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205 6 A Ética Cristã em Pespectiva Ecológica Introdução Na mensagem de paz ao mundo, em 1990, João Paulo II, ao mencionar as diferentes expressões da crise ecológica – destruição da camada de ozônio, o “efeito estufa”, a poluição industrial, o desmatamento, a extinção de espécies, etc -, afirma que o sinal mais grave, que está na raiz destes problemas, é a falta de respeito à vida, à vida humana e de todas as formas de vida no planeta. Com firmeza defende o princípio de que “o respeito à vida, sobretudo à dignidade da pessoa humana, é a norma definitiva para se obter um sadio progresso econômico, industrial ou científico” 595 . O respeito à vida e à integridade da criação é o grande desafio para o ser humano, a única espécie que, numa relação dialógica, é capaz de encontrar o Criador como o totalmente Outro: “o outro significa uma pro-posta, que pede uma res-posta com responsabilidade” 596 . Diante do Criador, o ser humano se descobre um ser ético. A singularidade do ser humano se revela no fato de só ele poder ser um ser ético, isto é, ter a capacidade de responder com responsabilidade à proposta que lhe vem da criação. Por isso, hoje é cada vez maior a necessidade de redescobrir a ética e auscultar os caminhos que ela vai nos apontar. A teologia da criação, tal como vimos no capítulo anterior, diante do desafio hodierno da crise ambiental, procura dar uma contribuição na busca de caminhos que levam a uma sadia convivência entre o ser humano e o mundo natural. A teologia cristã nasce de e leva a um engajamento em favor da vida, tal como a experimenta e dá testemunho Ivone Gebara: “Fazemos parte de um destino comum: a luta ecológica, das mulheres e de outros grupos alternativos, tem a ver 595 J. PAULO II, “Peace with God the Creator, Peace with All of Creation”, n. 7. Cf. PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 118. 596 BOFF, L. Ética e Moral. A busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 45.

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6

A Ética Cristã em Pespectiva Ecológica

Introdução

Na mensagem de paz ao mundo, em 1990, João Paulo II, ao mencionar as

diferentes expressões da crise ecológica – destruição da camada de ozônio, o

“efeito estufa”, a poluição industrial, o desmatamento, a extinção de espécies, etc

-, afirma que o sinal mais grave, que está na raiz destes problemas, é a falta de

respeito à vida, à vida humana e de todas as formas de vida no planeta. Com

firmeza defende o princípio de que “o respeito à vida, sobretudo à dignidade da

pessoa humana, é a norma definitiva para se obter um sadio progresso econômico,

industrial ou científico”595.

O respeito à vida e à integridade da criação é o grande desafio para o ser

humano, a única espécie que, numa relação dialógica, é capaz de encontrar o

Criador como o totalmente Outro: “o outro significa uma pro-posta, que pede uma

res-posta com responsabilidade”596. Diante do Criador, o ser humano se descobre

um ser ético. A singularidade do ser humano se revela no fato de só ele poder ser

um ser ético, isto é, ter a capacidade de responder com responsabilidade à

proposta que lhe vem da criação. Por isso, hoje é cada vez maior a necessidade de

redescobrir a ética e auscultar os caminhos que ela vai nos apontar.

A teologia da criação, tal como vimos no capítulo anterior, diante do desafio

hodierno da crise ambiental, procura dar uma contribuição na busca de caminhos

que levam a uma sadia convivência entre o ser humano e o mundo natural. A

teologia cristã nasce de e leva a um engajamento em favor da vida, tal como a

experimenta e dá testemunho Ivone Gebara: “Fazemos parte de um destino

comum: a luta ecológica, das mulheres e de outros grupos alternativos, tem a ver

595 J. PAULO II, “Peace with God the Creator, Peace with All of Creation”, n. 7. Cf. PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 118. 596 BOFF, L. Ética e Moral. A busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 45.

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com o conjunto da preservação da vida”597. Numa palavra, a teologia é também

ética.

Neste capítulo procuraremos mostrar que os graves problemas gerados pela

crise socioambiental pedem uma nova ética que seja capaz de pensar e propor

parâmetros de comportamento e de ações em face dessa problemática. Para tanto é

necessário apontar alguns princípios teóricos que fundamentam essa nova ética.

Buscaremos apoio na categoria de alteridade aplicada à natureza e ao princípio

responsabilidade tal como pensou H. Jonas (item 1). Com essa base, procuraremos

argumentar que a natureza adquire significação moral, é intrinsecamente valiosa e,

portanto, apresenta em si um direito à existência (item 2). Essa visão implica uma

nova maneira de relacionamento com o mundo natural que, por sua vez, exige

uma mudança no perfil do sujeito ético que, superando os limites do paradigma da

modernidade, assume as características do paradigma ecológico, possibilitando

uma existência ética pautada pelas virtudes do cuidado e da solidariedade (item 3).

Por fim, procuraremos sublinhar a dimensão social da crise ecológica,

relacionando a ética com o desafio de encontrar possibilidades para um processo

que conduza a modelos autênticos de desenvolvimento sustentável (item 4).

6.1

A necessidade de uma nova ética

Em consonância com a compreensão teológica da natureza como criação, o

ser humano “ao pisar o pé” no mundo, recebe um encargo de cuidar do ambiente

que encontra598. Isto significa assumir uma responsabilidade para com a terra – a

sua morada (oikos) - que, segundo R. Burggraeve, trata-se de uma

responsabilidade criatural, constitutiva do modo como o ser humano foi criado.

Ou seja, ao encontrar o mundo já criado, o ser humano “se descobre a si mesmo

como colocado numa ‘aliança ética’ com a criação”. Anterior à sua capacidade de

597 GEBARA, Ivone. Citada por SCHNEIDER, Nélio. Solidariedade no sofrimento e na esperança em busca da relação justa entre o humano e o criado Coram Deo. In: SUSIN, L. C. (org.), Mysterium Creationi, op. cit., p. 178. 598 Cf. o sentido de “pisar o pé” segundo o significado original do verbo submeter (kalas) no item 5.5.1 do capítulo anterior.

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escolha, o ser humano já está vinculado ao “destino” do mundo, já foi feito

solidário com ele e, por conseguinte, deve se responsabilizar por ele599.

O ser humano, contudo, não é pura receptividade. Ele é, principalmente, um

ser de decisão e resposta, podendo assumir a sua responsabilidade para com o

mundo que recebe. Aí reside a sua singularidade, como um ser ético pode ser

capaz de perceber interpelações e responder positivamente em favor de seus

semelhantes e da natureza da qual faz parte.600

Muitos estudiosos, hoje, estão de acordo que a crise ecológica não se

resolve apenas no campo da racionalidade instrumental, só com medidas de

caráter técnico-científico. Ao contrário, a problemática ambiental pede respostas

que são antes de tudo o resultado de uma opção ética. Na década de 1970, Randers

e Meadows, os autores do famoso relatório do Clube de Roma, já apontavam para

a imprescindível tarefa de por limites ao crescimento segundo critérios éticos.

Vinte anos depois, diante do agravamento da degradação ambiental que ameaça a

vida de todo o planeta, os mesmos autores insistiam na necessidade de “um amor

em escala global”, pois “a resposta aos problemas do mundo começa com um

novo humanismo... capaz de restabelecer o amor, a amizade, a solidariedade e a

convivência...”601 Para o biólogo australiano Charles Birch, a única saída para esta

crise é a construção de “uma sociedade viável” baseada, sobretudo, no valor da

solidariedade602. De forma semelhante pensa o médico e biólogo Jacques Ruffié,

para quem a crise ecológica é um sinal evidente de que a humanidade precisa

estabelecer novas formas de relacionamento com “mais justiça, mais consciência e

maior cooperação”, vale dizer, é preciso “adotar um comportamento altruísta

especificamente humano”. A crise ecológica, por conseguinte, pede a instauração

de uma “nova ética”.

599 BURGGRAEVE, R. art. cit., p. 117 e 119. 600 RUBIO, A. G. Unidade na Pluralidade, op.cit., p. 175-178. 601 MEADOWS, D.H , et. al.. Citados por DE LA PEÑA, J. L. R. Crisis y Apologia de La Fé, op. cit., p. 245. 602 Ibid., p. 246.

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6.1.1

A fundamentação de uma ética ecológica

O antropocentrismo da civilização moderna é apontado como uma das

causas da crise ecológica. Ele produziu uma racionalidade técnico-científica,

associada à idéia de progresso material contínuo, que usa a natureza apenas como

objeto de domínio e como recurso a ser explorado para a satisfação das

necessidades humanas. Nesse processo, prevalecem interesses econômicos e

estratégias políticas que, junto com a depauperização do meio ambiente, geram a

degradação do convívio humano que se manifesta no aumento da pobreza e da

injustiça.

Na origem da problemática ecológica está uma questão moral: a dissociação

entre o “que podemos fazer” (técnica) e o que “devemos fazer” (ética). Com

lucidez Gómez-Heras chama a atenção para a urgente necessidade de “vincular a

racionalidade técnico-científica a uma racionalidade axiológica, não só enquanto

esta é uma dimensão essencial da ação humana, mas também porque a natureza é,

em si mesma, um valor e um sujeito de valores”603. Na ausência de uma

consideração ética, o sistema econômico industrial – e a exploração da natureza

que o acompanha – provoca não apenas um vazio de bens materiais, devido ao

consumismo nunca satisfeito, como também o de bens culturais: estéticos,

ecológicos, éticos, etc. Vazio este no qual “o ser humano se perde a si mesmo

como pessoa”604.

Nesse contexto de esvaziamento de valores, o grande desafio que aparece no

interior da própria crise ecológica é recuperar, frente à racionalidade técnico-

produtiva dominante, a dimensão ética da ação humana que a oriente para o bom e

o justo e corrija as distorções de um relacionamento arbitrário com a natureza.

Como alertava o Conselho Ecumênico das Igrejas - Camberra, 1990 - ao tratar da

ecologia e de uma postura ética no relacionamento com a natureza: “O propósito

da tecnologia será trabalhar com a natureza e seus mistérios e não domina-la”605.

Portanto, o equilíbrio entre as racionalidades técnico-industrial e axiológica,

603 GÓMEZ-HERAS, J. M. G. Ética del Medio Ambiente. Problemas, Perspectivas, História. Madrid: Tecnos, 1997, p. 22. 604 Ibid., p. 23. 605 Citado por BOFF, L. Ecologia, Mundialização, Espiritualidade: A emergência de um novo paradigma. São Paulo: Ed. Ática, 1993, p.77.

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segundo observa J. Siqueira, é uma urgente tarefa de uma ética ambiental ou

ecológica, contribuindo para que

“a atividade humana se integre entre ambas, evitando a perda das dimensões subjetiva, teleológica e teológica da natureza e não permitindo a polarização excessiva da mentalidade objetiva e instrumental da natureza, pois essa acaba esvaziando a relação do homem com o mundo circundante e com o próprio sentido radical e absoluto da história, Deus”606.

Tradicionalmente a ética tem encontrado na conduta do ser humano o eixo

de sua reflexão, referindo-se a valores e normas implicados no convívio dos seres

humanos entre si e com a natureza, mas somente enquanto esta responde a

interesses humanos. Ultrapassando as fronteiras de uma concepção estritamente

antropocêntrica, a ética ecológica surge para fundamentar normas que

regulamentem a conduta do ser humano com a natureza. Dito de outra forma, a

ética ecológica amplia a abrangência da ética, considerando a natureza – a

biosfera, os seres vivos não humanos – como “objeto moral”, merecedora de

consideração moral por si mesma, pelo valor próprio que possui, isto é, a vida607.

O médico e prêmio Nobel Albert Schweitzer, com seu projeto de uma “ética do

respeito à vida”, já alertava para essa necessidade:

“O grande erro de todas as éticas do passado está no fato de que elas limitaram-se ao comportamento do homem face ao homem. Mas, na realidade, a questão é de saber qual a sua atitude diante do mundo e de toda a vida que ele encontra em seu caminho. Um homem é ético quando se volta generosamente para toda a vida que está necessitando de ajuda. Só pode ter fundamento a ética universal que consiste na experiência da responsabilidade face a tudo o que vive”608.

D. Edwards recorda que a sensibilidade ecológica de A. Leopold, no

despertar do movimento ambientalista, antecipava o que hoje se denomina visão

sistêmica e holística do mundo, com a proposição de “uma ética da terra” segundo

a qual o indivíduo é membro de uma comunidade de partes interdependentes: “a

ética da terra simplesmente aumenta as fronteiras da comunidade para incluir solo,

água, plantas e animais, ou de forma coletiva: a terra”609. Os seres humanos são

convidados a tratar a terra com respeito, pois “como comunidade, a terra é o

conceito básico da ecologia; como uma extensão da ética, ela deve ser amada e

606 SIQUEIRA, J. C. Ética e Meio Ambiente. São Paulo: Ed. Loyola, 2002, p. 13. 607 GÓMEZ-HERAS, op. cit., p. 28-29. 608 SCHWIETZER, A. Citado por ROLSTON, H. III., Environmental Ethics. Duties to and Values in The Natural World. Philadelphia: Temple University Press, 1988, p. xiii. 609 LEOPOLDO, A. Citado por EDWARDS, D. Jesus the Wisdom of God, op. cit., p. 160.

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respeitada”. Para tanto, A. Leopoldo apresenta um critério básico para uma ética

ecológica: “Uma ação é correta quando tende a preservar a integridade, a

estabilidade e a beleza da comunidade de vida e errada quando tende ao

contrário”610. A integridade de toda a comunidade biótica é um valor importante

porque valoriza e permite o bem comum de todos os indivíduos, humanos e não

humanos. Posteriormente, semelhante apelo ético será proferido por João Paulo II

em sua encíclica Solicitude Rei Socialis:

“... Não se pode fazer impunemente uso das diversas categorias de seres, vivos ou inanimados – animais, plantas e elementos naturais – como se quiser, em função das próprias exigências econômicas. Pelo contrário, é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado, como é exatamente o cosmos”611.

