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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARRENATA DE OLIVEIRA LARA
A AMIZADE NATICA A NICMACO
FORTALEZA-CEAR
2009
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RENATA DE OLIVEIRA LARA
A AMIZADE NATICA A NICMACO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Acadmico em
Filosofia da Universidade Estadual do Cear para concluso do
curso e obteno do grau de Mestre em Filosofia. rea de
concentrao: tica e Filosofia Social e Poltica. Orientador:
Prof. Dr. Jan Gerard Joseph Ter Reegen.
FORTALEZA-CEAR
2009
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L318a Lara, Renata de OliveiraA amizade na tica a Nicmaco/Renata de Oliveira Lara.
Fortaleza, 2009.90p.
Orientador: Prof. Dr. Jan Gerard Joseph Ter ReegenDissertao (Mestrado Acadmico em Filosofia) - Universidade
Estadual do Cear, Centro de Humanidades
1.tica 2. Aristteles 3. Amizade.I. Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades.
CDD: 185
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RENATA DE OLIVEIRA LARA
A AMIZADE NATICA A NICMACO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Acadmico em
Filosofia da Universidade Estadual do Cear para concluso do
curso e obteno do grau de Mestre em Filosofia. rea deconcentrao: tica e Filosofia Social e Poltica. Orientador: Dr.
Jan Gerard Joseph Ter Reegen.
CONCEITO OBTIDO:_________
_________________, Fortaleza, 23 de Dezembro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
Orientador: Prof. Dr. Jan Gerard Joseph Ter ReegenUniversidade Estadual do Cear
__________________________________
1 leitor: Prof. Dr. Expedito PassosUniversidade Estadual do Cear
_________________________________2 leitor: Prof. Dr. Francisco Evaristo MarcosFaculdade Catlica de Fortaleza
__________________________________
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Aos amigos, em especial ao meu filho Cain.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, sobretudo, a Deus pela vida na qual foi possvel esta realizao.
Agradeo a famlia pela dedicao e incentivo a todos meus objetivos: especialmente meus
pais, minha irm e meu filho.
Agradeo ao meu marido e amigo pelo longo tempo de convivncia fazendo parte desta
experincia.
Agradeo ao meu orientador Dr. Jan Gerard Ter Reegen e demais professores do CMAF
pela aprendizagem, e a FUNCAP que subsidiou esta pesquisa.
Agradeo aos perseverantes companheiros de mestrado e todos que colaboraram de algum
modo para realizar esta dissertao.
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Submetendo nossas concluses prova dos fatos da vida; se elas seharmonizarem com os fatos devemos aceit-las, mas se colidiremcom eles devemos imaginar que elas so meras teorias (EN, IX, 8,1179a 27-29).
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RESUMO
A presente dissertao tem como propsito a interpretao do conceito de amizade (philia)desenvolvida por Aristteles nos Livros VIII e IX da tica a Nicmaco. O intuito naEN
refletir sobre a finalidade da cincia tica e poltica que a felicidade(eudaimonia), ou bem
supremo,identificada com a prtica das virtudes. Segundo Aristteles, na vida ningum pode
ser feliz sem amizade. Sob o horizonte da relao tica, poltica e metafsica definimos o
homem no conceito aristotlico, destacando a concepo da alma (psych). Realizamos
consideraes sobre a teoria do ethos e o conceito de felicidade e virtude (aret). A
investigao procede tecendo a relao entre a amizade e as virtudes, as diferentes espcies
de amizade, em diversas fases da vida, com nfase sobre as virtudes de justia (dikaiosne) e
prudncia (phrnesis). Para concluir, explicitamos a concepo de amizade poltica que
Aristteles expe, abordando, em especial, o Livro IX da EN, constatando, por meio da
experincia cotidiana que desde a antiguidade a arte de conviver uma inquietao
constante.
Palavras-chave: amizade; felicidade; virtude; tica; poltica.
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ABSTRACT
This work aims to interpret the concept of friendship (philia)developed by Aristotle in theBooks VIII and IX of theNicomachea Ethics. The intention ofNE is to reflect on the purpose
of political and ethical science that is happiness (eudaimonia), or highest good, identified
through the virtues experience. According to Aristotle, in life, no one can be happy without
friendship. Considering the ethical, political and metaphysical relation we define man in the
aristotelic concept, highlighting the conception of the soul (psyche). Considerations were
made on the ethos theory and the concept of happiness and virtue (arete). The research
develops and builds the relation between the friendships and virtues, the different kinds of
friendship, in different stages of life, emphasizing the virtues of justice (dikaiosyne) and
prudence (phronesis). In conclusion, we clarify the conception of political friendship that
Aristotle states, approaching, specially,NEsBook IX, verifying through daily experience that
since the antiquity the art of living is a constant unease.
Keywords: friendship; happiness; virtue; ethics; politics.
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SUMRIO
1. INTRODUO....................................................................................................................12
2. OS CAMINHOS QUE NOS CONDUZEM FELICIDADE.............................................15
2.1 - Atica a Nicmaco: Objeto e mtodo.............................................................................152.2 - O homem no conceito de Aristteles................................................................................212.3 - A alma humana.................................................................................................................232.4 - As virtudes nos conduzem felicidade............................................................................28
3. A AMIZADE NATICA A NICMACO............................................................................39
3.1 - O contexto de origem da amizade como tema filosfico.................................................393. 2 - A amizade como virtude..................................................................................................413. 3 - A distino entre amor, amizade e benevolncia.............................................................45
3. 4 - Sobre as diferentes espcies de amizade.........................................................................46
3. 5 - A amizade e as virtudes de justia e prudncia...............................................................523. 5. 1 - A justia.......................................................................................................................523. 5. 2 - Prudncia.....................................................................................................................56
4. AMIZADE POLTICA: CONDIO SOCIAL DAPLIS................................................69
4. 1 - O carter comunitrio do bem.........................................................................................694. 2 - A relao entre amizade, justia e felicidade...................................................................704. 3 - Convivncia e concrdia..................................................................................................764. 4 - A formao do carter por meio do hbito......................................................................77
5. CONCLUSO......................................................................................................................80
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................86
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TBUA DE ABREVIAES
Lista das obras citadas de Aristteles:
Cat. CategoriaDA De AnimaEE tica a EudmoEN tica a NicmacoFs. FsicaMM Magna MoraliaMet. MetafsicaPol. Poltica
Ret. RetricaTop. Tpicos
Os algarismos romanos indicam o Livro, os arbicos os Captulos e, como de praxe, acombinao alfa-numrica de pgina, coluna, linha da edio Bekker.
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Segundo Aristteles, o ethoscomo temperamento resultante da natureza e da educao, o
carter moral e, de responsabilidade, por meio da repetio de bons atos, adquirindo-os a
princpio como hbitos.
A crise contempornea que descrevemos nos instiga a refletir, pois quando nos
debruamos sobre as relaes sociais nos defrontamos com conflitos afetivos que antecedem
e permeiam as relaes ticas e polticas. Seguindo essa inquietao abordamos o tema da
amizade como expresso dessa problemtica. Ao lanarmos um olhar crtico ao conceito de
amizade como problema filosfico, observamos que houve uma explorao expressiva deste
tema na antiguidade com repercusso significativa entre os comentadores aristotlicos, mas
no decorrer do tempo declinou na pesquisa filosfica como conceito de destaque. A virtude,
a justia e a prudncia foram conceitos que obtiveram maior respaldo em produes
acadmicas, considerando a nfase destes conceitos na EN, assim como em todo o
pensamento de Aristteles.
A pretenso investigativa destacar a soberania da amizade neste tratado em relao s
outras virtudes, sobretudo da justia e da prudncia, como lei interior que constitui os laos
ticos e polticos. O propsito desta dissertao expor a reflexo sobre a amizade ()
realizada por Aristteles natica a Nicmaco, com base nos Livros VIII e IX. A ENpois o
conceito de amizade apresentado pelo estagirita, tem carter peculiarmente humano,
seguindo a inquietao que deu sentido tica, questionando como convm viver, ou ainda,
como conviver em busca da harmonia em sociedade.
Com a inteno de compreender as relaes em que se insere a amizade como problema
no contexto da plisgrega, estruturou-se a exposio do tema sob a orientao do mtododiscursivo argumentativo, assim como Aristteles, conceituando a amizade como virtude e
condio da relao entre tica e poltica. A questo pressupe a seguinte indagao: por que
a amizade uma virtude necessria para todas as outras e condio da relao entre tica e
poltica? Para responder esta indagao preciso compreender a relevncia da amizade na
EM. Com tal pergunta tica sobre a finalidade humana, defrontando-nos com o conceito do
homem em Aristteles. Para compreendermos o homem na concepo aristotlica preciso
saber sobre a alma, conduzindo-nos, a saber, ao que a felicidade. Para tanto, temos de
compreender tambm o conceito aristotlico de virtude. Este o percurso de explorao
desta dissertao. Quanto ao mtodo, assim como Aristteles props filosofia, a base desta
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pesquisa a experincia e a prpria realidade. Posto isto, relevante destacarmos que a tese
apresentada integra o sistema metafsico, mas tem a consolidao do tema no aspecto tico e
poltico.
Para uma reflexo sobre o tema dispomos os argumentos com base na seguinte estrutura:
o captulo inicial Os caminhos que nos conduzem felicidade realiza uma breve
apresentao daEN, destacando o carter sistemtico e cientfico da tica desenvolvido por
Aristteles, e investigando o objeto e mtodo daEN. Tem como finalidade pensar a relao
tica, metafsica e a teoria do ethos, em especial a relao homem, corpo e alma em conexo
com os conceitos de felicidade e virtude, que orientam esta exposio, pois possibilitam a
desenvolvermos caminhos que constituam liames como tema da amizade. A inteno
principal destacar o princpio da ao humana, isto , o princpio complexo no qual o
intelecto se une ao desejo no momento da deciso, produzindo o instante do ato virtuoso na
filosofia prtica de Aristteles.
O captulo seguinte A amizade na tica a Nicmaco trata propriamente dito do
conceito de amizade naEN. Inicia com uma exposio sucinta do contexto da amizade como
tema filosfico, situando a soberania deste conceito nesse tratado tico. Apresenta tambm o
princpio interpretativo desta dissertao que pensa o conceito de amizade como virtude e
condio da relao entre tica e poltica. Sob a orientao deste princpio, nos debruamos
sobre o pensar aristotlico e descrevemos a distino entre amor, amizade e benevolncia, e
discorremos, em seguida, sobre as diferentes espcies de amizade. Para compreendermos
como Aristteles dimensionou amplamente a concepo de amizade, o itinerrio da pesquisa
segue demonstrando a relao da amizade com as virtudes de justia e prudncia: como se
encontram no momento de deciso do homem.
