amores silenciados

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    82 n agosto DE 2010 n PESQUISA FAPESP174

    Seduzidos por Capitu, leitores e crticos que hum sculo debatem sobre Dom Casmurronemsempre se detm em outro vrtice do tringu-lo: a relao entre Bentinho e Escobar. Por essengulo, o socilogo Richard Miskolci observaa obra de Machado de Assis, assim como a deoutros escritores do final do sculo XIX, em sua

    pesquisa O desejo da nao, que tem apoio da FAPESP.Ao usar como fontes no s os discursos literrios, comotambm polticos e cientficos, ele pretende combinarreconstituio histrica e anlise sociolgica para com-preender como interesses poltico-sociais levaram aocontrole da sexualidade, notadamente da homossexua-lidade entre homens brancos da elite.

    Estudos sobre a construo da nao brasileira nes-se perodo quase sempre se concentram nas discussespolticas ou nas relaes tnico-raciais. No Brasil, a ex-perincia da colonizao e do escravismo gerou particu-laridades no que se refere sexualidade, ao desejo e aoerotismo, avalia Miskolci, professor do Departamentode Sociologia da Universidade Federal de So Carlos(UFSCar), onde coordena o grupo de pesquisa Corpo,Identidades e Subjetivaes (www.ufscar.br/cis).

    Ao contrrio das representaes dominantes hoje sobreo Brasil, de permissividade ou liberdade sexual, o pesquisa-dor argumenta que nos caracterizam convenes culturaisprprias ainda pouco analisadas. Identific-las um desa-fio, explica. Quero compreender como estamos inseridosem formas especficas de controle e agenciamento do dese-

    jo e at mesmo qual nossa gramtica ertica prpria.O trio de personagens de Dom Casmurro, obra de 1900,

    ilustra o que Miskolci denomina de heteronormatividade brasileira. Bento s consegue assumir seu papel de ma-rido e pai de famlia escorado em sua amizade-amor porEscobar. No se trata da excluso do homoerotismo. Antes, sua conteno e disciplinamento dentro de um tringulo n o

    n o n o n o n o n o n o n

    [Sociologia]

    AMORESsilenciados

    rEproDuEs

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    aricaturistas

    brasileiros,ED.sExtantE

    artEs

    humanidades

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    Como a poltca da elte do sculo xixmodelou a nossa seualdade | Joselia Aguiar

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    amoroso que direciona os homens pararelaes heterossexuais reprodutivas,explica. As relaes heterossexuais bra-sileiras, vistas a partir de Dom Casmurro,se fundam, assim, tanto em um vnculodisciplinado, mas profundo, entre doishomens, quanto na relao com a mu-lher, avalia o pesquisador.

    Sutilezas - Com a leitura de outrosromances da poca, possvel entre-ver, segundo Miskolci, outras sutilezasno controle do desejo. No dia a dia dointernato revelado em O Ateneuo fan-tasma a assombrar os homens de eliteparece ser muito mais do que o desejopelo mesmo sexo a possibilidade deser tratado, ou maltratado, como umamulher. O romance de Raul Pompeia,datado de 1888, mostra, assim, comoocorre o disciplinamento da masculi-

    nidade: h prticas pedaggicas vio-lentas, combatendo e desqualificandoqualquer trao de personalidade quepudesse ser associado ao feminino. Ouseja, mais que a homossexualidade, oque se pretende conter, pelas lentes deO Ateneu, a existncia de efemina-dos. A relao entre masculinidade,honra e violncia, concreta ou sim-blica, parece ser uma herana desseperodo que estudo, pois rege tanto asmasculinidades heterossexuais quantoas homossexuais na sociedade brasileira

    contempornea, afirma o professor.Na sociedade brasileira do final do s-

    culo XIX tambm so temidas as relaes

    homossexuais interraciais, como Miskol-ci observa em Bom crioulo, romance deAdolfo Caminha que provocou escndaloao ser publicado, em 1895. Em Amaro,um escravo foragido que protagoniza atrama, tem-se a imagem ento correntedo homem negro como um predador se-xual, perigoso e sem controle. H mui-

    tos temores e esteretipos sexuais quese mantm ou se reatualizam em nossosdias, explica o socilogo.

    No se trata de traar uma histriados homossexuais ou da homossexua-lidade na sociedade brasileira. O pes-quisador diz que seu objetivo contara histria da formao do nosso idealde nao em uma perspectiva subalter-na, ou seja, uma histria dos outros:excludos, abjetos, marginalizados porsua sexualidade no normativa. Seulevantamento busca encontrar, nas

    sombras, os desejos proscritos e im-possveis, os amores silenciados.

    Na sociedade atual, o socilogo ob-serva que gayse lsbicas j so identida-des normalizadas, inseridas no merca-do e dentro de uma concepo polticaliberal. O carter abjeto na sociedadebrasileira de agora no seria atribudoa pessoas brancas de classe mdia oualta, formando casais monogmicos

    querendo se casar mesmo que sejamcasais homossexuais. Como estigma-tizados, encontram-se hoje travestis,transexuais, efeminados, pobres, ne-gros, portadores de HIV. Os que per-manecem na base da pirmide da res-peitabilidade sexual e social so os queherdaram a abjeo que estudo no finaldo sculo retrasado, diz Miskolci.