Ora, na ampliação do campo temático da ética ecológica, que além da

responsabilidade do ser humano consigo mesmo e da relação com seus

semelhantes também inclui a natureza como merecedora de consideração moral,

uma questão que se levanta é a fundamentação teórica que justifique a atribuição e

reconhecimento de valores intrínsecos aos seres vivos não humanos e ao entorno

natural. Nesse sentido, grande contribuição tem sido dada com as categorias de

alteridade e do princípio de responsabilidade, que veremos a seguir.

6.1.2

A natureza enquanto alteridade

Em sua aguda crítica à modernidade, H.R. Leis não hesita em afirmar que,

do ponto de vista ambiental, a noção de progresso, entendido como superação de

todo e qualquer obstáculo através das forças do trabalho e baseado na ciência e na

tecnologia, foi uma das piores heranças que o século XX recebeu do passado, uma

vez que esse tipo de progresso “supõe sempre uma liberdade conquistada à custa

da degradação do meio ambiente”612. Tanto no processo de acumulação capitalista

como na teoria emancipatória do marxismo, a busca dessa liberdade, pensada de

610 Ibid. 611 JOÃO PAULO II, Solicitude Rei Socialis, n. 34. São Paulo: Paulinas, 1990. 612 LEIS, H. R. A Modernidade Insustentável. As críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea. Petrópolis: Vozes; Florianópolis: Ed. aa UFSC, 1999, p. 206.

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modo excessivamente antropocêntrico, deveria ser alcançada pela lógica da

acumulação e do desenvolvimento das forças produtivas, o que a tornou

gravemente perturbadora no relacionamento da humanidade com a natureza613.

O peso dessa herança é sentido até os nossos dias. Houve, é verdade,

pensadores muito críticos da racionalidade técnico-instrumental, como os da

Escola de Frankfurt (p. ex. Horkheimer, Adorno, Habermmas e Marcuse), que

viram a necessidade de pensar a reconciliação da sociedade humana com o mundo

da natureza e deram importantes contribuições para melhorar esse relacionamento.

Contudo, eles também apresentaram limitações e dificuldades para pensar a raiz

civilizatória dos problemas ecológicos e entender o ethos ambientalista, pois,

assim como as principais correntes do pensamento da modernidade, não tiveram

“meios para ultrapassar a distância (cada vez maior) instalada entre a natureza e a

sociedade”614. Permaneceu, assim, uma certa descontinuidade entre o ser humano

e natureza. Esta continuou sendo vista como um objeto cartesianamente separado

do sujeito humano, dentro do pensamento próprio da modernidade que tende a não

reconhecer qualquer relação não-racional entre os seres humanos.

Em outras palavras, na concepção de mundo e, por conseguinte, na

formulação da ética, faltou o reconhecimento da natureza em sua real

complexidade e concretude própria. As éticas que emergiram do pensamento

moderno, como aponta M. Pelizzoli, expressam um paradigma que se afirma na

negação do outro como Outro, isto é, no poder e dominação sobre a alteridade615.

No lado oposto desse paradigma, como reação à mentalidade antropocêntrica e à

racionalidade instrumental, emergiu um vigoroso movimento ambientalista para

fazer frente aos problemas ecológicos que a sociedade técnico-industrial fez

surgir. No interior desse movimento, encontra-se uma corrente fortemente

sustentada por princípios teóricos e éticos que pregam uma harmonização

intrínseca com a natureza. São modelos de ética ambiental, como vimos no

segundo capítulo deste trabalho, centrados numa visão biocêntrica, com uma

perspectiva acentuadamente holística onde o indivíduo se dilui no horizonte de um

todo igualitário. A totalidade sistêmica suprime a diferenciação e tanto a natureza

como o ser humano, paradoxalmente, não são reconhecidos como um outro

613 Ibid., 215. 614 Ibid.,p. 207-214, aqui p. 213. 615 PELIZZOLI, M. L., A emergência do Paradigma Ecológico: reflexões ético-filosóficas para o século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 23.

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distinto. Também aqui verifica-se o antigo princípio de que os extremos se tocam,

isto é, a alteridade foi subtraída pelo domínio do poder totalizante e

homogeneizador.

A questão, pois, que se coloca é como encontrar uma formulação teórica

pela qual a natureza seja reconhecida enquanto alteridade – em sua concretude,

com característica própria de “outro” – e que seja a base de uma ética ambiental

em que se encontra afirmada uma relação harmoniosa de eficaz respeito dos seres

humanos entre si e com o mundo da natureza.

Buscando inspiração no pensamento de E. Lévinas, essa fundamentação

teórica pode ser encontrada na categoria de Exterioridade enquanto sugere um

Outro separado, irredutível ao Mesmo616. No sentido levinasiano da palavra,

aplicado a uma realidade eminentemente antropológica, isto é, o relacionamento

intersubjetivo, a Exterioridade exprime uma idéia de concretude irredutível do

Outro, na medida em que a essência da Alteridade do Outro é a sua própria

absoluta singularidade617.

Importante notar aqui é a singularidade do Outro na sua relação com o

Mesmo. Por um lado, o sentido da alteridade do Outro é dado pela presença ao

mundo do Mesmo. A realidade do Outro se dá, acontece frente ao Mesmo diante

do qual o Outro é oferecimento e convite à relação. Contudo, o Outro não se

encontra no Mesmo, está separado dele, pois a realidade ontológica do Mesmo

não comporta um outro, não tem lugar para outro em seu espaço.

“O Mesmo, por sua natureza unificada, totalizada, não pode admitir o compartilhamento de espaços. No lugar do Mesmo, somente o Mesmo: este lugar não é mais, em última análise, do que a ordenação ou a determinação espacial da realidade do Mesmo”618.

Portanto, o Outro, por sua própria concretude, resiste e não se reduz ao

Mesmo. A sua separação é concreta e externa. O Outro é um outro espaço do

616 Importante filósofo contemporâneo, Emmanuel Levinas (1905-1995) escreveu, entre outras obras, Totalité et Infini e Autrement qu’etre, ou au-delá de l’essence. Para uma visão de conjunto do pensamento de Emamnuel Lévinas, cf. SUSIN, L. C. O homem messiânico. Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre – Petrópolis: Co-edição Est-Vozes, 1984; PIVATTO, P., “Ética da alteridade”, in OLIVEIRA, M. A. de (org.) Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 79-97; PELIZZOLI, M. L,. Levinas: a reconstrução da subjetividade, Porto Alegre: EDIPUC, 2002; JÚNIOR, N. R., Sabedoria de amar: a ética no itinerário de Emmanuel Levinas, São Paulo: Loyola, 2005; 617 TIMM de SOUZA, R. Totalidade e Desagregação. Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. Cf. especialmente o capítulo “Alteridade e Ecologia”, p. 151-160. 618 Ibid., p. 158.

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Mesmo, ele é externo à determinação espacial da realidade do Mesmo. Convém

notar que no pensamento de E. Levinas a irreciprocidade é um dos elemento-

chaves na relação entre a subjetividade e alteridade. Nesse sentido, como nota L.

C. Susin, a alteridade supõe uma relação assimétrica e desigual: “O outro é

separado: está diante de mim separado de mim e separado do meu mundo”619.

Portanto, o Outro está espacialmente separado do Mesmo.

É nessa noção de espaço – uma “retorção ética”, segundo Timm de Souza620

- que se pode aplicar a categoria de alteridade a uma realidade não-antropológica,

como a natureza. “Ela é um outro espaço”, irredutível ao espaço do Mesmo. O

espaço da natureza não pertence ao Mesmo, embora próximo e sujeito aos seus

influxos. A natureza é a espacialidade original do outro enquanto Outro. Sendo a

natureza o substrato de sua própria concretude, o Outro está nela. Dessa forma,

pode-se atribuir à natureza essa condição categorial de Alteridade:

“Se a Natureza é a espacialidade original do Outro, isto somente se pode dar se esta não compartilha da natureza do mesmo. A Natureza tende assim à alteridade categorial, e é nesta Alteridade categorial que se pode perceber uma concepção de Natureza não contaminada por determinações e classificações ontológicas totalizantes. Tem-se aí, portanto, uma teoria da Natureza não subsumida na prática exploratória totalizante”621.

Portanto, em sua existência concreta a natureza é vista como uma realidade

“dis-tinta” do Mesmo e, assim, ela pode ser percebida em seu sentido mais

profundo e original. Enquanto alteridade, a natureza é merecedora de um

reconhecimento respeitoso que não cai num sistema homogeneizante ou reificador

onde fica reduzida à simples coisa a ser explorada pela lógica da acumulação

humana – como um depósito de matéria prima à disposição da cobiça que

alimenta a insustentabilidade insaciável da nossa sociedade de consumo. Também

corrige, nessa concepção homogeneizante, a tendência da indiferenciação pela

qual o ser humano e natureza se con-fundem num unitarismo biológico

englobante, isto é, uma visão totalizante e abstrata segundo a qual a natureza se 619 SUSIN, L. C. O homem messiânico, op., cit., p. 214 -220; aqui 216. 620 TIMM DE SOUZA, R., ibid., p. 157., No pensamento de E. Levinas, é a linguagem que possibilita o reconhecimento da exterioridade do Outro, conferindo à Alteridade a sua racionalidade própria. Como a natureza não é portadora desse tipo de linguagem, explora-se, então, a noção de espaço que o conceito de Exterioridade comporta. Cf. Ibid., nota 261, p. 157. À propósito, convém notar que segundo uma visão excessivamente antropocêntrica rejeita-se qualquer atribuição de alteridade à natureza porque exatamente ela é desprovida de razão e linguagem. Nessa linha encontra-se, por exemplo, a crítica de Luc Ferry em seu livro El nuevo orden ecológico – El árbol, el animal y el hombre. Barcelona: Tusquets Editores, 1994. 621 TIMM DE SOUZA, R., ibid., p. 159.

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configura como uma complexa combinação de elementos dos quais o ser humano

é apenas uma parte. O resultado dessa idealizada “unidade” seria a perda da

identidade própria tanto do ser humano quanto da natureza622.

A categoria da alteridade, portanto, tem ajudado na exposição de uma base

para se pensar hoje a difícil e complexa problemática socioambiental. Com efeito,

ela significa o respeito ético da condição de “outro” do Outro, no caso aqui, da

natureza. Dessa forma, a concepção ética de natureza – entendida enquanto

alteridade – possibilita reconhecer o seu valor intrínseco. Já é um considerável

avanço com relação às éticas tradicionais, estritamente antropocêntricas, pelas as

quais a natureza não recebe em si mesma nenhuma consideração moral. A

natureza está relacionada com o ser humano, é bem verdade, e somente este pode

assumir a condição primeira de agente ético. Mas ela é portadora de um sentido e

de uma atribuição axiológica própria, irredutível aos interesses da espécie

humana. Ela possui um estatuto ético. Numa palavra, ela pode ser considerada

como eticamente “inteligível”623. A categoria de alteridade conferida ao mundo

natural é, sem dúvida, um grande avanço nesse sentido.

6.1.3

O imperativo da existência na ética da responsabilidade

Uma das contribuições mais significativas no debate sobre a consideração

ética da natureza foi dada pelo filósofo Hans Jonas624, cuja obra mais destacada já

622 Ibid., igualmente PELIZZOLI, M. L., op. cit., p. 30-31. Diferentemente dessa visão totalizante, encontra-se a posição respeitosa de um holismo, ou paradigma sistêmico, que postula uma integração das partes mutuamente interrrelacionadas, mantendo nestas as suas propriedades distintas e separadas. Cf. TIMM DE SOUZA, R., ibid., nota 257, p. 155. 623 TIMM DE SOUZA, R., op. cit., p. 159-160. 624 Filósofo judeu, nasceu na Alemanha em 1903, onde estudou com Husserl, Heidegger e Bultmann. Deixou a Alemanha em 1933, com a chegada ao poder do nazismo. Em 1949 emigrou para o Canadá e, em seguida, para os Estados Unidos onde faleceu em fevereiro de 1993. Inicialmente, tornou-se conhecido por sua obra histórico-filosófica sobre a gnose e, mais tarde, por seus trabalhos sobre a filosofia da biologia. A partir dos anos 1960, Hans Jonas dedicou-se a refletir sobre as questões éticas suscitadas pelo progresso da tecnologia. Depois de O Princípio da responsabilidade, publicou Técnica, Medicina e Ética, em 1985, onde fez profundas reflexões sobre importantes questões da bioética. Para uma visão de conjunto da sua ética da responsabilidade, ver: DUPLÁ, L. R., “Una ética para la civilización tecnológica: la propuesta de H. Jonas”, in GÓMEZ-HERAS, J. M. G (coord.), Ética del médio ambiente. Problema, perpectivas, historia. Madrid: Tecnos, 2001, p. 12 -144.; SIQUEIRA, J. Eduardo de., Ética e tecnociência. Uma abordagem segundo o princípio da responsabilidade de Hans Jonas. Londrina:

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anuncia a base sobre a qual assenta-se o seu programa ético: O Princípio

Responsabilidade625, publicada em 1979, tornando-se uma das obras mais

conhecidas e com ampla aceitação entre os variados setores do movimento

ecológico. As suas idéias, bastante críticas ao pensamento moderno,

especialmente da dominação tecnológica, ajudaram a pensar melhor o

relacionamento do ser humano com a natureza, mostrando com muita lucidez as

limitações da ética tradicional - e das idéias do nosso tempo em geral na

abordagem dos graves problemas contemporâneos, particularmente o da questão

socioambiental em toda a sua complexidade – que devem ser supridas por uma

nova ética.

