatro bancas compostas por dois
professores, cada, entrevistaram os candidatos. Os critérios utilizados para a escolha dos
bolsistas foram: a) identificação racial com a negritude; b) compromisso do candidato em
adquirir excelência acadêmica nos seus estudos de graduação e, c) pobreza. A seleção dos
candidatos de Vila Bela foi realizada de forma um pouco diferente. Dois professores da
equipe do NEPRE foram até a cidade e entrevistaram os candidatos (inscreveram-se doze para
cinco vagas). Ao final do processo de seleção foram escolhidos vinte e sete bolsistas de
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quatorze cursos de graduação da Universidade. Foram escolhidos alunos dos seguintes cursos:
Pedagogia/Campus Cuiabá (duas bolsistas); Pedagogia/Vila Bela (cinco bolsistas) Economia
(três bolsistas); Serviço Social (duas bolsistas); Enfermagem (cinco bolsistas); Física (um
bolsista); Computação (um bolsista); Engenharia Sanitária (duas bolsistas); Comunicação
Social (uma bolsista): Nutrição (uma bolsista); Veterinária (um bolsista); Agronomia (uma
bolsista); Geologia (uma bolsista); Medicina (um bolsista). Os candidatos aprovados
assinaram um compromisso com as metas do projeto aceitando que o não cumprimento dessas
metas acarretariam a perda da bolsa.
No final de julho de 2002 tiveram início as atividades do projeto já com todos os
bolsistas escolhidos. Estabeleceu-se uma reunião quinzenal, obrigatória para todos os alunos e
professores. Nessas reuniões a equipe de professores previamente distribuía um texto de
discussão sobre relações raciais no Brasil para ser discutido pelos alunos. Também implantou-
se quase imediatamente o curso de análise e produção de textos. Ali também,
preferencialmente eram discutidos textos que tratassem de questões relativas às relações
raciais no Brasil. Em setembro desse ano foi realizado o primeiro Seminário Cultura e
Cidadania, que teve como conferencista convidada a Profa. Moema De Poli Teixeira, do
IBGE. Duas professoras do NEPRE, Profas. Rosangela Saldanha Pereira e Maria Lúcia R.
Muller apresentaram respectivamente trabalhos sobre desigualdades raciais no mercado de
trabalho em Mato Grosso e desigualdades raciais na educação.
Os primeiros meses de implantação foram difíceis pelas dificuldades já apontadas
mais acima de conviver com os trâmites burocráticos necessários a liberação de recursos –
processo ao qual não estão afeitos a maioria dos professores universitários – e devido a uma
certa resistência dos bolsistas em conviver com um projeto que tinha características muito
específicas. Era um projeto de tutoria acadêmica, mas também era um projeto que pretendia
contribuir para a democratização da sociedade brasileira, lidando com um grupo específico de
estudantes. Essencialmente não era um projeto assistencialista, exigia um espírito militante de
seus professores e dos bolsistas. E, como se sabe, ser negro ou lidar com “coisa de negro” no
Brasil não é fácil. Por esses motivos, muitas vezes era difícil encaminhar as discussões no
grupo. A invisibilidade das questões que dizem respeito aos afro-brasileiros não é uma figura
de retórica dos movimentos ou veleidade de pesquisadores. Muitas vezes percebia-se que os
próprios alunos, bolsistas do projeto, ficavam incomodados com as discussões que ocorriam.
Seu desconforto não era devido à densidade dos textos apresentados, todos eles textos de
pesquisadores da área das relações raciais no Brasil. Era mais, aparentemente, porque os
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textos e as discussões tocavam em um assunto que não era considerado legítimo nos espaços
sociais em que circulavam, a própria universidade, suas famílias, seus amigos, seu bairro. E o
pior – pelo menos para a equipe de professores – esse desconforto se materializava em uma
indisfarçável tristeza ou, em um caso específico, em rompimento com o Projeto. No mês de
outubro, o bolsista aluno do curso de medicina, recusou-se a continuar participando das aulas
– obrigatórias– do curso de análise e produção de textos. Ele já vinha faltando
sistematicamente às reuniões do grupo. Foi informado de que deveria cumprir o que tinha
acordado no início do projeto ou perderia a bolsa. Como persistiu nesse tipo de
comportamento, teve cancelada sua bolsa. Foi necessário fazer uma grande discussão com
todo o grupo. Ali, finalmente, ficou claro para todos que uma política afirmativa não é uma
política assistencialista, que o objetivo do projeto era formar quadros em condições de
contribuir para erradicar as desigualdades raciais no Brasil e quadros, seja para o mercado de
trabalho seja para a pesquisa acadêmica, têm que adquirir capacidades para tanto.
No início de 2003, já podia-se dizer que o Projeto Políticas da Cor na UFMT
constituía-se em um grupo coeso, capaz de reconhecer e enfrentar individual e coletivamente
os estereótipos racistas tão freqüentes na sociedade brasileira. O desempenho escolar dos
bolsistas também teve uma sensível melhora. Em maio foram avaliados seus históricos
escolares e todos, sem exceção, aumentaram seus coeficientes escolares.
