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A PROMESSA
X – Fosse o que fosse, calou-se.
Ainda hoje, em Loriga, quem suba a estrada da Redondinha às
Tapadas, agora, as avenidas Augusto Luís Mendes e do Brasil,
conhece um vento frio que lhe bate na cara e obriga a andar
mais depressa. Mas não é um vento que se entranha nos ossos,
como o do Atlântico. É um vento forte, como a Serra da Estrela,
que dá vida e energia, perfumado pelo alecrim, o rosmaninho, as
giestas e os pinheiros em que foi tocando pelo caminho e que nos
puxa para a frente, com a mesma força que uma mãe agarra a mão
de um filho, num atraso sem intensão, numa procissão sagrada.
Em 1810, ainda eram poucos os pinheiros da Serra. A transumância
marcava a cor da paisagem. A reflorestação surgiu no Século XX,
mas já as courelas estavam assim, como as vêem hoje. A ideia de
espalhar a cultura do milho, capaz de uma grande produtividade
e aliada à ausência da necessidade de pousio surgiu no Século
XVI, mas de forma muito vagarosa, ao sabor de vontades, políticas
e compadrios. Tal incentivo só seria dado com mão rija e punho
seguro. Foi ideia do Gabinete do Marquês de Pombal e Conde de
Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, para lá da construção
do Aqueduto das Águas Livres ou durante a mesma, de aproveitar
de modo eficaz a força e as águas de Portugal de forma a
melhorar a agricultura e a introduzir nestas culturas
menosprezadas. Tal plano sofreu os habituais atrasos lusos,
fruto de vicissitudes politicas e económicas, a que não era
alheia a reconstrução de Lisboa e de outras localidades
atingidas pelo terramoto da manhã de 1 de Novembro de 1755.
Assim, sendo a Serra da Estrela a mãe de três rios e tantas
ribeiras de Portugal, por volta de 1760, vindo de baixo, pelos
lados de Coimbra, foram-se erguendo levadas e regos de água que
possibilitaram de forma mais regrada dar de beber aos campos
secos. O milho, o centeio e aveia, entre outras culturas, ganharam
uma nova vida e deram uma nova cor à paisagem. O xisto e o
granito foram energeticamente talhados e ordenados e ainda hoje
podem ser admirados nas povoações. Hoje, ninguém é capaz de
imaginar a Eirada ou Loriga sem socalcos, o Outeiro da Vinha sem
degraus e tantas outras terras beirãs. E depois de tudo ter
começado, o país agrícola sentiu um impulso em profissões que
iam de pedreiro a moleiro, passando pelo zelador de águas. A
própria alimentação se transformou e as papas de carolo, o
formigo e a broa cozida em fornos comunitários, depois de
talhada e benzida, matou a fome a muita gente. Essa mesma gente
uniu-se como nunca visto e ajudava a erguer os muros, em Loriga
chamados de ‘cômbaros’ e a segurarem tapadas e courelas, estas,
que em Alvoco da Serra, chamam de ‘belgas’. Só Loriga tem trinta
mil metros de ‘cômbaros’ em granito, erguidos pela gente, e com
alturas entre os dois e os seis metros, para além de regos,
levadas, valas, açudes e aceiros que permitem a sua irrigação,
alimento e segurança. Foi certamente essa força de alma serrana
que muitos herdaram de seus pais e avós que fez reerguer a
ponte romana de Loriga, após uns dias de chuva e trovoada
valentes, nos anos vinte do Século XIX, agora chamada de ‘ponte
nova’ e que deu garra e ganas aos habitantes de todas as
localidades que têm um poço da Broca. A população vivia
sobretudo dos animais, da lã, do azeite e da castanha. Foi
seguramente esse amor único à Serra, que um século depois, fez
com que um punhado de homens fracos, feitos fortes por uma
união de aço, emigrados em Manaus, juntasse e prescindisse pelos
conterrâneos de Loriga, um montante suficiente de dinheiro para
erguer as três principais fontes de Loriga, desenhadas em 1895 na
Figueira da Foz por Sebastião de Almeida Soriano e acabadas de
talhar em 1905 pelo pedreiro ‘Ruas’. As fontes, do Adro, das Almas e
do Porto, são a prova monumental de que a vontade e o amor não
se atrapalham com a agrura da distância e a dor da saudade. O
milho e o centeio alteraram definitivamente a vida quotidiana
da Serra da Estrela, bem como, a sua paisagem. Um avanço de um
século ou mais, nas condições de vida das populações habituadas
aos rigores da natureza e à inclinação abrupta da Serra, em que
a rega era quase só a que vinha do Céu e a estrumação feita com
recurso a escadas, aos ombros e à própria cabeça. Tudo sofreu uma
reviravolta com a fuga da família real.