O ponto de partida de sua reflexão é o “vácuo ético” originado pela

tecnociência, que tem conferido aos seres humanos poderes cada vez maiores com

os quais põem em risco o mundo natural e a humanidade inteira. Com efeito, o

mito de um progresso sem medidas, apoiado pela tecnologia moderna, tem agido

como “o Prometeu definitivamente desacorrentado” ameaçando as condições da

vida humana e o futuro da natureza como nunca antes aconteceu. É esse vazio

ético, segundo H. Jonas, “que simultaneamente também é o vácuo do relativismo

de valores atual, que clama por uma nova ética capaz de impedir o poder dos

homens de se transformarem em uma desgraça para eles mesmos”626.

No capítulo inicial deste trabalho, fizemos referência à racionalidade

instrumental, unilateralmente considerada, como uma das causas geradoras da

crise socioambiental. H. Jonas também vê na formação da nova ciência o lócus

inicial de onde partiu a crise. De acordo com ele, a nossa civilização tecno-

científica-industrial é a consumação de um processo iniciado com o aparecimento

da ciência moderna sob o lema “saber é poder”. Esse processo, que ele chama de

“ideal baconiano”, tem como objetivo colocar o saber a serviço da dominação da

natureza e utilizá-la para satisfazer as necessidades humanas627. Isso revela um

UEL, 1998; GIACOIA JÚNIOR, O., “Hans Jonas: O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. In: OLIVEIRA, M. A. de (org.) Correntes Fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 200, p. 193-206; NEDEL, J. Ética Aplicada. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004, p. 143-168. 625 JONAS, H. Das Prinzip Verantwortung, 1ª edição alemã, 1979; edição brasileira: O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. 626 Para H. JONAS foi o poder desmedido conferido à razão instrumental da tecnociência que gerou esse vazio ético. Cf. Ibid., p. 21, 65-66. Aqui p. 21. 627 Ibid., p. 235.

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tipo de compreensão de natureza desprovida de qualquer valor intrínseco e

reduzida a mero instrumento para o bem estar humano, ou seja, uma natureza

como pura extensão cartesiana, privada de interioridade e finalidade. Ora, esse

ideal baconiano tem revelado uma grande contradição interna. Por um lado,

alcançou um inegável êxito, tanto no aspecto econômico - bem-estar material cada

vez mais acelerado e o aumento de consumo, que por si só já traz o perigo do

esgotamento dos recursos naturais e sua degradação – quanto no aspecto

biológico, representado pelo aumento demográfico facilitado pelas conquistas da

tecnociência, acelerando ainda mais o ritmo exploratório dos sistemas naturais.

Por outro lado, todo esse processo revelou um descontrole sobre si mesmo,

mostrando-se incapaz de proteger a humanidade de sua própria ganância, e a

natureza, do poder destrutivo humano628.

“Bacon não poderia imaginar um paradoxo desse tipo: o poder engendrado pelo saber conduziria a algo como um ‘domínio’ sobre a natureza (ou seja, a sua superutilização), mas ao mesmo tempo a uma completa subjugação a ele mesmo. O poder tornou-se autônomo. Sua promessa transformou-se em ameaça e sua perspectiva de salvação, em apocalipse”629.

É nesse contexto imensamente desafiador que H. Jonas percebe a

insuficiência das éticas tradicionais, pois apresentam certas características que não

condizem aos novos apelos630. Uma dessas características consiste em não incluir

no campo da ética a esfera das relações com o mundo extra-humano. Isso a torna

fundamentalmente antropocêntrica: as relações com o mundo natural são

eticamente neutras. Com efeito, “a natureza não era objeto da responsabilidade

humana: diante dela eram úteis a inteligência e a inventividade, não a ética”631. A

significação ética, portanto, dizia respeito exclusivamente ao relacionamento entre

seres humanos.

Outra característica da ética clássica é a sua imediatez, isto é, considera o

agir humano - no espaço e no tempo - próximos a esse agir, de modo que os

efeitos remotos ou conseqüências distantes da ação não são eticamente relevantes.

628 Ibid., p. 235-236. 629 Ibid., p. 237. Nota-se aqui, segundo F. O. Fonseca, a influência de M. Heidegger no pensamento crítico de H. Jonas sobre os impactos da tecnologia (cf. HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002). Contudo, o discípulo vai além do seu mestre ao incorporar na crítica da civilização tecnológica a elaboração de uma teoria propriamente ética. Ver FONSECA, F.O., “Ética da Responsabilidade em Hans Jonas e Limites das Éticas Tradicionais (antropocêntricas), in REB 269 (2008), p. 76-77. 630 Ibid., p. 31-37. 631 Ibid. p. 34.

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O universo moral não abrangia as gerações futuras. Nas palavras de H. Jonas:

“Ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos

homens, com as situações recorrentes da vida privada e pública”632. Assim, o

horizonte do futuro ético ficava limitado ao previsível durante a vida, e as

conseqüências mais longínquas do agir humano não eram objetos de planejamento

e preocupação moral.

A incidência da tecnologia moderna vai alterar sobremaneira esse panorama

no qual se inscrevem as éticas tradicionais. Ela trouxe consigo mudanças

profundas com uma amplitude de conseqüências antes não conhecidas. Entre elas,

o efeito destrutivo da ação humana sobre a natureza alcança uma dimensão

planetária e se estende por um futuro longínquo. Os danos se acumulam nos

ecossistemas naturais com repercussões ainda não inteiramente previsíveis e

prejuízos incalculáveis, ameaçando gravemente a própria existência de futuras

gerações. Tudo isso ultrapassa em muito as margens de consideração dos sistemas

éticos tradicionais. A intervenção tecnológica alterou drasticamente a forma do

agir humano. A natureza como um todo, e não apenas o campo das relações intra-

humanas, passa a ser diretamente implicada no campo da responsabilidade

humana. Para H. Jonas, a extensão tanto espacial quanto temporal da ação humana

em nosso tempo leva a uma mudança radical até mesmo no ponto de partida das

éticas tradicionais. Uma nova ética é necessária: “A natureza como uma

responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria

ética deve ser pensada”633.

A natureza, portanto, precisa ser incluída na esfera de responsabilidade do

agir humano, através da articulação de uma ética da responsabilidade que

ultrapasse o simples imperativo da preservação da espécie humana. H. Jonas está

convicto de que essa tarefa urge não apenas como um mandamento fruto da

prudência ou do simples utilitarismo – “não matar a galinha dos ovos de ouro”, ou

de “não serrar o galho sobre o qual até então estivemos assentados” – o que

indicaria a manutenção disfarçada do velho antropocentrismo das éticas

tradicionais. Trata-se, ao contrário, de uma séria postulação de um direito à

existência, de uma significação ética própria da natureza num horizonte ampliado

632 Ibid., p. 36. 633 Ibid., p. 39.

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da responsabilidade humana. Em suma, uma nova ética fundamentada a partir do

novo contexto em que vivemos e que

“não deveria estacionar no brutal antropocentrismo que caracteriza a ética tradicional e, particularmente, a ética heleno-judaico-cristã do Ocidente: as possibilidades apocalípticas contidas na tecnologia moderna têm nos ensinado que o exclusivismo antropocêntrico poderia ser um preconceito e que, em todo caso, precisaria ser examinado”634.

Assim, de acordo com H. Jonas, a ética deveria ser totalmente renovada.

Mesmo que a ética do amor ao próximo, da justiça e da honradez continue sendo

válida, ela tem que ser colocada em um outro horizonte, repensada em uma nova

dimensão que inclui, de forma ainda não pensada, a exigência da

responsabilidade635.

Certamente, o tema da responsabilidade já está presente nas éticas

tradicionais como um conceito normativo que orienta a práxis humana636. A

proposta de H. Jonas, porém, é inovadora porque inclui no campo da

responsabilidade do agir humano a dimensão coletiva da sociedade e a totalidade

do mundo natural: não mais o comportamento do indivíduo privado – como o

imperativo categórico kantiano – mas o agir coletivo que inclui o domínio da

política pública, ou seja, a vida em todas as suas formas, incluindo a extra-

humana, e o futuro não próximo637.

Mas como fundamentar essa responsabilidade frente às gerações futuras e

com o mundo natural? H. Jonas, sabendo que, entre as objeções à sua proposta

ética, encontra-se aquela de que gerações futuras poderiam não vir a existir,

procura mostrar que a nossa responsabilidade se estende pelo devir do futuro. Para

isso ela fundamenta a sua ética – para evitar subjetivismos e relativismos – sobre

uma ontologia, sobre um pensamento do ser. Com suas palavras: “sobre a doutrina

do existir, ou seja, da metafísica, na qual afinal toda ética deve estar fundada”638.

634 Ibid., p. 97. 635 Ibid., p. 39. 636 J. Nedel faz lembrar que o conceito de responsabilidade foi explicitamente tematizado por Max Weber, contrapondo a ética da responsabilidade à ética da convicção (cf. WEBER, M., Ciência e Política. Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 1980). Ver NEDEL, J., op. cit., p. 160. Segundo L. R. Duplá, contudo, não se deve confundir o princípio responsabilidade de H. Jonas com o sentido teleológico (ética da responsabilidade) que se contrapõe ao que se denomina de ética da convicção (sentido deontológico). Em H. Jonas o princípio responsabilidade adquire nova significação e é uma alusão polêmica à obra de E. Bloch O princípio esperança. Ver DUPLÁ, L. R., op. cit., nota 5, p. 132. 637 Ibid, p. 39-42. 638 Ibid, p. 42, igualmente p. 96-97.

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Esse tipo de legitimação corresponde a uma necessidade vital da nossa época,

como bem observa H. R. Leis, para evitar que a humanidade continue vulnerável

aos projetos de progresso material permanente (a utopia marxista e a liberal) que,

ao se aliarem fortemente com a técnica, não levam em conta as conseqüências da

ação humana639.

Portanto, é nesse nível ontológico que se coloca a pergunta fundamental

sobre o porquê da existência da vida no mundo, isto é, por que deve haver seres

humanos e por que devemos garantir, através de um imperativo ético, a sua

existência futura. Em outras palavras: por que o ser e não o nada? – H. Jonas

reformula a questão já posta anteriormente por Leibniz640. A sua resposta é que

“há uma prioridade absoluta do ‘ser’ sobre o nada”, o ser vale muito mais do que

o não ser641.

Ora, dessa certeza basilar nasce, por conseguinte, o imperativo

incondicional de garantir a existência da vida, da humanidade, da natureza como

um todo, inclusive das gerações futuras. Um ser que se integra à grande cadeia da

vida tende a um processo natural de autoconservação para garantir a sua

existência, a sua permanência no “ser”, por isso reclama a possibilidade de existir.

Daí o imperativo fundamental da ética da responsabilidade: “Aja de modo a que

os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de tal

vida”642. Desse modo, o novo imperativo está baseado em algo mais radical do

que a vontade humana (como em Kant), isto é, apóia-se na exigência imanente de

um bem em si mesmo, que é o vir a ser.

O incondicional sim à vida da ética de H. Jonas está ainda fundamentado

num finalismo imanente em toda a natureza o qual está articulado em fins, valores

e bens. Cada componente do sistema é dotado de valor porque tem uma finalidade

639 LEIS, H. R., op. cit., p. 217. H. Jonas se opõe ao utopismo de Ernest Bloch (cuja obra O princípio Esperança segue o projeto marxista) e a toda forma de utopia que tem como ponto de partida a ideologia do progresso sustentada pela tecno-ciência. Sobre isso cf. os capítulos cinco e seis de Principio responsabilidade. 640 JONAS, H., ibid., p. 99-103. 641 Ibid., p. 102. 642 O novo imperativo, voltado para o novo tipo de sujeito ético, é apresentado por H. Jonas em quatro variantes. A primeira diz assim: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”. Expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”. Ou simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”. E de forma novamente positiva: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer”. Ibid., p. 47-48.

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intrínseca. Isso porque, segundo H. Jonas: “Todo órgão em um organismo serve a

um fim, o qual ele realiza ao funcionar. O fim abrangente, a serviço do qual se

encontram todas as funções específicas, é a vida do organismo como um todo”643.

Aqui podemos notar no pensamento de H. Jonas uma possível repercussão do

novo paradigma sistêmico sustentado pelos estudos da ecologia644.

Na base da nova ética, portanto, está a convicção de que o ser é dotado de

finalidade intrínseca. Esse aspecto da ética de H. Jonas é muito importante do

ponto de vista ambiental, pois nele está incluída a natureza como um todo. A

natureza é aqui compreendida em perspectiva teleológica, uma visão recusada

pela ciência moderna que, como já vimos, passou a considerar a natureza como

res extensa, isto é, pura extensão, desprovida de interioridade e finalidade. Bem

ao contrário, a proposta de ética conforme H. Jonas considera “a biosfera no todo

e em suas partes” como portadores de valor atribuído pelo fim que possuem. Para

ele, os postulados da nova ética devem

“procurar não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, isto é, ampliar o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano”645.

Encontramos aqui um avanço considerável no esforço de superar o

excessivo caráter antropocêntrico das éticas tradicionais. Nesse novo horizonte, a

natureza é vista como portadora de finalidades às quais correspondem valores que

lhe são inerentes. O próprio dinamismo de autoconservação do ser já é em si um

valor, pois o ser é preferível ao não ser. Daí que o sujeito que existe, isto é, a

totalidade do mundo vivente, é sujeito de predicados axiológicos. Na

fundamentação da ética da responsabilidade, a questão dos valores se radica na

própria questão do ser. Para H. Jonas, “a axiologia se torna uma parte da

ontologia”646. Daí se conclui que o fato de existir já é um bem em si mesmo e, por

isso, tal existência deve ser preservada. Nessa perspectiva, já podemos adiantar,

portanto, que a natureza reclama de um direito de existir.

