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A Ética Cristã em Pespectiva Ecológica
Introdução
Na mensagem de paz ao mundo, em 1990, João Paulo II, ao mencionar as
diferentes expressões da crise ecológica – destruição da camada de ozônio, o
“efeito estufa”, a poluição industrial, o desmatamento, a extinção de espécies, etc
-, afirma que o sinal mais grave, que está na raiz destes problemas, é a falta de
respeito à vida, à vida humana e de todas as formas de vida no planeta. Com
firmeza defende o princípio de que “o respeito à vida, sobretudo à dignidade da
pessoa humana, é a norma definitiva para se obter um sadio progresso econômico,
industrial ou científico”595.
O respeito à vida e à integridade da criação é o grande desafio para o ser
humano, a única espécie que, numa relação dialógica, é capaz de encontrar o
Criador como o totalmente Outro: “o outro significa uma pro-posta, que pede uma
res-posta com responsabilidade”596. Diante do Criador, o ser humano se descobre
um ser ético. A singularidade do ser humano se revela no fato de só ele poder ser
um ser ético, isto é, ter a capacidade de responder com responsabilidade à
proposta que lhe vem da criação. Por isso, hoje é cada vez maior a necessidade de
redescobrir a ética e auscultar os caminhos que ela vai nos apontar.
A teologia da criação, tal como vimos no capítulo anterior, diante do desafio
hodierno da crise ambiental, procura dar uma contribuição na busca de caminhos
que levam a uma sadia convivência entre o ser humano e o mundo natural. A
teologia cristã nasce de e leva a um engajamento em favor da vida, tal como a
experimenta e dá testemunho Ivone Gebara: “Fazemos parte de um destino
comum: a luta ecológica, das mulheres e de outros grupos alternativos, tem a ver
595 J. PAULO II, “Peace with God the Creator, Peace with All of Creation”, n. 7. Cf. PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 118. 596 BOFF, L. Ética e Moral. A busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 45.
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com o conjunto da preservação da vida”597. Numa palavra, a teologia é também
ética.
Neste capítulo procuraremos mostrar que os graves problemas gerados pela
crise socioambiental pedem uma nova ética que seja capaz de pensar e propor
parâmetros de comportamento e de ações em face dessa problemática. Para tanto é
necessário apontar alguns princípios teóricos que fundamentam essa nova ética.
Buscaremos apoio na categoria de alteridade aplicada à natureza e ao princípio
responsabilidade tal como pensou H. Jonas (item 1). Com essa base, procuraremos
argumentar que a natureza adquire significação moral, é intrinsecamente valiosa e,
portanto, apresenta em si um direito à existência (item 2). Essa visão implica uma
nova maneira de relacionamento com o mundo natural que, por sua vez, exige
uma mudança no perfil do sujeito ético que, superando os limites do paradigma da
modernidade, assume as características do paradigma ecológico, possibilitando
uma existência ética pautada pelas virtudes do cuidado e da solidariedade (item 3).
Por fim, procuraremos sublinhar a dimensão social da crise ecológica,
relacionando a ética com o desafio de encontrar possibilidades para um processo
que conduza a modelos autênticos de desenvolvimento sustentável (item 4).
6.1
A necessidade de uma nova ética
Em consonância com a compreensão teológica da natureza como criação, o
ser humano “ao pisar o pé” no mundo, recebe um encargo de cuidar do ambiente
que encontra598. Isto significa assumir uma responsabilidade para com a terra – a
sua morada (oikos) - que, segundo R. Burggraeve, trata-se de uma
responsabilidade criatural, constitutiva do modo como o ser humano foi criado.
Ou seja, ao encontrar o mundo já criado, o ser humano “se descobre a si mesmo
como colocado numa ‘aliança ética’ com a criação”. Anterior à sua capacidade de
597 GEBARA, Ivone. Citada por SCHNEIDER, Nélio. Solidariedade no sofrimento e na esperança em busca da relação justa entre o humano e o criado Coram Deo. In: SUSIN, L. C. (org.), Mysterium Creationi, op. cit., p. 178. 598 Cf. o sentido de “pisar o pé” segundo o significado original do verbo submeter (kalas) no item 5.5.1 do capítulo anterior.
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escolha, o ser humano já está vinculado ao “destino” do mundo, já foi feito
solidário com ele e, por conseguinte, deve se responsabilizar por ele599.
O ser humano, contudo, não é pura receptividade. Ele é, principalmente, um
ser de decisão e resposta, podendo assumir a sua responsabilidade para com o
mundo que recebe. Aí reside a sua singularidade, como um ser ético pode ser
capaz de perceber interpelações e responder positivamente em favor de seus
semelhantes e da natureza da qual faz parte.600
Muitos estudiosos, hoje, estão de acordo que a crise ecológica não se
resolve apenas no campo da racionalidade instrumental, só com medidas de
caráter técnico-científico. Ao contrário, a problemática ambiental pede respostas
que são antes de tudo o resultado de uma opção ética. Na década de 1970, Randers
e Meadows, os autores do famoso relatório do Clube de Roma, já apontavam para
a imprescindível tarefa de por limites ao crescimento segundo critérios éticos.
Vinte anos depois, diante do agravamento da degradação ambiental que ameaça a
vida de todo o planeta, os mesmos autores insistiam na necessidade de “um amor
em escala global”, pois “a resposta aos problemas do mundo começa com um
novo humanismo... capaz de restabelecer o amor, a amizade, a solidariedade e a
convivência...”601 Para o biólogo australiano Charles Birch, a única saída para esta
crise é a construção de “uma sociedade viável” baseada, sobretudo, no valor da
solidariedade602. De forma semelhante pensa o médico e biólogo Jacques Ruffié,
para quem a crise ecológica é um sinal evidente de que a humanidade precisa
estabelecer novas formas de relacionamento com “mais justiça, mais consciência e
maior cooperação”, vale dizer, é preciso “adotar um comportamento altruísta
especificamente humano”. A crise ecológica, por conseguinte, pede a instauração
de uma “nova ética”.
599 BURGGRAEVE, R. art. cit., p. 117 e 119. 600 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, op.cit., p. 175-178. 601 MEADOWS, D.H , et. al.. Citados por DE LA PEÑA, J. L. R. Crisis y Apologia de La Fé, op. cit., p. 245. 602 Ibid., p. 246.
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6.1.1
A fundamentação de uma ética ecológica
O antropocentrismo da civilização moderna é apontado como uma das
causas da crise ecológica. Ele produziu uma racionalidade técnico-científica,
associada à idéia de progresso material contínuo, que usa a natureza apenas como
objeto de domínio e como recurso a ser explorado para a satisfação das
necessidades humanas. Nesse processo, prevalecem interesses econômicos e
estratégias políticas que, junto com a depauperização do meio ambiente, geram a
degradação do convívio humano que se manifesta no aumento da pobreza e da
injustiça.
Na origem da problemática ecológica está uma questão moral: a dissociação
entre o “que podemos fazer” (técnica) e o que “devemos fazer” (ética). Com
lucidez Gómez-Heras chama a atenção para a urgente necessidade de “vincular a
racionalidade técnico-científica a uma racionalidade axiológica, não só enquanto
esta é uma dimensão essencial da ação humana, mas também porque a natureza é,
em si mesma, um valor e um sujeito de valores”603. Na ausência de uma
consideração ética, o sistema econômico industrial – e a exploração da natureza
que o acompanha – provoca não apenas um vazio de bens materiais, devido ao
consumismo nunca satisfeito, como também o de bens culturais: estéticos,
ecológicos, éticos, etc. Vazio este no qual “o ser humano se perde a si mesmo
como pessoa”604.
Nesse contexto de esvaziamento de valores, o grande desafio que aparece no
interior da própria crise ecológica é recuperar, frente à racionalidade técnico-
produtiva dominante, a dimensão ética da ação humana que a oriente para o bom e
o justo e corrija as distorções de um relacionamento arbitrário com a natureza.
Como alertava o Conselho Ecumênico das Igrejas - Camberra, 1990 - ao tratar da
ecologia e de uma postura ética no relacionamento com a natureza: “O propósito
da tecnologia será trabalhar com a natureza e seus mistérios e não domina-la”605.
Portanto, o equilíbrio entre as racionalidades técnico-industrial e axiológica,
603 GÓMEZ-HERAS, J. M. G. Ética del Medio Ambiente. Problemas, Perspectivas, História. Madrid: Tecnos, 1997, p. 22. 604 Ibid., p. 23. 605 Citado por BOFF, L. Ecologia, Mundialização, Espiritualidade: A emergência de um novo paradigma. São Paulo: Ed. Ática, 1993, p.77.
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segundo observa J. Siqueira, é uma urgente tarefa de uma ética ambiental ou
ecológica, contribuindo para que
“a atividade humana se integre entre ambas, evitando a perda das dimensões subjetiva, teleológica e teológica da natureza e não permitindo a polarização excessiva da mentalidade objetiva e instrumental da natureza, pois essa acaba esvaziando a relação do homem com o mundo circundante e com o próprio sentido radical e absoluto da história, Deus”606.
Tradicionalmente a ética tem encontrado na conduta do ser humano o eixo
de sua reflexão, referindo-se a valores e normas implicados no convívio dos seres
humanos entre si e com a natureza, mas somente enquanto esta responde a
interesses humanos. Ultrapassando as fronteiras de uma concepção estritamente
antropocêntrica, a ética ecológica surge para fundamentar normas que
regulamentem a conduta do ser humano com a natureza. Dito de outra forma, a
ética ecológica amplia a abrangência da ética, considerando a natureza – a
biosfera, os seres vivos não humanos – como “objeto moral”, merecedora de
consideração moral por si mesma, pelo valor próprio que possui, isto é, a vida607.
O médico e prêmio Nobel Albert Schweitzer, com seu projeto de uma “ética do
respeito à vida”, já alertava para essa necessidade:
“O grande erro de todas as éticas do passado está no fato de que elas limitaram-se ao comportamento do homem face ao homem. Mas, na realidade, a questão é de saber qual a sua atitude diante do mundo e de toda a vida que ele encontra em seu caminho. Um homem é ético quando se volta generosamente para toda a vida que está necessitando de ajuda. Só pode ter fundamento a ética universal que consiste na experiência da responsabilidade face a tudo o que vive”608.
D. Edwards recorda que a sensibilidade ecológica de A. Leopold, no
despertar do movimento ambientalista, antecipava o que hoje se denomina visão
sistêmica e holística do mundo, com a proposição de “uma ética da terra” segundo
a qual o indivíduo é membro de uma comunidade de partes interdependentes: “a
ética da terra simplesmente aumenta as fronteiras da comunidade para incluir solo,
água, plantas e animais, ou de forma coletiva: a terra”609. Os seres humanos são
convidados a tratar a terra com respeito, pois “como comunidade, a terra é o
conceito básico da ecologia; como uma extensão da ética, ela deve ser amada e
606 SIQUEIRA, J. C. Ética e Meio Ambiente. São Paulo: Ed. Loyola, 2002, p. 13. 607 GÓMEZ-HERAS, op. cit., p. 28-29. 608 SCHWIETZER, A. Citado por ROLSTON, H. III., Environmental Ethics. Duties to and Values in The Natural World. Philadelphia: Temple University Press, 1988, p. xiii. 609 LEOPOLDO, A. Citado por EDWARDS, D. Jesus the Wisdom of God, op. cit., p. 160.
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respeitada”. Para tanto, A. Leopoldo apresenta um critério básico para uma ética
ecológica: “Uma ação é correta quando tende a preservar a integridade, a
estabilidade e a beleza da comunidade de vida e errada quando tende ao
contrário”610. A integridade de toda a comunidade biótica é um valor importante
porque valoriza e permite o bem comum de todos os indivíduos, humanos e não
humanos. Posteriormente, semelhante apelo ético será proferido por João Paulo II
em sua encíclica Solicitude Rei Socialis:
“... Não se pode fazer impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados – animais, plantas e elementos naturais – como se quiser, em função das próprias exigências econômicas. Pelo contrário, é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, como é exatamente o cosmos”611.
Ora, na ampliação do campo temático da ética ecológica, que além da
responsabilidade do ser humano consigo mesmo e da relação com seus
semelhantes também inclui a natureza como merecedora de consideração moral,
uma questão que se levanta é a fundamentação teórica que justifique a atribuição e
reconhecimento de valores intrínsecos aos seres vivos não humanos e ao entorno
natural. Nesse sentido, grande contribuição tem sido dada com as categorias de
alteridade e do princípio de responsabilidade, que veremos a seguir.
6.1.2
A natureza enquanto alteridade
Em sua aguda crítica à modernidade, H.R. Leis não hesita em afirmar que,
do ponto de vista ambiental, a noção de progresso, entendido como superação de
todo e qualquer obstáculo através das forças do trabalho e baseado na ciência e na
tecnologia, foi uma das piores heranças que o século XX recebeu do passado, uma
vez que esse tipo de progresso “supõe sempre uma liberdade conquistada à custa
da degradação do meio ambiente”612. Tanto no processo de acumulação capitalista
como na teoria emancipatória do marxismo, a busca dessa liberdade, pensada de
610 Ibid. 611 JOÃO PAULO II, Solicitude Rei Socialis, n. 34. São Paulo: Paulinas, 1990. 612 LEIS, H. R. A Modernidade Insustentável. As críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea. Petrópolis: Vozes; Florianópolis: Ed. aa UFSC, 1999, p. 206.