No captulo final Amizade poltica: condio social daplis explicitamos o conceito de
amizade poltica como condio social da plis e os aspectos pertinentes ao tema: o carter
comunitrio do bem, a relao entre amizade, justia e felicidade e a articulando ainda com
as categorias de convivncia e concrdia. Valendo-se do conceito aristotlico de amizade e
da definio de amizade poltica, realizamos uma reflexo sobre a amizade e o ethos no
sculo XXI e como estes conceitos antigos so enriquecedores para o conhecimento dasociedade contempornea.
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2. OS CAMINHOS QUE NOS CONDUZEM FELICIDADE
A Amizade na tica a Nicmaco impulsionada por uma inquietao tica e Poltica
atual: quais os vnculos que relacionam os homens entre si e na comunidade? Situada na
filosofia primordial, encontramos a Amizade que, entre os gregos antigos, tem destaque como
elo social. Consideramos a relao com o outro1como categoria fundante da tica, uma vez
que entre as relaes fundamentais do ser humano a relao com o outro a que mais
interessa poltica e a tica, e podemos dizer que a amizade se encontra em sua raiz, com
base no conceito clssico de Amizade desenvolvido por Aristteles.
Delimitamos a orientao investigativa situando a relevncia fundamental da amizade na
EN. Este primeiro captulo apresenta brevemente aEN,ressaltando a sistematizao da tica,
destacando o carter cientfico desenvolvido por Aristteles, e seguindo a investigao sobre
o objeto e mtodo da EN. Este captulo trata a relao entre tica, metafsica e a teoria do
ethos, e tem como base a relao entre a alma, virtude e felicidade2. Isto com a finalidade de
esclarecer a relao homem, corpo e alma em articulao aos conceitos de felicidade e
virtude, que norteiam esta exposio, para desenvolver caminhos que nos conduzam, como
pressupostos, ao tema central da amizade. A amizade tecida por duas orientaes: o logose
a natureza (phsis). O logos que se manifesta no ideal do bem e da virtude como fim da
1 SOARES, Marly Carvalho. tica e Metafsica. A relao da intersubjetividade como categoria fundante.Coleo Argentum Nostrum. Fortaleza: Ed.UECE, 2007, p.141-174. Segundo a autora a intersubjetividadeencerra todo ato e toda perfeio da vida social, pois se sobrepe relao de objetividade (relao com ouniverso) e abre-se consciente ou inconsciente ao Outro absoluto (relao de transcendncia). Ao longo dahistria das idias polticas todos os filsofos tentaram constituir e justificar a intersubjetividade como categoriafundante para a vida social e poltica. A relao com o outro um problema filosfico, como estruturaconstitutiva do homem e como estrutura bsica da sociedade, sendo a relao com o outro a mediao entre o serhumano e a sociedade. O termo intersubjetividade no era utilizado pelos antigos, mas reconhecemos a relaocom o outro, presente como problema j naquele contexto e, sobretudo, a conotao dedicada por Aristteles emateno especial a esta relao da amizade com a alteridade, a relevncia no partilhar com o amigo comoabertura ao outro em reconhecimento prprio e mtuo, isto , de indivduo para indivduo e entre indivduo-sociedade. Da reconhecermos que as pretensas teorias revolucionrias que se propem aos problemas daintersubjetividade, encontram no conceito de amizade aristotlico o aspecto tico e poltico prprio s relaesintersubjetivas.
2Cf. ARISTTELES. tica a Nicmacos. Trad. br. Mrio Gama Kury, 3.ed. Braslia: Editora Universidade deBraslia, 2001, p.12-13. importante considerarmos a questo das dificuldades de traduo da tica a
Nicmaco, para encontrar equivalentes satisfatrios aos termos originais. Os termos em grego anima, aret eeudaimonia so traduzidos como alma, virtude e felicidade, por falta de equivalentes melhores. tambmrelevante que em alguns casos, ocorre um desgaste da palavra usada tradicionalmente no portugus e com odecorrer do tempo o seu significado foi distorcido, tornou-se ambguo, e seu uso poderia conduzir a uma leituraequivocada. Como exemplo, temos a virtude, tratada pelo termo excelncia na traduo utilizada nesta pesquisacomo fonte bibliogrfica.
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amizade e a natureza que se manifesta na disposio natural, na afetividade. O intento,
portanto, at ento, no pensar, em especial, a doutrina aristotlica complexa da deciso, na
qual ocupa espao central a phronsis (sabedoria prtica), mas o princpio da ao humana,
isto , exatamente aquele princpio complexo no qual o intelecto se une ao desejo no
momento da deciso, produzindo o que o ato virtuoso, demonstrando a maneira como
Aristteles compreende esses aspectos na racionalidade prtica.
A hiptese apresentada neste captulo, alm de comprovar a adequao entre a concepo
da racionalidade prtica e as linhas mais importantes da concepo aristotlica do homem,
conforme a viso de que a filosofia das coisas humanas se compe de maneira coerente com a
filosofia das coisas divinas para formar o sistema de Aristteles3. A convico segundo a qual
o conceito do homem em Aristteles, deve ser buscado exteriormente, nos conduz da tica e
da poltica metafsica. Essa pretenso pode ser traduzida com palavras de Aristteles: seria
absurdo pensar que a cincia poltica ou a sabedoria prtica a cincia suprema, posto que o
homem no o que h de melhor no universo(EN, VI, 7, 1141 a 22).
2.1 - ATICA A NICMACO: OBJETO E MTODO
Na tica a Nicmaco, Aristteles, sob o mtodo discursivo de argumentao lgica e
dedutiva, o silogismo prtico, descreve um elenco de virtudes (ou excelncia moral) e vcios
(ou deficincia moral), com o propsito de refletir sobre a finalidade da cincia tica e
poltica. Segundo Aristteles, o objetivo da tica determinar o bem supremo para o homem
que a felicidade, a qual a finalidade da vida humana, e como vivenciar esta felicidade de
3Cf. PERINE, Marcelo. Quatro Lies sobre a tica de Aristteles. Ato a Potncia. Implicaes ticas de umadoutrina metafsica. So Paulo: Edies Loyola, 2006, pp.66- 82. Cf. AUBENQUE, Pirre. A PrudnciaemAristteles. Trad.br. de Marisa Lopes, 2.ed. So Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, p.107. Vemosespecialmente no Cap.II em Cosmologia da prudncia. No preciso para o nosso tema a densa discusso sobrea compatibilidade dos dois esquemas aristotlicos de compreenso da ao humana, a saber, o esquema queopera com a relao fim-meio, calcado na matriz da causalidade eficiente, e o esquema que opera com a relaouniversal-particular, cuja matriz a causalidade formal, de onde procede a doutrina do silogismo prtico. Soorientaes filosficas inglesa e francesa respectivamente influenciadas por D.J.Allan (1952), e R. A. Gauthier eJ.Y.Jolif (1970). Gauthier-Jolif tem base na hiptese de W.Jaeger sobre a evoluo do pensamento deAristteles, e Aubenque confronta-se com o pensamento de Jaeger debruando-se sobre essa discusso: algo quesitua a perspectiva que adotamos nesta abordagem, valendo-se do pressuposto, de que Aristteles, na realidade,compreende a ao humana pelo recurso aos dois esquemas, assim como interpretou Aubenque na conhecidatese de monografia A prudncia em Aristteles publicada posteriormente.
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maneira mais elevada (a contemplao). Determinados estes princpios, convm, a seguir
investigar como proporcionar ao homem este bem supremo e assegurar-lhe a contemplao,
funo que compete Poltica. Aristteles distingue a tica da Poltica, centrando a primeira
na ao voluntria e moral do indivduo, e a Poltica centrada nos vnculos e relaes do
indivduo com a comunidade. Na tica e na Poltica uma condio para a outra e as duas
cincias tm como finalidade a felicidade. Da serem polticas todas as relaes humanas,
igualmente, a amizade, pois relaciona os indivduos entre si e na comunidade.
A amizade pressupe as demais virtudes e exerce carter fundamental na EN.Conforme
Aristteles, a tica ou moral trata do estudo da ao() humana, como livre e pessoal,
com a finalidade de desenvolver e traar normas para a conduta do homem na sua inclinao
ao bem. A tica, como cincia, trata do uso que o homem deve fazer de sua liberdade para
atingir seu fim ltimo, enfim, conhecer ou descrever os costumes visando dirigi-los e orient-
los de acordo com os princpios ticos 4.
A orientao lgica da articulao entre conceitos filosficos e desdobramentos em
categorias caracteriza a originalidade do pensamento tico aristotlico em relao tica
platnica, pois a definio do objeto e, conseqentemente, o mtodo5que convm seguir na
investigao desse objeto especfico. O objeto daENcorresponde ao objeto da cincia tica e
poltica, determinado como o bem do homem.
4Sobre a relevncia de Aristteles nas concepes ticas ocidentais, ver ABBAGNANO, Nicola. Histria daFilosofia I. 4 Edio, Lisboa: Editorial Presena, 1985, p.09; Idem. Histria da Filosofia III. 3 Edio,Editorial Presena, 1984, p.242, 243. A obra de Aristteles foi submetida a um tortuoso percurso lingstico ecultural do qual foi objeto at atingir a Europa Crist. Por intermdio dos rabes, a obra de Aristteles foiredescoberta pela filosofia ocidental. J na primeira metade do sculo XII iniciaram-se as tradues latinas. Atica aristotlica tornou-se uma das bases fundamentais do pensamento da civilizao ocidental, e exerceinfluncia desde a Antiguidade, passando pela Idade Medieval, alcanando a atualidade. Na metade do sculoXII, Hermann o alemo, bispo de Astorga, traduziu o comentrio mdio de Averris tica a Nicmaco edepois Retrica e a Potica. (p.242) Durante o sculo XIII, a escolstica revelou um interesse profundo peladoutrina de Aristteles, acabando por descobrir a expresso mais perfeita da razo humana e logo, o melhorcaminho para alcanar a verdade revelada. Justamente pelo fato da obra de Aristteles ser a expresso mais
perfeita da razo com plena autonomia e independncia de qualquer pressuposto da f; suscitou oposies edesconfiana, e a primeira vista, pareceu inconcilivel com o dogma catlico. O sculo XIII apresenta as
primeiras tentativas de aproximao do aristotelismo bem como reaes contrrias viro mais tarde o equilbrioconseguido com a sntese tomista. Como nenhum outro filsofo antes, Aristteles compreendeu a necessidadede integrar o pensamento filosfico anterior sua pesquisa. Visa restabelecer a unidade do homem consigo ecom o mundo, assim como Plato que se baseia numa viso do cosmos, mas permitindo que a natureza esteja aoalcance da cincia.5ROWE, Cristopher. O estilo da Aristteles na tica Nicomachea. Revista Analytica, volume 8, nmero 2,2004, p. 3-29. Comenta o objeto e mtodo de Aristteles naEN.