643 Ibid., p. 129. 644 Contudo, não podemos esquecer que a fundamentação metafísica que H. Jonas procura dar a sua ética recorre à princípios teleológicos na natureza semelhantes aos apresentados por Aristóteles o qual, segundo o próprio Jonas, “se torna cada vez mais atual”. Cf. NEDEL, J., op. cit., p. 161. 645 JONAS, H., ibid. p. 41. 646 Ibid., p. 149.

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O ser humano, a partir dessa nova consideração ética, deve assumir a sua

responsabilidade, tendo em vista a sua própria conservação e do mundo natural,

de manter a existência da vida. A possibilidade do nada – destruição da natureza e

de si próprio – está confiada a ele, de modo que o seu agir deve corresponder a um

“não ao não ser”, ou seja, o sim ontológico à vida tem a força de um dever647. Dito

de outro modo, a existência da vida humana e da natureza em geral reclama existir

pelo simples fato de existir.

Importa aqui sublinhar esse aspecto da responsabilidade que nasce do

próprio direito de existir. Esse direito não supõe reciprocidade, pois vem de um

valor intrínseco (o ser, a existência), o que implica um vínculo objetivo,

independente da vontade ou preferências subjetivas. H. Jonas quer assentar uma

base objetiva para a sua ética – em contraste com uma ética subjetiva que depende

das escolhas humanas – e para tanto apresenta o modelo da relação entre pais e

filhos, “como arquétipo original e intemporal da responsabilidade”648. A

responsabilidade dos pais para com os filhos pequenos representa muito bem o

dever de uma responsabilidade não recíproca. A vida de um recém-nascido –

“previsto ontologicamente que seus pais o protejam contra sua queda no nada e

que se encarreguem do seu devir futuro”649 – exige uma relação de gratuidade da

parte de seus pais que aceitam o encargo de dar acolhimento, proteção e condições

de existência para a criança. A criança se torna o paradigma do “dever-ser”, de

uma ética que apresenta um dever em virtude da afirmação da existência, isto é,

um apelo do “ser” para que não seja reduzido ao “não ser”. O direito à vida da

criança, portanto, não se baseia em parâmetros de reciprocidade. A

responsabilidade é, pois, assimétrica. A humanidade global, incluindo a que virá

no futuro, se torna a referência e a norma para as quais se volta a responsabilidade

do agente ético. As gerações do futuro, contudo, não farão nada pela geração

presente. Aí está o elemento característico do imperativo da nova ética: a não-

reciprocidade650.

647 Ibid., p. 152. 648 Ibid, p. 219-225, aqui 219. 649 Ibid., 224. 650 Autores, como o filósofo alemão Offreid Hoffe, parecem não concordar com H.Jonas na tese da responsabilidade não-recíproca dos pais para com os filhos, sustentando que há, sim, uma reciprocidade na medida em que as ajudas recebidas no início da vida serão retribuídas mais tarde, pelo que ele chama de “troca diacrônica positiva”. Contudo, como observa, J. Nedel, em se tratando de gerações futuras muito longínquas, que nada poderão retribuir às gerações presentes, a tese de H. Jonas se sustenta. Cf. NEDEL, J., op. cit., p. 166.

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Esse caráter de não-reciprocidade, como vimos anteriormente, foi

tematizado fortemente na filosofia de E. Levinas através da categoria da

alteridade. Segundo F. O. Fonseca, o tema da alteridade assimétrica é retomado e

ampliado por H. Jonas em sua ética da responsabilidade. Aqui, deixa-se o campo

exclusivamente do relacionamento humano, como na teoria de subjetividade em

E. Levinas, e estende-se o conceito de alteridade para outras dimensões do mundo

natural. De modo que a natureza, considerada enquanto alteridade, também

apresenta o direito de existir, de “vir-a-ser”651. Aqui nota-se a ampliação do

conceito de responsabilidade na ética de H. Jonas. O ainda não existente, a

natureza futura, ganha o direito de existir pelo fato de que já “é” no presente. O

agente ético, isto é, o ser humano, assume o dever de tomar para si a

responsabilidade pelo que ainda está por vir.

Poderíamos ainda ressaltar, na imagem da responsabilidade dos pais para

com os filhos, um aspecto que tem sido bastante ressaltado hoje na ética

ambiental. Isto é, a criança aqui é tomada como expressão de uma grande

fragilidade que aponta um dever de que sejam tomados os cuidados fundamentais

para a sua sobrevivência, para que se afirme como ser-existente. “O recém-

nascido – diz H. Jonas – cujo simples respirar dirige um ‘dever’ irrefutável ao

entorno, o de dele cuidar”652.

Assim é o conjunto da natureza. Os estudos da ecologia hoje têm mostrado

o quanto ela é frágil no equilíbrio dos ecossistemas e na particularidade de cada

espécie vivente. A vida é bastante vulnerável. A vida humana, em particular,

também frágil e vulnerável torna-se ainda mais débil com a degradação do meio

ambiente e a quebra do tênue equilíbrio dos sistemas bióticos de que faz parte.

Essa realidade indica, ou melhor, aponta para o nosso dever de cuidar da vida

como um todo, proteger a integridade da biosfera de cujo equilíbrio, bastante

sensível de ser alterado, depende a manutenção de todo o mundo natural e,

particularmente, da existência humana. A ética da preocupação com a vida

autêntica no planeta e a preservação do mundo natural, que aparecem no

pensamento de H. Jonas, revelam uma perspectiva biocêntrica a qual,

provavelmente, deve-se à influência de Heidegger653. Certamente o principio da

651 FONSECA, F.O., op. cit., p. 83-84. 652 JONAS, H., ibid., p. 220. 653 NEDEL, J., op. cit., p. 160.

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responsabilidade ética, ampliado às realidades não-humanas, tem um reflexo do

“cuidado” heideggeriano654.

Convém observar que alguns críticos da proposta ética de H. Jonas têm

apontado pelo menos duas limitações na sua ética da responsabilidade. A primeira

diz respeito ao caráter de uma “nova ética” que é uma das suas teses

fundamentais. Argumenta-se que o próprio filósofo chega a ser contraditório,

mantendo princípios e normas que são postulados clássicos das éticas tradicionais.

Nesse sentido, até mesmo o novo imperativo por ele proposto é visto como

basicamente o mesmo do imperativo moral kantiano, de modo que seria mais

adequado falar em uma complementação do que em novidade. Assim, a ética da

responsabilidade não chega a substituir o que já existia, apenas acrescenta novos

aspectos, que pedem novas obrigações, que antes não foram considerados porque

as circunstâncias não exigiam655.

A outra limitação se refere ao antropocentrismo que H. Jonas pretendia

superar nas éticas tradicionais ao ampliar a noção de responsabilidade. Aqui ele

também é criticado por permanecer na tradição, não indo além dos limites do

antropocentrismo. Segundo seus críticos, o princípio da responsabilidade continua

privilegiando a vida humana ao considerar que esta tem “prioridade” e “dignidade

maior” em relação aos outros seres viventes656. Essa limitação pode ser vista, por

exemplo, nas formulações do novo princípio que menciona quase exclusivamente

a vida humana. Ademais, H. Jonas não foi suficientemente biocêntrico na

654 Em sua obra Ser e tempo, M. Heidegger apresenta uma fábula, originalmente escrita por um autor romano chamado Higino, que mostra a fragilidade humana, necessitada de cuidado. Diz a fábula: “Certo dia, ao atravessar um rio, “Cura” viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. Cura pediu-lhe que desse espírito à forma da argila, o que ele fez de bom grado. Como Cura quisesse dar o seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter o proibiu e exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto Júpiter e Cura disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão aparentemente eqüitativa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber de volta na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo; deves receber o corpo. Como, porém, foi Cura, quem primeiro o formou, ele deve pertencer a Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve ser chamado “homo”, pois foi feito de húmus (terra)”. In: HEIDEGGER, M., Ser e tempo, parte I, Petrópolis: Vozes, 1993, 4ª edição, p. 263 -264. A fábula mostra que o ser humano possui a “origem do seu ser na cura, isto é, ele precisa e é mantido pelo cuidado enquanto estiver no mundo. Sendo, pois, um ser frágil, feito de argila, necessita de cuidado. Daí a presença de Saturno, deus do tempo, que vem atuar como árbitro. Nas palavras de M. Heidegger: “É isso que Saturno, o ‘tempo’, decide. A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa na fábula visualizou, desde o início, o modo de ser em que predomina seu percurso temporal no mundo”; Ibid,. p. 264. 655 NEDEL, J., op. cit., p. 164-165. 656 Ibid., p. 165.

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fundamentação de sua ética, ou seja, não assumiu a valorização da vida em sua

concretude biológica. Faltou, assim, enraizar na universalidade da vida o seu

imperativo da existência – preferindo ficar restrito à dimensão ontológica – o que

daria maior respeito e credibilidade à sua ética657.

Essas críticas, ao nosso ver, não invalidam a proposta renovadora da ética de

H. Jonas. É inegável o seu avanço com relação às éticas tradicionais ao colocar no

centro da preocupação ética o mundo da natureza que, antes, não recebia

diretamente nenhuma significação moral. A natureza, como vimos, era

considerada eticamente neutra, pois a ética dizia respeito exclusivamente ao

relacionamento entre seres humanos. Ao conferir ao mundo extra-humano um

direito à existência e ao colocá-lo no centro da responsabilidade humana, vemos

aqui algo realmente novo que ultrapassa os limites fechados do velho

antropocentrismo.

Vale notar também que o modelo de ética apresentado por H. Jonas se

alinha à perspectiva integradora que procuramos seguir neste trabalho. Como já

vimos, as correntes de ética ambiental biocentradas se contrapõem aos modelos

tradicionais de cunho excessivamente antropocêntrico. Em vez de mútua exclusão,

deveria haver complementação recíproca. Com efeito, enquanto referida ao agir

humano, toda ética terá sempre um caráter antropotópico658, pois somente o ser

humano age intencionalmente, isto é, somente ele pode pensar e agir

responsavelmente. Numa palavra, somente a espécie humana pode atuar

verdadeiramente como agente ético. Ademais, em se tratando de uma perspectiva

cristã, esse posicionamento ético do ser humano está em sintonia com a visão

antropológica que nos é transmitida pela revelação bíblica da criação, tal como

vimos no capítulo anterior. Como criatura relacional, a única que pode escutar e

responder com liberdade à palavra interpeladora de Deus, o ser humano é

imagem de Deus, portanto, diferente das outras criaturas.

Por outro lado, a ética hoje não pode eludir a referência ao mundo natural,

ao conjunto da biosfera no interior da qual o ser humano se encontra como um elo

nas interdependências vitais dos ecossistemas. O ser humano faz parte do mundo

natural e a ele está vitalmente unido. Nesse sentido, a ética, atenta às questões

657 FONSECA, F. O., op. cit., p. 88. 658 Para um aprofundamento do “princípio antropotópico” ver o já citado artigo de JUNGES, J.R. Ética Ecológica: Antropocentrismo ou Biocentrismo?, p. 58, 60 e 65; Ibid., Ética Ambiental, op. cit., p. 85.

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socioambientais, incorpora em seu discurso o mundo da natureza, conferindo-lhe

significação e estatuto moral que antes lhe era negado. Pensamos que a ética da

responsabilidade de H. Jonas assume bem essa perspectiva atual, ampliando o

horizonte da responsabilidade humana para além de um exclusivismo

antropocêntrico que inclui a natureza em seu direito de existência.

6.2

O direito de existir como “criatura”

Tanto o tema da alteridade quanto o imperativo da existência que vimos nos

itens anteriores nos remetem a um tópico delicado que é o da consideração da

natureza como sujeito de direito. Este é um aspecto polêmico que tem suscitado

uma ampla bibliografia659 e se situa no interior do grande debate sobre as

tendências da ética ambiental: de um lado, modelos antropocêntricos, do outro,

biocêntricos, com foi visto no segundo capítulo deste trabalho. Em conformidade

com o modelo adotado, são definidas outras posições tais como a necessidade de

um novo paradigma ético e a atribuição de direitos à natureza. Reiteramos que a

nossa perspectiva procura seguir uma visão de complementaridade, uma

compenetração das duas correntes, segundo uma dinâmica de integração-inclusão.

Pensamos não ser demais repetir que a ética ecológica, por um lado, não

pode renunciar ao “princípio antropotópico” segundo o qual o sujeito moral da

ética é sempre o ser humano, pois somente ele, enquanto ser de intencionalidade,

levanta as questões, elabora reflexões éticas e pode agir intencionalmente. A

especificidade do ser humano, face as outras criaturas, é a sua capacidade de

poder intervir responsavelmente na natureza. Neste sentido, pode-se dizer que

toda ética tem um aspecto antropocêntrico. Por outro lado, enquanto ecológica, a

ética segue a orientação holística do paradigma ecológico, considerando a vida em

659 Cf. ALTNER, G. Comunidade Criacional e Reorientação do Direito – Um novo pacto de gerações. Concilium, 236 (1991) p. 60-71; GÓMEZ-HERAS, J. M. G., op. cit., p. 52-54; De la PEÑA J. L. R., op. cit., p. 264; REGAN, T. – SINGER, P. Animal Rights and Human Obligations, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1976; REGAN, T. The Case for Animal Rights, Berkeley: University of California Press, 1983; WARREN, M. A. Difficulties with the Strong Animal Rights Position. Between the Species, vol. 2, n. 4 (1987); CLARK, St. R. L. The Moral Status of Animals, Oxford: Clarendon Press, 1977; WATSON, R. A. Selfconsciousness and the Rights of non Human Animal and Nature. Environmental Ethics, 1 (1979), p. 99-129; ROLLIN, B. E. Animal Rights and Human Morality, Buffalo: Prometheus, 1981.