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modo excessivamente antropocêntrico, deveria ser alcançada pela lógica da
acumulação e do desenvolvimento das forças produtivas, o que a tornou
gravemente perturbadora no relacionamento da humanidade com a natureza613.
O peso dessa herança é sentido até os nossos dias. Houve, é verdade,
pensadores muito críticos da racionalidade técnico-instrumental, como os da
Escola de Frankfurt (p. ex. Horkheimer, Adorno, Habermmas e Marcuse), que
viram a necessidade de pensar a reconciliação da sociedade humana com o mundo
da natureza e deram importantes contribuições para melhorar esse relacionamento.
Contudo, eles também apresentaram limitações e dificuldades para pensar a raiz
civilizatória dos problemas ecológicos e entender o ethos ambientalista, pois,
assim como as principais correntes do pensamento da modernidade, não tiveram
“meios para ultrapassar a distância (cada vez maior) instalada entre a natureza e a
sociedade”614. Permaneceu, assim, uma certa descontinuidade entre o ser humano
e natureza. Esta continuou sendo vista como um objeto cartesianamente separado
do sujeito humano, dentro do pensamento próprio da modernidade que tende a não
reconhecer qualquer relação não-racional entre os seres humanos.
Em outras palavras, na concepção de mundo e, por conseguinte, na
formulação da ética, faltou o reconhecimento da natureza em sua real
complexidade e concretude própria. As éticas que emergiram do pensamento
moderno, como aponta M. Pelizzoli, expressam um paradigma que se afirma na
negação do outro como Outro, isto é, no poder e dominação sobre a alteridade615.
No lado oposto desse paradigma, como reação à mentalidade antropocêntrica e à
racionalidade instrumental, emergiu um vigoroso movimento ambientalista para
fazer frente aos problemas ecológicos que a sociedade técnico-industrial fez
surgir. No interior desse movimento, encontra-se uma corrente fortemente
sustentada por princípios teóricos e éticos que pregam uma harmonização
intrínseca com a natureza. São modelos de ética ambiental, como vimos no
segundo capítulo deste trabalho, centrados numa visão biocêntrica, com uma
perspectiva acentuadamente holística onde o indivíduo se dilui no horizonte de um
todo igualitário. A totalidade sistêmica suprime a diferenciação e tanto a natureza
como o ser humano, paradoxalmente, não são reconhecidos como um outro
613 Ibid., 215. 614 Ibid.,p. 207-214, aqui p. 213. 615 PELIZZOLI, M. L., A emergência do Paradigma Ecológico: reflexões ético-filosóficas para o século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 23.
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distinto. Também aqui verifica-se o antigo princípio de que os extremos se tocam,
isto é, a alteridade foi subtraída pelo domínio do poder totalizante e
homogeneizador.
A questão, pois, que se coloca é como encontrar uma formulação teórica
pela qual a natureza seja reconhecida enquanto alteridade – em sua concretude,
com característica própria de “outro” – e que seja a base de uma ética ambiental
em que se encontra afirmada uma relação harmoniosa de eficaz respeito dos seres
humanos entre si e com o mundo da natureza.
Buscando inspiração no pensamento de E. Lévinas, essa fundamentação
teórica pode ser encontrada na categoria de Exterioridade enquanto sugere um
Outro separado, irredutível ao Mesmo616. No sentido levinasiano da palavra,
aplicado a uma realidade eminentemente antropológica, isto é, o relacionamento
intersubjetivo, a Exterioridade exprime uma idéia de concretude irredutível do
Outro, na medida em que a essência da Alteridade do Outro é a sua própria
absoluta singularidade617.
Importante notar aqui é a singularidade do Outro na sua relação com o
Mesmo. Por um lado, o sentido da alteridade do Outro é dado pela presença ao
mundo do Mesmo. A realidade do Outro se dá, acontece frente ao Mesmo diante
do qual o Outro é oferecimento e convite à relação. Contudo, o Outro não se
encontra no Mesmo, está separado dele, pois a realidade ontológica do Mesmo
não comporta um outro, não tem lugar para outro em seu espaço.
“O Mesmo, por sua natureza unificada, totalizada, não pode admitir o compartilhamento de espaços. No lugar do Mesmo, somente o Mesmo: este lugar não é mais, em última análise, do que a ordenação ou a determinação espacial da realidade do Mesmo”618.
Portanto, o Outro, por sua própria concretude, resiste e não se reduz ao
Mesmo. A sua separação é concreta e externa. O Outro é um outro espaço do
616 Importante filósofo contemporâneo, Emmanuel Levinas (1905-1995) escreveu, entre outras obras, Totalité et Infini e Autrement qu’etre, ou au-delá de l’essence. Para uma visão de conjunto do pensamento de Emamnuel Lévinas, cf. SUSIN, L. C. O homem messiânico. Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre – Petrópolis: Co-edição Est-Vozes, 1984; PIVATTO, P., “Ética da alteridade”, in OLIVEIRA, M. A. de (org.) Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 79-97; PELIZZOLI, M. L,. Levinas: a reconstrução da subjetividade, Porto Alegre: EDIPUC, 2002; JÚNIOR, N. R., Sabedoria de amar: a ética no itinerário de Emmanuel Levinas, São Paulo: Loyola, 2005; 617 TIMM de SOUZA, R. Totalidade e Desagregação. Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. Cf. especialmente o capítulo “Alteridade e Ecologia”, p. 151-160. 618 Ibid., p. 158.
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Mesmo, ele é externo à determinação espacial da realidade do Mesmo. Convém
notar que no pensamento de E. Levinas a irreciprocidade é um dos elemento-
chaves na relação entre a subjetividade e alteridade. Nesse sentido, como nota L.
C. Susin, a alteridade supõe uma relação assimétrica e desigual: “O outro é
separado: está diante de mim separado de mim e separado do meu mundo”619.
Portanto, o Outro está espacialmente separado do Mesmo.
É nessa noção de espaço – uma “retorção ética”, segundo Timm de Souza620
- que se pode aplicar a categoria de alteridade a uma realidade não-antropológica,
como a natureza. “Ela é um outro espaço”, irredutível ao espaço do Mesmo. O
espaço da natureza não pertence ao Mesmo, embora próximo e sujeito aos seus
influxos. A natureza é a espacialidade original do outro enquanto Outro. Sendo a
natureza o substrato de sua própria concretude, o Outro está nela. Dessa forma,
pode-se atribuir à natureza essa condição categorial de Alteridade:
“Se a Natureza é a espacialidade original do Outro, isto somente se pode dar se esta não compartilha da natureza do mesmo. A Natureza tende assim à alteridade categorial, e é nesta Alteridade categorial que se pode perceber uma concepção de Natureza não contaminada por determinações e classificações ontológicas totalizantes. Tem-se aí, portanto, uma teoria da Natureza não subsumida na prática exploratória totalizante”621.
Portanto, em sua existência concreta a natureza é vista como uma realidade
“dis-tinta” do Mesmo e, assim, ela pode ser percebida em seu sentido mais
profundo e original. Enquanto alteridade, a natureza é merecedora de um
reconhecimento respeitoso que não cai num sistema homogeneizante ou reificador
onde fica reduzida à simples coisa a ser explorada pela lógica da acumulação
humana – como um depósito de matéria prima à disposição da cobiça que
alimenta a insustentabilidade insaciável da nossa sociedade de consumo. Também
corrige, nessa concepção homogeneizante, a tendência da indiferenciação pela
qual o ser humano e natureza se con-fundem num unitarismo biológico
englobante, isto é, uma visão totalizante e abstrata segundo a qual a natureza se 619 SUSIN, L. C. O homem messiânico, op., cit., p. 214 -220; aqui 216. 620 TIMM DE SOUZA, R., ibid., p. 157., No pensamento de E. Levinas, é a linguagem que possibilita o reconhecimento da exterioridade do Outro, conferindo à Alteridade a sua racionalidade própria. Como a natureza não é portadora desse tipo de linguagem, explora-se, então, a noção de espaço que o conceito de Exterioridade comporta. Cf. Ibid., nota 261, p. 157. À propósito, convém notar que segundo uma visão excessivamente antropocêntrica rejeita-se qualquer atribuição de alteridade à natureza porque exatamente ela é desprovida de razão e linguagem. Nessa linha encontra-se, por exemplo, a crítica de Luc Ferry em seu livro El nuevo orden ecológico – El árbol, el animal y el hombre. Barcelona: Tusquets Editores, 1994. 621 TIMM DE SOUZA, R., ibid., p. 159.
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configura como uma complexa combinação de elementos dos quais o ser humano
é apenas uma parte. O resultado dessa idealizada “unidade” seria a perda da
identidade própria tanto do ser humano quanto da natureza622.
A categoria da alteridade, portanto, tem ajudado na exposição de uma base
para se pensar hoje a difícil e complexa problemática socioambiental. Com efeito,
ela significa o respeito ético da condição de “outro” do Outro, no caso aqui, da
natureza. Dessa forma, a concepção ética de natureza – entendida enquanto
alteridade – possibilita reconhecer o seu valor intrínseco. Já é um considerável
avanço com relação às éticas tradicionais, estritamente antropocêntricas, pelas as
quais a natureza não recebe em si mesma nenhuma consideração moral. A
natureza está relacionada com o ser humano, é bem verdade, e somente este pode
assumir a condição primeira de agente ético. Mas ela é portadora de um sentido e
de uma atribuição axiológica própria, irredutível aos interesses da espécie
humana. Ela possui um estatuto ético. Numa palavra, ela pode ser considerada
como eticamente “inteligível”623. A categoria de alteridade conferida ao mundo
natural é, sem dúvida, um grande avanço nesse sentido.
6.1.3
O imperativo da existência na ética da responsabilidade
Uma das contribuições mais significativas no debate sobre a consideração
ética da natureza foi dada pelo filósofo Hans Jonas624, cuja obra mais destacada já
622 Ibid., igualmente PELIZZOLI, M. L., op. cit., p. 30-31. Diferentemente dessa visão totalizante, encontra-se a posição respeitosa de um holismo, ou paradigma sistêmico, que postula uma integração das partes mutuamente interrrelacionadas, mantendo nestas as suas propriedades distintas e separadas. Cf. TIMM DE SOUZA, R., ibid., nota 257, p. 155. 623 TIMM DE SOUZA, R., op. cit., p. 159-160. 624 Filósofo judeu, nasceu na Alemanha em 1903, onde estudou com Husserl, Heidegger e Bultmann. Deixou a Alemanha em 1933, com a chegada ao poder do nazismo. Em 1949 emigrou para o Canadá e, em seguida, para os Estados Unidos onde faleceu em fevereiro de 1993. Inicialmente, tornou-se conhecido por sua obra histórico-filosófica sobre a gnose e, mais tarde, por seus trabalhos sobre a filosofia da biologia. A partir dos anos 1960, Hans Jonas dedicou-se a refletir sobre as questões éticas suscitadas pelo progresso da tecnologia. Depois de O Princípio da responsabilidade, publicou Técnica, Medicina e Ética, em 1985, onde fez profundas reflexões sobre importantes questões da bioética. Para uma visão de conjunto da sua ética da responsabilidade, ver: DUPLÁ, L. R., “Una ética para la civilización tecnológica: la propuesta de H. Jonas”, in GÓMEZ-HERAS, J. M. G (coord.), Ética del médio ambiente. Problema, perpectivas, historia. Madrid: Tecnos, 2001, p. 12 -144.; SIQUEIRA, J. Eduardo de., Ética e tecnociência. Uma abordagem segundo o princípio da responsabilidade de Hans Jonas. Londrina:
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anuncia a base sobre a qual assenta-se o seu programa ético: O Princípio
Responsabilidade625, publicada em 1979, tornando-se uma das obras mais
conhecidas e com ampla aceitação entre os variados setores do movimento
ecológico. As suas idéias, bastante críticas ao pensamento moderno,
especialmente da dominação tecnológica, ajudaram a pensar melhor o
relacionamento do ser humano com a natureza, mostrando com muita lucidez as
limitações da ética tradicional - e das idéias do nosso tempo em geral na
abordagem dos graves problemas contemporâneos, particularmente o da questão
socioambiental em toda a sua complexidade – que devem ser supridas por uma
nova ética.
O ponto de partida de sua reflexão é o “vácuo ético” originado pela
tecnociência, que tem conferido aos seres humanos poderes cada vez maiores com
os quais põem em risco o mundo natural e a humanidade inteira. Com efeito, o
mito de um progresso sem medidas, apoiado pela tecnologia moderna, tem agido
como “o Prometeu definitivamente desacorrentado” ameaçando as condições da
vida humana e o futuro da natureza como nunca antes aconteceu. É esse vazio
ético, segundo H. Jonas, “que simultaneamente também é o vácuo do relativismo
de valores atual, que clama por uma nova ética capaz de impedir o poder dos
homens de se transformarem em uma desgraça para eles mesmos”626.
No capítulo inicial deste trabalho, fizemos referência à racionalidade
instrumental, unilateralmente considerada, como uma das causas geradoras da
crise socioambiental. H. Jonas também vê na formação da nova ciência o lócus
inicial de onde partiu a crise. De acordo com ele, a nossa civilização tecno-
científica-industrial é a consumação de um processo iniciado com o aparecimento
da ciência moderna sob o lema “saber é poder”. Esse processo, que ele chama de
“ideal baconiano”, tem como objetivo colocar o saber a serviço da dominação da
natureza e utilizá-la para satisfazer as necessidades humanas627. Isso revela um
UEL, 1998; GIACOIA JÚNIOR, O., “Hans Jonas: O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. In: OLIVEIRA, M. A. de (org.) Correntes Fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 200, p. 193-206; NEDEL, J. Ética Aplicada. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004, p. 143-168. 625 JONAS, H. Das Prinzip Verantwortung, 1ª edição alemã, 1979; edição brasileira: O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. 626 Para H. JONAS foi o poder desmedido conferido à razão instrumental da tecnociência que gerou esse vazio ético. Cf. Ibid., p. 21, 65-66. Aqui p. 21. 627 Ibid., p. 235.