    Em Bom crioulo, o pesquisador ob-serva algo que permanece atual: a ten-dncia cultural a desvalorizar o negrocomo parceiro amoroso para homens.

    Estudos sobre gaysbrasileiros comoos feitos ou orientados por Jlio AssisSimes, professor do Departamento deAntropologia da USP e pesquisador co-laborador do Pagu Ncleo de Estudosde Gnero da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp), tm mostradocomo o ideal de parceiro branco, eo negro tende a ser visto apenas comoparceiro sexual ocasional, extico. Algodiverso se passa entre casais hteros.Como mostra o livro Razo, cor edesejo, escrito pela tambm professo-ra do Departamento de Antropologiada Universidade de So Paulo (USP)Laura Moutinho, o racismo brasileiro

    A relao entremasculinidade,honra e

    violncia parece

    ser herana

    do perodo,

    diz Miskolci

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    teve o efeito inesperado de erotizaros homens negros, fazendo com quea maioria de nossos casais interraciaishteros seja formada por um homemnegro e uma mulher branca.

    Burguesa - Na virada do sculo XIXpara o XX, almejava-se que a nao setornasse mais branca e burguesa do queera. A sexualidade, segundo RichardMiskolci, se no tinha centralidade ato sculo XVIII, deve ser vista a partirdesse perodo como pea-chave nareconfigurao de tal imaginrio na-cional na nascente Repblica. A trademonarquia, indigenismo simblico ecatolicismo seria substituda por umanova compreenso, cientfica e racia-

    lizada, do que era a nao brasileira. Odesejo e o sexo se tornam questes cen-trais por causa dos temores sobre rela-es interraciais e as incertezas sobre asconsequncias da miscigenao.

    A construo da nao exigia oagenciamento do desejo para formasideais, particularmente para a hete-rossexualidade reprodutiva do casalmonogmico estvel. Esse casal eraidealizado como branco ou branquea-dor. Um casal miscigenador deveriaser formado por um homem branco

    brancura, poder e masculinidade se

    equivaliam e uma mulher mulata pois se rejeitava a mulher negra. Esteideal unia expectativas com relao sexualidade e ao desejo, impunha areproduo como norma e estabele-cia que esta deveria resultar em bran-queamento da populao. Devia-seevitar qualquer desvio do desejo queameaasse a formao do modelo decasal reprodutivo, ao qual se atribuaa expectativa de gerar a nao alme-

    jada, progressivamente cada vez maisbranca e sexualmente normalizada,

    argumenta o socilogo.A escolha em focar sua pesquisa nos

    homens, explica Miskolci, deriva da ne-cessidade de explorar melhor como sereconfiguraram as relaes entre elese as expectativas sociais com relao aseu papel coletivo. De forma sinttica,ele diz que aparentemente houve umaprogressiva reduo da importncia daamizade entre homens, que se tornouperifrica na comparao com a rela-o com a esposa e a famlia, dentro daqual se atendia s expectativas coletivasde reproduo da nao. Os temorescom relao aos desvios dessa missomasculina de embranquecimento en-contravam amparo na pedagogizaodo sexo, que se associava tambm psi-quiatrizao das perverses. O contro-le da sexualidade feminina se basearem uma hierarquizao entre mulheresbrancas, mulatas e negras.

    Na sua interpretao dosdesejos da nao, o socilogose baseia na obra de Michel

    Foucault e no campo acad-mico conhecido como Sabe-res Subalternos a vertenteculturalizada do marxismoque incorporou o ps-estru-turalismo francs e se des-dobra, hoje, na corrente femi-nista conhecida como Teoria Queer enos Estudos Ps-coloniais. s obras li-terrias somam-se anlises de discursospolticos e cientficos da poca. Entre oshomens de cincia no Brasil, a maioriaum misto de literatos-cientistas com

    ambies polticas, discutia-se qual se-

    ria a viabilidade da nao mestia. um tema explorado exaustivamente pe-lo pensamento social brasileiro no quetoca questo racial, da miscigenao,mas que, fato curioso, deixa de fora asrelaes no reprodutivas, em especialentre pessoas do mesmo sexo.

    Para o socilogo, as obras literriasno apenas ilustram a histria do pero-do; permitem acess-la por meio deexperincias subjetivas, diferenciadas,algumas vezes at mesmo em desacordocom o que se passava. No se trata da

    genialidade dos escritores, mas da ca-racterstica da prpria criao literria,que frequentemente foge ao controle es intenes do autor, afirma Miskolci.Enquanto o discurso poltico e o cien-tfico, mais institucionais e articulados,tendiam a coincidir mais do que a di-vergir, as expresses literrias da pocapermitem entrever ambiguidades, dis-sidncias e, sobretudo, tanto o processode constituio da nao quanto formasdiversas de resistncia a ele. n

    As obras literrias no apenas ilustram a

    histria do perodo, mas permitem acess-la