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todas as suas formas dentro da grande rede de relações e interdependências da

comunidade biótica. A vida humana é compreendida como parte de uma realidade

maior, rejeitando-se, por conseguinte, o dualismo ser humano-natureza,

desenvolvido pela racionalidade técnico-científica, em favor de um

relacionamento responsável e harmonioso com o mundo natural no qual se

reconhece um valor em si mesmo.

Em razão desta compreensão é que se pode atribuir o caráter de direito

subjetivo à natureza, vale dizer, o direito à existência como criatura. Günter Alter,

utilizando-se de categorias desenvolvidas pelo biólogo G. Strey e do jurista J.

Leimbacher, argumenta que a natureza, na condição de co-criatura, efetivamente

tem o direito de “ser-criatura-com-as-demais-criaturas”. Esse reconhecimento é

importante porque, permanecendo a natureza confinada ao mundo das coisas tal

como a vê um antropocentrismo reducionista, a sua possibilidade de existência

estará sempre ameaçada pela exploração predatória movida pela cobiça e por

interesses utilitaristas da comunidade humana660. Nas palavras de Leimbacher:

“A natureza somente precisa de direitos porque existe o homem, porque existem sociedades humanas, porque existem ordens jurídicas. A natureza simplesmente necessita do reconhecimento de determinados direitos. Pode ela prescindir da liberdade de imprensa sobre o direito de baobás, bem como da liberdade religiosa para tartarugas... Tão logo, contudo, o homem ameace a existência da natureza, ter-se-á de pensar em direito da natureza à existência”661.

Trata-se, portanto, do reconhecimento do valor da vida em sua expressão

geral, da valorização da contextura biótica que contém o ser humano e lhe serve

de apoio e, na perspectiva propriamente cristã, significa respeito à criação. Como

bem intuiu Albert Schweitzer, “queremos viver com toda a vida que deseja

viver”662.

Foi visando à garantia de continuidade da existência da biosfera, que a

“Resolução de Berna”663 codificou as seguintes proposições como “direitos da

natureza”:

660 ALTNER, G. Comunidade Criacional e Reorientação Biocêntrica do Direito – Um novo pacto de gerações. Concilium 236 (1991), p. 60-71, aqui 68, Petrópolis: Vozes. 661 LEIMBACHER, J. Citado por ALTNER, G. Op. cit., p. 67. 662 SCHWEITZER, Albert. Citado por KLINKEN, Johan van, O Terceiro Ponto do Processo Conciliar JPPC – A ecologia entre a teologia e as ciências naturais. Concilium 236 (1991), p. 80, Petrópolis: Vozes. 663 A Resolução de Berna, aprovada em 1979, teve como objetivo garantir a conservação da vida selvagem e dos habitats naturais da Europa por meio de uma cooperação entre os Estados daquele

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1. A natureza – viva ou inanimada – tem direito à existência, isto é, à preservação e desenvolvimento.

2. A natureza tem direito à proteção dos seus ecossistemas, espécies e populações, dentro do respectivo contexto de ligações.

3. A natureza viva tem direito à preservação e desenvolvimento de sua herança genética.

4. Os seres vivos têm direito a uma vida adequada à sua espécie, inclusive à reprodução, dentro do ecossistema que lhes é próprio.

5. As intervenções na natureza necessitam de justificativa664.

O reconhecimento de tais direitos, contudo, nada tem a ver com a

especulação em torno da existência de “almas” em animais ou plantas, nem com

uma antropomorfização da natureza através da aplicação para o mundo natural de

conceitos como “justiça”, “deveres”, “obrigação”, “propriedade”, etc665. Tais

categorias só podem ser empregadas no âmbito do relacionamento humano.

Convém ainda notar, como observa G. Altner, que o reconhecimento desses

direitos da natureza não implica na relativização e na privação de direitos

inerentes à condição humana. Pelo contrário, a garantia da preservação do mundo

natural proporciona ainda mais o legítimo acesso aos meios necessários ao

desenvolvimento da vida humana, inclusive quando esta se encontra ameaçada por

enfermidades ou outros agentes naturais666.

Quando se confere o direito de existência à natureza em seu caráter de co-

criatura, não se está reduzindo a ética a uma instância biológica ou postulando o

igualitarismo biocêntrico que anula a especificidade da vida humana667. O

reducionismo biológico incorre na limitação de esquecer que o ser humano,

diferente dos outros seres vivos, é um ser de transformação e de cultura, isto é,

constrói um ambiente cultural do qual necessita e que necessariamente não está

em conflito com o seu entorno natural.

A ética ecológica, ao considerar o direito de existência da natureza, está

assumindo o paradigma ecológico que concebe a Terra como um espaço vital de

continente. Entrou em vigor em 06/06/1982. Para maiores informações, cf. o sítio eletrônico da Comunidade Européia: www.europa.eu.int/scadplus/leg 664 Proposições citadas por ALTNER, G. Op. cit., p. 67. 665 Sobre as principais objeções contra a atribuição de direitos à natureza, cf. GÓMEZ-HERAS, J.M.G., op. cit., p.54.; JUNGES, J. R. Ética Ecológica, p. 59 e De La PENA, J.L.R, op. cit., p. 264. 666 ALTNER, G. Op. cit., p. 65. 667 Esse igualitarismo biológico ou anti-antropocentrismo se encontra tematizado no movimento conhecido como Deep Ecology (Ecologia Profunda), bastante difundido nos Estados Unidos e países europeus, cujo proponente mais conhecido é o filósofo norueguês Arne Naess. Cf. NAESS, A. The Deep-Ecology Movement: Some philosophical aspects. Philosophical Inquiry (1986), p. 8-31.

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todos os seres que partilham e desfrutam de seus bens. Nesta perspectiva, a

humanidade é convidada a conjugar harmonicamente ambiente cultural e entorno

natural, através de uma concepção antropológica consoante com o paradigma

ecológico. Dito de outra forma, a ética ecológica não concebe o relacionamento

humano com o mundo natural em termos de “ser humano e natureza”, e sim,

como “o ser humano na natureza”. É uma ética ecológica precisamente porque

considera a ecosfera como oikos, não somente a casa humana, mas a casa de

todos, a morada de todos os seres vivos. Nessa casa comum onde se partilha o

dom da vida, dois valores emergem como princípios básicos da ética ecológica: o

cuidado e a solidariedade.

6.3

Do sujeito moderno ao sujeito ecológico

As tradições éticas modernas têm sido elaboradas por um sujeito humano

com um perfil histórico e social bem definido: o indivíduo ocidental, masculino,

racionalista e prisioneiro de uma subjetividade que perdeu o horizonte da

sociabilidade e da transcendência. Como já foi mencionado anteriormente, o ser

humano moderno, munido de uma poderosa razão instrumental-analítica, cuja

expressão mais forte é a tecno-ciência, criou uma civilização hoje mundializada.

Acreditando cegamente no progresso e no crescimento, lançou mão da

colonização do outro e da natureza – esta reduzida a um “recurso” – para realizar

seus projetos de poder e dominação.

O sujeito moderno, esquecendo-se do ser (o todo), perdeu o senso de

unidade das coisas, separando os saberes e fragmentando a realidade. Com essa

fragmentação dos saberes e da realidade, produziu também uma “ética

fragmentada em infindas morais, para cada profissão (deontologia), para cada

classe e para cada cultura”668. Os dualismos modernos como sujeito-objeto, razão-

emoção, privado-público, Deus-mundo, também contribuíram para a divisão da

ética em vários setores, como o público e o privado, ética dos meios e dos fins.

Reduzida aos princípios da razão ilustrada e sem o horizonte da transcendência, a

668 BOFF, L. Ética e Moral. A busca dos Fundamentos. Op. cit., p. 42.

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ética perdeu a dimensão da interioridade – a ética da virtude. Com isso, ela pode

tornar-se meramente normativa, limitando-se ao cumprimento formal e legalista

de normas e regras669.

Ora, desse sujeito moderno fragmentado e excessivamente centrado em si

mesmo, e dos modelos éticos elaborados por ele, não pode sair uma ética

condizente com o paradigma ecológico. Um modelo de ética que mantém como

referência única a espécie humana – mesmo propondo relações menos agressivas

e respeitosas com o meio ambiente – seria uma ética “pintada de verde”,

meramente ambientalista, ou, como diria G. Lipovetsky, “uma expressão do

individualismo pós-moderno”, uma “ética indolor”670.

A ética ecológica supõe a desconstrução do sujeito moderno, a superação da

desintegrada modernidade, como bem sugeriu Hans Küng, e busca “uma visão

integral (holística) do mundo e das pessoas nas suas mais diferentes

dimensões”671. Vale dizer, é necessária uma mudança de mentalidade que permita

o reconhecimento da diversidade do próprio sujeito humano, das várias dimensões

que nele existem: emotiva, estética, espiritual, etc, sem amputações racionalistas.

Uma nova mentalidade com a qual se veja como uma criatura que se reconhece

também um ser vivo entre os seres vivos, um membro da comunidade biótica, a

parte de um todo, um ser dependente de relações. Numa palavra, a nova ética

supõe um “sujeito ecológico”.

6.3.1

Visão antropológica do “sujeito ecológico”

Essa desejável desconstrução do sujeito ético, tipicamente formado pela

modernidade, e a sua reconstrução segundo uma nova mentalidade torna-se

possível na medida em que, entre outras coisas, vão sendo assumidas as

proposições básicas que nos apresenta o novo paradigma ecológico. Como vimos

no terceiro capítulo, a contribuição dos estudos da ecologia nos faz ver o mundo

669 Ibid., p. 43-44. 670 LIPOVETSKY, G. O Crepúsculo do Dever. A ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, P. 243-250, aqui 247. 671 KÜNG, H., Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo: Paulinas, 4ª Edição, 2003, p. 48.

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não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos e

de seres, interligados e interdependentes. Tudo está relacionado com tudo. O ser

humano é parte de uma história comum na qual, em longo processo de evolução

natural, emergiu uma exuberante e diversa comunidade biótica onde predomina

uma vital interdependência dos sistemas vivos e não viventes. Contudo, é bom ter

sempre presente que o ser humano não está apenas radicalmente relacionado com

as outras criaturas desse imenso sistema. Ele também ocupa um lugar diferenciado

nessa comunidade global.

A emergência do ser humano abre um ciclo absolutamente novo no processo

evolucionário do universo: eis que surge, em forma humana, uma faculdade única

entre todos os seres vivos; um modo de consciência caracterizado por um especial

senso de admiração e de celebração, bem como pela habilidade de utilizar e

refazer elementos do ambiente natural, transformando-os em instrumentos ao seu

dispor672. Com a formação do planeta Terra – a Casa Comum – e a sua exuberante

comunidade biótica e, dentro dela a consciência humana, o universo chegou à

forma mais elaborada de sua expressão através da consciência reflexa. Ou seja, é a

Terra mesma, através de uma de suas expressões – a inteligência humana –, que

assume uma direção consciente do processo evolucionário. Como bem diz Arthur

Peacocke: “nos seres humanos parte da natureza se tornou consciente de si mesma

e ativamente responde ao seu entorno”.673 Nas palavras de Thomas Berry, o ser

humano adquire uma grande responsabilidade pelo destino de toda a comunidade

viva do planeta, pois “o último risco que a Terra ousa assumir é este, o de confiar

o seu destino à decisão humana, conceder à comunidade humana o poder de

decisão sobre a vida ou a morte de seus sistemas vitais básicos”.674

Portanto, sem desconhecer a relativa autonomia de cada coisa, o ser humano

percebe o seu lugar na comunidade biótica, junto com as outras espécies e não

fora ou acima delas: ele é a expressão mais completa e singular dessa

comunidade. Como um ser pensante e reflexo, pode tomar consciência do seu

lugar especial e, ao mesmo tempo, da sua responsabilidade pelo bem-estar do

conjunto vivo do nosso planeta. Como bem diz L. C. Susin, “porque fazemos

672 Cf. SWIMME, B. and BERRY, T. The Universe History, op. citl, p. 143-160, aqui p. 143. 673 PEACOCKE, Arthur. God and the New Biology, London: J.M.Dent, 1986, p. 91. 674 BERRY, T. The Dream of the Earth, San Francisco: Sierra Club Books, 1990, p. 19.

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parte do universo, perguntar a respeito dele é perguntar, desde o início, pelo lugar

e pela responsabilidade que nos cabem”675.

Somente o indivíduo humano, porque sonha, ama e pensa, pode colocar a si

mesmo a dramática questão da contemporânea crise socioambiental: a ameaça que

pesa sobre todo o sistema Terra e a esperançosa possibilidade de uma convivência

ecologicamente sadia e respeitosa com todos os moradores da casa. É a partir

desta singularidade, do lugar (topos) do ser humano (anér, andrós) na

comunidade biótica, que se apresenta a condição de possibilidade e de sentido

para o discurso sobre o universo e sobre a vinculação da humanidade com a

totalidade dos sistemas da vida. É o princípio andrópico, ou antropotópico como

vimos acima676, formulado pela primeira vez por Brandon Carton, em 1974, e que

confere uma dimensão ética ao ser humano, podendo agir e intervir

responsavelmente na natureza. Dito de outro modo, ao fazer uso de sua

inteligência e liberdade, o ser humano pode contribuir para a preservação e

manutenção da vida como pode também ser o destruidor da natureza677. Nas

palavras de L. Boff, “ao se tornar o co-piloto do processo da evolução do qual ele

co-evolui, o ser humano pode ser o anjo bom, o guardião e o jardineiro, como

pode ser o satã e o destruidor da Terra”678.