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tipo de compreensão de natureza desprovida de qualquer valor intrínseco e
reduzida a mero instrumento para o bem estar humano, ou seja, uma natureza
como pura extensão cartesiana, privada de interioridade e finalidade. Ora, esse
ideal baconiano tem revelado uma grande contradição interna. Por um lado,
alcançou um inegável êxito, tanto no aspecto econômico - bem-estar material cada
vez mais acelerado e o aumento de consumo, que por si só já traz o perigo do
esgotamento dos recursos naturais e sua degradação – quanto no aspecto
biológico, representado pelo aumento demográfico facilitado pelas conquistas da
tecnociência, acelerando ainda mais o ritmo exploratório dos sistemas naturais.
Por outro lado, todo esse processo revelou um descontrole sobre si mesmo,
mostrando-se incapaz de proteger a humanidade de sua própria ganância, e a
natureza, do poder destrutivo humano628.
“Bacon não poderia imaginar um paradoxo desse tipo: o poder engendrado pelo saber conduziria a algo como um ‘domínio’ sobre a natureza (ou seja, a sua superutilização), mas ao mesmo tempo a uma completa subjugação a ele mesmo. O poder tornou-se autônomo. Sua promessa transformou-se em ameaça e sua perspectiva de salvação, em apocalipse”629.
É nesse contexto imensamente desafiador que H. Jonas percebe a
insuficiência das éticas tradicionais, pois apresentam certas características que não
condizem aos novos apelos630. Uma dessas características consiste em não incluir
no campo da ética a esfera das relações com o mundo extra-humano. Isso a torna
fundamentalmente antropocêntrica: as relações com o mundo natural são
eticamente neutras. Com efeito, “a natureza não era objeto da responsabilidade
humana: diante dela eram úteis a inteligência e a inventividade, não a ética”631. A
significação ética, portanto, dizia respeito exclusivamente ao relacionamento entre
seres humanos.
Outra característica da ética clássica é a sua imediatez, isto é, considera o
agir humano - no espaço e no tempo - próximos a esse agir, de modo que os
efeitos remotos ou conseqüências distantes da ação não são eticamente relevantes.
628 Ibid., p. 235-236. 629 Ibid., p. 237. Nota-se aqui, segundo F. O. Fonseca, a influência de M. Heidegger no pensamento crítico de H. Jonas sobre os impactos da tecnologia (cf. HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002). Contudo, o discípulo vai além do seu mestre ao incorporar na crítica da civilização tecnológica a elaboração de uma teoria propriamente ética. Ver FONSECA, F.O., “Ética da Responsabilidade em Hans Jonas e Limites das Éticas Tradicionais (antropocêntricas), in REB 269 (2008), p. 76-77. 630 Ibid., p. 31-37. 631 Ibid. p. 34.
217
O universo moral não abrangia as gerações futuras. Nas palavras de H. Jonas:
“Ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos
homens, com as situações recorrentes da vida privada e pública”632. Assim, o
horizonte do futuro ético ficava limitado ao previsível durante a vida, e as
conseqüências mais longínquas do agir humano não eram objetos de planejamento
e preocupação moral.
A incidência da tecnologia moderna vai alterar sobremaneira esse panorama
no qual se inscrevem as éticas tradicionais. Ela trouxe consigo mudanças
profundas com uma amplitude de conseqüências antes não conhecidas. Entre elas,
o efeito destrutivo da ação humana sobre a natureza alcança uma dimensão
planetária e se estende por um futuro longínquo. Os danos se acumulam nos
ecossistemas naturais com repercussões ainda não inteiramente previsíveis e
prejuízos incalculáveis, ameaçando gravemente a própria existência de futuras
gerações. Tudo isso ultrapassa em muito as margens de consideração dos sistemas
éticos tradicionais. A intervenção tecnológica alterou drasticamente a forma do
agir humano. A natureza como um todo, e não apenas o campo das relações intra-
humanas, passa a ser diretamente implicada no campo da responsabilidade
humana. Para H. Jonas, a extensão tanto espacial quanto temporal da ação humana
em nosso tempo leva a uma mudança radical até mesmo no ponto de partida das
éticas tradicionais. Uma nova ética é necessária: “A natureza como uma
responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria
ética deve ser pensada”633.
A natureza, portanto, precisa ser incluída na esfera de responsabilidade do
agir humano, através da articulação de uma ética da responsabilidade que
ultrapasse o simples imperativo da preservação da espécie humana. H. Jonas está
convicto de que essa tarefa urge não apenas como um mandamento fruto da
prudência ou do simples utilitarismo – “não matar a galinha dos ovos de ouro”, ou
de “não serrar o galho sobre o qual até então estivemos assentados” – o que
indicaria a manutenção disfarçada do velho antropocentrismo das éticas
tradicionais. Trata-se, ao contrário, de uma séria postulação de um direito à
existência, de uma significação ética própria da natureza num horizonte ampliado
632 Ibid., p. 36. 633 Ibid., p. 39.
218
da responsabilidade humana. Em suma, uma nova ética fundamentada a partir do
novo contexto em que vivemos e que
“não deveria estacionar no brutal antropocentrismo que caracteriza a ética tradicional e, particularmente, a ética heleno-judaico-cristã do Ocidente: as possibilidades apocalípticas contidas na tecnologia moderna têm nos ensinado que o exclusivismo antropocêntrico poderia ser um preconceito e que, em todo caso, precisaria ser examinado”634.
Assim, de acordo com H. Jonas, a ética deveria ser totalmente renovada.
Mesmo que a ética do amor ao próximo, da justiça e da honradez continue sendo
válida, ela tem que ser colocada em um outro horizonte, repensada em uma nova
dimensão que inclui, de forma ainda não pensada, a exigência da
responsabilidade635.
Certamente, o tema da responsabilidade já está presente nas éticas
tradicionais como um conceito normativo que orienta a práxis humana636. A
proposta de H. Jonas, porém, é inovadora porque inclui no campo da
responsabilidade do agir humano a dimensão coletiva da sociedade e a totalidade
do mundo natural: não mais o comportamento do indivíduo privado – como o
imperativo categórico kantiano – mas o agir coletivo que inclui o domínio da
política pública, ou seja, a vida em todas as suas formas, incluindo a extra-
humana, e o futuro não próximo637.
Mas como fundamentar essa responsabilidade frente às gerações futuras e
com o mundo natural? H. Jonas, sabendo que, entre as objeções à sua proposta
ética, encontra-se aquela de que gerações futuras poderiam não vir a existir,
procura mostrar que a nossa responsabilidade se estende pelo devir do futuro. Para
isso ela fundamenta a sua ética – para evitar subjetivismos e relativismos – sobre
uma ontologia, sobre um pensamento do ser. Com suas palavras: “sobre a doutrina
do existir, ou seja, da metafísica, na qual afinal toda ética deve estar fundada”638.
634 Ibid., p. 97. 635 Ibid., p. 39. 636 J. Nedel faz lembrar que o conceito de responsabilidade foi explicitamente tematizado por Max Weber, contrapondo a ética da responsabilidade à ética da convicção (cf. WEBER, M., Ciência e Política. Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 1980). Ver NEDEL, J., op. cit., p. 160. Segundo L. R. Duplá, contudo, não se deve confundir o princípio responsabilidade de H. Jonas com o sentido teleológico (ética da responsabilidade) que se contrapõe ao que se denomina de ética da convicção (sentido deontológico). Em H. Jonas o princípio responsabilidade adquire nova significação e é uma alusão polêmica à obra de E. Bloch O princípio esperança. Ver DUPLÁ, L. R., op. cit., nota 5, p. 132. 637 Ibid, p. 39-42. 638 Ibid, p. 42, igualmente p. 96-97.
219
Esse tipo de legitimação corresponde a uma necessidade vital da nossa época,
como bem observa H. R. Leis, para evitar que a humanidade continue vulnerável
aos projetos de progresso material permanente (a utopia marxista e a liberal) que,
ao se aliarem fortemente com a técnica, não levam em conta as conseqüências da
ação humana639.
Portanto, é nesse nível ontológico que se coloca a pergunta fundamental
sobre o porquê da existência da vida no mundo, isto é, por que deve haver seres
humanos e por que devemos garantir, através de um imperativo ético, a sua
existência futura. Em outras palavras: por que o ser e não o nada? – H. Jonas
reformula a questão já posta anteriormente por Leibniz640. A sua resposta é que
“há uma prioridade absoluta do ‘ser’ sobre o nada”, o ser vale muito mais do que
o não ser641.
Ora, dessa certeza basilar nasce, por conseguinte, o imperativo
incondicional de garantir a existência da vida, da humanidade, da natureza como
um todo, inclusive das gerações futuras. Um ser que se integra à grande cadeia da
vida tende a um processo natural de autoconservação para garantir a sua
existência, a sua permanência no “ser”, por isso reclama a possibilidade de existir.
Daí o imperativo fundamental da ética da responsabilidade: “Aja de modo a que
os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de tal
vida”642. Desse modo, o novo imperativo está baseado em algo mais radical do
que a vontade humana (como em Kant), isto é, apóia-se na exigência imanente de
um bem em si mesmo, que é o vir a ser.
O incondicional sim à vida da ética de H. Jonas está ainda fundamentado
num finalismo imanente em toda a natureza o qual está articulado em fins, valores
e bens. Cada componente do sistema é dotado de valor porque tem uma finalidade
639 LEIS, H. R., op. cit., p. 217. H. Jonas se opõe ao utopismo de Ernest Bloch (cuja obra O princípio Esperança segue o projeto marxista) e a toda forma de utopia que tem como ponto de partida a ideologia do progresso sustentada pela tecno-ciência. Sobre isso cf. os capítulos cinco e seis de Principio responsabilidade. 640 JONAS, H., ibid., p. 99-103. 641 Ibid., p. 102. 642 O novo imperativo, voltado para o novo tipo de sujeito ético, é apresentado por H. Jonas em quatro variantes. A primeira diz assim: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”. Expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”. Ou simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”. E de forma novamente positiva: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer”. Ibid., p. 47-48.
220
intrínseca. Isso porque, segundo H. Jonas: “Todo órgão em um organismo serve a
um fim, o qual ele realiza ao funcionar. O fim abrangente, a serviço do qual se
encontram todas as funções específicas, é a vida do organismo como um todo”643.
Aqui podemos notar no pensamento de H. Jonas uma possível repercussão do
novo paradigma sistêmico sustentado pelos estudos da ecologia644.
Na base da nova ética, portanto, está a convicção de que o ser é dotado de
finalidade intrínseca. Esse aspecto da ética de H. Jonas é muito importante do
ponto de vista ambiental, pois nele está incluída a natureza como um todo. A
natureza é aqui compreendida em perspectiva teleológica, uma visão recusada
pela ciência moderna que, como já vimos, passou a considerar a natureza como
res extensa, isto é, pura extensão, desprovida de interioridade e finalidade. Bem
ao contrário, a proposta de ética conforme H. Jonas considera “a biosfera no todo
e em suas partes” como portadores de valor atribuído pelo fim que possuem. Para
ele, os postulados da nova ética devem
“procurar não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano”645.
Encontramos aqui um avanço considerável no esforço de superar o
excessivo caráter antropocêntrico das éticas tradicionais. Nesse novo horizonte, a
natureza é vista como portadora de finalidades às quais correspondem valores que
lhe são inerentes. O próprio dinamismo de autoconservação do ser já é em si um
valor, pois o ser é preferível ao não ser. Daí que o sujeito que existe, isto é, a
totalidade do mundo vivente, é sujeito de predicados axiológicos. Na
fundamentação da ética da responsabilidade, a questão dos valores se radica na
própria questão do ser. Para H. Jonas, “a axiologia se torna uma parte da
ontologia”646. Daí se conclui que o fato de existir já é um bem em si mesmo e, por
isso, tal existência deve ser preservada. Nessa perspectiva, já podemos adiantar,
portanto, que a natureza reclama de um direito de existir.
643 Ibid., p. 129. 644 Contudo, não podemos esquecer que a fundamentação metafísica que H. Jonas procura dar a sua ética recorre à princípios teleológicos na natureza semelhantes aos apresentados por Aristóteles o qual, segundo o próprio Jonas, “se torna cada vez mais atual”. Cf. NEDEL, J., op. cit., p. 161. 645 JONAS, H., ibid. p. 41. 646 Ibid., p. 149.
221
O ser humano, a partir dessa nova consideração ética, deve assumir a sua
responsabilidade, tendo em vista a sua própria conservação e do mundo natural,
de manter a existência da vida. A possibilidade do nada – destruição da natureza e
de si próprio – está confiada a ele, de modo que o seu agir deve corresponder a um
“não ao não ser”, ou seja, o sim ontológico à vida tem a força de um dever647. Dito
de outro modo, a existência da vida humana e da natureza em geral reclama existir
pelo simples fato de existir.