Com as Invasões Francesas, um povo abandonado por D. Maria I e
roubado por estrangeiros, viu aumentar imenso o seu número de
pobres, mendigos, doentes sem recursos, artesãos sem trabalho e
rendimento, uma fuga para o Brasil dos mais capazes e até as
tecedeiras e cardadeiras se viram a amamentar crianças
estranhas e com o seu leite ganharem sustento e sobreviverem.
A IIIª Invasão Francesa deixou um severo rasto de destruição,
pilhagem e morte muito superior às anteriores e sobretudo na
retirada. A estratégia de Wesllesley, futuro Duque de Wellington,
não era proteger os portugueses ou expulsar os franceses. Aos
ingleses era-lhes indiferente a salvaguarda de uns e os crimes
de outros. O principal era o desgaste do exército gaulês. Assim,
Coimbra, à qual pertenciam várias paróquias da Serra da Estrela,
com as de Alvoco da Serra e de Loriga, foi saqueada nos três
primeiros dias de Outubro de 1810. Apenas se salvou o espólio da
Universidade, graças à forte presença de oficiais lusos na tropa
invasora que tomou o mais velho e ilustre ninho da sabedoria
portuguesa. Quando as milícias populares, das quais fazia parte
o pároco de Loriga, entraram em Coimbra, comandadas pelo Coronel
Trant, a cidade estava vazia e destruída.
Em Torres Vedras, entre linhas, o exército francês foi massacrado
como sonhara Wellesley. Durante meses cercados, os franceses
conheceram a fome, o frio, a doença e a humilhação. Portugal
estava devastado. Os franceses violavam as mulheres, matavam os
homens, roubavam o que podiam. De seguida, os ingleses em alvas
camisas de algodão, casacas vermelhas impecáveis e cavalos
puros e lavados, passavam pelos mesmos lugares e adoptando uma
política de ‘Terra-Queimada’, destruíam searas, moinhos, pontes,
teares, gado, aves e tudo o que tivesse sobrado.
Assim, o povo vendo o que fazia o inimigo francês e o amigo
britânico, partindo de Norte para Sul, faminto e abandonado, foi-
se levantando e organizando em volta de personagens que com
carácter, valentia e inteligência tinham dado provas suficientes
de amor à pátria. Com a maior parte da nobreza no Brasil, o povo
procurou amparo no clero. No clero, sobressaíam sobretudo três
bispos, a destreza do bispo brasileiro de Évora, a organização do
bispo de Lamego e a determinação do bispo da Guarda e de Pinhel,
D. Mendonça Arrais, que conforme confirma o brasão do paço de
Melo, fora coronel do exército. D. Mendonça Arrais cresceu entre a
casa dos avós em Avô, as ribeiras de Alvoco e Loriga e a Casa das
Obras, em Seia. Por amor à Casa das Obras ficou inimigo dos
ingleses, quando Wesllesley a ocupou. Depois, não fosse já a
inimizade devida aos actos praticados na Guarda, quase morreu
de tristeza quando viu a mesma casa ser incendiada por Massena
na retirada para França. Para quem não saiba, a Casa das Obras é
o mais monumental edifício de Seia e que desde 1919 é morada dos
Paços do Concelho. Berço de uma família, mas força de uma terra. O
Bispo da Guarda e de Pinhel era filho do Senhor da Casa das
Obras, Francisco Pinto de Mendonça Arrais, amigo pessoal do
Marquês de Pombal, Intendente-Geral dos Diamantes do Brasil,
onde faleceu. A Excelência Reverendíssima foi igualmente irmão
de Luís Bernardo Pinto de Mendonça Arrais, que concluiu as obras
da Casa, Cavaleiro da Ordem de Cristo, desembargador da Relação
do Porto, tão amado como o pai e o irmão em toda a Serra. E,
igualmente, tio de Luís que como afirmei nesta história, partiu
para o Brasil e seria depois 1ºBarão e 1ºVisconde de Valongo, bem
como de Francisco que era comandante da fortaleza de Almeida,
nos momentos mais trágicos da IIIª Invasão Francesa.
Propriamente e contudo, a resistência lusa nasceu por cima e por
baixo do rio Douro. Por cima, espontaneamente do povo, em
levantamentos populares; e, por baixo, da ideia dos vereadores de
Viseu, pouco depois de os franceses, em Julho, terem entrado em
território português. Foi ideia de quem mandava na cidade de
Viseu criar um grupo grande de ‘observadores’, leia-se ‘espiões’.