A partir da história do universo e com o respaldo científico do pensamento

sistêmico - a teoria dos sistemas, como vimos no capítulo terceiro - podemos,

portanto, apontar para dois importantes aspectos na antropologia contemporânea:

1) o ser humano está profunda e intrinsecamente interrelacionado com todos os

outros seres, sendo como um filho da Terra e do universo; 2) a espécie humana

apresenta uma singularidade e uma responsabilidade pelo destino de todo o

planeta porque nela o universo atinge a autoconsciência.

Ao ser capaz de intervir intencionalmente na natureza, é no âmbito humano

que a comunidade biótica pode seguir o caminho do equilíbrio e da afirmação das

potencialidades vitais ou pode entrar numa rota de desequilíbrio e ruptura dos

675 SUSIN, L. C. A criação de Deus, op. cit., p. 9. 676 Sobre esse princípio, além das indicações já feitas acima, ver também BOFF, L. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, op. cit., p. 41, nota 47. 677 Aqui é oportuno lembrar uma sensata observação de A. Garcia Rúbio: “A importância concedida ao sistêmico não deve ser interpretada como desprezo ou negação da liberdade humana. Acentuamos que esta se desenvolve contando com pressupostos e condicionamentos sistêmicos que devem ser respeitados, a não ser que se queira viver uma liberdade homicida e suicida”. Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 542. 678 BOFF, L. Ética & eco-espiritualidade, Campinas: Verus Editora, 2003, p. 48.

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sistemas de vida. Isso mostra o quanto a vida em seu conjunto é vulnerável e

necessita de especial cuidado. Mais uma vez, deparamo-nos aqui com essa

realidade cuja importância precisa ser sempre ressaltada. Vale dizer, a

vulnerabilidade da vida como um todo, da natureza e da própria vida humana, é

um dado antropológico que deve ser levado em conta no relacionamento do ser

humano com o seu entorno natural.

Por sua importância, aprofundemos um pouco mais esse dado, bastante

relevante na discussão ética dos problemas socioambientais. A árvore da vida,

cujo processo evolutivo teria iniciado bilhões de anos atrás, tornou-se um

complexo sistema com grandes ramificações e extraordinária diversidade. Tendo

uma origem comum, os seres vivos não são iguais. Cada ser tem sua

especificidade e função dentro do grande sistema da vida. Atualmente são

conhecidas e identificadas cerca de 1,4 milhão de espécies vivas. Este número, no

entanto, deve ser muito mais elevado. Segundo estimativas de biólogos, devem

existir entre 10 e 13 milhões de espécies que ainda não foram catalogadas679. O

ser humano pode ser considerado o último rebento dessa árvore, a expressão mais

complexa da comunidade biótica.

Uma característica dessa grande comunidade de vida é a sua auto-

organização, pela qual as partes se encontram num todo orgânico cujas diferentes

funções são complementares, permitindo desse modo uma adaptabilidade ao meio

e a manutenção do equilíbrio; um estável, mas muito frágil e tênue equilíbrio.

Cada espécie ajuda a manter o equilíbrio dos sistemas vitais. Fora desse

equilíbrio, o ecossistema pode desaparecer. Tão logo diminui a diversidade das

espécies, a estabilidade e a segurança para cada forma de vida ficam

enfraquecidas e ameaçadas680. Portanto, apesar da grandiosidade da comunidade

biótica - da exuberância da árvore da vida -, ela é muito frágil no seu conjunto, e

em cada espécie vivente em particular. Vê-se, então, o quanto vulnerável é a vida.

É como a Terra, vista do espaço, que “cabe na palma de minha mão”, parecendo

“tão pequena e frágil que você pode cobrir com seu polegar”681.

679 Cf. WILSON, E. O. A diversidade da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 33-47 (original inglês: The diversity of life, Washington, 1992), cf. também WILSON, E. O. (ed.) Biodiversity, Washington: National Academy Press, 1988. 680 BERRY, T. The Great Work, p. 147. 681 SCHEICKHART, R., citado por BOFF, L., Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, op. cit., p. 29.

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Se o equilíbrio dos ecossistemas naturais é frágil e vulnerável, a intervenção

da espécie humana no meio ambiente deve ser bastante respeitosa e cheia de

atenção para com os dinamismos e os processos bióticos que regulamentam o

ambiente natural. Afinal, não deveríamos esquecer que somos parte desse sistema

vital; a nossa vida, ela própria frágil e vulnerável, torna-se ainda mais débil com a

quebra do equilíbrio sistêmico e com a degradação do meio ambiente. Em outras

palavras, “a vulnerabilidade da natureza aponta para a vulnerabilidade do próprio

ser humano. Se a sua matriz vital está sendo destruída, é o próprio ser humano que

se deteriora”682. Para ilustrar essa vulnerabilidade da vida humana, J.R. Junges

apresenta uma antiga fábula – “O animal mais desnudo”, de Plínio, o velho (23-79

d.C) – que aqui transcrevemos:

“No dia de seu nascimento, só o ser humano é lançado desnudo para fora sob o solo inclemente, começando imediatamente a chorar e a gemer. Nenhum outro animal é mais propenso às lágrimas, já desde o primeiro momento de sua vida. Mesmo o tão comentado sorriso do bebê só aparece depois de seis semanas. Este modo débil de vir à luz é seguido por um tempo de cativeiro de que não padecem os filhotes de outros animais, pois a criança, mesmo nascendo de um modo bem sucedido, permanece em total dependência, amarrado de mãos e pés, chorando”683.

Em oposição ao ser arrogante e auto-suficiente, segundo uma ótica

excessivamente antropocêntrica, o ser humano é vulnerável e indigente como todo

ser vivo. Essa vulnerabilidade é devida às próprias condições intrínsecas aos

sistemas que compõem a grande rede da vida, isto é, todas as realidades

relacionais e interdependentes carecem de auto-suficiência, daí porquê os

organismos vivos, os ecossistemas, a sociedade humana, são intrinsecamente

carentes, indigentes e vulneráveis, pois dependem de interrelações para a

manutenção dos seus impulsos vitais684. De modo que somos uma espécie que

necessita de uma rede de inter-relações – o ambiente natural e social – para

satisfazer as exigências vitais de que depende a nossa sobrevivência, pois

“nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos

necessidade de assistência” 685. Essa é uma das grandes lições que aprendemos

com o paradigma ecológico e que ajudam a configurar o novo sujeito ético.

682 JUNGES, J. R. Ética Ecológica: Antropocentrismo ou Biocentrismo? Perspectiva Teológica 33 (2001), p. 52; ibid., Ética Ambiental, op. cit., p. 70. 683 Ibid. 684 Id., Ética Ecológica, op. cit., p. 52. 685 J.J.Rouseau, citado por JUNGES, J.R. Ética Ambiental, op. cit., p. 71.

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A fragilidade da comunidade biótica, da vida humana em particular, mostra

a necessidade imperiosa de se manter a diversidade das espécies nos processos de

interrelações e interdependência que controlam os sistemas vitais e mantêm o seu

equilíbrio. Ora, diante do inexorável processo evolutivo, denominado por C.

Darwin como a luta pela vida, o princípio da seleção natural privilegia o mais

forte, triunfa o elemento vivo que sobressai sobre o concorrente em desvantagem.

Seria ingenuidade esquecer a selvagem luta pela sobrevivência na natureza com

processos violentos de competição entre as espécies. Tais processos, contudo, são

absolutamente necessários para que os sistemas vitais se mantenham

dinamicamente equilibrados.

Com a irrupção da espécie humana na árvore da vida, esse processo é

alterado. A singularidade da vida humana, o único rebento dotado de consciência,

introduz um dinamismo novo na comunidade biótica. Aqui, tem-se um dado

antropológico do mais alto significado: a seleção natural é completada pelo

princípio da cooperação, da troca e da simbiose que, na espécie humana, se

traduzem em gestos de co-responsabilidade, solidariedade e, sobretudo, de zelo e

cuidado pelo mais frágil e fraco. A redescoberta dessa condição antropológica,

esquecida pela arrogância do paradigma antropocêntrico e recuperada pelo

pensamento ecológico, abre novos horizontes de relacionamento harmonioso com

a natureza, uma vez que “a consciência da própria fragilidade ajuda a levar em

consideração a vulnerabilidade do ambiente natural nas decisões de intervenção e

a desenvolver atitudes de preservação e cuidado em relação a ele”686.

Não somente para com natureza, cuja vulnerabilidade se torna mais evidente

com os danos causados pelo desequilíbrio ambiental, o ser humano muda de

postura ao se descobrir ele mesmo um ser também vulnerável. Com efeito, se

torna mais aberto e solidário também com os de sua espécie, com especial atenção

para aqueles que “aos olhos da maioridade moderna” eram vistos como fracos,

incapazes e sem autonomia687. Os pobres, os marginalizados e os oprimidos de

nossa sociedade são “uma expressão visível da vulnerabilidade humana”, as

chagas de uma poluição social que fere e desfigura a face humana e que tem em

suas origens os mesmos mecanismos que exploram, degradam e poluem a face da

Terra. A vida destes seres merece atenção e especial cuidado. Seria uma grande

686 Ibid. Ética Ecológica, op. cit., p. 55. 687 Ibid. p. 54.

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contradição defender a integridade do ambiente natural, esquecendo-se de

denunciar também as injustiças contra os pobres, uma vez que “quem não está

aberto a ouvir o grito dos pobres, não terá condições de auscultar o grito da

natureza, porque falta sensibilidade pelo gemido do pulsar da vida”688. A

vulnerabilidade da vida em geral, particularmente dos seres humanos

empobrecidos, indica a necessidade de uma ética que, ao se debruçar sobre as

questões socioambientais, inclua no horizonte da responsabilidade humana já

preconizado por H. Jonas, os princípios do cuidado e da solidariedade.

6.4

Uma ética do cuidado e da solidariedade

Essa nova ética, superando o modelo meramente normativo, requer a

formação de um sujeito moral interiormente configurado com uma sensibilidade

ecológica e engajado na construção de um clima cultural ecológico que dê apoio e

fomente essa sensibilidade, possibilitando, assim, o surgimento de sociedades

ecologicamente conscientizadas. Dito de outro modo, a ética ecológica supõe uma

verdadeira conversão do ser humano, uma mudança de comportamento e, por esse

motivo, deve ser fundamentalmente uma ética de caráter ou de virtude689.

Assim, como já foi sublinhado anteriormente, um princípio ecológico que

emerge no interior da nova ética e que deve ser cultivado dentro dela é o cuidado.

Não poderia ser diferente para uma ética cujo conteúdo central é a preservação e

manutenção da vida, a qual, não sendo uma realidade auto-suficiente, necessita de

inter-relações para a sua manutenção e reprodução. Como nenhum ser vivo basta a

si mesmo, a vida e a contextura vital que a contém são uma realidade vulnerável e

frágil que pede atenção e cuidado do ser humano na sua relação com o entorno

688 Ibid. p. 64. 689 Sobre a revalorização da categoria “virtude” na ética ecológica, ver o excelente artigo de Deborah D. Blake: Toward a Sustainable Ethic: Virtue and the Environment. In: And God Saw that it was Good, op. cit., p. 197-210. Cf. também COMTE-SPONVILLE, A., Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, São Paulo: Martins Fontes, 1995; JUNGES, J. R. Ética Ecológica, p. 57-60; Ibid., Ética Ambiental, op. cit., p. 86.90.105.

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natural690. Portanto, se por um lado, para que haja preservação e proteção do meio

ambiente não deixa de ser necessário a existência de normas e regulamentos, por

outro lado, está se tornando cada vez mais evidente que a crise ambiental não se

restringe à soluções jurídicas porque “o cuidado não é normatizável em regras de

conduta. Ele se expressa em valores e atitudes para os quais é necessário educar-

se.”691.

A falta de cuidado para com a natureza, uma prática comum em nossa

civilização técnico-industrial, tem provocado estragos enormes em toda biosfera,

pondo em risco a própria sobrevivência humana no planeta. Mais do que nunca,

há a necessidade de um aprendizado de como saber cuidar da nossa casa comum,

revertendo velhos hábitos e desenvolvendo uma ética do cuidado:

“O cuidado assume uma dupla função: de prevenção a danos futuros e de regeneração de danos passados. O cuidado possui esse condão: reforçar a vida, zelar pelas condições físico-químicas, ecológicas, sociais e espirituais que permitem a reprodução da vida e de sua ulterior evolução”692.

Tendo em vista essa dupla função do “modo-de-ser-cuidado”, no ano de

1991, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNU-MA), o Fundo

Mundial para a Natureza (WWF) e a União Internacional para a Conservação da

Natureza (UICN) elaboraram um documento – “Cuidando do Planeta Terra. Uma

estratégia para o futuro da vida” – onde apresentam uma estratégia global para a

preservação da vida, fundada na ética do cuidado:

1. Construir uma sociedade sustentável693. 2. Respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos. 3. Melhorar a qualidade da vida humana. 4. Conservar a vitalidade e a diversidade do planeta Terra. 5. Permanecer no limite da capacidade de suporte do planeta Terra. 6. Modificar atitudes e práticas pessoais. 7. Permitir que as comunidades cuidem de seu próprio ambiente. 8. Gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvimento e

conservação. 9. Constituir uma aliança global694.

690 JUNGES, J. R. Ética Ecológica, p. 60. Para um aprofundamento do “cuidado” como categoria central da ética ecológica, ver BOFF, L. Saber Cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003. 691 JUNGES, J. R. Ética Ambiental, op. cit., p. 90. 692 BOFF, L. Ética e Moral, op. cit., p. 48. 693 O termo aqui é entendido como o esforço ecológico-político para encontrar o equilíbrio entre a satisfação das necessidades, a partir da utilização das virtualidades da Terra, e a preservação do patrimônio natural para a nossa e as gerações futuras. Cf. BOFF, L. Saber Cuidar, op. cit., p. 198. 694 Ibid., p. 134.