Durante o ano de 2003 três bolsistas foram desligados do projeto, dois por terem
terminado seus cursos e o outro por ter obtido um estágio remunerado por um ano. Foram
incorporados dois outros alunos de graduação (uma aluna do curso de Economia e um aluno
do curso de História).
A opção de agregar alunos provenientes de diferentes áreas mostrou-se problemática
no que se refere ao acompanhamento pedagógico. Não houve interesse dos professores desses
outros cursos em participar do projeto. O que resultou numa sobrecarga para os docentes que
estavam desde o início, dos cursos de Pedagogia, Economia e Enfermagem, tiveram que
atender a um grupo de alunos de diferentes cursos. Contudo, levando-se em consideração que
um dos objetivos do projeto era a ampliação do debate, mostrou-se da maior relevância
incorporar estudantes provenientes de várias áreas. Pois os bolsistas levaram a discussão sobre
as relações raciais no Brasil e sobre as políticas afirmativas para espaços na Universidade que
a equipe do NEPRE dificilmente alcançaria.
Outras atividades interessantes, do ponto de vista acadêmico e da reafirmação da
identidade dos alunos negros foram: a ida de um grupo de bolsistas à 25a. Reunião Anual da
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Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPED) para participarem das
atividades do GT 21, naquele momento, Afro-brasileiros e Educação; um outro grupo de
bolsistas participou do Encontro Regional dos Projetos de Ação Afirmativa, em Goiânia
(novembro de 2003) e vários deles tiveram a oportunidade de participar do III Seminário
Nacional Relações Raciais e Educação, promovido pelo PENESB/UFF em Niterói(RJ),
também em novembro de 2003. Ademais, o Projeto Políticas da Cor na UFMT financiou
parcialmente a ida de duas bolsistas a eventos científicos de suas áreas de estudo. Vários
bolsistas estão se preparando para concorrer à seleção para os mestrados em suas áreas. A
avaliação informal de professores dos cursos de graduação onde existem bolsistas do projeto é
que seu desempenho acadêmico melhorou significativamente; assim como é evidente o
aumento de sua auto-estima.
Finalmente, em março de 2004, o NEPRE apresentou à comunidade universitária um
projeto de reserva de vagas na UFMT. Infelizmente não teve a repercussão merecida e
terminou preso nos meandros da burocracia universitária. Não obstante, o projeto contribuiu
para dar visibilidade à questão das desigualdades raciais no ensino superior e da importância
da realização de políticas afirmativas para a população negra brasileira.
Em maio de 2004 terminou a experiência, pelo menos nos termos do financiamento da
Fundação Ford. O projeto ainda permaneceu até o final de 2004, com vinte e dois bolsistas.
Não se obteve outro tipo de financiamento, nem governamental nem de agências estrangeiras.
A intenção e o gesto – um balanço da experiência
Ao fazer um balanço do Projeto Políticas da Cor na UFMT é possível chegar a algumas
conclusões. Projetos de ação afirmativa na Universidade devem contar com pessoal
capacitado em termos de conhecimento da problemática e em termos de compromisso
político, ideológico e emocional com a questão. Os desafios e as dificuldades são muito
grandes. O racismo institucional é tão forte na sociedade brasileira que constantemente tenta
solapar as iniciativas de reversão do quadro, mesmo quando as equipes estão bem
fundamentadas e bem alicerçadas. Até hoje são poucos os estudos sobre políticas afirmativas
de permanência. Talvez porque, como indicam Heringer e Ferreira (2009): “As acoes
afirmativas [de acesso à Universidade, nota da autora deste artigo] têm sido adotadas , grosso
modo, a “custo zero” , o que torna o sistema precario e pode comprometer a eficacia
acadêmica e social desse tipo de política pública”.
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Projetos de ação afirmativa devem ter expressivo apoio governamental. Não são e não
devem ser iniciativas baratas. As instâncias governamentais devem ter em conta que a
reversão do quadro de desigualdades raciais no Brasil levará tempo e dinheiro. Não basta só a
enunciação de boas intenções, se essas intenções não se concretizam em gestos consistentes,
coerentes e apoiados financeiramente.
Projetos de ação afirmativa devem ter uma duração no tempo que lhes permita
consolidar uma direção realmente afirmativa. Não se trata somente de garantir a permanência
de um grupo de estudantes universitários negros e afro-descendentes durante 20 meses, como
é o caso desse projeto de permanência, financiado pelo Concurso Nacional Cor no Ensino
Superior. Trata-se de implementar iniciativas que tenham uma duração longa o suficiente para
colocarem em pauta na sociedade brasileira, definitivamente, a discussão sobre os problemas
vividos pelos afro-brasileiros. Enquanto as iniciativas forem pontuais, de curta duração, o
sucesso que possam obter – e as experiência da UFMT e da UFF tiveram muito sucesso –
estarão sujeitas a serem consideradas mais uma vez “a exceção que confirma a regra”. Daí a
importância de que as ações afirmativas tenham efetivo apoio governamental.
É necessário incentivar e financiar pesquisas capazes de avaliar os resultados dessas
políticas, como também estimular e apoiar espaços de debate sobre os problemas que
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