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Uma vez que a cincia poltica usa as cincias restantes e, mais ainda, legisla sobre
o que devemos fazer e sobre aquilo de que devemos abster-nos, a finalidade desta
cincia inclui necessariamente a finalidade das outras, e ento esta finalidade deve
ser o bem do homem. Ainda que a finalidade seja a mesma para um homemisoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo
algo maior e mais completo, seja para atingirmos, seja para a perseguirmos; embora
seja desejvel atingir a finalidade apenas para um nico homem, mais nobilitante
e mais divino atingi-la para uma nao ou para as cidades. Sendo este o objetivo de
nossa investigao, tal investigao de certo modo o estudo da cincia poltica6.
Sob uma viso realista, com base nos fatos da vida, a cincia poltica investiga o bem
identificado com a felicidade. Todo saber cientfico difere de acordo com as diferenas de
objetos e, portanto, implica diferena do mtodo para sua investigao7. O carter cientfico
est na verificao das teorias nas aes prticas que devem seguir as leis estabelecidas pela
plis. Aristteles compreende que nas cincias prticas no tem lugar a demonstrao
dedutiva ou por meio do silogismo cientfico, procedendo da causa ao efeito, ou do universal
ao particular. Nem mesmo a demonstrao dialtica apodtica pelo uso do princpio de no
6EN, I, 2, 1094b 16-27.7Aristteles transpe assim para o horizonte da phsiso telosou fim do ser e do agir do homem, que Platosituara no horizonte do mundo ideal. A ascenso ao conhecimento (a contemplao) ocorre no mundo concretoda plis(mundo sensvel) como vivncia da felicidade, ao passo que na compreenso de Plato s atingia-se acontemplao no mundo inteligvel. Aristteles to metafsico quanto Plato, porm a sua metafsica no tem
pretenso de ter o monoplio da interpretao da realidade. Ver VAZ, Henrique C. Lima. Escritos de FilosofiaII, tica e Cultura. So Paulo: Loyola, 1988, p.97. Sobre a diviso dos saberes na Primeira academia e no
jovem Aristteles, Lima Vaz indica BERTI, Enrico. As Razes de Aristteles.[1989] Trad.br. Dion DaviMacedo, So Paulo: Loyola, 1998. (Ttulo original: Le Ragioni di Aristotele, Roma-Bari, Laterza)Reconhecemos presente esse aspecto na conhecida diviso dos saberes que Aristteles explica no captulo
primeiro do livro VI (epsilon)da Metafsica. (VI, 1, 1025b, 1-1026a 33), entre os saberes teortico, prtico epoitico. Aristteles adota uma concepo analgica do objeto da epistheme,ou da cincia, com a conseqentediviso das cincias e a determinao do mtodo prprio de cada uma, como uma constelao de termosanalgicos, que constitui a estrutura fundamental da linguagem da cincia. Procedendo como prprio do sabercientfico, aplicando ao inteligvelno sensvel, objeto prprio de nossa inteligncia. A razo aristotlica no ,
por conseguinte, uma razo unvoca, mas uma razo pluridiferenciada, de modo a se poder falar das razes deAristteles. A anlise de Aristteles sobre a linguagem mostra a polissemia de termos fundamentais como ser,o uno, verdadeiro, bom, enfim termos que admitem sentidos variveis e apresenta uma classificao dascincias que podemos representar como um feixe cujos ramos esto vinculados sob analogia. Distingui-se ascincias teorticas, cuja finalidade o prprio conhecimento; as cincias poiticas, que ordenam o conhecimento
para a produo de um objeto qualquer, til, tecnicamente elaborado; e as cincias prticas, que visam o agirhumano, este agir, cujo termo o prprio agir ou aperfeioamento do agente. neste terceiro tipo que seencaixam a tica e a Poltica no pensamento de Aristteles. A tica tem em vista o agir individual, a poltica temem vista aplis, a vida social, se complementando.
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contradio no argumento de retorso8. Posto que o objeto das cincias prticas est sujeito a
mudanas e variaes pela interveno da liberdade e, por outros inserido no horizonte da
experincia, a forma de demonstrao ou de racionalidade que ao objeto convm, procede
pelo confronto das opinies geralmente aceitas sobre tal objeto, tendo este objeto a opinio
que apresente maiores ttulos de razoabilidade ou racionalidade. Aristteles escreve:
As aes boas e justas que a cincia poltica investiga parecem muito variadas e
vagas, a ponto de poder considerar a sua existncia apenas convencional e no
natural. [...] Os homens instrudos se caracterizam por buscar a preciso em cada
classe de coisas somente at onde a natureza do assunto permite, da mesma forma
que insensato aceitar raciocnios apenas provveis de um matemtico e exigir de
um orador demonstraes rigorosas9.
A distino entreprxis epoiesis explicada por Aristteles nos dois primeiros captulos
do Livro I daEN.Aps destacar a estrutura teleolgica de toda tcnica e de toda investigao
metdica, assim como de toda ao e de todo ato de escolha, estabelecendo a necessidade de
uma arquitetura dos saberes prticos que converge para a poltica, tanto no aspecto amplo,
como igualmente a tica e Poltica propriamente dita, no sentido estrito, regidas pelaplis. De
maneira geral, o termo ()10se identifica com realidade da convivncia humana, marcada
pelos valores e costumes. Segundo Aristteles, o ethos significa, porm, o temperamento
resultante da natureza e da educao, mas tambm o carter moral e responsabilidade por
meio da repetio de bons atos, adquirindo-os a princpio como hbitos. Compreendendo a
8Cf. VAZ. Henrique. C. Lima. Escritos de Filosofia IV, Introduo tica Filosfica I. So Paulo: Loyola,1999, p.115. Segundo Lima Vaz, a tica e Poltica visam objetos que sofrem variao em seu apresentar-se experincia.
9EN, I, 3, 1095a 3-17.10 VERGNIRES, Solange. tica e Poltica em Aristteles: physis, ethos, nomos. Trad. br. ConstanaMarcondes Csar. 2 Edio, So Paulo, Ed.Paulus, 2003, p.5e 6. Solange Vergnires relata que o termo ethosno foi inventado por Aristteles, este ao contrrio, o recolhe a partir de uma longa tradio e lhe oferece ainda,em numerosos textos, os diversos sentidos desta tradio, a saber, as trs grandes heranas: a aristocrtica, a
prtica da democracia ateniense constituda pelos ensinamentos de Scrates e de Plato que, vivendo emcontexto de crise, buscam um princpio universal que palie as insuficincias do costume e dos consensostemporrios.
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tica como cincia, o objeto de reflexo no visa diretamente o ethos, mas o processo de
conhecimento do ethos,isto , a tica, cincia do ethos11.
Destacamos alguns pontos fundamentais para compreendermos a posio de Aristteles
sobre a Cincia ou Filosofia do ethos que como j vimos, se constitui em nova forma de
conhecimento, diante aos saberes populares religiosos arcaicos. de extrema importncia
afirmao categrica de que nesses temas no se podem realizar concluses com clareza e
preciso iguais s de concluses matemticas, e da filosofia primeira ou metafsica. Os
primeiros obedecem necessidade do inteligvel e so objeto de uma cincia rigorosa, quer
seja de carter dedutivo quer seja de carter dialtico, quando aplica apoditicamente o
argumento da retorso pelo uso do princpio de no-contradio na refutao das opinies
contrrias. No Livro I da EN, como j vimos Aristteles considera como objeto da
investigao o agir humano com vistas ao bem. Esse bem, pelo menos em parte, deve
depender do homem e de sua ao e, portanto, deve ser adequado atividade prpria dos seres
humanos, sempre um horizonte para virtude humana. Esse horizonte constitudo pelo
domnio do contingente, ou seja, pelo domnio do que pode ser diferente do que 12.
11Cf. Vaz. H.C.L Escritos de Filosofia II, tica e Cultura,Fenomenologia do ethos,So Paulo: Loyola, 1988,p.11-35. Segundo Lima Vaz, a tica em Plato se estrutura como saber do ethos, fundado sobre o sabermetafsico. So muitas as nuanas de significado desse vocbulo. Distinguirmos ethos com a inicial ta esignifica morada do animal e, posteriormente, do homem, de ethos, com a inicial psilon.O abrigo natural no mais s o abrigo animal, no s a morada animal, mas a morada do homem, uma morada simblica, que so oscostumes. O ethos,com psilon,atenta para a dimenso mais subjetiva da questo tica. Sua forma acabada designada pelo termo grego exis, que significa hbito, como possesso estvel. So dois vocbulos gregos, muitosemelhantes em grafia e pronncia e sentidos diversos, mas que passaram a relacionar-se intimamente: seja oethos em sentidodeabrigo; ou o ethos no sentidode hbito e, at, carter. Segundo Lima Vaz, a produo doscostumes e dos hbitos ou caracteres, tendo em vista a convivncia saudvel, traz as marcas da racionalidade eda liberdade humana. H uma relao entre os costumes ou normas ou valores, realidade objetiva dinmica tica,e os hbitos ou caracteres, realidade subjetiva. O processo gentico do hbito ou da disposio habitual para agir
de uma certa maneira. Sua forma acabada designada pelo termo grego exis, que significa hbito, comopossesso estvel. O ethos hbito, disposio permanente para agir, de acordo com uma ordenao interior, quepermita a posse de si mesmo. Portanto, concomitantemente ao processo de produo do ethos, h o processo deproduo do conhecimento tico. No podemos pensar sobre o ethos, sem supor a inteligncia das funes doconviver e das possibilidades de decidir por caminhos de vida diferenciados. Inteligncia e decises finitas, quetm, portanto, sua histria, suas ambigidades, suas graduaes ou nveis de conscincia de liberdade. O sabertico co-extensivo vivncia tica, que por sua vez co-extensiva a existncia humana. A tica no s umsaber que nasce no seio das vivncias ticas concretas, que so anteriores a teoria, d-se no seio do saber tico.Cf. Ibidem. Escritos de Filosofia IV: Introduo tica Filosfica I. So Paulo: Loyola, 1999, p.46. preciso,no entanto, ter presente o fato histrico indiscutvel de que a tica nasce no seio do saber tico. A tarefa que se
propem os fundadores da tica e, de modo exemplar, Aristteles, a de encontrar uma nova forma lgica, umanova estrutura gnosiolgica e novos fundamentos racionais para o saber tico, j codificado no ethos da tradio.12EN, I, 5, 1140b27; 1141a3. Ver AUBENQUE. A Prudnciaem Aristteles, pp.107; 127; 156. No Cap. IIsobre o acaso, contingncia, e o tempo oportuno, segundo Aubenque, Aristteles diz que a virtude no se definesomente por uma disposio subjetiva, mas tambm por referncia a uma circunstncia. De fato, a ao
produtiva no tira as coisas do nada, mas da matria indeterminada, e a ao imanente introduz certaartificialidade na natureza ao aperfeioar aquilo que nela est inacabado. O mundo sublunar dominado por uma
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Visto que a tica uma cincia do agir, cobra-se do governante que se prope a elaborar
um saber tico vlido, a experincia tica. Experincia de uma vida, j vivida racionalmente,
uma vez que se prope refletir sobre as razes do viver tico. Da a ressalva de Aristteles, em
relao aos jovens como inexperientes, que, no fundo, acaba relativizada, pois afirma no se
tratar de tempo em dispndio cronolgico, mas de tempo em engajamento tico, possvel a
muitos jovens. Aristteles no renuncia, contudo, a uma elaborao racional do saber dessa
experincia, ainda que no pea, para essa elaborao, certezas inconcussas. E, por isso
mesmo, dada essa impossibilidade de certezas absolutas, o compromisso com a reflexo
contnua, e o contnuo refazer-se desse conhecimento aparece com evidncia.