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Vê-se, portanto, que a ética do cuidado pode ser aplicada tanto a níveis

individual e nacional como a nível internacional. A crise socioambiental atinge a

todos, nenhuma nação sozinha é auto-suficiente; todos cuidamos ou todos

pereceremos. Hoje, com o processo de globalização, urge acolher e conviver com

o diferente numa aliança em vista de um planeta sustentável. Através do princípio

do cuidado, a humanidade pode construir “um consenso ético mínimo que salvará

o planeta da insensatez da depredação e do consumismo e será capaz de criar uma

atitude benevolente e responsável para com todo tipo de vida”695.

A Carta da Terra, assumida pela UNESCO no ano de 2000, declara que os

nossos desafios estão interligados e juntos podemos forjar uma aliança global para

cuidar da Terra:

“Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro... ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida”696.

A ética do cuidado, como um dos eixos articuladores para a assegurar a

vitalidade, a beleza e a integridade do nosso planeta, aparece explicitamente

quatro vezes na Carta da Terra: “cuidar da Terra e uns dos outros”; “cuidar da

comunidade de vida”; “cuidar da comunidade de vida com compreensão,

compaixão e amor” e “cuidar dos próprios ambientes”697. Estamos diante de um

desafio que implica uma responsabilidade planetária: ou habitamos com cuidado a

nossa casa comum ou o futuro das próximas gerações estará seriamente

ameaçado. Uma decisão, portanto, que implica uma atitude de solidariedade

ecológica, isto é, “cuidar uns dos outros”, como lemos na Carta da Terra.

Em conformidade com o paradigma ecológico, um outro princípio de

referência para a nova ética é a solidariedade, vista numa perspectiva global, não

limitada a uma dimensão meramente utilitária, mas compreendida como um valor

desinteressado e amplo, abarcante e extensivo a toda comunidade biótica. A

solidariedade ecológica supõe a biosfera como o espaço vital de todos os seres, a

nossa casa familiar onde todos somos interdependentes. Com efeito,

compartilhamos com todas as criaturas o mesmo cosmos, a mesma natureza, e

temos uma origem e um destino comuns. Por conseguinte, “ser é ser em relação, e

695 BOFF, L. Água e Ética do Cuidado. Vida Pastoral, fasc. 235, março/abril de 2004, p. 24. 696 Citado por BOFF, L. Ética e Eco-espiritualidade. Campinas: Verus Editora, 2003, p. 26. 697 Ibid. p. 27.

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existir é co-existir. Isso é verdadeiro não só para os seres humanos, mas para

todos os que participam do mistério da existência”698.

A interdependência entre todos os seres, como nos ensina a ecologia, deve-

se ao modo como eles se relacionam na grande comunidade de vida, formando

uma rede de relações de cooperação e solidariedade que, por sua vez, garante a

manutenção e a sustentabilidade da comunidade biótica. Convém notar que

mesmo a concorrência das espécies, necessária ao processo de seleção natural, se

encontra dentro desse princípio geral da cooperação de todos, o que resulta na

manutenção dos sistemas vitais. Há competição, sim, quando uma espécie

caçadora abate e se alimenta de sua presa. Contudo, esse processo de inevitável

violência e morte permite a articulação entre os seres vivos e o meio ambiente,

contribuindo para a manutenção do todo orgânico e do equilíbrio dos

ecossistemas.

O ser humano, por sua unicidade no interior da criação, altera a lei da

seleção natural e eleva o princípio da solidariedade ecológica ao nível ético do

amor, que rejeita a imposição da lei do mais forte e se traduz no acolhimento e

cuidado para com todos, de modo que ninguém se sinta excluído ou mesmo

eliminado do convívio humano699.

Importa destacar a dimensão diacrônica da solidariedade, isto é, ela é

extensiva às gerações que habitarão o nosso planeta e que têm direito a uma

qualidade digna de vida. Tal preocupação é um dos pontos centrais do chamado

“princípio responsabilidade” que norteia a reflexão ética de H. Jonas, como vimos

anteriormente. Foi pensando nessa forma de solidariedade que a “Resolução de

Berna” apresentou, entre outras, as seguintes proposições como direitos das

futuras gerações:

1. As gerações futuras têm direito à vida. 2. As gerações futuras têm direito a um patrimônio hereditário não

manipulado, isto é, não alterado artificialmente pelo homem. 3. As gerações futuras têm direito a um mundo variado de plantas e

animais e, com isso, à vida em meio a uma natureza rica, e ainda, à preservação de recursos genéticos múltiplos.

698 SURETTE, John. Citado no documento “Vivimos en un mundo roto – Reflexiones sobre Ecología”. Promotio Iustitiae, n. 70 (1999), p. 12. Uma publicação do Secretariado do Apostolado Social da Companhia de Jesus, Roma, Itália. Edição em Espanhol. 699 BOFF, L. Ética e Moral, op. cit., p. 53-54.

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4. As gerações futuras têm direito a um ar saudável, a uma camada de ozônio intacta e a suficiente troca térmica entre a Terra e o espaço exterior 700.

É dessa solidariedade ecológica que certamente estava imbuído o médico e

missionário Albert Schweitzer quando elaborou a sua ética de reverência à vida,

segundo a qual “bom é tudo o que conserva e promove todos os seres,

especialmente os vivos e, entre os vivos, os mais fracos; mau é tudo o que

prejudica, diminui e faz desaparecer os seres”701.

Quando assumido numa perspectiva ecológica, o caráter ético do ser

humano denuncia o rompimento da solidariedade com os outros seres humanos,

irmãs e irmãos na aventura da vida, a quem são negados as possibilidades de

acesso aos bens da terra e aos benefícios da cultura, e estão relegados à margem

da história. Através da solidariedade com esses seres humanos, sinais visíveis da

vulnerabilidade da própria vida, é que se desenvolve o modo de ser

verdadeiramente ecológico do cuidado. Importa, pois, “solidarizar-se com todos

os seres, companheiros de aventura planetária e cósmica, especialmente com os

mais prejudicados, para que todos possam ser incluídos no cuidado”702. No

contexto de grave injustiça social, onde “o pobre é o ser mais ameaçado da

criação”703, o compromisso ético – responsabilidade para com o mundo -

necessariamente leva a uma ecologia humana e social.

6.5

Uma abordagem humana e social

O cuidado e a solidariedade entre os seres vivos começam entre aqueles que

conscientemente se reconhecem moradores da casa comum. Criatura entre as

criaturas, a singularidade do ser humano é que nele a criação se tornou consciente.

700 Cf. ALTNER, G. Op. cit., p. 67. 701 SCHWEITZER, A. Citado por BOFF, L. Água e Ética do Cuidado, op. cit., p. 25. 702 BOFF, L. Ética e Moral, op. cit.,p. 54. 703 BOFF, L. Ecologia: grito da Terra, op. cit., 146-159 aqui 156: “... O ser mais ameaçado da criação não são as baleias, mas os pobres, condenados a morrer prematuramente. Estatísticas da ONU dão conta de que, no mundo, 15 milhões de crianças morrem antes de concluir o quinto dia de vida em razão da fome ou das doenças da fome; 150 milhões são subnutridas e 800 milhões de pessoas vivem permanentemente com fome”. Na nota correspondente, o autor cita a fonte dos dados: UNDP, Human Development Report, Oxford/New York: Oxford University Press, 1990.

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Co-participante do processo criativo, a unicidade de sua condição é ter a

consciência do amor o qual deve extender a toda criatura. Dessa consciência urge

a sua responsabilidade com o próximo e com toda a natureza. Pouco antes da

Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, a Eco-92, João Paulo II assim se expressava, mostrando a

íntima conexão entre a problemática ambiental e a saúde ecológica nas relações

humanas:

“Este importante Encontro objetiva examinar em profundidade a relação entre a proteção do ambiente e o desenvolvimento dos povos. São problemas que, em suas raízes, apresentam uma profunda dimensão ética a qual envolve a pessoa humana... nos seus direitos concernentes à liberdade, que deriva da sua dignidade de ter sido feita à imagem de Deus, e com os deveres que cada pessoa tem para com as gerações futuras”704.

Uma ética ecológica de inspiração cristã reconhece o valor intrínseco de

todas as criaturas como também a singularidade da vida humana, daí decorre o seu

compromisso tanto com a causa ecológica quanto com o relacionamento fraterno e

justo entre as pessoas. Com efeito, seguindo o princípio da dignidade do ser

humano, criado como imago Dei, podemos falar de uma “ecologia humana” no

sentido de que, além da destruição irracional da natureza, o modelo dominante de

cultura e civilização também provoca uma degradação no relacionamento entre as

pessoas. Faz-se necessário, pois, “salvaguardar as condições morais” de um

autêntico ambiente humano de modo que, diante dos graves problemas da

moderna urbanização, haja formas de convivência mais saudáveis, respeito pela

qualidade de vida das pessoas e atenção a uma ‘ecologia social’ do trabalho705.

O respeito à integridade da criação caminha de mãos dadas com a

valorização da dignidade da pessoa humana, combinando o compromisso

ecológico com a solidariedade com os pobres da Terra. Vale ressaltar que, na

busca de solução dos problemas do meio ambiente, junto com a indispensável

contribuição da ciência e da técnica, não se pode perder de vista que “a ética tem

prioridade sobre a técnica” e que uma ecologia humana considera também “as

704 JOÃO PAULO II. Mensagem na Praça de São Pedro, 31 de maio de 1992. In PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. ci t., p. 45. 705 JOÃO PAULO II. Centesimus Annus,n. 38, São Paulo: E. Loyola, 1991.

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exigências de justiça, de amor social, amor que une os homens dentro da

sociedade”706.

Como todas as coisas estão em íntima relação na grande teia da vida,

também as questões como poluição ambiental, opressão econômica, discriminação

racial, violação dos direitos da mulher, etc, estão intimamente relacionadas707. A

sobrevivência dos seres vivos e a felicidade dos seres humanos estão

solidariamente integradas no projeto divino da criação. Perspectiva semelhante,

como vimos, se dá na visão sistêmica e integradora do paradigma ecológico. Tal

perspectiva pode, inclusive, favorecer a aproximação de grupos cristãos distintos,

através de iniciativas ecumênicas visando a proteção do ambiente e o bem comum

entre os povos, a exemplo do projeto Justiça e Paz e Integridade da Criação,

desenvolvido pelo Conselho Mundial das Igrejas Cristãs, que, entre outros pontos,

tem realçado “a integração entre ecologia e economia, e a interdependência entre a

proteção da criação e a exigência por justiça” 708.

Aqui, ao nosso ver, tocamos num ponto de grande relevância à temática que

estamos abordando. Há uma relação íntima entre a questão ecológica e o drama da

injustiça social que aflige a maior parte da população do planeta, particularmente

aos povos da América Latina e do Brasil. Para esses, as causas que levam à

marginalização social, econômica e política, também os marginalizam

ambientalmente. Basta ver, por exemplo, a degradação de sítios nativos dos quais

depende a sobrevivência de populações tradicionais; ou as habitações insalubres

que cobrem as favelas urbanas. A reflexão ético-ambiental não pode ficar alheia a

essas questões, pois, de outro modo, a sua palavra não fará sentido à realidade

desses numerosos países. A preservação ecológica não acontecerá se

permanecerem as numerosas formas estruturais de pobreza que existem em todo o

mundo. Sem justiça social não haverá reconciliação entre ser humano e natureza.

Há, sim, um vínculo estreito – uma interdependência, para usar um termo mais

ecológico – entre a proteção da natureza e justiça social, entre ecologia e

economia. Numa palavra, a questão ecológica é uma questão socioambiental.

706 LORSHEIDER, Aloísio. Intervenção na Conferência Internacional sobre Impacto de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi-Áridas. In Sedoc, 24 (1992) n. 232, p. 757. 707 EDWARDS, D. Jesus, the Wisdom of God, op. cit., p. 157. 708 Cf. GRANBERG-MICHAELSON, W. Creation in Ecumenical Theology. In: HALLMAN, D. G (ed.) Ecotheology. Voices from South and North. New York: Orbis Books, 1994, p. 96-106 aqui 102; JUNGES, J. R., Ecologia e Criação, op. cit., p. 70-73.

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Ao analisarmos as causas mais profundas da crise socioambiental, como

vimos no primeiro capítulo, deparamo-nos com um sistema econômico

predominante em nossa sociedade que agride e explora tanto o ser humano quanto

a natureza. É um sistema, pois, duplamente antiecológico. Ele é movido por uma

avidez sem limites e pela ganância por um crescimento econômico desenfreado, o

que compromete drasticamente a qualidade de vida humana e do ambiente natural,

mostrando ainda uma impiedosa falta de solidariedade com a natureza cada vez

mais deteriorada e com a grande parcela da humanidade condenada a viver na

miséria.

Ao se sustentar na agressão ao outro, isto é, contra a natureza e o ser

humano, o modelo econômico imperante é intrinsecamente antiético. Com efeito,

ele privilegia a busca do “ter sempre mais” em detrimento do “ser sempre mais”,

promovendo a obtenção do lucro a todo custo e uma desenfreada corrida pela

competição e consumismo. É um modelo também excludente, pois deixa à

margem desse processo uma massa considerável de populações a quem é negado

um autêntico e justo desenvolvimento. Como bem diagnosticou João Paulo II:

“Percebemos que os maiores problemas econômicos do nosso tempo não dependem da falta de recursos, mas no fato de que as atuais estruturas econômicas, sociais e culturais estão mal equipadas para atender as necessidades de um genuíno desenvolvimento”709.