Importa aqui sublinhar esse aspecto da responsabilidade que nasce do
próprio direito de existir. Esse direito não supõe reciprocidade, pois vem de um
valor intrínseco (o ser, a existência), o que implica um vínculo objetivo,
independente da vontade ou preferências subjetivas. H. Jonas quer assentar uma
base objetiva para a sua ética – em contraste com uma ética subjetiva que depende
das escolhas humanas – e para tanto apresenta o modelo da relação entre pais e
filhos, “como arquétipo original e intemporal da responsabilidade”648. A
responsabilidade dos pais para com os filhos pequenos representa muito bem o
dever de uma responsabilidade não recíproca. A vida de um recém-nascido –
“previsto ontologicamente que seus pais o protejam contra sua queda no nada e
que se encarreguem do seu devir futuro”649 – exige uma relação de gratuidade da
parte de seus pais que aceitam o encargo de dar acolhimento, proteção e condições
de existência para a criança. A criança se torna o paradigma do “dever-ser”, de
uma ética que apresenta um dever em virtude da afirmação da existência, isto é,
um apelo do “ser” para que não seja reduzido ao “não ser”. O direito à vida da
criança, portanto, não se baseia em parâmetros de reciprocidade. A
responsabilidade é, pois, assimétrica. A humanidade global, incluindo a que virá
no futuro, se torna a referência e a norma para as quais se volta a responsabilidade
do agente ético. As gerações do futuro, contudo, não farão nada pela geração
presente. Aí está o elemento característico do imperativo da nova ética: a não-
reciprocidade650.
647 Ibid., p. 152. 648 Ibid, p. 219-225, aqui 219. 649 Ibid., 224. 650 Autores, como o filósofo alemão Offreid Hoffe, parecem não concordar com H.Jonas na tese da responsabilidade não-recíproca dos pais para com os filhos, sustentando que há, sim, uma reciprocidade na medida em que as ajudas recebidas no início da vida serão retribuídas mais tarde, pelo que ele chama de “troca diacrônica positiva”. Contudo, como observa, J. Nedel, em se tratando de gerações futuras muito longínquas, que nada poderão retribuir às gerações presentes, a tese de H. Jonas se sustenta. Cf. NEDEL, J., op. cit., p. 166.
222
Esse caráter de não-reciprocidade, como vimos anteriormente, foi
tematizado fortemente na filosofia de E. Levinas através da categoria da
alteridade. Segundo F. O. Fonseca, o tema da alteridade assimétrica é retomado e
ampliado por H. Jonas em sua ética da responsabilidade. Aqui, deixa-se o campo
exclusivamente do relacionamento humano, como na teoria de subjetividade em
E. Levinas, e estende-se o conceito de alteridade para outras dimensões do mundo
natural. De modo que a natureza, considerada enquanto alteridade, também
apresenta o direito de existir, de “vir-a-ser”651. Aqui nota-se a ampliação do
conceito de responsabilidade na ética de H. Jonas. O ainda não existente, a
natureza futura, ganha o direito de existir pelo fato de que já “é” no presente. O
agente ético, isto é, o ser humano, assume o dever de tomar para si a
responsabilidade pelo que ainda está por vir.
Poderíamos ainda ressaltar, na imagem da responsabilidade dos pais para
com os filhos, um aspecto que tem sido bastante ressaltado hoje na ética
ambiental. Isto é, a criança aqui é tomada como expressão de uma grande
fragilidade que aponta um dever de que sejam tomados os cuidados fundamentais
para a sua sobrevivência, para que se afirme como ser-existente. “O recém-
nascido – diz H. Jonas – cujo simples respirar dirige um ‘dever’ irrefutável ao
entorno, o de dele cuidar”652.
Assim é o conjunto da natureza. Os estudos da ecologia hoje têm mostrado
o quanto ela é frágil no equilíbrio dos ecossistemas e na particularidade de cada
espécie vivente. A vida é bastante vulnerável. A vida humana, em particular,
também frágil e vulnerável torna-se ainda mais débil com a degradação do meio
ambiente e a quebra do tênue equilíbrio dos sistemas bióticos de que faz parte.
Essa realidade indica, ou melhor, aponta para o nosso dever de cuidar da vida
como um todo, proteger a integridade da biosfera de cujo equilíbrio, bastante
sensível de ser alterado, depende a manutenção de todo o mundo natural e,
particularmente, da existência humana. A ética da preocupação com a vida
autêntica no planeta e a preservação do mundo natural, que aparecem no
pensamento de H. Jonas, revelam uma perspectiva biocêntrica a qual,
provavelmente, deve-se à influência de Heidegger653. Certamente o principio da
651 FONSECA, F.O., op. cit., p. 83-84. 652 JONAS, H., ibid., p. 220. 653 NEDEL, J., op. cit., p. 160.
223
responsabilidade ética, ampliado às realidades não-humanas, tem um reflexo do
“cuidado” heideggeriano654.
Convém observar que alguns críticos da proposta ética de H. Jonas têm
apontado pelo menos duas limitações na sua ética da responsabilidade. A primeira
diz respeito ao caráter de uma “nova ética” que é uma das suas teses
fundamentais. Argumenta-se que o próprio filósofo chega a ser contraditório,
mantendo princípios e normas que são postulados clássicos das éticas tradicionais.
Nesse sentido, até mesmo o novo imperativo por ele proposto é visto como
basicamente o mesmo do imperativo moral kantiano, de modo que seria mais
adequado falar em uma complementação do que em novidade. Assim, a ética da
responsabilidade não chega a substituir o que já existia, apenas acrescenta novos
aspectos, que pedem novas obrigações, que antes não foram considerados porque
as circunstâncias não exigiam655.
A outra limitação se refere ao antropocentrismo que H. Jonas pretendia
superar nas éticas tradicionais ao ampliar a noção de responsabilidade. Aqui ele
também é criticado por permanecer na tradição, não indo além dos limites do
antropocentrismo. Segundo seus críticos, o princípio da responsabilidade continua
privilegiando a vida humana ao considerar que esta tem “prioridade” e “dignidade
maior” em relação aos outros seres viventes656. Essa limitação pode ser vista, por
exemplo, nas formulações do novo princípio que menciona quase exclusivamente
a vida humana. Ademais, H. Jonas não foi suficientemente biocêntrico na
654 Em sua obra Ser e tempo, M. Heidegger apresenta uma fábula, originalmente escrita por um autor romano chamado Higino, que mostra a fragilidade humana, necessitada de cuidado. Diz a fábula: “Certo dia, ao atravessar um rio, “Cura” viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. Cura pediu-lhe que desse espírito à forma da argila, o que ele fez de bom grado. Como Cura quisesse dar o seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter o proibiu e exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto Júpiter e Cura disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão aparentemente eqüitativa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber de volta na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo; deves receber o corpo. Como, porém, foi Cura, quem primeiro o formou, ele deve pertencer a Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve ser chamado “homo”, pois foi feito de húmus (terra)”. In: HEIDEGGER, M., Ser e tempo, parte I, Petrópolis: Vozes, 1993, 4ª edição, p. 263 -264. A fábula mostra que o ser humano possui a “origem do seu ser na cura, isto é, ele precisa e é mantido pelo cuidado enquanto estiver no mundo. Sendo, pois, um ser frágil, feito de argila, necessita de cuidado. Daí a presença de Saturno, deus do tempo, que vem atuar como árbitro. Nas palavras de M. Heidegger: “É isso que Saturno, o ‘tempo’, decide. A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa na fábula visualizou, desde o início, o modo de ser em que predomina seu percurso temporal no mundo”; Ibid,. p. 264. 655 NEDEL, J., op. cit., p. 164-165. 656 Ibid., p. 165.
224
fundamentação de sua ética, ou seja, não assumiu a valorização da vida em sua
concretude biológica. Faltou, assim, enraizar na universalidade da vida o seu
imperativo da existência – preferindo ficar restrito à dimensão ontológica – o que
daria maior respeito e credibilidade à sua ética657.
Essas críticas, ao nosso ver, não invalidam a proposta renovadora da ética de
H. Jonas. É inegável o seu avanço com relação às éticas tradicionais ao colocar no
centro da preocupação ética o mundo da natureza que, antes, não recebia
diretamente nenhuma significação moral. A natureza, como vimos, era
considerada eticamente neutra, pois a ética dizia respeito exclusivamente ao
relacionamento entre seres humanos. Ao conferir ao mundo extra-humano um
direito à existência e ao colocá-lo no centro da responsabilidade humana, vemos
aqui algo realmente novo que ultrapassa os limites fechados do velho
antropocentrismo.
Vale notar também que o modelo de ética apresentado por H. Jonas se
alinha à perspectiva integradora que procuramos seguir neste trabalho. Como já
vimos, as correntes de ética ambiental biocentradas se contrapõem aos modelos
tradicionais de cunho excessivamente antropocêntrico. Em vez de mútua exclusão,
deveria haver complementação recíproca. Com efeito, enquanto referida ao agir
humano, toda ética terá sempre um caráter antropotópico658, pois somente o ser
humano age intencionalmente, isto é, somente ele pode pensar e agir
responsavelmente. Numa palavra, somente a espécie humana pode atuar
verdadeiramente como agente ético. Ademais, em se tratando de uma perspectiva
cristã, esse posicionamento ético do ser humano está em sintonia com a visão
antropológica que nos é transmitida pela revelação bíblica da criação, tal como
vimos no capítulo anterior. Como criatura relacional, a única que pode escutar e
responder com liberdade à palavra interpeladora de Deus, o ser humano é
imagem de Deus, portanto, diferente das outras criaturas.
Por outro lado, a ética hoje não pode eludir a referência ao mundo natural,
ao conjunto da biosfera no interior da qual o ser humano se encontra como um elo
nas interdependências vitais dos ecossistemas. O ser humano faz parte do mundo
natural e a ele está vitalmente unido. Nesse sentido, a ética, atenta às questões
657 FONSECA, F. O., op. cit., p. 88. 658 Para um aprofundamento do “princípio antropotópico” ver o já citado artigo de JUNGES, J.R. Ética Ecológica: Antropocentrismo ou Biocentrismo?, p. 58, 60 e 65; Ibid., Ética Ambiental, op. cit., p. 85.
225
socioambientais, incorpora em seu discurso o mundo da natureza, conferindo-lhe
significação e estatuto moral que antes lhe era negado. Pensamos que a ética da
responsabilidade de H. Jonas assume bem essa perspectiva atual, ampliando o
horizonte da responsabilidade humana para além de um exclusivismo
antropocêntrico que inclui a natureza em seu direito de existência.
6.2
O direito de existir como “criatura”
Tanto o tema da alteridade quanto o imperativo da existência que vimos nos
itens anteriores nos remetem a um tópico delicado que é o da consideração da
natureza como sujeito de direito. Este é um aspecto polêmico que tem suscitado
uma ampla bibliografia659 e se situa no interior do grande debate sobre as
tendências da ética ambiental: de um lado, modelos antropocêntricos, do outro,
biocêntricos, com foi visto no segundo capítulo deste trabalho. Em conformidade
com o modelo adotado, são definidas outras posições tais como a necessidade de
um novo paradigma ético e a atribuição de direitos à natureza. Reiteramos que a
nossa perspectiva procura seguir uma visão de complementaridade, uma
compenetração das duas correntes, segundo uma dinâmica de integração-inclusão.
Pensamos não ser demais repetir que a ética ecológica, por um lado, não
pode renunciar ao “princípio antropotópico” segundo o qual o sujeito moral da
ética é sempre o ser humano, pois somente ele, enquanto ser de intencionalidade,
levanta as questões, elabora reflexões éticas e pode agir intencionalmente. A
especificidade do ser humano, face as outras criaturas, é a sua capacidade de
poder intervir responsavelmente na natureza. Neste sentido, pode-se dizer que
toda ética tem um aspecto antropocêntrico. Por outro lado, enquanto ecológica, a
ética segue a orientação holística do paradigma ecológico, considerando a vida em
659 Cf. ALTNER, G. Comunidade Criacional e Reorientação do Direito – Um novo pacto de gerações. Concilium, 236 (1991) p. 60-71; GÓMEZ-HERAS, J. M. G., op. cit., p. 52-54; De la PEÑA J. L. R., op. cit., p. 264; REGAN, T. – SINGER, P. Animal Rights and Human Obligations, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1976; REGAN, T. The Case for Animal Rights, Berkeley: University of California Press, 1983; WARREN, M. A. Difficulties with the Strong Animal Rights Position. Between the Species, vol. 2, n. 4 (1987); CLARK, St. R. L. The Moral Status of Animals, Oxford: Clarendon Press, 1977; WATSON, R. A. Selfconsciousness and the Rights of non Human Animal and Nature. Environmental Ethics, 1 (1979), p. 99-129; ROLLIN, B. E. Animal Rights and Human Morality, Buffalo: Prometheus, 1981.
226
todas as suas formas dentro da grande rede de relações e interdependências da
comunidade biótica. A vida humana é compreendida como parte de uma realidade
maior, rejeitando-se, por conseguinte, o dualismo ser humano-natureza,
desenvolvido pela racionalidade técnico-científica, em favor de um
relacionamento responsável e harmonioso com o mundo natural no qual se
reconhece um valor em si mesmo.
Em razão desta compreensão é que se pode atribuir o caráter de direito
subjetivo à natureza, vale dizer, o direito à existência como criatura. Günter Alter,
utilizando-se de categorias desenvolvidas pelo biólogo G. Strey e do jurista J.