Cada homem julga corretamente os assuntos que conhece, e um bom juiz de tais
assuntos. Assim, o homem instrudo a respeito de um assunto um bom juiz em
relao ao mesmo, e o homem que recebeu uma instruo global um bom juiz em
geral. Conseqentemente, um homem ainda jovem no a pessoa prpria para
ouvir aulas de cincia poltica, pois ele inexperiente quanto aos fatos da vida e as
discusses referentes cincia poltica partem destes fatos e giram em torno deles;
alm disto, como os jovens tendem a deixar-se levar por suas paixes, seus estudos
sero vos e sem proveito, j que o fim almejado no o conhecimento, mas ao.
No far qualquer diferena o fato de a pessoa ser jovem na idade ou no carter; a
deficincia no uma questo de tempo, mas depende da vida que a pessoa leva, e
da circunstncia de ela deixar-se levar pelas paixes, perseguindo cada objetivo que
se lhe apresenta. Para tais pessoas o conhecimento no proveitoso tal como
acontece com as pessoas incontinentes; mas para quem deseja e age segundo a
razo o conhecimento de tais assuntos altamente til 13.
2.2 - O HOMEM NO CONCEITO DE ARISTTELES
Pensar a estrutura tica de Aristteles tratar sobre a teoria do ethose sobre o homem
que, nos remete ao estudo da alma: fundamento e essncia do homem. Refletindo podemos
dizer que em traos gerais, Aristteles caminhou em sua concepo do homem, de um
contingncia residual que no a ausncia de lei, mas a distncia -nfima se quiser, mas impossvel de suprimirinteiramente- que separa a lei, que geral, de sua realizao no particular(Cf. Ibidem, 2008, p.140).
13EN, I, 3, 1095 a 1-16.
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platonismo da , a um monismo hilemrfico (alma como forma do corpo) que conferimos
em De Anima. O centro da concepo aristotlica do homem a physis, mas animada pelo
dinamismo teleolgico da forma que lhes imanente e, como forma seu ncleo inteligvel.
O ponto central que pretendemos destacar na concepo de Aristteles a sua definio do
homem pela complexidade do princpio da deciso racional, uma fuso de intelecto desejante
e desejo refletido. Toda deciso racional impe necessariamente uma passagem de potncia
ao ato. nesse ponto que metafsica e tica, entrelaadas, nessa interseco decisiva,
possibilitam a compreenso do homem no conceito de Aristteles14.
14VAZ, Henrique. C. Lima. Antropologia Filosfica I. 6 Edio, So Paulo: Edies Loyola, 2001,pp.39-43.Lima Vaz sob a orientao da dimenso antropolgica no pensamento Aristteles indica Weil, Eric. Lanthropologie dAristote, in Essais et Confrences I, Paris, Plon, 1970, 9-43; descreve as caractersticas dohomem na concepo aristotlica, fundamental para a compreenso do homem clssico, que descrevemos emlinhas gerais:1) A estrutura biopsquica, do homem ou teoria dapsych, isto , a alma como princpio vital imanente do servivo;2) o homem comozon logikn: Destaca a distino do homem dos demais seres da natureza, com o predicado
peculiar da racionalidade, logo dotado de fala e discurso. Sob este aspecto Lima Vaz analisa as seguintesperspectivas:a) o ponto de vista dapsych no homem, sua estrutura e funes; Aristteles estuda a atividade racional que,
no homem, eleva-se sobre a atividade prpria ao intelecto;
b) o ponto de vista do finalismo da razo; Sob este ponto de vista, Aristteles distingue trs grupos de
cincias: a contemplao (theora), buscando em razo de si mesma e tendo como fim o conhecimento da
verdade das coisas; de acordo com a natureza do objeto contemplado procedem dessa atividade as trs cincias
tericas , a fsica, a matemtica e a Filosofia primeira ou Teologia. A ao (prxis)buscada em razo do bem
(agathn)ou da excelncia (aret)do indivduo e da comunidade e que objeto das cincias prticas, a tica e a
Poltica. A fabricao (poiesis)da qual resultam objetos artificiais e cuja finalidade a utilidade ou o prazer;
c) o ponto de vista dos processos formais do conhecimento;ao codificar a forma do pensamento (terico e
prtico), Aristteles assegura ao predicado da racionalidade, prprio do homem, os instrumentos poderosos e
decisivos pra que ele possa plasmar seu mundo segundo as exigncias da razo, ou seja, para que possa fazer da
cincia o centro de seu universo, iniciativa que ter as mais profundas conseqncias eem todo o
desenvolvimento da civilizao ocidental;
3) O homem como ser tico-poltico: Aristteles pode ser considerado o sistematizador da tica e da Poltica
como dimenses fundamentais do saber do homem sobre si mesmo. O homem helnico essencialmente
destinado vida em comum na plise somente a se realiza como ser racional. Ele um zon politiknpor ser
exatamente umzon logikn, sendo a vida tica e a vida poltica artes de viver segundo a razo (kat tn lgon
zen);
4) O homem como ser de paixo e desejo; esse aspecto costuma ser menos explorado, mas essencial para que
se tenha uma viso integral da concepo do homem em Aristteles. Ele est presente tanto na estrutura da alma,sede das paixes e do desejo, como na especificao de sua atividade, pois a vertente irracional da alma
intervm decisivamente tanto na prxis tica e poltica como na poiesis. A discusso em torno da significao e
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Os conceitos de ato e potncia regem tanto a metafsica como a tica, porque a felicidade
humana consiste em uma atividade, que a atualizao de uma potncia. Na concepo de
Aristteles o princpio de ser homem a racionalidade. O homem pensamento, pensar, a
diferena que ele possui, pois a funo define o ente. Como Aristteles tem uma viso
monista hilemrfica, ou seja, a alma a forma do corpo, logo matria e forma so
indissociveis. Sob uma compreenso materialista, racional de experimentao, o que
caracteriza um ser o conceito de alma, a alma como princpio primeiro de seu movimento. O
homem uma simbiose de planta, animal e razo. A essncia do homem alma, e o corpo
constitutivo do homem, portanto, pensar sobre o homem pensar em corpo e alma.
Ento, se a funo do homem uma atividade da alma por via da razo e conforme
a ela, e se dizemos que uma pessoa e uma pessoa boa tm uma funo do
mesmo gnero [...] se este o caso e afirmamos que a funo prpria do homem
um certo modo de vida, e este o constitudo de uma atividade ou de aes da alma
que pressupe o uso da razo, e a funo prpria de um homem bom o bom e
nobilitante exerccio desta atividade ou a prtica destas aes, se qualquer ao
bem executada de acordo com a forma de excelncia, e se h mais de uma
excelncia, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas. Masdevemos acrescentar que tal exerccio ativo deve estender-se por toda a vida, pois
uma andorinha no faz vero (nem o faz um dia quente); da mesma forma um dia
s, ou um curto lapso de tempo, no faz um homem bem- aventurado e feliz15.
2.3 - A ALMA HUMANA
Na tica a Nicmaco Aristteles esclarece a sensvel relao entre a ao humana e a
alma humana por meio da sistematizao da tica. Com base nesse aspecto desenvolvemos
elucidaes importantes em carter complementar a EN sobre a alma, considerando o De
da funo do prazer na vida humana torna-se um tpico fundamental da tica aristotlica estudados nos livros
VII (caps.12-15)e X(caps.1-5) daEN.
15EN, I, 7, 1098a 22-40.
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Anima16. Este tratado tem como base estrutural a A alma como substncia no sentido de
forma (DA, II, 412a1)17. Conforme Aristteles, a substncia () no matria, mas a
forma (): aquilo por meio do que o sujeito o que , pois o que permanece constante por
trs das mudanas, o que se preserva a forma.
A matria, por sua vez, potncia, ao passo que a forma atualidade [...]
necessrio, ento, que a alma seja substncia como forma do corpo natural que em
potncia tem vida. E a substncia atualidade. Portanto, de um corpo e tal tipo
que a alma atualidade [...] E por isso a alma seria que a primeira atualidade de um
corpo natural que tem em potncia vida 18.
Na medida em que a forma subordina-se a um fim (telos), Aristteles designa a alma por
atualidade primeira de um corpo natural orgnico. Assim a alma como forma a causa ativa
que mantm a unidade ordenada do composto face ao poder destrutivo do devir19. A alma
determinao tal que tenha em si mesmo um princpio de movimento e repouso. Assim como
a pupila e a viso constituem o olho, tambm neste caso, o corpo e a alma constituem o
animal (DA, II, 1, 412b29-30) 20. No Livro III, do DA, enfatizada a questo pensar e
16ARISTTELES. De Anima (Peri Psykhs). Trad.br. Maria Ceclia Gomes dos Reis, 1 Edio, So Paulo:Editora 34, 2006. Em linhas gerais, De Anima, de extrema relevncia para a tica, apresenta parmetros dacomplexa relao entre a razo e a vontade na conduta, onde Aristteles levanta o problema da escolhaintertemporal; elaborando com amplo estudo das capacidades naturais, a doutrina da virtude como hexis, oudisposio adquirida, abordada especificamente natica a Nicmaco. De Anima,Peri Psyks, ouSobre a almaum tratado de Aristteles, composto pelos livros I, II, III, sendo dedicada maior ateno ao segundo e terceirolivros, em que realizado um exame detalhado de cada uma das cinco potncias da alma: nutritiva, perceptiva,desiderativa, locomotiva e raciocinativa. A filosofia moderna principalmente no sculo XVII separou o estudo davida do estudo da alma, mas podemos identificar que o tratado de Aristteles est na origem da psicologia como
disciplina terica e tem laos ancestrais com a Biologia. De Anima pode ser considerado um dos textosfundadores da antropologia ocidental, no qual encontramos a criao de uma antropologia no sentido estrito (otermo no aristotlico e s aparece na idade moderna), ou seja, de uma filosofia das coisas humanas.