Ora, autênticos modelos de desenvolvimento não serão conseguidos

seguindo somente uma pauta determinada pelo crescimento econômico. Pelo

contrário, eles exigem parâmetros éticos e políticos que garantam uma ordem

social justa, o respeito à vida e a proteção da natureza. Isso assume ainda maior

significado quando se propõem balizas e programas em vista de modelos

sustentáveis de desenvolvimento. A ética socioambiental analisa criteriosamente

os pressupostos desses modelos. Vimos no primeiro capítulo a necessidade

imperiosa de rever a noção de desenvolvimento sustentável e a impossibilidade de

se obtê-lo seguindo parâmetros hegemônicos ditados pela lei do mercado. Os

princípios éticos na perspectiva socioambiental requerem que os modelos de

desenvolvimento sustentável sejam fundados em políticas que tenham como

objetivos a construção de uma nova racionalidade produtiva que, por sua vez, seja

709 JOÃO PAULO II. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2000. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 144. A tradução é nossa.

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capaz de gerar um sistema econômico que seja base para uma verdadeira

sustentabilidade. Assim, a ética socioambiental propõe um novo modo de

produção que respeite os potenciais da natureza e da cultura, através de uma

política que valorize a diversidade, a diferença e a alternativa710. Dito de outro

modo, um autêntico desenvolvimento, seguindo os parâmetros de uma ética de co-

responsabilidade pelo futuro do nosso planeta, visa “a construção de uma

sociedade democrática, social e ecologicamente justa e solidária”711.

Os princípios éticos da responsabilidade, estendido ao mundo natural como

propôs H. Jonas, do respeito à alteridade, e do cuidado solidário com a vida em

geral, se aglutinam na formação de um novo parâmetro para se pensar modelos de

desenvolvimento. Esse novo parâmetro – uma racionalidade ambiental, segundo

H. Leff – além de corrigir os limites da racionalidade puramente instrumental e

econômica, poderá ajudar na abertura de canais que conduzam a um autêntico

processo produtivo sustentável, aberto à diversidade das identidades culturais, da

complexidade existencial de cada povo, incluindo as formas diversas de sua

relação com a natureza, favorecendo, portanto, à desejável e necessária

diversificação dos modelos de desenvolvimento. A verdadeira sustentabilidade

requer a convergência desses fatores que a reflexão ética propõe e que devem

caminhar articulados com os saberes e meios gerados pela ciência e pela técnica.

“A globalização econômica está gerando uma retotalização do mundo sob o valor unidimensional do mercado, superexplorando a natureza, homogeneizando culturas, subjugando saberes e degradando a qualidade de vida das maiorias. A racionalidade ambiental gera uma reorganização da produção da natureza, no poder da ciência e da tecnologia modernas e nos processos de significação que definem identidades culturais. A sinergia na articulação destes processos faz com que na racionalidade ambiental o todo seja mais do que os processos que a constituem, gerando um processo produtivo sustentável, aberto à diversidade cultural e à diversificação das formas de desenvolvimento712”.

Ademais, na concepção de desenvolvimento sustentável, pensado segundo

uma racionalidade meramente instrumental, não se reconhece o valor intrínseco da

natureza. Esta, que na ótica cristã é vista como criação, fica, assim, reduzida ao

aspecto material e considerada apenas como instrumento utilitarista da pessoa

humana. Daí o significado expressivo do termo sustentabilidade como categoria

fundamental para o cuidado e a manutenção dos processos que garantem o 710 LEFF, E. Saber Ambiental, op. cit., p. 466. 711 CNBB, “Igreja e questão ecológica”, doc. cit., p. 227. 712 LEFF, E., Saber Ambiental, op. cit., p. 40-41.

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equilíbrio dos ecossistemas e a inclusão de todos na comunidade da vida.

Sustentabilidade que busca parâmetros de desenvolvimento segundo valores

éticos que assegurem o direito dos pobres e o respeito à criação. Somente nessa

perspectiva verdadeiramente ecológica pode-se falar de formas de

desenvolvimento sustentável, no sentido de construção de uma vida sustentável,

de uma sociedade sustentável, enfim, de um Planeta sustentável. É este o sentido

de desenvolvimento que se encontra na Carta da Terra cujo apelo final é

transbordante de esperança: “Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de

uma nova reverência face à vida, por um compromisso firme de alcançar a

sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça e pela paz e pela alegre celebração

da vida”713.

Vê-se, portanto, que no centro da ética socioambiental está a temática da

sustentabilidade. Além dos aspectos já mencionados, é necessário também

sublinhar que há outros valores e virtudes que a ética cristã nos aponta como

indispensáveis na busca da tão desejada sustentabilidade. O respeito à vida, por

exemplo, implica uma certa exigência da frugalidade ou simplicidade no estilo de

vida, em oposição ao exagerado consumo que, juntamente com o desperdício que

o acompanha, está na base de uma injusta distribuição social dos recursos e da

degradação da natureza. A frugalidade no estilo de vida é hoje uma condição de

sobrevivência biológica do ser humano e, por extensão, de toda a vida natural. É,

pois, uma exigência ética. Uma exigência que, nas sociedades abastadas, é vista

como “uma virtude subversiva”, como nota J. Nasch, já que se opõe ao modelo

econômico que necessita de um compulsivo consumo para se manter714. No

entanto, é uma condição para a justiça distributiva e para a própria

sustentabilidade. Com efeito,

“cresce a consciência de que o atual padrão de consumo dos setores sociais privilegiados não pode ser estendido a todos, nem se sustenta social e ecologicamente. Precisamos abdicar do sonho consumista, ilusoriamente inculcado pela propaganda, e implementar uma globalização solidária, a partir de um estilo de vida inspirado no Evangelho”715.

713 Cf. BOFF, L. Ética e Eco-espiritualidade, op. cit., p. 23. 714 NASCH, J. A., “Toward the Ecological Reformation of Christianity”, in Interpretation 50 (1996), p. 12. 715 CONFERÊRENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome. Documentos da CNBB, 69. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 23.

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Tudo isso vem confirmar a importância da dimensão humana e social na

ética ecológica, segundo uma perspectiva integradora. Enfim, a dimensão social

no âmbito da reflexão que se preocupa com as questões ecológicas ajuda a

contribuir para o necessário equilíbrio entre as tendências da ética ambiental,

conjugando o princípio antropotópico com os parâmetros do paradigma ecológico,

evitando, assim, a radicalização entre antropocentrismo ou biocentrismo. Como

bem observa L. Boff, esses dois extremos separam o que sempre deve estar junto:

“a natureza e os seres humanos são interdependentes. Um está no outro. Juntos

fazem parte de um todo maior”716. Uma ética socioambiental, portanto, se insere

na dinâmica da inclusão-integração. O ser humano, aberto a um relacionamento

fraterno e justo com o seu semelhante, também mantém para com a natureza uma

atitude de respeito e de responsabilidade. Ao se reconhecer uma criatura entre as

criaturas, também se percebe um ser ético que se distingue das demais pela sua

capacidade de intervir responsavelmente no mundo, agindo e criando condições

para o desenvolvimento e o cuidado da vida.

O “cuidado”, portanto, é uma categoria fundamental na ética

socioambiental. Ou cuidamos da “casa” ou pereceremos. Contudo, saber cuidar é

mais do que um imperativo ético, é um modo de ser de quem ama. Cuidamos

daquilo que amamos. Mas para amar é preciso, primeiro, conhecer. Daí a

importância da educação ambiental para fazer desencadear um processo de

amorização que leve ao cuidado e à responsabilidade ecológica:

“Uma educação para a responsabilidade ecológica é urgente. Responsabilidade por si mesmo, pelo outro e pela Terra... A verdadeira educação para a responsabilidade inclui uma genuína conversão na maneira de pensar e no comportamento. Igrejas e instituições religiosas, organizações não governamentais e governamentais, todos os membros da sociedade têm um importante papel a desempenhar nessa educação”717.

Aprender a cuidar do ambiente natural, das pessoas, da biosfera como um

todo, é hoje uma necessidade vital na salvaguarda do nosso planeta. Fala-se hoje

de uma nova forma de educação, a educação ambiental ou “alfabetização

ecológica”. Esta, reunindo os ensinamentos da ecologia e os princípios éticos no

conjunto dos saberes e das políticas públicas, visa a criar comunidades que sejam

716 BOFF, L. Social Ecology: poverty and misery, op. cit., p. 243. 717 JOÃO PAULO II. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1990, n. 13. In: PONTIFICAL COUNCIL FOR JUSTICE AND PEACE, op. cit., p. 121. A tradução é nossa.

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autenticamente humanas, isto é, sustentáveis. Portanto, a alfabetização ecológica

propõe uma mudança profunda que mexe com todo o horizonte cultural que

orienta a nossa forma de relacionamento com o próximo e com o mundo da

natureza. Supõe, portanto, uma metanoia ecológica, uma mudança de valores e de

hábitos, de modo que, nesse processo de conversão moral, predominem atitudes

de solidariedade e de cuidado com a vida. Isso põe em evidência a necessária

formação de um novo ethos cultural. A crise ecológica é fundamentalmente uma

questão de princípios morais que exigem uma vigorosa e consistente ética

socioambiental.

Conclusão

O capítulo tentou mostrar que, diante nos grandes desafios impostos pela

crise socioambiental, há um consenso de que essa problemática necessariamente

deve ser objeto de reflexão da ética, uma vez que, no centro da questão, encontra-

se um impasse moral que surge da dissociação entre a racionalidade técnica-

instrumental (“o que podemos fazer”) da racionalidade ética (“o que devemos

fazer”). Enquanto que alguns defendem a manutenção dos parâmetros que regem

as éticas tradicionais antropocêntricas – estas apenas deveriam normatizar o

comportamento humano em relação à preservação ambiental -, muitos vão além,

defendendo a bandeira de que os desafios atuais pedem a instauração de uma

“nova ética”. As bases que fundamentam essa ética ecológica e as balizas que

norteiam o seu horizonte de reflexão nem sempre são claras e comumente aceitas.

O leque se abre numa longa curvatura de parâmetros e perspectivas.

A perspectiva bíblico-cristã que nos orienta aponta para uma necessária

dinâmica de integração-inclusão. Vimos que a reflexão ética se debruça sobre uma

questão ecológica. Enquanto agente ético, o ser humano é o sujeito moral, que vê

os problemas, reflete e procura agir responsável e criativamente. Na visão cristã, é

o ser que age dialogicamente, podendo responder de forma positiva às

interpelações do criador. Nesse sentido, a ética é constitutivamente

antropocêntrica. Não podemos fugir desse princípio antrópico, se quisermos

permanecer no âmbito da ética. Por outro lado, tratando-se da questão ecológica,

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esta nos mostra que no centro da reflexão está a vida em toda a sua complexidade

de relações, tal como nos ensina o paradigma ecológico. O mundo da natureza é

merecedor de consideração moral. A ética ambiental atribui à natureza, enquanto

portadora de valor intrínseco, uma significação ética que funda um direito à

existência.

Ainda nessa perspectiva integradora, vimos que a crise ecológica tem uma

dimensão inegavelmente social. O modelo econômico, sustentado por uma

racionalidade instrumental da tecnociência dissociada da dimensão axiológica, é

duplamente antiecológico por agredir tanto ao ser humano quanto à natureza. O

grito da terra ecoa o gemido do pobre. A crise ecológica revela-se, em seus

fundamentos, uma crise socioambiental que exige uma coerente ética cujos

princípios básicos são o respeito à alteridade, o cuidado e a solidariedade com a

vida em suas múltiplas manifestações. Nesse sentido, a ética socioambiental ajuda

na busca de autênticos modelos de desenvolvimento que possam garantir a

existência de comunidades – o ser humano na natureza – verdadeiramente

sustentáveis. Isso supõe a necessidade de uma educação ambiental, ou metanoia

ecológica, que suscite valores e virtudes. Numa palavra, um novo ethos cultural.

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Conclusão da Parte II

Ao revisitar o conceito de criação/salvação, na perspectiva ecológica,

encontramos uma motivação teologal para o cuidado e preservação do ambiente.

Vimos que a natureza, ao existir por Deus, tem uma dignidade própria, que nos

permite afirmar o seu valor intrínseco: porque é criação de Deus o mundo deve ser

valorizado, respeitado e preservado. Toda a criação é perpassada pelo Logos

divino, portanto, tem um sentido, uma lógica interna, um valor criatural imanente

e um dinamismo de criatividade.

Há uma unidade básica que permeia a criação cuja origem está na comunhão

trinitária. Ao proceder da Trindade, toda a criação é intrínseca e vitalmente

relacional. Encontra-se aqui a fundamentação para a pluralidade do mundo e a

alteridade de cada ser, o que nos mostra a necessidade do respeito ao outro e da

valorização do diferente. Na diversidade do mundo criado, o ser humano aparece

como imago Dei, ser dialógico, capaz de agir responsavelmente. Nessa condição,

é chamado a cuidar e salvaguardar a natureza, a qual está vitalmente ligado.

A perspectiva bíblico-cristã da criação nos aponta, portanto, para uma

dinâmica de integração-inclusão. Isto se reflete nos princípios que norteiam a

ética, voltada para as questões ambientais. A ética tem como sujeito moral o ser

humano (dimensão antropocêntrica), mas, enquanto ambiental, no centro da sua

reflexão está a vida em seu sentido mais amplo (dimensão biocêntrica). Os dois

aspectos se complementam.

Nesse horizonte integrador, o cuidado com o mundo natural está

intimamente associado ao cuidado com o ser humano (principalmente os mais

pobres), ambos vítimas do mesmo sistema espoliativo e degradante. A crise

ecológica tem uma dimensão inseparavelmente social. Essa dimensão torna-se

mais explícita quando se aborda o tema do desenvolvimento sustentável, onde os

princípios éticos do cuidado, da solidariedade e do respeito à alteridade ajudam na

busca de modelos autênticos de desenvolvimento. Para tanto, é necessário cultivar

e promover um “saber ambiental”: relacional, integrador e baseado na cooperação

interdisciplinar. É nesse sentido que se encaminha a terceira e última parte deste

nosso trabalho.

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