Leimbacher, argumenta que a natureza, na condição de co-criatura, efetivamente
tem o direito de “ser-criatura-com-as-demais-criaturas”. Esse reconhecimento é
importante porque, permanecendo a natureza confinada ao mundo das coisas tal
como a vê um antropocentrismo reducionista, a sua possibilidade de existência
estará sempre ameaçada pela exploração predatória movida pela cobiça e por
interesses utilitaristas da comunidade humana660. Nas palavras de Leimbacher:
“A natureza somente precisa de direitos porque existe o homem, porque existem sociedades humanas, porque existem ordens jurídicas. A natureza simplesmente necessita do reconhecimento de determinados direitos. Pode ela prescindir da liberdade de imprensa sobre o direito de baobás, bem como da liberdade religiosa para tartarugas... Tão logo, contudo, o homem ameace a existência da natureza, ter-se-á de pensar em direito da natureza à existência”661.
Trata-se, portanto, do reconhecimento do valor da vida em sua expressão
geral, da valorização da contextura biótica que contém o ser humano e lhe serve
de apoio e, na perspectiva propriamente cristã, significa respeito à criação. Como
bem intuiu Albert Schweitzer, “queremos viver com toda a vida que deseja
viver”662.
Foi visando à garantia de continuidade da existência da biosfera, que a
“Resolução de Berna”663 codificou as seguintes proposições como “direitos da
natureza”:
660 ALTNER, G. Comunidade Criacional e Reorientação Biocêntrica do Direito – Um novo pacto de gerações. Concilium 236 (1991), p. 60-71, aqui 68, Petrópolis: Vozes. 661 LEIMBACHER, J. Citado por ALTNER, G. Op. cit., p. 67. 662 SCHWEITZER, Albert. Citado por KLINKEN, Johan van, O Terceiro Ponto do Processo Conciliar JPPC – A ecologia entre a teologia e as ciências naturais. Concilium 236 (1991), p. 80, Petrópolis: Vozes. 663 A Resolução de Berna, aprovada em 1979, teve como objetivo garantir a conservação da vida selvagem e dos habitats naturais da Europa por meio de uma cooperação entre os Estados daquele
227
1. A natureza – viva ou inanimada – tem direito à existência, isto é, à preservação e desenvolvimento.
2. A natureza tem direito à proteção dos seus ecossistemas, espécies e populações, dentro do respectivo contexto de ligações.
3. A natureza viva tem direito à preservação e desenvolvimento de sua herança genética.
4. Os seres vivos têm direito a uma vida adequada à sua espécie, inclusive à reprodução, dentro do ecossistema que lhes é próprio.
5. As intervenções na natureza necessitam de justificativa664.
O reconhecimento de tais direitos, contudo, nada tem a ver com a
especulação em torno da existência de “almas” em animais ou plantas, nem com
uma antropomorfização da natureza através da aplicação para o mundo natural de
conceitos como “justiça”, “deveres”, “obrigação”, “propriedade”, etc665. Tais
categorias só podem ser empregadas no âmbito do relacionamento humano.
Convém ainda notar, como observa G. Altner, que o reconhecimento desses
direitos da natureza não implica na relativização e na privação de direitos
inerentes à condição humana. Pelo contrário, a garantia da preservação do mundo
natural proporciona ainda mais o legítimo acesso aos meios necessários ao
desenvolvimento da vida humana, inclusive quando esta se encontra ameaçada por
enfermidades ou outros agentes naturais666.
Quando se confere o direito de existência à natureza em seu caráter de co-
criatura, não se está reduzindo a ética a uma instância biológica ou postulando o
igualitarismo biocêntrico que anula a especificidade da vida humana667. O
reducionismo biológico incorre na limitação de esquecer que o ser humano,
diferente dos outros seres vivos, é um ser de transformação e de cultura, isto é,
constrói um ambiente cultural do qual necessita e que necessariamente não está
em conflito com o seu entorno natural.
A ética ecológica, ao considerar o direito de existência da natureza, está
assumindo o paradigma ecológico que concebe a Terra como um espaço vital de
continente. Entrou em vigor em 06/06/1982. Para maiores informações, cf. o sítio eletrônico da Comunidade Européia: www.europa.eu.int/scadplus/leg 664 Proposições citadas por ALTNER, G. Op. cit., p. 67. 665 Sobre as principais objeções contra a atribuição de direitos à natureza, cf. GÓMEZ-HERAS, J.M.G., op. cit., p.54.; JUNGES, J. R. Ética Ecológica, p. 59 e De La PENA, J.L.R, op. cit., p. 264. 666 ALTNER, G. Op. cit., p. 65. 667 Esse igualitarismo biológico ou anti-antropocentrismo se encontra tematizado no movimento conhecido como Deep Ecology (Ecologia Profunda), bastante difundido nos Estados Unidos e países europeus, cujo proponente mais conhecido é o filósofo norueguês Arne Naess. Cf. NAESS, A. The Deep-Ecology Movement: Some philosophical aspects. Philosophical Inquiry (1986), p. 8-31.
228
todos os seres que partilham e desfrutam de seus bens. Nesta perspectiva, a
humanidade é convidada a conjugar harmonicamente ambiente cultural e entorno
natural, através de uma concepção antropológica consoante com o paradigma
ecológico. Dito de outra forma, a ética ecológica não concebe o relacionamento
humano com o mundo natural em termos de “ser humano e natureza”, e sim,
como “o ser humano na natureza”. É uma ética ecológica precisamente porque
considera a ecosfera como oikos, não somente a casa humana, mas a casa de
todos, a morada de todos os seres vivos. Nessa casa comum onde se partilha o
dom da vida, dois valores emergem como princípios básicos da ética ecológica: o
cuidado e a solidariedade.
6.3
Do sujeito moderno ao sujeito ecológico
As tradições éticas modernas têm sido elaboradas por um sujeito humano
com um perfil histórico e social bem definido: o indivíduo ocidental, masculino,
racionalista e prisioneiro de uma subjetividade que perdeu o horizonte da
sociabilidade e da transcendência. Como já foi mencionado anteriormente, o ser
humano moderno, munido de uma poderosa razão instrumental-analítica, cuja
expressão mais forte é a tecno-ciência, criou uma civilização hoje mundializada.
Acreditando cegamente no progresso e no crescimento, lançou mão da
colonização do outro e da natureza – esta reduzida a um “recurso” – para realizar
seus projetos de poder e dominação.
O sujeito moderno, esquecendo-se do ser (o todo), perdeu o senso de
unidade das coisas, separando os saberes e fragmentando a realidade. Com essa
fragmentação dos saberes e da realidade, produziu também uma “ética
fragmentada em infindas morais, para cada profissão (deontologia), para cada
classe e para cada cultura”668. Os dualismos modernos como sujeito-objeto, razão-
emoção, privado-público, Deus-mundo, também contribuíram para a divisão da
ética em vários setores, como o público e o privado, ética dos meios e dos fins.
Reduzida aos princípios da razão ilustrada e sem o horizonte da transcendência, a
668 BOFF, L. Ética e Moral. A busca dos Fundamentos. Op. cit., p. 42.
229
ética perdeu a dimensão da interioridade – a ética da virtude. Com isso, ela pode
tornar-se meramente normativa, limitando-se ao cumprimento formal e legalista
de normas e regras669.
Ora, desse sujeito moderno fragmentado e excessivamente centrado em si
mesmo, e dos modelos éticos elaborados por ele, não pode sair uma ética
condizente com o paradigma ecológico. Um modelo de ética que mantém como
referência única a espécie humana – mesmo propondo relações menos agressivas
e respeitosas com o meio ambiente – seria uma ética “pintada de verde”,
meramente ambientalista, ou, como diria G. Lipovetsky, “uma expressão do
individualismo pós-moderno”, uma “ética indolor”670.
A ética ecológica supõe a desconstrução do sujeito moderno, a superação da
desintegrada modernidade, como bem sugeriu Hans Küng, e busca “uma visão
integral (holística) do mundo e das pessoas nas suas mais diferentes
dimensões”671. Vale dizer, é necessária uma mudança de mentalidade que permita
o reconhecimento da diversidade do próprio sujeito humano, das várias dimensões
que nele existem: emotiva, estética, espiritual, etc, sem amputações racionalistas.
Uma nova mentalidade com a qual se veja como uma criatura que se reconhece
também um ser vivo entre os seres vivos, um membro da comunidade biótica, a
parte de um todo, um ser dependente de relações. Numa palavra, a nova ética
supõe um “sujeito ecológico”.
6.3.1
Visão antropológica do “sujeito ecológico”
Essa desejável desconstrução do sujeito ético, tipicamente formado pela
modernidade, e a sua reconstrução segundo uma nova mentalidade torna-se
possível na medida em que, entre outras coisas, vão sendo assumidas as
proposições básicas que nos apresenta o novo paradigma ecológico. Como vimos
no terceiro capítulo, a contribuição dos estudos da ecologia nos faz ver o mundo
669 Ibid., p. 43-44. 670 LIPOVETSKY, G. O Crepúsculo do Dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, P. 243-250, aqui 247. 671 KÜNG, H., Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo: Paulinas, 4ª Edição, 2003, p. 48.
230
não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos e
de seres, interligados e interdependentes. Tudo está relacionado com tudo. O ser
humano é parte de uma história comum na qual, em longo processo de evolução
natural, emergiu uma exuberante e diversa comunidade biótica onde predomina
uma vital interdependência dos sistemas vivos e não viventes. Contudo, é bom ter
sempre presente que o ser humano não está apenas radicalmente relacionado com
as outras criaturas desse imenso sistema. Ele também ocupa um lugar diferenciado
nessa comunidade global.
A emergência do ser humano abre um ciclo absolutamente novo no processo
evolucionário do universo: eis que surge, em forma humana, uma faculdade única
entre todos os seres vivos; um modo de consciência caracterizado por um especial
senso de admiração e de celebração, bem como pela habilidade de utilizar e
refazer elementos do ambiente natural, transformando-os em instrumentos ao seu
dispor672. Com a formação do planeta Terra – a Casa Comum – e a sua exuberante
comunidade biótica e, dentro dela a consciência humana, o universo chegou à
forma mais elaborada de sua expressão através da consciência reflexa. Ou seja, é a
Terra mesma, através de uma de suas expressões – a inteligência humana –, que
assume uma direção consciente do processo evolucionário. Como bem diz Arthur
Peacocke: “nos seres humanos parte da natureza se tornou consciente de si mesma
e ativamente responde ao seu entorno”.673 Nas palavras de Thomas Berry, o ser
humano adquire uma grande responsabilidade pelo destino de toda a comunidade
viva do planeta, pois “o último risco que a Terra ousa assumir é este, o de confiar
o seu destino à decisão humana, conceder à comunidade humana o poder de
decisão sobre a vida ou a morte de seus sistemas vitais básicos”.674
Portanto, sem desconhecer a relativa autonomia de cada coisa, o ser humano
percebe o seu lugar na comunidade biótica, junto com as outras espécies e não
fora ou acima delas: ele é a expressão mais completa e singular dessa
comunidade. Como um ser pensante e reflexo, pode tomar consciência do seu
lugar especial e, ao mesmo tempo, da sua responsabilidade pelo bem-estar do
conjunto vivo do nosso planeta. Como bem diz L. C. Susin, “porque fazemos
672 Cf. SWIMME, B. and BERRY, T. The Universe History, op. citl, p. 143-160, aqui p. 143. 673 PEACOCKE, Arthur. God and the New Biology, London: J.M.Dent, 1986, p. 91. 674 BERRY, T. The Dream of the Earth, San Francisco: Sierra Club Books, 1990, p. 19.
231
parte do universo, perguntar a respeito dele é perguntar, desde o início, pelo lugar
e pela responsabilidade que nos cabem”675.
Somente o indivíduo humano, porque sonha, ama e pensa, pode colocar a si
mesmo a dramática questão da contemporânea crise socioambiental: a ameaça que
pesa sobre todo o sistema Terra e a esperançosa possibilidade de uma convivência
ecologicamente sadia e respeitosa com todos os moradores da casa. É a partir
desta singularidade, do lugar (topos) do ser humano (anér, andrós) na
comunidade biótica, que se apresenta a condição de possibilidade e de sentido
para o discurso sobre o universo e sobre a vinculação da humanidade com a
totalidade dos sistemas da vida. É o princípio andrópico, ou antropotópico como
vimos acima676, formulado pela primeira vez por Brandon Carton, em 1974, e que
confere uma dimensão ética ao ser humano, podendo agir e intervir
responsavelmente na natureza. Dito de outro modo, ao fazer uso de sua
inteligência e liberdade, o ser humano pode contribuir para a preservação e
manutenção da vida como pode também ser o destruidor da natureza677. Nas
palavras de L. Boff, “ao se tornar o co-piloto do processo da evolução do qual ele
co-evolui, o ser humano pode ser o anjo bom, o guardião e o jardineiro, como
pode ser o satã e o destruidor da Terra”678.
A partir da história do universo e com o respaldo científico do pensamento
sistêmico - a teoria dos sistemas, como vimos no capítulo terceiro - podemos,
portanto, apontar para dois importantes aspectos na antropologia contemporânea:
1) o ser humano está profunda e intrinsecamente interrelacionado com todos os
outros seres, sendo como um filho da Terra e do universo; 2) a espécie humana
apresenta uma singularidade e uma responsabilidade pelo destino de todo o
planeta porque nela o universo atinge a autoconsciência.