17 Em DA, Aristteles compreende que a substncia (primeira) nunca predicado, mas sempre sujeito (Cat,1b11-3); (Met, 1029a8-9), porque, permanecendo a mesma, sofre mudanas e admite o vir a ser (Cat, 4a10-b19),a forma no sentido de substncia, dando uma certa forma no sentido das partes materiais e manter-se imune destruio. importante observarmos que a passagem da atualidade atividade, isto , passar da capacidade atuao, nem bem mudar nem bem mover; se usamos o termo mudana ou alterao por impreciso dalinguagem. Trata-se apenas da manifestao do que j existe.
18DA, II, 1, 412a10-11; 412a 21-23; 28-29.19Uma vez que movimento tambm destruio, crescimento tambm deslocar-se.20O conhecer algo da alma bem como o perceber, o opinar e ainda o ter apetite, o deliberar e os desejos emgeral, j que da alma advm o crescimento, a maturidade, e o decaimento. E a alma isto por meio e que
primordialmente vivemos, percebemos e raciocinamos. Por conseguinte, a alma ser uma certa determinao eforma e no matria ou substrato(DA, II, 2, 414a4 13-14).
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perceber e a relao desejo, intelecto e raciocnio prtico21. A parte perceptiva e a cognitiva da
alma so em potncia estes objetos: uma o cognoscvel e outra o perceptvel 22. Da alma
como a mo; pois a mo instrumento de instrumentos, e o intelecto forma das formas, bem
como a percepo sensvel forma dos perceptveis. Como sustenta Aristteles, as imagens
subsistem na alma e so como que sensaes percebidas. Embora desprovidas de matria no
so imagens, embora tambm no existam sem imagens.
Segundo Aristteles, a alma dos animais definida de acordo com duas potncias, a de
poder discernir - o que funo do raciocnio e da percepo sensvel - e a de poder se mover
de acordo com um movimento local. Valendo-se desta considerao distinguimos as partes da
alma: no somente aquelas que alguns dizem se distinguir em calculativa, emotiva, apetitiva,
mas em racional e irracional23. Pois na parte calculativa que nasce a vontade, mas o apetite
e o nimo, na parte irracional; e caso a alma seja tripartite, em cada parte haver desejo (DA,
III, 9, 432a 39-40)24. O que faz mover localmente o animal o movimento que concerne ao
crescimento e ao decaimento, subsistindo em todos seres vivos, sem exceo, h de ser
21Considerando que o tato no uma nica sensao, mas diversas, ento preciso tambm que os objetosperceptveis pelo toque sejam diversos, pois todas as afeces do tangvel, como tangvel nos so perceptveis
pelo tato. (DA, II, 1, 422b10-11, 424b4-5). Nem mesmo o pensar poderia existir sem o corpo. Parece que todasas afeces da alma ocorrem com um corpo. evidente que as afeces so determinaes na matria. Por isso a quem estuda a natureza que cabe enfim o inquirir a respeito da alma. Parece mais que a alma mantm junto ocorpo, pois quando ela o abandona, ele se dissipa e se corrompe.
22Cf.DA, III, 8, 431b 27-33 , 432a 5-9. Pressupondo que so indicadas como potncias: a nutritiva, a perceptiva,a desiderativa, a locomotiva, e a raciocinativa, temos que se subsiste a perceptiva, tambm subsiste adesiderativa, pois desejo apetite, impulso e aspirao...o apetite, pois este o desejo do prazeroso(DA, II, 3,414a 31-40). Segundo Aristteles, entre os seres vivos que possuem tato tambm subsiste desejo...(DA, II, 3,414b 10-11). preciso assim que seja investigado, de acordo com cada caso, o que a alma de cada um. Oentender de Aristteles: Pois entre os seres perecveis, naqueles e que subsiste clculo tambm subsistem todasas demais capacidades. Ibidem. II, 3, 414b 40-41.
23 Ocorre conseqentemente que o elemento irracional parece dplice. O elemento vegetativo, todavia, noparticipa de forma alguma da razo, mas o elemento apetitivo e, em geral, o elemento concupiscente participamda mesma em certo sentido, at que ponto em que ouvem e lhe obedecem, neste sentido que falamos naracionalidade de um pai ou de um amigo, em contraste com a racionalidade matemtica. O fato deadvertirmos algum, e de reprovarmos e exortarmos de um modo geral, indica que a razo pode, de certo modo,
persuadir o elemento irracional(EN, I, 13, 1103a 5-8).
24EmDA,outra observao relevante a de que conforme Aristteles, talvez no seja apropriado falar em partesda alma, mas prefere antes falar em potncias. Os atributos da alma so capacidades e de diversas modalidades.Esse legado sobre o statusda potencialidade vem de filsofos anteriores. Para Aristteles, a alma tem trplicefuno, com trs partes; a vegetativa, a sensitiva, e outra racional. A alma causa e princpio do corpo quevive... causa conforme trs dos modos definidos... sendo ainda causa como substncia dos corpos animados(DA, II, 415b 1-5). O crescimento vem da sensibilidade, mas a razo no. A funo da alma est na parterespectiva ao racional. A razo uma extenso do logosuniversal, o divino no homem, a relao do homemcom Deus, o homem pode pensar a Deus. A razo chega a sua plenitude ao pensar Deus, assim a realizaomaior da alma atingir a finalidade, alcanar a felicidade, quando a razo pensa Deus.
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produzido por aquilo que subsiste em todos: a alma reprodutiva, e aquela nutritiva. Sobre as
partes da alma Aristteles sustenta tambm naEN:
Que a alma constituda de uma parte irracional e de outra dotada de razo. Se esta
duas partes so realmente distintas, maneira das partes do corpo ou de qualquer
outro todo divisvel, ou se, embora distintas por definio, elas na realidade so
inseparveis, como os lados cncavo e convexo da periferia de um crculo, no faz
diferena nenhuma no caso presente. Uma das subdivises da parte irracional da
alma parece comum a todos os seres vivos e de natureza vegetativa, refiro-me
parte responsvel pela nutrio e pelo crescimento 25.
O desejo, porm, que se encontra na parte apetitiva, age de acordo, mas no move, no
responsvel pelo movimento, pois, segundo Aristteles, os que so continentes, mesmo
desejando e tendo apetite, no fazem essas coisas pelas quais tm desejo, mas seguem o
intelecto26. Os desejos so contrrios uns aos outros, quando o argumento e os apetites forem
contrrios, e isso ocorre porque o intelecto, de um lado, ordena, resistir, por outro, ordena,
resistir por causa do imediato, pois o imediatamente agradvel mostra-se simplesmente bomo que faz mover sendo movida a capacidade desejar (DA, III, 433b 17-18). Aristteles
expe que decidir por fazer isto ou aquilo, de fato, j uma funo do clculo, por isso o
desejo no tem capacidade deliberativa e algumas vezes vence e demove a vontade 27.
E todo desejo, por sua vez, em vista de algo; pois aquilo de que h desejo o
princpio do intelecto prtico, ao passo que o ltimo item pensado o princpio da
ao [...] H algo nico, de fato, que faz mover o desejvel [...] (pois a vontade
desejo e quando se movido de acordo com o raciocnio, tambm se movido de
acordo com a vontade), mas o desejo move deixando de lado o raciocnio, pois o
25EN, I, 13, 1102 b 3-10.26Cf.DA, III, 9, 433a 6-9.27 Ibidem, III, 11, 434a 4-5; 10-11. O termo vontade tem aqui a conotao de querer. O carter peculiar do
percurso lingstico conturbado dos textos de Aristteles e a ambigidade dos termos gregos permitem atradutores, comentadores e intrpretes a adaptao deste e outros termos que julgam apropriados de acordo comdeterminadas leituras, de modo que justificamos aqui o termo adotado sob influncia do aparato crtico utilizado.
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apetite um tipo de desejo. Intelecto, ento, sempre correto; ao passo que o
desejo e a imaginao, ora corretos, ora no corretos 28.
Aristteles, considerando a alma como princpio vital do corpo, determina que a
potencialidade da razo no est nem na parte vegetativa, nem na parte sensitiva, mas sim na
parte racional. Uma vez que, os predicados da alma so: razo, emoo, imaginao,
liberdade, desejo e julgamento, atingir a finalidade da alma chegar ao pleno
desenvolvimento da razo, ou seja, ao desenvolver de toda a potencialidade a capacidade ao
mximo possvel, a atualizao de maneira completa, no que h de melhor. E a razo se
desenvolve por meio das virtudes. As virtudes desenvolvem e aperfeioam a razo, no aspecto
intelectual e a razo chega a sua plenitude ao contemplar() 29. Logo a alma nasce com
potncia, que pode se desenvolver e se capacitar em potencialidade. As potncias so
desenvolvidas pela educao dos hbitos. Educamos as pessoas, primeiro pelo hbito, depois
pela razo, uma vez que tendo bons hbitos podemos tornar-nos bons30.
Sendo a virtude uma espcie de equilbrio, ou moderao, a prtica das virtudes a prtica
de bons atos, que fazem os homens melhores e mais felizes. O bem para o homem vem a sero exerccio ativo das faculdades da alma de conformidade com excelncia, de conformidade
com a melhor e mais completa entre elas (EN, I, 7, 1098 a, 34-36). A felicidade como tal no
pode ser algo exterior a ns, mas como uma atividade da alma conforme a virtude, mas que
tambm requer coisas exteriores. A funo do estadista criar condies para o homem ser
28Ibidem, III, 10, 433a 16-17; 433a 21,25-29 . Ver PERINE, Marcelo. Quatro Lies sobre a tica de Aristteles. SoPaulo: Edies Loyola, 2006,p.103.Reportamos-nos ao comentrio de Marcelo Perine esclarecendo que a traduode Gama Cury lhe parece ocultar a distino entre razo (logos)e inteligncia ou intelecto (nous)e no deixasuficientemente claro que estamos diante de uma definio do ser humano Eis que complementar a disposiodo seguinte trecho datica a Nicmacosa seguir: A escolha, portanto, razo desiderativa (orektikos nous) oudesejo raciocinativo (orexis dianoetike), e o homem uma origem da ao desse tipo(EN,VI, 2, 1139b8-9).Segundo Marcelo Perine, o texto grego permite a seguinte traduo: a deciso intelecto desejante ou desejoraciocinante, e este princpio complexo o homem. Ver sobreeste tema emDA, III, 10, 433a9-17.