Tais ‘observadores’ foram recrutados de entre mercadores cuja
actividade comercial tinha sido interrompida pelos franceses,
pois ninguém conhecia melhor o terreno que os mercadores,
habituados a percorrerem, durante o ano todo, várias rotas e
muitos caminhos. Dos mercadores serranos que se fizeram notar
por essa altura, sobressaiam o ‘Palminhas’ de Folgosinho, o
‘Marreco’ de Manteigas, o ‘Meloso’ de Seia, o ‘Riscado’ da Eirada, o
‘Pisco-Ruivo’ de Alvoco da Serra, o ‘Biscoito’ do Valezim, o
‘Achadiço’ do Fontão e o ‘Lisboa’ de Loriga. Eram eles que seguiam
o caminho dos franceses e dos ingleses. Eram eles que iam
avisando as populações para que fugissem ou se escondessem a
tempo. Homens que depois passaram a velhice nas lutas entre
Liberais e Absolutistas.
Depois de tomada a praça de Almeida, Massena iniciou a marcha
para Lisboa pela margem direita do Mondego para entroncar com a
estrada real que ligava Coimbra a Lisboa. Pelo caminho, os
diários dos generais Koch e Marbot assinalam uma paisagem
vazia de gente e queimada pelo exército aliado britânico. O
cheiro a borralha nunca os irá abandonar. Depois, nas linhas de
Torres, travados, desesperados e sem qualquer abastecimento,
organizaram em grande escala um plano de pilhagem, empurrando
à sua frente centenas de burros. Misturando-se entre os animais,
regressavam com os ditos carregados com bens de toda a espécie.
Chegaram mesmo a pilhar Abrantes, Coimbra e a passar várias
vezes o Tejo. Em Março de 1811, sem solução à vista que não fosse
a morte em combate ou a morte por isolamento, desistiram e
começaram a iniciar a retirada. Com o orgulho ferido dos
franceses começou o maior Inferno dos portugueses. Coimbra foi
poupada, pois Massena não conseguiu entrar, face à valentia das
milícias e então conduziu as tropas subindo o Mondego, pelo lado
Sul e praticando uma atroz carnificina. Por onde passaram, os
franceses torturaram e mataram todos e tudo o que encontraram. A
população fugia para os matos, os ribeiros, as serras, as
florestas e para onde pudesse. Em Mangualde, a gente chamou-lhe
‘o 3ºDesterro’, porque já todos tinham fugido em Setembro de 1810 e
entre Dezembro desse ano e Janeiro de 1811.
Os piores dias, foram 19 e 20 de Março de 1811, nas localidades de
Pinhanços, Sandomil, Moimenta da Beira, Celorico da Beira e
arredores. Todas elas foram destruídas com uma atrocidade de
envergonhar o Diabo.
A diocese de Coimbra era uma das maiores de Portugal, abrangendo
parte dos actuais distritos de Lisboa, Santarém, Leiria, Aveiro,
Viseu e Guarda. A meio do regresso a França, as tropas passaram
para o lado Norte do Mondego. Segundo escritos de Molelos, de
Campo de Besteiros e da freguesia de Tondela, entre o Mondego e o
Vouga, o inimigo consumiu todo o pão de pragana e tudo o que
houvesse de comer, incluindo cães e gatos.
Das duzentas e noventa paróquias do bispado de Coimbra, apenas
vinte e seis não foram destruídas pelos franceses. Dessas vinte
seis paróquias apenas de numa entraram os franceses e dela não
saíram com vida.
O provisor da diocese de Coimbra, escreveu o seguinte na primeira
página do relatório de Dezembro de 1811,”Na diocese contamos, por
estes dias, mais de trinta e oito mil falecidos de forma vil às
mãos do inimigo ou na sequência de várias epidemias de cólera e
tifo, resultantes das exalações dos esqueletos dos mortos
abandonados e não enterrados, justo nos locais dos crimes,
formando um cenário pavoroso e mortificante”.
Nunca a população viveu um período tão trágico, morrendo os
sobreviventes à fome e à doença. Foram muitos os soldados
britânicos que sofreram castigo, pelos superiores hierárquicos,
por dividirem as poucas roupas e as escassas rações com os
portugueses. Todos os estudos apontam que entre 1810 e 1812,
desapareceram na Beira Alta, sobretudo nas terras de Riba Côa,
cinco mil famílias e cinco vezes mais do que nas outras regiões
do país.