Ao ser capaz de intervir intencionalmente na natureza, é no âmbito humano
que a comunidade biótica pode seguir o caminho do equilíbrio e da afirmação das
potencialidades vitais ou pode entrar numa rota de desequilíbrio e ruptura dos
675 SUSIN, L. C. A criação de Deus, op. cit., p. 9. 676 Sobre esse princípio, além das indicações já feitas acima, ver também BOFF, L. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, op. cit., p. 41, nota 47. 677 Aqui é oportuno lembrar uma sensata observação de A. Garcia Rúbio: “A importância concedida ao sistêmico não deve ser interpretada como desprezo ou negação da liberdade humana. Acentuamos que esta se desenvolve contando com pressupostos e condicionamentos sistêmicos que devem ser respeitados, a não ser que se queira viver uma liberdade homicida e suicida”. Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 542. 678 BOFF, L. Ética & eco-espiritualidade, Campinas: Verus Editora, 2003, p. 48.
232
sistemas de vida. Isso mostra o quanto a vida em seu conjunto é vulnerável e
necessita de especial cuidado. Mais uma vez, deparamo-nos aqui com essa
realidade cuja importância precisa ser sempre ressaltada. Vale dizer, a
vulnerabilidade da vida como um todo, da natureza e da própria vida humana, é
um dado antropológico que deve ser levado em conta no relacionamento do ser
humano com o seu entorno natural.
Por sua importância, aprofundemos um pouco mais esse dado, bastante
relevante na discussão ética dos problemas socioambientais. A árvore da vida,
cujo processo evolutivo teria iniciado bilhões de anos atrás, tornou-se um
complexo sistema com grandes ramificações e extraordinária diversidade. Tendo
uma origem comum, os seres vivos não são iguais. Cada ser tem sua
especificidade e função dentro do grande sistema da vida. Atualmente são
conhecidas e identificadas cerca de 1,4 milhão de espécies vivas. Este número, no
entanto, deve ser muito mais elevado. Segundo estimativas de biólogos, devem
existir entre 10 e 13 milhões de espécies que ainda não foram catalogadas679. O
ser humano pode ser considerado o último rebento dessa árvore, a expressão mais
complexa da comunidade biótica.
Uma característica dessa grande comunidade de vida é a sua auto-
organização, pela qual as partes se encontram num todo orgânico cujas diferentes
funções são complementares, permitindo desse modo uma adaptabilidade ao meio
e a manutenção do equilíbrio; um estável, mas muito frágil e tênue equilíbrio.
Cada espécie ajuda a manter o equilíbrio dos sistemas vitais. Fora desse
equilíbrio, o ecossistema pode desaparecer. Tão logo diminui a diversidade das
espécies, a estabilidade e a segurança para cada forma de vida ficam
enfraquecidas e ameaçadas680. Portanto, apesar da grandiosidade da comunidade
biótica - da exuberância da árvore da vida -, ela é muito frágil no seu conjunto, e
em cada espécie vivente em particular. Vê-se, então, o quanto vulnerável é a vida.
É como a Terra, vista do espaço, que “cabe na palma de minha mão”, parecendo
“tão pequena e frágil que você pode cobrir com seu polegar”681.
679 Cf. WILSON, E. O. A diversidade da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 33-47 (original inglês: The diversity of life, Washington, 1992), cf. também WILSON, E. O. (ed.) Biodiversity, Washington: National Academy Press, 1988. 680 BERRY, T. The Great Work, p. 147. 681 SCHEICKHART, R., citado por BOFF, L., Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, op. cit., p. 29.
233
Se o equilíbrio dos ecossistemas naturais é frágil e vulnerável, a intervenção
da espécie humana no meio ambiente deve ser bastante respeitosa e cheia de
atenção para com os dinamismos e os processos bióticos que regulamentam o
ambiente natural. Afinal, não deveríamos esquecer que somos parte desse sistema
vital; a nossa vida, ela própria frágil e vulnerável, torna-se ainda mais débil com a
quebra do equilíbrio sistêmico e com a degradação do meio ambiente. Em outras
palavras, “a vulnerabilidade da natureza aponta para a vulnerabilidade do próprio
ser humano. Se a sua matriz vital está sendo destruída, é o próprio ser humano que
se deteriora”682. Para ilustrar essa vulnerabilidade da vida humana, J.R. Junges
apresenta uma antiga fábula – “O animal mais desnudo”, de Plínio, o velho (23-79
d.C) – que aqui transcrevemos:
“No dia de seu nascimento, só o ser humano é lançado desnudo para fora sob o solo inclemente, começando imediatamente a chorar e a gemer. Nenhum outro animal é mais propenso às lágrimas, já desde o primeiro momento de sua vida. Mesmo o tão comentado sorriso do bebê só aparece depois de seis semanas. Este modo débil de vir à luz é seguido por um tempo de cativeiro de que não padecem os filhotes de outros animais, pois a criança, mesmo nascendo de um modo bem sucedido, permanece em total dependência, amarrado de mãos e pés, chorando”683.
Em oposição ao ser arrogante e auto-suficiente, segundo uma ótica
excessivamente antropocêntrica, o ser humano é vulnerável e indigente como todo
ser vivo. Essa vulnerabilidade é devida às próprias condições intrínsecas aos
sistemas que compõem a grande rede da vida, isto é, todas as realidades
relacionais e interdependentes carecem de auto-suficiência, daí porquê os
organismos vivos, os ecossistemas, a sociedade humana, são intrinsecamente
carentes, indigentes e vulneráveis, pois dependem de interrelações para a
manutenção dos seus impulsos vitais684. De modo que somos uma espécie que
necessita de uma rede de inter-relações – o ambiente natural e social – para
satisfazer as exigências vitais de que depende a nossa sobrevivência, pois
“nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos
necessidade de assistência” 685. Essa é uma das grandes lições que aprendemos
com o paradigma ecológico e que ajudam a configurar o novo sujeito ético.
682 JUNGES, J. R. Ética Ecológica: Antropocentrismo ou Biocentrismo? Perspectiva Teológica 33 (2001), p. 52; ibid., Ética Ambiental, op. cit., p. 70. 683 Ibid. 684 Id., Ética Ecológica, op. cit., p. 52. 685 J.J.Rouseau, citado por JUNGES, J.R. Ética Ambiental, op. cit., p. 71.
234
A fragilidade da comunidade biótica, da vida humana em particular, mostra
a necessidade imperiosa de se manter a diversidade das espécies nos processos de
interrelações e interdependência que controlam os sistemas vitais e mantêm o seu
equilíbrio. Ora, diante do inexorável processo evolutivo, denominado por C.
Darwin como a luta pela vida, o princípio da seleção natural privilegia o mais
forte, triunfa o elemento vivo que sobressai sobre o concorrente em desvantagem.
Seria ingenuidade esquecer a selvagem luta pela sobrevivência na natureza com
processos violentos de competição entre as espécies. Tais processos, contudo, são
absolutamente necessários para que os sistemas vitais se mantenham
dinamicamente equilibrados.
Com a irrupção da espécie humana na árvore da vida, esse processo é
alterado. A singularidade da vida humana, o único rebento dotado de consciência,
introduz um dinamismo novo na comunidade biótica. Aqui, tem-se um dado
antropológico do mais alto significado: a seleção natural é completada pelo
princípio da cooperação, da troca e da simbiose que, na espécie humana, se
traduzem em gestos de co-responsabilidade, solidariedade e, sobretudo, de zelo e
cuidado pelo mais frágil e fraco. A redescoberta dessa condição antropológica,
esquecida pela arrogância do paradigma antropocêntrico e recuperada pelo
pensamento ecológico, abre novos horizontes de relacionamento harmonioso com
a natureza, uma vez que “a consciência da própria fragilidade ajuda a levar em
consideração a vulnerabilidade do ambiente natural nas decisões de intervenção e
a desenvolver atitudes de preservação e cuidado em relação a ele”686.
Não somente para com natureza, cuja vulnerabilidade se torna mais evidente
com os danos causados pelo desequilíbrio ambiental, o ser humano muda de
postura ao se descobrir ele mesmo um ser também vulnerável. Com efeito, se
torna mais aberto e solidário também com os de sua espécie, com especial atenção
para aqueles que “aos olhos da maioridade moderna” eram vistos como fracos,
incapazes e sem autonomia687. Os pobres, os marginalizados e os oprimidos de
nossa sociedade são “uma expressão visível da vulnerabilidade humana”, as
chagas de uma poluição social que fere e desfigura a face humana e que tem em
suas origens os mesmos mecanismos que exploram, degradam e poluem a face da
Terra. A vida destes seres merece atenção e especial cuidado. Seria uma grande
686 Ibid. Ética Ecológica, op. cit., p. 55. 687 Ibid. p. 54.
235
contradição defender a integridade do ambiente natural, esquecendo-se de
denunciar também as injustiças contra os pobres, uma vez que “quem não está
aberto a ouvir o grito dos pobres, não terá condições de auscultar o grito da
natureza, porque falta sensibilidade pelo gemido do pulsar da vida”688. A
vulnerabilidade da vida em geral, particularmente dos seres humanos
empobrecidos, indica a necessidade de uma ética que, ao se debruçar sobre as
questões socioambientais, inclua no horizonte da responsabilidade humana já
preconizado por H. Jonas, os princípios do cuidado e da solidariedade.
6.4
Uma ética do cuidado e da solidariedade
Essa nova ética, superando o modelo meramente normativo, requer a
formação de um sujeito moral interiormente configurado com uma sensibilidade
ecológica e engajado na construção de um clima cultural ecológico que dê apoio e
fomente essa sensibilidade, possibilitando, assim, o surgimento de sociedades
ecologicamente conscientizadas. Dito de outro modo, a ética ecológica supõe uma
verdadeira conversão do ser humano, uma mudança de comportamento e, por esse
motivo, deve ser fundamentalmente uma ética de caráter ou de virtude689.
Assim, como já foi sublinhado anteriormente, um princípio ecológico que
emerge no interior da nova ética e que deve ser cultivado dentro dela é o cuidado.
Não poderia ser diferente para uma ética cujo conteúdo central é a preservação e
manutenção da vida, a qual, não sendo uma realidade auto-suficiente, necessita de
inter-relações para a sua manutenção e reprodução. Como nenhum ser vivo basta a
si mesmo, a vida e a contextura vital que a contém são uma realidade vulnerável e
frágil que pede atenção e cuidado do ser humano na sua relação com o entorno
688 Ibid. p. 64. 689 Sobre a revalorização da categoria “virtude” na ética ecológica, ver o excelente artigo de Deborah D. Blake: Toward a Sustainable Ethic: Virtue and the Environment. In: And God Saw that it was Good, op. cit., p. 197-210. Cf. também COMTE-SPONVILLE, A., Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, São Paulo: Martins Fontes, 1995; JUNGES, J. R. Ética Ecológica, p. 57-60; Ibid., Ética Ambiental, op. cit., p. 86.90.105.
236
natural690. Portanto, se por um lado, para que haja preservação e proteção do meio
ambiente não deixa de ser necessário a existência de normas e regulamentos, por
outro lado, está se tornando cada vez mais evidente que a crise ambiental não se
restringe à soluções jurídicas porque “o cuidado não é normatizável em regras de
conduta. Ele se expressa em valores e atitudes para os quais é necessário educar-
se.”691.
A falta de cuidado para com a natureza, uma prática comum em nossa
civilização técnico-industrial, tem provocado estragos enormes em toda biosfera,
pondo em risco a própria sobrevivência humana no planeta. Mais do que nunca,
há a necessidade de um aprendizado de como saber cuidar da nossa casa comum,
revertendo velhos hábitos e desenvolvendo uma ética do cuidado:
“O cuidado assume uma dupla função: de prevenção a danos futuros e de regeneração de danos passados. O cuidado possui esse condão: reforçar a vida, zelar pelas condições físico-químicas, ecológicas, sociais e espirituais que permitem a reprodução da vida e de sua ulterior evolução”692.
Tendo em vista essa dupla função do “modo-de-ser-cuidado”, no ano de
1991, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNU-MA), o Fundo
Mundial para a Natureza (WWF) e a União Internacional para a Conservação da
Natureza (UICN) elaboraram um documento – “Cuidando do Planeta Terra. Uma
estratégia para o futuro da vida” – onde apresentam uma estratégia global para a
preservação da vida, fundada na ética do cuidado:
1. Construir uma sociedade sustentável693. 2. Respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos. 3. Melhorar a qualidade da vida humana. 4. Conservar a vitalidade e a diversidade do planeta Terra. 5. Permanecer no limite da capacidade de suporte do planeta Terra. 6. Modificar atitudes e práticas pessoais. 7. Permitir que as comunidades cuidem de seu próprio ambiente. 8. Gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvimento e
conservação. 9. Constituir uma aliança global694.
690 JUNGES, J. R. Ética Ecológica, p. 60. Para um aprofundamento do “cuidado” como categoria central da ética ecológica, ver BOFF, L. Saber Cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003. 691 JUNGES, J. R. Ética Ambiental, op. cit., p. 90. 692 BOFF, L. Ética e Moral, op. cit., p. 48. 693 O termo aqui é entendido como o esforço ecológico-político para encontrar o equilíbrio entre a satisfação das necessidades, a partir da utilização das virtualidades da Terra, e a preservação do patrimônio natural para a nossa e as gerações futuras. Cf. BOFF, L. Saber Cuidar, op. cit., p. 198. 694 Ibid., p. 134.
237
Vê-se, portanto, que a ética do cuidado pode ser aplicada tanto a níveis
individual e nacional como a nível internacional. A crise socioambiental atinge a
todos, nenhuma nação sozinha é auto-suficiente; todos cuidamos ou todos
pereceremos. Hoje, com o processo de globalização, urge acolher e conviver com
o diferente numa aliança em vista de um planeta sustentável. Através do princípio
do cuidado, a humanidade pode construir “um consenso ético mínimo que salvará
o planeta da insensatez da depredação e do consumismo e será capaz de criar uma
atitude benevolente e responsável para com todo tipo de vida”695.