29 Aristteles compreende que quanto mais destitudo de praticidade, maior o nvel do conhecimento. Acontemplao a ascenso ao nvel de conhecimento mximo, portanto associa o conhecimento ao prazer e no utilidade.
30ZINGANO, Marco. Aristteles: tratado da virtude moral; Ethica a Nicomachea I 13-III 8, So Paulo:Editora Odysseus, 2008. Marco Zingano explora a relao entre alma e virtude conforme Aristteles: Em De
Anima,I, 5, 411b5-6, sobre a diviso da alma em trs partes (racional, impulsiva e apetitiva) ao lado da divisoem duas, racional e no-racional.
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feliz realizando-se em sociedade, pois o governante deve ser conhecedor do ntimo humano,
isto , da alma humana.
Uma vez conceituado por Aristteles o homem como ser essencialmente racional e
poltico, no qual a razo se encontra na alma humana, a felicidade envolve o homem no seu
total de ser e conseqentemente nas relaes sociais. Da Aristteles escrever:
Devemos conduzir nossa investigao sobre a felicidade levando em conta as
concluses a que chegamos partindo de nossas premissas, mas devemos
igualmente considerar o que se diz em geral sobre ela; com uma viso realista,todos os dados se concatenam, mas com uma viso falsa os fatos colidem31.
2.4 - AS VIRTUDES NOS CONDUZEM FELICIDADE
Este ponto da investigao visa exposio do conceito de felicidade, a definio de
virtude ()e seu fundamento naEN, demonstrando a tica como cincia do agir humano.
Se a felicidade o ato da alma segundo a virtude, com base no princpio da virtude humana,
que uma virtude da alma, h uma correspondncia estrutural entre as atividades da alma que
so essencialmente distintas e as virtudes em cujo exerccio se fazem presentes essas
atividades. Aristteles, na tica a Nicmaco, realiza uma reflexo, que ser expressamente
formulada no final do estudo, da felicidade, a saber, sobre o bem supremo. Esse bem, que
Aristteles denomina contentamento () 32, designa algo que buscamos por ele
mesmo e cuja realizao no ultrapasse as nossas foras. Se esse bem deve ser realizado por
ns, ele ser caracterizado pela atividade que tipicamente nossa. Assim, o bem humano
dever ser uma atividade real no s possvel, na qual o homem faa bem o que faz. Portanto,
o bem ao qual nada se possa acrescentar, mas porque inclui em si todos os bens, a comear
pelo prazer33.
31EN, I, 8, 1098b1-5.32O termo bastante abrangente, mas nas diversas interpretaes sobre a concepo de eudaimonianaEN, todasadmitem a traduo como felicidade, que para Aristteles a posse do bem objetivamente melhorpara o agente,capaz de proporcionar-lhe o viver bem (eu zen) e o agir bem (eu prattein).
33EN, I, 9, 1099 a 13-30.
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A cidade grega, como expresso realizada de uma racionalidade poltica, oferecia o
horizonte concreto no interior do qual estavam estabelecidos os princpios para a ao de todo
agente que, no sendo um animal ou um deus, pretendia ser racional. Quem educa, em ltima
anlise, a cidade, na medida em que, pelas leis belas-e-boas, ela cria o lugar a meio caminho
entre os animais e os deuses. Por fim, educar o cidado habitu-lo ao exerccio da virtude e
prudncia, que consiste no hbito de decidir, nas circunstncias concretas, com base em
modelos do bom e do melhor que esto acima de sua individualidade. Na reflexo de
Aristteles justamente a comunidade desses sentimentos que produz a famlia e a cidade 34.
Portanto, a famlia, em primeiro lugar na ordem natural, constitui o lugar da ao
propriamente humana, visto que a cidade verdadeiramente natural ao homem, por ser o
horizonte no interior do qual ele busca, encontra e realiza os bens que lhe so prprios.
Aristteles defende na sua tica, que toda arte e toda indagao, assim como toda ao e
todo propsito, visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem aquilo a que
todas coisas visam(EN, I, 1, 1094 a). Disso resulta a indagao sobre o que o bem, e de que
cincias ou atividades objeto. Posto que o bem o objeto da cincia poltica e a felicidade
constitui o fim de todo homem, Aristteles busca uma definio da felicidade. Ele considera a
possibilidade de ser improdutiva a investigao sobre a felicidade com base nas consideraes
mais razoveis e evidentes. Estas, porm, so prerrogativas em duas compreenses: as
relativas a ns mesmos e as que so em absoluto. Da Aristteles escrever:
Diante do fato de todo conhecimento e todo propsito visarem algum bem , falemos
daquilo que consideramos a finalidade da cincia poltica, e do mais alto de todos
os bens a que pode levar a ao, [...] este bem supremo a felicidade, e consideram
que viver bem e ir bem equivale a ser feliz; quanto ao que realmente a felicidade
h divergncias, e a maioria das pessoas no sustenta opinio idntica dos sbios35.
34 ARISTTELES. Poltica. Trad.br. de Mrio Gama Kury, 3.ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia,1997; I,1253 a 1-30. Ver sobre o tema, PERINE, M. Quatro Lies sobre a tica de Aristteles. Phronesis:um conceito inoportuno? p.48; Ato a Potncia. Implicaes ticas de uma doutrina metafsica, pp.84, 85.35EN,I, 4, 1095 a 21-27.
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Entre as divergncias termina por encontrar duas respostas distintas: aquilo que cada um
considera individualmente e o que igual para todos os seres humanos. Aristteles (assim
como Plato) inclina-se por esta segunda opo. Segundo Aristteles, a felicidade viver em
virtuosidade, a realizao, no sentido de meta final de qualquer ente, quando este atualizou a
totalidade das suas disposies, plenificando assim a natureza prpria. Conceitua a felicidade
como a realizao das atividades que so prprias ou especficas a cada ser de acordo com sua
natureza. A felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, em tornar ato o que
potencialidade e atualizao desta, desenvolver todo o conjunto de aptides num processo
de humanizao, definindo-a como prpria da natureza de cada um, naquilo que se distingue
dos demais. A atividade especfica do ser humano o pensamento, a plenitude e a felicidade
sero quando a atividade humana direcionada atividade contemplativa. Se todos os
homens tm a mesma natureza, conclui-se que a felicidade a mesma para todos.
Aristteles sabe, no entanto, que o homem no s razo, portanto a felicidade humana
limitada. Isto quer dizer que precisa cumprir determinadas necessidades: tanto com respeito
aos bens corporais, como aos bens externos, o dinheiro (por exemplo) ou e principalmente as
virtudes morais. Em maioria identificamos o bem, que a felicidade com o prazer, com o que
nos parece agradvel vida. Aristteles considera que so trs tipos principais de vida: o que
acabamos de mencionar, o tipo de vida poltica e o terceiro a vida contemplativa (EN, I, 5,
1096a 6-7). Lembrando que nem uma vida virtuosa pode livrar o homem nenhum de
infortnios. No que concerne ao bem, trata dos seguintes pressupostos: dos que so bons em
si mesmos e outros em funo destes. Separando ento as coisas boas em si das coisas teis, e
verificando se as primeiras so chamadas boas com referncias a uma nica forma, indagando
que espcie de bens chamaramos bons em si. A investigao de Aristteles sobre a felicidade
tem como base os fatos em sentido de realizao social, objetiva em comunidade.
Certamente, da mesma forma que a viso boa no corpo a razo boa na alma, e
identicamente em outros casos [...] Acontece o mesmo em relao forma do bem;
ainda que haja um bem nico que seja um predicado universal dos bens, ou capaz
de existir separada ou independentemente, tal bem no poderia obviamente ou ser
atingido pelo homem, e agora estamos procurando algo atingvel 36.
36Ibidem, I, 6, 1097a 5-12.
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Conforme Aristteles, a felicidade de cada criatura humana pressupe a felicidade de sua
famlia, de seus concidados, e a maneira de assegurar a felicidade proporcionar um bom
governo sua cidade; h que determinar, ento, qual a melhor forma de governo, tema que a
Polticadescreve. Vemos que toda a cidade uma espcie de comunidade se forma com
vista a algum bem, pois todas aes de todos os homens so praticadas com vistas ao que lhes
parece um bem; [...] ela se chama cidade e a comunidade poltica (Pol.I,1252a 1-7 ). O
homem, dotado de extraordinria capacidade de comunicao, vive em diversos crculos de
convivncia, como aplis, sendo esta ltima a sociedade perfeita, a causa final da associao
humana. No pode desenvolver as virtudes nem a felicidade se no for em sociedade por duas
razes: sem a sociedade no sobreviveria, uma vez que em princpio precisaria dos bens
fundamentais, e sem as leis sociais nunca alcanaria as virtudes.
Uma concluso idntica parece resultar da noo de que a felicidade auto-
suficiente. Quando falamos em auto-suficiente no queremos apenas aludir aquilo
que suficiente apenas, para um homem isolado, para algum que leva uma vida
solitria, mas tambm para seus pais, filhos, esposa e, em geral, para seus amigos e
concidados, pois o homem por natureza um animal social37.
Compreendemos a felicidade praticamente como uma forma de viver, de conduzir-se bem
na vida diante das adversidades especialmente. A vida de atividade virtuosa agradvel em si,
pois o prazer uma disposio da alma e a cada pessoa aquilo que costumamos dizer que
amamos. Conforme Aristteles, o estadista tm em si a justia, pois as leis so intrnsecas ao
ser nobilitante, que busca o bem como finalidade para si e para a comunidade. Da escrever:
Chamamos geralmente os bens pertinentes alma de bens no verdadeiro sentido da
palavra e no mais alto grau, e atribumos prpria alma as aes e atividades
psquicas. [...] Outra noo que se harmoniza com nossa opinio a de que o
homem feliz vive bem e se conduz bem, pois praticamente definimos a felicidade
como uma forma de viver bem e conduzir-se bem. [...] Ningum qualificar de
justo um homem que no sinta prazer em agir justamente, nem de liberal um
homem que no sinta prazer em aes liberais, e similarmente no caso de todas as
37Ibidem, I, 7, 1097 b 33-38.
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formas de excelncia. Sendo assim, as aes conforme excelncia devem ser
necessariamente agradveis38.