Mostrando pela burocracia o que estava incapaz de fazer pela
acção, a Junta que (des)governava Portugal lançou a 25 de Março
de 1811, um Aviso Real para que se apurassem todos os estragos,
incêndios e mortos no país. Nesse dia, ainda Massena destruía
parte do que sobrava do distrito da Guarda. A criatura só saiu
de Portugal no dia 4 de Abril, mas ainda deixou em Almeida parte
de uma corja que só partiu a 11 de Maio. Segundo os párocos
relataram e depois de tudo contado, por baixo, pois não contaram
crianças, mais de três quartos da população foi assassinada ou
morreu das epidemias. As terras de Almoster, Vilarinho da Lousã,
São Martinho da Cortiça e São Paio de Gouveia perderam quase a
totalidade da população. Lá, nove em cada dez almas, morreram. O
arcipreste de Sinde, perto de Tábua, classifica os assassinos com
“diabos comandados por chefes incapazes de pelejar com honra e
capazes de fazer guerra
só à fraqueza”.
As mortes eram cruéis para quem resistisse. Por exemplo, ao padre
de Pelmá, Miguel Lopes Alumbre, os franceses arrancaram-lhe as
barbas com as mãos, cegaram-no com os dedos e só lhe deram dois
tiros depois de já muito terem cortado pela baioneta. Mesmo assim,
o povo resistia com um ódio que aumentava a cada segundo. Outro
padre em Arganil, de 76 anos, ao pegar numa faca para se
defender, foi arrastado por uma corda. Depois pendurado e
castrado. O vigário de Sub-Avô, a actual Vila Cova de Alva,
escreveu sobre a morte de outro padre que foi perseguido pelo
mato e depois cortaram-lhe os braços e as pernas, antes de o
matarem a tiro. E foi por ali que alguns subiram mais alto. Em
Nogueira do Cravo, foram três as mulheres a quem arrancaram os
olhos e as línguas, por não se prestarem a actos que punham em
causa a sua honra.
Numa manhã de calor, de ‘xisneira’, como se diz em Loriga e embora
não fosse data para tal, tinham dado as seis badaladas na igreja
de Santa Maria Maior de Loriga. Nesse dia, o Alfredo da
Guilhermina ia no carrego do segundo ou terceiro balde de terra
de uma mina que tentava abrir na, agora conhecida, rua do Porto.
Aquele lado da vila de Loriga é seco e raramente se encontra
água, mas ele tentava. Às seis e pouco, como eu escrevi, começaram-
se a ouvir uivos que vinham do Casal do Rei, que se repetiam no
Domingo Diz e que ecoavam no Pero Negro. A Almerinda ‘do
Cassiano’ cardava lã, numa casinha que ainda existe na rua do
Viriato, quando largou tudo sobre o avental e começou a contar
pelos dedos, os segundos entre os uivos. Era combinação velha, um
trato entre a gente de Casal do Rei e a gente de Loriga, de que
sempre que alguma ameaça surgisse, um uivo de lobo avisaria os
vizinhos e o espaço entre uivos ditaria o grau de proximidade.
Assim se combinou e assim se passou. Se fossem cinco, os segundos
entre os uivos, o mau seria terrível. E se fossem dez, os segundos
entre uivos, o perigo seria suportável ou vencível. Mas se o
tempo entre uivos fosse inferior a cinco segundo, a população
deveria fugir.
Nesse dia, a Almerinda contou cinco dedos até às sete da manhã e
depois três, após essa hora. Fechou em seguida a porta de casa e
cortou com uma faca o baraço do trinco da porta. Escondeu a faca
no bolso interior da saia. Subiu ao adro e dali à praça, enrolada
na manta-xaile.
Os homens capazes viviam de cuidar de animais na Serra, outros
eram mercadores e muitos tinham emigrado, fazendo com que
Loriga fosse uma terra maioritariamente constituída por idosos,
crianças e muitas mulheres. As mulheres de Loriga sempre foram
justamente gabadas por serem formosas e com as medidas certas,
pelas gentes vizinhas.
Na praça, o mulherio juntou-se à volta do tabelião notarial José
de Sousa Sobral organizou a fuga para a montanha, dividindo as
gentes em quatro grupos. Um grupo subiu pelas Tapadas. Outro,
subiu até ao Chão da Ribeira e daí para a Penha do Gato.
Finalmente, outro grupo com crianças e idosos, foi para os lados
da Penha d’Águia. Mesmo assim, ainda ficaram em Loriga cerca de
vinte teimosos, que insistiram que o perigo não existia porque,
ao soarem as sete horas e meia, os uivos calaram-se.