A Carta da Terra, assumida pela UNESCO no ano de 2000, declara que os
nossos desafios estão interligados e juntos podemos forjar uma aliança global para
cuidar da Terra:
“Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro... ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”696.
A ética do cuidado, como um dos eixos articuladores para a assegurar a
vitalidade, a beleza e a integridade do nosso planeta, aparece explicitamente
quatro vezes na Carta da Terra: “cuidar da Terra e uns dos outros”; “cuidar da
comunidade de vida”; “cuidar da comunidade de vida com compreensão,
compaixão e amor” e “cuidar dos próprios ambientes”697. Estamos diante de um
desafio que implica uma responsabilidade planetária: ou habitamos com cuidado a
nossa casa comum ou o futuro das próximas gerações estará seriamente
ameaçado. Uma decisão, portanto, que implica uma atitude de solidariedade
ecológica, isto é, “cuidar uns dos outros”, como lemos na Carta da Terra.
Em conformidade com o paradigma ecológico, um outro princípio de
referência para a nova ética é a solidariedade, vista numa perspectiva global, não
limitada a uma dimensão meramente utilitária, mas compreendida como um valor
desinteressado e amplo, abarcante e extensivo a toda comunidade biótica. A
solidariedade ecológica supõe a biosfera como o espaço vital de todos os seres, a
nossa casa familiar onde todos somos interdependentes. Com efeito,
compartilhamos com todas as criaturas o mesmo cosmos, a mesma natureza, e
temos uma origem e um destino comuns. Por conseguinte, “ser é ser em relação, e
695 BOFF, L. Água e Ética do Cuidado. Vida Pastoral, fasc. 235, março/abril de 2004, p. 24. 696 Citado por BOFF, L. Ética e Eco-espiritualidade. Campinas: Verus Editora, 2003, p. 26. 697 Ibid. p. 27.
238
existir é co-existir. Isso é verdadeiro não só para os seres humanos, mas para
todos os que participam do mistério da existência”698.
A interdependência entre todos os seres, como nos ensina a ecologia, deve-
se ao modo como eles se relacionam na grande comunidade de vida, formando
uma rede de relações de cooperação e solidariedade que, por sua vez, garante a
manutenção e a sustentabilidade da comunidade biótica. Convém notar que
mesmo a concorrência das espécies, necessária ao processo de seleção natural, se
encontra dentro desse princípio geral da cooperação de todos, o que resulta na
manutenção dos sistemas vitais. Há competição, sim, quando uma espécie
caçadora abate e se alimenta de sua presa. Contudo, esse processo de inevitável
violência e morte permite a articulação entre os seres vivos e o meio ambiente,
contribuindo para a manutenção do todo orgânico e do equilíbrio dos
ecossistemas.
O ser humano, por sua unicidade no interior da criação, altera a lei da
seleção natural e eleva o princípio da solidariedade ecológica ao nível ético do
amor, que rejeita a imposição da lei do mais forte e se traduz no acolhimento e
cuidado para com todos, de modo que ninguém se sinta excluído ou mesmo
eliminado do convívio humano699.
Importa destacar a dimensão diacrônica da solidariedade, isto é, ela é
extensiva às gerações que habitarão o nosso planeta e que têm direito a uma
qualidade digna de vida. Tal preocupação é um dos pontos centrais do chamado
“princípio responsabilidade” que norteia a reflexão ética de H. Jonas, como vimos
anteriormente. Foi pensando nessa forma de solidariedade que a “Resolução de
Berna” apresentou, entre outras, as seguintes proposições como direitos das
futuras gerações:
1. As gerações futuras têm direito à vida. 2. As gerações futuras têm direito a um patrimônio hereditário não
manipulado, isto é, não alterado artificialmente pelo homem. 3. As gerações futuras têm direito a um mundo variado de plantas e
animais e, com isso, à vida em meio a uma natureza rica, e ainda, à preservação de recursos genéticos múltiplos.
698 SURETTE, John. Citado no documento “Vivimos en un mundo roto – Reflexiones sobre Ecología”. Promotio Iustitiae, n. 70 (1999), p. 12. Uma publicação do Secretariado do Apostolado Social da Companhia de Jesus, Roma, Itália. Edição em Espanhol. 699 BOFF, L. Ética e Moral, op. cit., p. 53-54.
239
4. As gerações futuras têm direito a um ar saudável, a uma camada de ozônio intacta e a suficiente troca térmica entre a Terra e o espaço exterior 700.
É dessa solidariedade ecológica que certamente estava imbuído o médico e
missionário Albert Schweitzer quando elaborou a sua ética de reverência à vida,
segundo a qual “bom é tudo o que conserva e promove todos os seres,
especialmente os vivos e, entre os vivos, os mais fracos; mau é tudo o que
prejudica, diminui e faz desaparecer os seres”701.
Quando assumido numa perspectiva ecológica, o caráter ético do ser
humano denuncia o rompimento da solidariedade com os outros seres humanos,
irmãs e irmãos na aventura da vida, a quem são negados as possibilidades de
acesso aos bens da terra e aos benefícios da cultura, e estão relegados à margem
da história. Através da solidariedade com esses seres humanos, sinais visíveis da
vulnerabilidade da própria vida, é que se desenvolve o modo de ser
verdadeiramente ecológico do cuidado. Importa, pois, “solidarizar-se com todos
os seres, companheiros de aventura planetária e cósmica, especialmente com os
mais prejudicados, para que todos possam ser incluídos no cuidado”702. No
contexto de grave injustiça social, onde “o pobre é o ser mais ameaçado da
criação”703, o compromisso ético – responsabilidade para com o mundo -
necessariamente leva a uma ecologia humana e social.
6.5
Uma abordagem humana e social
O cuidado e a solidariedade entre os seres vivos começam entre aqueles que
conscientemente se reconhecem moradores da casa comum. Criatura entre as
criaturas, a singularidade do ser humano é que nele a criação se tornou consciente.
700 Cf. ALTNER, G. Op. cit., p. 67. 701 SCHWEITZER, A. Citado por BOFF, L. Água e Ética do Cuidado, op. cit., p. 25. 702 BOFF, L. Ética e Moral, op. cit.,p. 54. 703 BOFF, L. Ecologia: grito da Terra, op. cit., 146-159 aqui 156: “... O ser mais ameaçado da criação não são as baleias, mas os pobres, condenados a morrer prematuramente. Estatísticas da ONU dão conta de que, no mundo, 15 milhões de crianças morrem antes de concluir o quinto dia de vida em razão da fome ou das doenças da fome; 150 milhões são subnutridas e 800 milhões de pessoas vivem permanentemente com fome”. Na nota correspondente, o autor cita a fonte dos dados: UNDP, Human Development Report, Oxford/New York: Oxford University Press, 1990.
240
Co-participante do processo criativo, a unicidade de sua condição é ter a
consciência do amor o qual deve extender a toda criatura. Dessa consciência urge
a sua responsabilidade com o próximo e com toda a natureza. Pouco antes da
Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a Eco-92, João Paulo II assim se expressava, mostrando a
íntima conexão entre a problemática ambiental e a saúde ecológica nas relações
humanas:
“Este importante Encontro objetiva examinar em profundidade a relação entre a proteção do ambiente e o desenvolvimento dos povos. São problemas que, em suas raízes, apresentam uma profunda dimensão ética a qual envolve a pessoa humana... nos seus direitos concernentes à liberdade, que deriva da sua dignidade de ter sido feita à imagem de Deus, e com os deveres que cada pessoa tem para com as gerações futuras”704.
Uma ética ecológica de inspiração cristã reconhece o valor intrínseco de
todas as criaturas como também a singularidade da vida humana, daí decorre o seu
compromisso tanto com a causa ecológica quanto com o relacionamento fraterno e
justo entre as pessoas. Com efeito, seguindo o princípio da dignidade do ser
humano, criado como imago Dei, podemos falar de uma “ecologia humana” no
sentido de que, além da destruição irracional da natureza, o modelo dominante de
cultura e civilização também provoca uma degradação no relacionamento entre as
pessoas. Faz-se necessário, pois, “salvaguardar as condições morais” de um
autêntico ambiente humano de modo que, diante dos graves problemas da
moderna urbanização, haja formas de convivência mais saudáveis, respeito pela
qualidade de vida das pessoas e atenção a uma ‘ecologia social’ do trabalho705.
O respeito à integridade da criação caminha de mãos dadas com a
valorização da dignidade da pessoa humana, combinando o compromisso
ecológico com a solidariedade com os pobres da Terra. Vale ressaltar que, na
busca de solução dos problemas do meio ambiente, junto com a indispensável
contribuição da ciência e da técnica, não se pode perder de vista que “a ética tem
prioridade sobre a técnica” e que uma ecologia humana considera também “as
704 JOÃO PAULO II. Mensagem na Praça de São Pedro, 31 de maio de 1992. In PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. ci t., p. 45. 705 JOÃO PAULO II. Centesimus Annus,n. 38, São Paulo: E. Loyola, 1991.
241
exigências de justiça, de amor social, amor que une os homens dentro da
sociedade”706.
Como todas as coisas estão em íntima relação na grande teia da vida,
também as questões como poluição ambiental, opressão econômica, discriminação
racial, violação dos direitos da mulher, etc, estão intimamente relacionadas707. A
sobrevivência dos seres vivos e a felicidade dos seres humanos estão
solidariamente integradas no projeto divino da criação. Perspectiva semelhante,
como vimos, se dá na visão sistêmica e integradora do paradigma ecológico. Tal
perspectiva pode, inclusive, favorecer a aproximação de grupos cristãos distintos,
através de iniciativas ecumênicas visando a proteção do ambiente e o bem comum
entre os povos, a exemplo do projeto Justiça e Paz e Integridade da Criação,
desenvolvido pelo Conselho Mundial das Igrejas Cristãs, que, entre outros pontos,
tem realçado “a integração entre ecologia e economia, e a interdependência entre a
proteção da criação e a exigência por justiça” 708.
Aqui, ao nosso ver, tocamos num ponto de grande relevância à temática que
estamos abordando. Há uma relação íntima entre a questão ecológica e o drama da
injustiça social que aflige a maior parte da população do planeta, particularmente
aos povos da América Latina e do Brasil. Para esses, as causas que levam à
marginalização social, econômica e política, também os marginalizam
ambientalmente. Basta ver, por exemplo, a degradação de sítios nativos dos quais
depende a sobrevivência de populações tradicionais; ou as habitações insalubres
que cobrem as favelas urbanas. A reflexão ético-ambiental não pode ficar alheia a
essas questões, pois, de outro modo, a sua palavra não fará sentido à realidade
desses numerosos países. A preservação ecológica não acontecerá se
permanecerem as numerosas formas estruturais de pobreza que existem em todo o
mundo. Sem justiça social não haverá reconciliação entre ser humano e natureza.
Há, sim, um vínculo estreito – uma interdependência, para usar um termo mais
ecológico – entre a proteção da natureza e justiça social, entre ecologia e
economia. Numa palavra, a questão ecológica é uma questão socioambiental.
706 LORSHEIDER, Aloísio. Intervenção na Conferência Internacional sobre Impacto de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi-Áridas. In Sedoc, 24 (1992) n. 232, p. 757. 707 EDWARDS, D. Jesus, the Wisdom of God, op. cit., p. 157. 708 Cf. GRANBERG-MICHAELSON, W. Creation in Ecumenical Theology. In: HALLMAN, D. G (ed.) Ecotheology. Voices from South and North. New York: Orbis Books, 1994, p. 96-106 aqui 102; JUNGES, J. R., Ecologia e Criação, op. cit., p. 70-73.
242
Ao analisarmos as causas mais profundas da crise socioambiental, como
vimos no primeiro capítulo, deparamo-nos com um sistema econômico
predominante em nossa sociedade que agride e explora tanto o ser humano quanto
a natureza. É um sistema, pois, duplamente antiecológico. Ele é movido por uma
avidez sem limites e pela ganância por um crescimento econômico desenfreado, o
que compromete drasticamente a qualidade de vida humana e do ambiente natural,
mostrando ainda uma impiedosa falta de solidariedade com a natureza cada vez
mais deteriorada e com a grande parcela da humanidade condenada a viver na
miséria.
Ao se sustentar na agressão ao outro, isto é, contra a natureza e o ser
humano, o modelo econômico imperante é intrinsecamente antiético. Com efeito,
ele privilegia a busca do “ter sempre mais” em detrimento do “ser sempre mais”,
promovendo a obtenção do lucro a todo custo e uma desenfreada corrida pela
competição e consumismo. É um modelo também excludente, pois deixa à
margem desse processo uma massa considerável de populações a quem é negado
um autêntico e justo desenvolvimento. Como bem diagnosticou João Paulo II:
“Percebemos que os maiores problemas econômicos do nosso tempo não dependem da falta de recursos, mas no fato de que as atuais estruturas econômicas, sociais e culturais estão mal equipadas para atender as necessidades de um genuíno desenvolvimento”709.
Ora, autênticos modelos de desenvolvimento não serão conseguidos
seguindo somente uma pauta determinada pelo crescimento econômico. Pelo
contrário, eles exigem parâmetros éticos e políticos que garantam uma ordem
social justa, o respeito à vida e a proteção da natureza. Isso assume ainda maior
significado quando se propõem balizas e programas em vista de modelos
sustentáveis de desenvolvimento. A ética socioambiental analisa criteriosamente
os pressupostos desses modelos. Vimos no primeiro capítulo a necessidade
imperiosa de rever a noção de desenvolvimento sustentável e a impossibilidade de
se obtê-lo seguindo parâmetros hegemônicos ditados pela lei do mercado. Os
princípios éticos na perspectiva socioambiental requerem que os modelos de
desenvolvimento sustentável sejam fundados em políticas que tenham como
objetivos a construção de uma nova racionalidade produtiva que, por sua vez, seja
709 JOÃO PAULO II. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2000. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 144. A tradução é nossa.