Quanto s divergncias expostas por Aristteles sobre a felicidade so importantes as
seguintes consideraes: em muitas aes usamos amigos e riquezas e poder poltico como
instrumentos [...] algumas pessoas identificam a felicidade com a boa sorte, embora outras a
identifiquem com a excelncia39. Como exposto, Aristteles identifica a felicidade com a
ltima considerao que a prtica das virtudes.
Ver-se- que esta concluso condizente com o que falamos de incio, pois
afirmamos que a finalidade da cincia poltica a finalidade suprema, e o principal
empenho desta cincia infundir um certo carter nos cidados - por exemplo,
torn-los bons e capazes de praticar boas aes 40.
Segundo Aristteles, a felicidade uma atividade da alma conforme a excelncia, pois
entre as funes do homem nenhuma dotada de tanta permanncia quanto s atividades
conforme excelncia; estas parecem ser at mais duradouras que nosso conhecimento das
cincias (EN,I, 10, 1100 b 8-13). No discurso de Aristteles, o homem feliz estar sempre,
ou pelo menos freqentemente, engajado na prtica ou na contemplao do que conforme
excelncia, no obstante, mesmo na adversidade e freqentes infortnios resplandece com
resignao, no por insensibilidade, mas por nobreza e grandeza de alma 41. Constatamos
ento que o bem e a felicidade so elementos metafsicos como norteadores da tica. Parece
que assim porque ela o primeiro princpio, pois todas as outras coisas que fazemos so
feitas por causa dela, e sustentamos que o primeiro princpio e causa dos bens algo louvvele divino (EN, I, 12, 1102 a 10-13).
Determinados estes princpios e a relao afim da felicidade com a virtude, pertinente
estudarmos a natureza da virtude. A finalidade do homem como ser poltico a comunidade,
que a convivncia em harmonia, a felicidade. A felicidade se divide em duas partes: a
realizao suprema (contemplao) e o aperfeioamento das virtudes do carter (do controle
38Ibidem, I, 8, 1098b 33-41; 1099 a 26-30.39Ibidem,I, 8, 1099 b 11-12.40Ibidem, I, 9, 1099 b 37-41.41Ibidem, I, 10, 1100 b 27-30.
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dos impulsos, dos instintos). A natureza humana atinge seu fim ltimo por meio da
racionalidade. Mas o pensamento contemplativo, por isso precisamos da prudncia que a
sabedoria prtica adquirida com a experincia. O sbio em Aristteles tem de ter saber
terico, mas o que vale mesmo a prudncia (discernimento) do que bom para si
(governantes) e para os outros (governados). A prudncia em geral conseqncia da
experincia, sendo a prudncia a virtude suprema do poltico, visto que este deve ser
conhecedor da intimidade humana, portanto da alma.
Sendo a felicidade, ento uma certa atividade conforme excelncia perfeita,
necessrio examinar a natureza da excelncia. Isto provavelmente nos ajudar em
nossa investigao a respeito da felicidade. Tambm parece que o verdadeiro
estadista aquele que estudou especialmente a excelncia, a [...] A excelncia
humana significa, dizemos ns, a excelncia no do corpo, mas da alma, e tambm
dizemos que a felicidade uma atividade da alma. Se for assim obviamente o
estadista deve ter algum conhecimento das funes da alma, da mesma forma que
quem estudar e curar os olhos deve conhecer tambm o corpo todo 42.
Aristteles conceitua a virtude como termo mdio entre dois vcios (), um por
excesso e o outro por falta, so hbitos, no como condicionamento e automatismo, mas como
disposies duradouras que nos permitem agir na vida escolhendo o termo mdio em relao
42Ibidem,I, 13, 1102 a 15-30. Sobre a virtude ver ZINGANO. Aristteles: tratado da virtude moral; Ethicaa Nicomachea I 13-III 8, 2008, p.77. Comenta Marco Zingano, que mantm a traduo por perfeito, sem porisso tomar posio neste debate, mas porque compreende como perfeito, que Aristteles considera no umavirtude em detrimento das outras (no caso, a contemplativa), mas um modo especial de operar as virtudes. Na
EM, no Livro VI, Aristteles distingue entre as virtudes em seu modo natural - aquele segundo o agente faz oque deve ser feito, e a virtude acompanhada da prudncia, aquela segundo a qual o agente faz o que deve fazersegundo as boas razes. A virtude perfeita seria a indicada no segundo modo o sentido de parece ser ode tornado perfeito pela presena da razo no interior da virtude moral. A felicidade seria constituda no poruma nica virtude, mas pelas virtudes morais acompanhadas da virtude intelectual, que a prudncia. O sentidode virtude completa menos propcio, pois antes completa porque perfeita do que perfeita porque completa(Zingano, 2008, p.77). Em relao ao termo adotado para o sentido de , reconhecido pelo prprioAristteles emMet. 16, como ambguo, podendo ter o sentido de completo, o que possui todas as suas partes,ou de perfeito, e a discusso de qual sentido est ligado virtude foi grande entre comentadores antigos erenasceu com bastante impulso nas ltimas dcadas, sobretudo em lngua inglesa. De maneira geral podemosresumir o problema em duas vertentes. Tomando o sentido de completo, ento aderimos a orientaoinclusivista: a virtude completa a que possui todas as suas partes: justia, coragem, temperana e assim pordiante, esta tese defende que a melhor atividade , a contemplao. Se tomarmos o significado de perfeito,e se por isso se compreender uma entre as virtudes (a melhor e mais forte), ento j teramos a formulao datese dominante no livro I, que tende em maior parte por uma viso inclusivista da felicidade.42EN, I, 13, 1102 b.
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a ns mesmos, por meio de atividades que disponham o carter ao bem. Aristteles destaca
essa caracterstica particular das virtudes ao mencionar quanto a ns mesmos. Distingue
dois tipos de virtudes: as virtudes morais (ou ticas); e as virtudes intelectuais (ou
dianoticas). Para encontrar o termo mdio entre os dois extremos, o homem precisa utilizar a
prudncia (discernimento ou saber prtico).
O autor considera a prudncia junto com a justia, como as virtudes mais importantes. A
virtude tica mediana entre dois vcios (um por falta e o outro por excesso) 43. As virtudes
requerem experincia que implica tempo. Experincia e tempo so cruciais especialmente
para a prudncia, a virtude intelectual da parte prtica presente no Livro VI. No entanto, as
virtudes morais talvez no tivessem a mesma exigncia, quando parece ser o contrrio visto
surgirem do hbito, mas o hbito certamente requer tempo e experincia. Aristteles
demonstra que o carter resulta do hbito, isto , acentua-se o processo pelo qual o
adquirimos.
Como j vimos, h duas espcies de excelncia: a intelectual deve tanto o seu
nascimento quanto o seu crescimento instruo (por isto ela requer experincia e
tempo); quanto excelncia moral, ela o produto do hbito, razo pela qual seu
nome derivado, com uma ligeira variao, da palavra hbito44.
O agente assim levado perfeio prtica das virtudes. Mais adiante, ir mostrar que o
pleno desenvolvimento da virtude moral implica uma virtude intelectual operando em seu
43 ZINGANO. Aristteles: tratado da virtude moral; Ethica a Nicomachea I 13-III 8, 2008, p.129. Adefinio geral na concepo de Marco Zingano sobre a virtude moral na EN, termina por concluir do seguintemodo: foi mostrado que a virtude moral uma escolha deliberada ou no ocorre sem escolha deliberada (EN, 4,1106a3-4), que o gnero da virtude moral a disposio (EN, 4, 1106a11-12) e que agir virtuosamente equivalea descobrir um meio termo entre dois extremos, o excesso e a falta (EN, 5 1106b14-18). Segue o padro sobre avirtude moral, que assim como a cincia uma disposio demonstrativa (EN, VI 3 1139b31-1), a arte umadisposio produtiva (EN, VI 4 1140a4), a prudncia uma disposio de agir (EN, VI, 5 1140b5). Zinganotraduz disposio de escolher por deliberao na falta de uma opo melhor. Quanto a idia geral Marco Zingano bastante claro: trata-se de uma disposio que provm de atos de certo tipo- os que envolvem escolhadeliberada e que torna o sujeito ainda mais apto a praticar atos de tal tipo. Entendida deste modo, a disposioconsiste em um meio termo relativo a ns, isto , a escolha que ocorre em seu interior a preferncia dada, com
base em razes, a um item que figura como meio termo entre dois extremos o excesso e a falta. O padro destaescolha aquele feito pelo prudente, que pesa razes rivais e, vendo a verdade nas circunstncias em que se
produz a ao. Decide-se por isto de preferncia quilo.44EN, II, 1, 1103 b 1-5.
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interior, a saber, a prudncia45. A sabedoria () e a prudncia (discernimento) so
exemplos de excelncia intelectual, a liberalidade e a moderao so exemplos de excelncia
moral. a excelncia moral engendrada em ns, mas a natureza nos d a capacidade de
receb-la, e esta capacidade se aperfeioa com o hbito(EN, II, 1, 1103b 15-16). Isso implica
que as nossas disposies morais complementam as atividades da mesma. Da afirmar que o
mesmo acontece diante dos desejos e da ira, isto , algumas pessoas se tornam moderadas e
amveis enquanto outras se tornam concupiscentes e irascveis em razo de comportamentos
diferentes.
importante reforarmos que a investigao presente, assim como pretendia Aristteles,
visa no somente o conhecimento terico, ou seja, no buscamos apenas conhecer o que
moral, mas sim nos tornarmos bons. Assim convm examinarmos a natureza das aes, ou
seja, como devemos pratic-las; com efeito, as aes determinam igualmente a natureza das
disposies morais, o que vem a ser a razo, e como ela se relaciona com as outras formas de
excelncia.
Consideremos primeiro, ento, que a excelncia moral constituda por natureza,de modo a ser destruda pela deficincia e pelo excesso, tal como vemos acontecer
com o vigor e a sade (temos de explicar o invisvel recorrendo evidncia do
visvel); [...] so destrudas pela deficincia e pelo excesso, e preservadas pelo meio
termo46.
Toda disposio de alma naturalmente tende a ser influenciada pelo prazer e o
sofrimento, isto , tanto a excelncia moral como a deficincia moral se relacionam com asmesmas coisas. Aristteles admite que h trs objetos de escolha e trs de repulsa: o
nobilitante, o vantajoso e o agradvel, e seus contrrios: o ignbil, o nocivo e o penoso. As
pessoas boas tendem a acertar, e as ms tendem a errar, especialmente quanto ao prazer, pois
45 Observamos que a principal dificuldade desta leitura est na compreenso de no atribuirmos ao homemprudente o papel de dar definio da virtude, o que contudo uma tarefa do filsofo, pois ao prudente cabe dizerquais atos so virtuosos e no a definio da virtude moral. prefervel, portanto, voltar leitura tradicional eligar disposio de escolher por deliberao, que limitada pela razo, a saber, tal como o prudente adelimitaria.