Depois, passaram mais duas horas até que o João da ‘Burrega’, que
tinha ficado junto ao Piomal, avisou o grupo das Tapadas de que
se ouviam gritos na vila. Aí, dois sentimentos se instalaram. Um
grupo que queria descer com podão, gadanha e calhau na mão e
outro grupo, que queria ficar sossegado ou subir mais um pouco a
Serra. Aguardaram mais uns minutos e acabaram por uns descer e
outros ficar.
Quando o grupo passou o Terreiro da Lição, começaram a ver
sangue e pedaços de carne humana esquartejada. O ódio e o medo
tomaram-nos. Depois do adro e antes do Terreiro do Fundo, onde
hoje é a Associação de Apoio à Terceira Idade e onde nessa altura
trabalhavam em conjunto umas escarameadeiras, que esfarripavam
a lã e a limpavam da impureza, as mulheres encontraram parte do
grupo que tinha subido ao Chão da Ribeira. Este grupo que
chegara antes, encontrou, para lá do cenário macabro de corpos
massacrados, um grupo de franceses nessa casa. Em silêncio,
buscou forma de lhes tapar a saída e depois acenderam tochas,
carqueja e pinhas que atiraram para o telhado de barro, palha e
xisto. Depois, enquanto ouviam gritos de dentro da casa, a gente
gritava várias vezes “Vá de retro, Satanás!”
Todos ficaram ali horas, até só sobrar brasa no meio do granito.
Depois, no dia seguinte, enterram os corpos dos seus no cemitério
e mesmo sem padre, que partira com as milícias, as almas não
ficaram sem missa ou rezas. Quanto aos ossos que se descobriram
na casa, eles foram atirados para a ribeira e nada mais se disse
sobre o assunto. Só mesmo o tabelião é que soltou um “Fosse o que
fosse, calou-se!”
Nos dias seguintes e com tristeza, a gente Loriga verificou que,
aqueles que os avisaram uivando, morreram às mãos dos franceses,
enquanto uns espalhavam penas e sangue de galinhas pelos
terrenos, outros iam dizendo que por Loriga tinham passado
bruxas. O boato foi bem espalhado, mas alguém, com língua maior
do que o juízo, confessou o que se passara a ingleses que
ocupavam a Casa das Obras. E em menos de uma semana, sem
qualquer resistência, homens a cavalo e com casacas vermelhas e
camisas de algodão alvo destruíram tudo o que havia de valor e
tudo o que puderam em Loriga, não tendo sobrado um único tear. A
população que não era remediada, ficou miserável.
Mas a notícia de franceses e ingleses por Loriga espalhou-se. A
gente de Loriga passou a ter cuidado com todas as situações
estranhas e no dia em que a ‘Tia Taleiga’ viu três homens a
cavalo, virem do lado do Caixão da Moura, todos se muniram de
foices, podões e calhaus para irem a seu encontro. Era muita a
vontade e a força daquela gente, mas depois de verem a Matilde
do ‘Bispo’ ajoelhar, todos fizeram o mesmo.
Os homens montados eram três, como os Reis Magos. O primeiro
tinha uma capa-de-honras. O do meio tinha uma capa preta e
um chapéu eclesiástico da dignidade de Bispo. O último tinha
uma capa portuguesa preta. Todos montavam cavalos lusitanos
escuros, mas bem tratados.
Com o afastamento do ‘Bispo’ da alçada de D. Mendonça Arrais, dois
clérigos tomaram o lugar de braços-direitos do Bispo da Guarda e
de Pinhel, D. Carlos da Cunha e Menezes e Frei Carlos de São José
de Azevedo e Sousa. Eram seguros no porte e determinados na
vontade. D. Carlos da Cunha Menezes, filho de D. Pedro José da
Cunha de Mendonça e Menezes, 4º Senhor de Valdigem, foi depois
das Invasões, indicado pelo D. Mendonça Arrais para ter um papel
importante como conselheiro de Estado na regência de Portugal,
na ausência de D. João VI. Depois, o Papa Pio VII tornou-o Cardeal
Patriarca de Lisboa em 1819. Quanto a Frei Carlos, este tomou o
lugar de D. Mendonça Arrais como Bispo da Guarda e de Pinhel,
dois anos após o seu falecimento, no Paço de Melo. Foram estes os
únicos estranhos que entraram em Loriga, logo a seguir à visita
dos ingleses. Dia em que a devastação era tanta que nem papas de
carolo de milho branco havia para receber as visitas.
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