243
capaz de gerar um sistema econômico que seja base para uma verdadeira
sustentabilidade. Assim, a ética socioambiental propõe um novo modo de
produção que respeite os potenciais da natureza e da cultura, através de uma
política que valorize a diversidade, a diferença e a alternativa710. Dito de outro
modo, um autêntico desenvolvimento, seguindo os parâmetros de uma ética de co-
responsabilidade pelo futuro do nosso planeta, visa “a construção de uma
sociedade democrática, social e ecologicamente justa e solidária”711.
Os princípios éticos da responsabilidade, estendido ao mundo natural como
propôs H. Jonas, do respeito à alteridade, e do cuidado solidário com a vida em
geral, se aglutinam na formação de um novo parâmetro para se pensar modelos de
desenvolvimento. Esse novo parâmetro – uma racionalidade ambiental, segundo
H. Leff – além de corrigir os limites da racionalidade puramente instrumental e
econômica, poderá ajudar na abertura de canais que conduzam a um autêntico
processo produtivo sustentável, aberto à diversidade das identidades culturais, da
complexidade existencial de cada povo, incluindo as formas diversas de sua
relação com a natureza, favorecendo, portanto, à desejável e necessária
diversificação dos modelos de desenvolvimento. A verdadeira sustentabilidade
requer a convergência desses fatores que a reflexão ética propõe e que devem
caminhar articulados com os saberes e meios gerados pela ciência e pela técnica.
“A globalização econômica está gerando uma retotalização do mundo sob o valor unidimensional do mercado, superexplorando a natureza, homogeneizando culturas, subjugando saberes e degradando a qualidade de vida das maiorias. A racionalidade ambiental gera uma reorganização da produção da natureza, no poder da ciência e da tecnologia modernas e nos processos de significação que definem identidades culturais. A sinergia na articulação destes processos faz com que na racionalidade ambiental o todo seja mais do que os processos que a constituem, gerando um processo produtivo sustentável, aberto à diversidade cultural e à diversificação das formas de desenvolvimento712”.
Ademais, na concepção de desenvolvimento sustentável, pensado segundo
uma racionalidade meramente instrumental, não se reconhece o valor intrínseco da
natureza. Esta, que na ótica cristã é vista como criação, fica, assim, reduzida ao
aspecto material e considerada apenas como instrumento utilitarista da pessoa
humana. Daí o significado expressivo do termo sustentabilidade como categoria
fundamental para o cuidado e a manutenção dos processos que garantem o 710 LEFF, E. Saber Ambiental, op. cit., p. 466. 711 CNBB, “Igreja e questão ecológica”, doc. cit., p. 227. 712 LEFF, E., Saber Ambiental, op. cit., p. 40-41.
244
equilíbrio dos ecossistemas e a inclusão de todos na comunidade da vida.
Sustentabilidade que busca parâmetros de desenvolvimento segundo valores
éticos que assegurem o direito dos pobres e o respeito à criação. Somente nessa
perspectiva verdadeiramente ecológica pode-se falar de formas de
desenvolvimento sustentável, no sentido de construção de uma vida sustentável,
de uma sociedade sustentável, enfim, de um Planeta sustentável. É este o sentido
de desenvolvimento que se encontra na Carta da Terra cujo apelo final é
transbordante de esperança: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de
uma nova reverência face à vida, por um compromisso firme de alcançar a
sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça e pela paz e pela alegre celebração
da vida”713.
Vê-se, portanto, que no centro da ética socioambiental está a temática da
sustentabilidade. Além dos aspectos já mencionados, é necessário também
sublinhar que há outros valores e virtudes que a ética cristã nos aponta como
indispensáveis na busca da tão desejada sustentabilidade. O respeito à vida, por
exemplo, implica uma certa exigência da frugalidade ou simplicidade no estilo de
vida, em oposição ao exagerado consumo que, juntamente com o desperdício que
o acompanha, está na base de uma injusta distribuição social dos recursos e da
degradação da natureza. A frugalidade no estilo de vida é hoje uma condição de
sobrevivência biológica do ser humano e, por extensão, de toda a vida natural. É,
pois, uma exigência ética. Uma exigência que, nas sociedades abastadas, é vista
como “uma virtude subversiva”, como nota J. Nasch, já que se opõe ao modelo
econômico que necessita de um compulsivo consumo para se manter714. No
entanto, é uma condição para a justiça distributiva e para a própria
sustentabilidade. Com efeito,
“cresce a consciência de que o atual padrão de consumo dos setores sociais privilegiados não pode ser estendido a todos, nem se sustenta social e ecologicamente. Precisamos abdicar do sonho consumista, ilusoriamente inculcado pela propaganda, e implementar uma globalização solidária, a partir de um estilo de vida inspirado no Evangelho”715.
713 Cf. BOFF, L. Ética e Eco-espiritualidade, op. cit., p. 23. 714 NASCH, J. A., “Toward the Ecological Reformation of Christianity”, in Interpretation 50 (1996), p. 12. 715 CONFERÊRENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome. Documentos da CNBB, 69. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 23.
245
Tudo isso vem confirmar a importância da dimensão humana e social na
ética ecológica, segundo uma perspectiva integradora. Enfim, a dimensão social
no âmbito da reflexão que se preocupa com as questões ecológicas ajuda a
contribuir para o necessário equilíbrio entre as tendências da ética ambiental,
conjugando o princípio antropotópico com os parâmetros do paradigma ecológico,
evitando, assim, a radicalização entre antropocentrismo ou biocentrismo. Como
bem observa L. Boff, esses dois extremos separam o que sempre deve estar junto:
“a natureza e os seres humanos são interdependentes. Um está no outro. Juntos
fazem parte de um todo maior”716. Uma ética socioambiental, portanto, se insere
na dinâmica da inclusão-integração. O ser humano, aberto a um relacionamento
fraterno e justo com o seu semelhante, também mantém para com a natureza uma
atitude de respeito e de responsabilidade. Ao se reconhecer uma criatura entre as
criaturas, também se percebe um ser ético que se distingue das demais pela sua
capacidade de intervir responsavelmente no mundo, agindo e criando condições
para o desenvolvimento e o cuidado da vida.
O “cuidado”, portanto, é uma categoria fundamental na ética
socioambiental. Ou cuidamos da “casa” ou pereceremos. Contudo, saber cuidar é
mais do que um imperativo ético, é um modo de ser de quem ama. Cuidamos
daquilo que amamos. Mas para amar é preciso, primeiro, conhecer. Daí a
importância da educação ambiental para fazer desencadear um processo de
amorização que leve ao cuidado e à responsabilidade ecológica:
“Uma educação para a responsabilidade ecológica é urgente. Responsabilidade por si mesmo, pelo outro e pela Terra... A verdadeira educação para a responsabilidade inclui uma genuína conversão na maneira de pensar e no comportamento. Igrejas e instituições religiosas, organizações não governamentais e governamentais, todos os membros da sociedade têm um importante papel a desempenhar nessa educação”717.
Aprender a cuidar do ambiente natural, das pessoas, da biosfera como um
todo, é hoje uma necessidade vital na salvaguarda do nosso planeta. Fala-se hoje
de uma nova forma de educação, a educação ambiental ou “alfabetização
ecológica”. Esta, reunindo os ensinamentos da ecologia e os princípios éticos no
conjunto dos saberes e das políticas públicas, visa a criar comunidades que sejam
716 BOFF, L. Social Ecology: poverty and misery, op. cit., p. 243. 717 JOÃO PAULO II. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1990, n. 13. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 121. A tradução é nossa.
246
autenticamente humanas, isto é, sustentáveis. Portanto, a alfabetização ecológica
propõe uma mudança profunda que mexe com todo o horizonte cultural que
orienta a nossa forma de relacionamento com o próximo e com o mundo da
natureza. Supõe, portanto, uma metanoia ecológica, uma mudança de valores e de
hábitos, de modo que, nesse processo de conversão moral, predominem atitudes
de solidariedade e de cuidado com a vida. Isso põe em evidência a necessária
formação de um novo ethos cultural. A crise ecológica é fundamentalmente uma
questão de princípios morais que exigem uma vigorosa e consistente ética
socioambiental.
Conclusão
O capítulo tentou mostrar que, diante nos grandes desafios impostos pela
crise socioambiental, há um consenso de que essa problemática necessariamente
deve ser objeto de reflexão da ética, uma vez que, no centro da questão, encontra-
se um impasse moral que surge da dissociação entre a racionalidade técnica-
instrumental (“o que podemos fazer”) da racionalidade ética (“o que devemos
fazer”). Enquanto que alguns defendem a manutenção dos parâmetros que regem
as éticas tradicionais antropocêntricas – estas apenas deveriam normatizar o
comportamento humano em relação à preservação ambiental -, muitos vão além,
defendendo a bandeira de que os desafios atuais pedem a instauração de uma
“nova ética”. As bases que fundamentam essa ética ecológica e as balizas que
norteiam o seu horizonte de reflexão nem sempre são claras e comumente aceitas.
O leque se abre numa longa curvatura de parâmetros e perspectivas.
A perspectiva bíblico-cristã que nos orienta aponta para uma necessária
dinâmica de integração-inclusão. Vimos que a reflexão ética se debruça sobre uma
questão ecológica. Enquanto agente ético, o ser humano é o sujeito moral, que vê
os problemas, reflete e procura agir responsável e criativamente. Na visão cristã, é
o ser que age dialogicamente, podendo responder de forma positiva às
interpelações do criador. Nesse sentido, a ética é constitutivamente
antropocêntrica. Não podemos fugir desse princípio antrópico, se quisermos
permanecer no âmbito da ética. Por outro lado, tratando-se da questão ecológica,
247
esta nos mostra que no centro da reflexão está a vida em toda a sua complexidade
de relações, tal como nos ensina o paradigma ecológico. O mundo da natureza é
merecedor de consideração moral. A ética ambiental atribui à natureza, enquanto
portadora de valor intrínseco, uma significação ética que funda um direito à
existência.
Ainda nessa perspectiva integradora, vimos que a crise ecológica tem uma
dimensão inegavelmente social. O modelo econômico, sustentado por uma
racionalidade instrumental da tecnociência dissociada da dimensão axiológica, é
duplamente antiecológico por agredir tanto ao ser humano quanto à natureza. O
grito da terra ecoa o gemido do pobre. A crise ecológica revela-se, em seus
fundamentos, uma crise socioambiental que exige uma coerente ética cujos
princípios básicos são o respeito à alteridade, o cuidado e a solidariedade com a
vida em suas múltiplas manifestações. Nesse sentido, a ética socioambiental ajuda
na busca de autênticos modelos de desenvolvimento que possam garantir a
existência de comunidades – o ser humano na natureza – verdadeiramente
sustentáveis. Isso supõe a necessidade de uma educação ambiental, ou metanoia
ecológica, que suscite valores e virtudes. Numa palavra, um novo ethos cultural.
248
Conclusão da Parte II
Ao revisitar o conceito de criação/salvação, na perspectiva ecológica,
encontramos uma motivação teologal para o cuidado e preservação do ambiente.
Vimos que a natureza, ao existir por Deus, tem uma dignidade própria, que nos
permite afirmar o seu valor intrínseco: porque é criação de Deus o mundo deve ser
valorizado, respeitado e preservado. Toda a criação é perpassada pelo Logos
divino, portanto, tem um sentido, uma lógica interna, um valor criatural imanente
e um dinamismo de criatividade.
Há uma unidade básica que permeia a criação cuja origem está na comunhão
trinitária. Ao proceder da Trindade, toda a criação é intrínseca e vitalmente
relacional. Encontra-se aqui a fundamentação para a pluralidade do mundo e a
alteridade de cada ser, o que nos mostra a necessidade do respeito ao outro e da
valorização do diferente. Na diversidade do mundo criado, o ser humano aparece
como imago Dei, ser dialógico, capaz de agir responsavelmente. Nessa condição,
é chamado a cuidar e salvaguardar a natureza, a qual está vitalmente ligado.
A perspectiva bíblico-cristã da criação nos aponta, portanto, para uma
dinâmica de integração-inclusão. Isto se reflete nos princípios que norteiam a
ética, voltada para as questões ambientais. A ética tem como sujeito moral o ser
humano (dimensão antropocêntrica), mas, enquanto ambiental, no centro da sua
reflexão está a vida em seu sentido mais amplo (dimensão biocêntrica). Os dois
aspectos se complementam.
Nesse horizonte integrador, o cuidado com o mundo natural está
intimamente associado ao cuidado com o ser humano (principalmente os mais
pobres), ambos vítimas do mesmo sistema espoliativo e degradante. A crise
ecológica tem uma dimensão inseparavelmente social. Essa dimensão torna-se
mais explícita quando se aborda o tema do desenvolvimento sustentável, onde os
princípios éticos do cuidado, da solidariedade e do respeito à alteridade ajudam na
busca de modelos autênticos de desenvolvimento. Para tanto, é necessário cultivar
e promover um “saber ambiental”: relacional, integrador e baseado na cooperação
interdisciplinar. É nesse sentido que se encaminha a terceira e última parte deste
nosso trabalho.
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