46EN, II, 2, 1104 b 2- 15. Da a importncia, assinalada por Plato, de termos sido habituados adequadamente,desde a infncia, a gostar e desgostar das coisas certas; esta a verdadeira educao (EN, II, 3, 1104 b 37-39).
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esta a tendncia geral dos animais. Ela tambm acompanha todos os nossos atos praticados
mediante escolha, j que mesmo o que nobilitante nos parece agradvel47. Aristteles
reconhece assim como Herclito que mais difcil lutar contra o prazer do que contra a
prpria clera, mas tanto a arte quanto a excelncia moral esto permanentemente
preocupadas com o que difcil, pois at as coisas boas so melhores quando difceis (EN, II,
3, 1105 a 33-35).
Esclarecendo a inteno de Herclito com esta frase, e que Aristteles buscou reforar,
que se difcil combater o impulso, mais difcil ainda combater o prazer, tendo aqui o
sentido mais amplo de desejo48. Considerando que mediante a prtica de atos justos, o homem
se torna justo, e mediante a prtica de atos moderados que o homem se torna moderado.
Vejamos agora o que excelncia moral. J que as manifestaes da alma so de
trs espcies emoes, faculdades e disposies [...] por disposies quero
significar os estados da alma em virtude dos quais estamos bem ou mal em relao
as emoes-...49
47 Ibidem, II, 3, 1105 a 22-23. Marco Zingano comenta acerca da virtude moral aristotlica e define o termomediedade como a quididade da virtude moral. Segundo Aspsio, que infere em sentido explicativo,considera que as virtudes so destrudas, pelo excesso e pela falta no no sentido de, j constitudas, seremdestrudas, mas no sentido de terem sua constituio obstada pelos extremos; a razo seria que, uma vezconstitudas s disposies, ela j no estariam abertas aos contrrios, agindo antes assim do que no assim.
Porm, nada exclui o primeiro sentido, haja vista as teses de precedncia e prevalncia das aes sobre asadisposies (Zingano, 2008, p.107). O comentador enfatiza a tese nuclear da tica aristotlica, segundo a qual avirtude moral, embora no seja definida pelo prazer ou dor , est direta e umbilicalmente vinculadaa ambos, no sendo possvel assim, pensar a virtude como a supresso de prazer ou dor, mas como a busca desua justa medida. Os termos traduzidos como prazer e dor so considerados de modo geral sob aspectos
psicolgicos e no fsicos, isto , embora primariamente psicolgicos, prazer e dor tm uma contraparte fsica.So agregados oito argumentos que favorecem a tese que a virtude moral est ineliminavelmente ligada a
prazeres e dores. Aristteles pretende simplesmente arrolar razes para mostrara que prazer (dor) est ligado virtude (vcio), sem, contudo, adotar uma linguagem fundacionalista (o prazer no a razo ou fundamento porque uma ao boa).(2008,p108). Zingano, realiza uma observao sobre a expresso objetos de busca (EN, I, 5,1097a30-34; VII 10 1151b1), que pela traduo de Kury tende a ser traduzido por objeto de escolha.Esta listados objetos de busca aparece em Top.I 13 105a28 e III 3 118b28; e nos livros sobre a amizade Aristteles falarde trs objetos de amizade, o bem, o agradvel e o til(Zingano, 2008, p.110).48
Muitos homens no os praticam, mas se refugiam em teorias e pensam que esto sendo filsofos (EN, II, 4,1105 b 23-24).
49EN, II, 5, 1105 b 1-10.
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Conclui que se as vrias espcies de excelncia moral no so as emoes nem faculdades
s lhes resta serem disposies50. Terminando por defini-la quanto ao seu gnero. No
suficiente ento definir a excelncia moral como uma disposio, mas pertinente tambm
dizer que espcie de disposio ela . Aristteles sustenta que no por natureza que somos
bons ou maus,
Ora: nem a excelncia moral nem a deficincia moral so emoes, pois no somos
chamados bons ou maus com fundamento em nossas emoes, mas somos
chamados bons ou maus com fundamento em nossa excelncia ou deficincia moral51
.
Sobre a natureza das virtudes Aristteles faz a observao, de que nem toda ao ou
emoo admite meio termo, pois algumas delas tm nomes nos quais j est implcita a
maldade, por exemplo, o despeito, a imprudncia, a inveja em certas emoes e aes com
efeito, a maldade no est no excesso ou na falta; ela est implcita em seus prprios nomes.
Relata ento exemplos destes extremos e um clebre verso de autor desconhecido: Bravos,
pois, de um s modo, mas maus de muitos modos 52.
Uma vez que, a prudncia pressupe as demais virtudes como meio para atingir o meio
temo entre os extremos dos vcios, o conceito de virtude requer a prudncia estreitando os
laos entre essas virtudes. Conforme Aristteles, isso implica investigarmos a natureza da
escolha deliberada e sua realizao pelo prudente. A definio de felicidade retomava a idia
de certa atividade da alma, mas supunha uma investigao anterior do que pode ser a virtude
moral (perfeita) que, por sua vez, leva-nos investigao sobre a escolha deliberada e seu
papel no interior da virtude moral, mediante a introduo prospectiva de termos que ainda
sero melhor elucidados (assim como o homem prudente) 53. A questo depende do que se
compreende por logos.Pode ser compreendido por faculdade que opera decises ou como ato
50Ibidem, II, 5, 1106 a 30-31.51Ibidem, II, 5, 1106 a 14-17.52Ibidem, II, 6, 1106b35.53 Por ora importante que se compreenda que a escolher por deliberao vista como que guiada pelo
prudente que posto assim em realce ante a razo que segue, pois no teramos outro acesso que no seja o atode ele prprio personificar tal razo. Esta ltima leitura parece-me a melhor; a tica aristotlica enfatiza
justamente o papel do prudente como nosso nico critrio para saber o que deve ser feito (ZINGANO, 2008,p.130).
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ou resultado da faculdade, ento deve-se ligar o ato determinao de cada mediedade pela
reta razo. Essa orientao indica que, portanto, no seriam regras, mas antes decises, a
saber, a faculdade prtica encarnada pelo prudente54.
O Livro VI, em que Aristteles examina a virtude intelectual no mundo prtico, isto , a
prudncia completa a investigao sobre a natureza da virtude moral ao discorrer sobre a
virtude intelectual que torna a virtude moral uma virtude perfeita. A seguinte passagem
explicita a concluso sucinta do conceito de virtude definido por Aristteles:
Por meio termo quero significar eqidistante em relao a cada um dos extremos,
e que nico e o mesmo e relao a todos os homens; por meio termo em relao a
ns quero significar aquilo que no demais nem muito pouco, e isto no nico
nem o mesmo para todos [...] A excelncia moral, ento, uma disposio da alma
relacionada com a escolha de aes e emoes, disposio esta consistente num
meio termo (o meio termo relativo a ns) determinado pela razo (a razo graas
qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado
intermedirio, porque nas vrias formas de deficincia moral h falta ou excesso do
que conveniente tanto nas emoes quanto nas aes, enquanto a excelnciamoral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela , ou seja, a
definio que expressa a sua essncia, a excelncia moral um meio termo, ma
com referncia ao que melhor e conforme ao bem ela um extremo55.
No pensamento de Aristteles, tica e poltica so articuladas no sentido do homem
aprender a ser feliz procurando concretizar na vida em sociedade o bem supremo, modelando
o carter dos cidados, com a prtica repetida de aes honradas, em virtuosidade. A virtude
deve tornar-se um hbito de todos que compartilham uma determinada comunidade. Para
Aristteles indubitvel que o amigo verdadeiro um bem grandssimo para os homens, e o
identifica com o homem virtuoso. A condio para conquistar amigos bons a de nos
tornarmos bons ns mesmos, pois de fato a amizade se d entre homens reciprocamente bons
54 Observamos que a principal dificuldade desta leitura est na compreenso de no atribuirmos ao homemprudente o papel de dar definio da virtude, o que contudo, uma tarefa do filsofo, pois ao prudente cabedizer quais atos so virtuosos e no a definio da virtude moral. prefervel, portanto, voltar leituratradicional e ligar disposio de escolher por deliberao, que limitada pela razo, a saber, tal como o
prudente a delimitaria.
55EN,II, 6, 1106 b 5, 1107a 1.
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e virtuosos. O tema da amizade nos remete, com efeito, ao conceito do homem que nos
conduz dimenso da alma humana fundamentada sobre a virtude como conceitos articulados
e desdobramentos em categoria.
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3. A AMIZADE NATICA A NICMACO
O captulo anterior Os caminhos que nos conduzem felicidade constitui a base deinsero do problema refletindo sobre conceitos em conexo ao sistema aristotlico, a luz
tanto do estatuto humano da amizade quanto sobre as relaes entre tica e metafsica56.
Abordamos como pressupostos o homem no conceito aristotlico e conseqentemente o
conceito de felicidade e a fundamentao da amizade no conceito de virtude. O presente
captulo trata do problema central: amizade e suas delimitaes, destacando o fundamento da
amizade na EN, seguindo uma inquietao tica na qual identificamos a amizade como elo
de sociabilidade, que motiva a questo: por que a amizade uma virtude necessria para
todas as outras e condio da relao entre tica e poltica? Da a sucinta exposio do
contexto da amizade como tema filosfico, destacando a importncia deste conceito na EN.
Propomos o princpio interpretativo com base no conceito de Aristteles sobre a amizade
como virtude e condio da relao entre tica e poltica. Ao pensar o problema da amizade
nos reportamos descrio realizada por Aristteles quanto distino entre amor, amizade
e benevolncia, e relatamos as diferentes espcies de amizade. A dimenso abrangente da
concepo de amizade no pensamento do Estagirita requer uma exposio sobre a relao da
amizade e as virtudes de justia e prudncia, e como se articulam na deciso do poltico e na
amizade poltica.
3. 1 - O CONTEXTO DE ORIGEM DA AMIZADE COMO TEMA FILOSFICO
A amizade surgiu como problema desde a Antiguidade, no momento em que o cerne dadiscusso filosfica deixa de ser o cosmos e passa a ser o homem, num ambiente cultural e
poltico que envolve srias questes morais na filosofia antiga. Neste contexto de discusso
das relaes humanas em sociedade, faz-se necessria a discusso sobre a amizade, porque
uma das relaes que envolvem o homem em comunidade e proporciona o dilogo como
possibilidade para atingir a moderao das atitudes entre os homens. Sob este ce