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América do Sul: Economia & Política da Integração Regional Marco Cepik (org.) NERINT Coleção Estudos Internacionais Editora da UFRGS 2008

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América do Sul:

Economia & Política da Integração Regional

Marco Cepik (org.)

NERINT Coleção Estudos Internacionais

Editora da UFRGS

2008

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Ficha Catalográfica

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Sumário

Prefácio 1 – O Brasil e a Segurança Regional Graciela Pagliari 2 – Tribunal Sul-Americano e a Construção de um Estado Multinacional

Maria da Graça Hahn Mantovani 3 – O Mercosul e a Construção da América do Sul

Rogério Costa 4 – A OTCA e a Integração da América do Sul

Andrés Piedra 5 – Brasil e Argentina no Regime de Não-Proliferação Nuclear

Ricardo Castro 6 – As Empresas Brasileiras e os Desafios da Integração Regional

Mathias Luce 7 – O Setor Elétrico e a Integração da América do Sul

José Antônio Neves 8 – O Setor de Hidrocarbonetos na Bolívia

Alessandro Segabinazzi 9 – Petróleo e Integração Energética da América do Sul

Marcos Carra Referências Bibliográficas

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Prefácio

Marco Cepik 1

Este livro resulta do trabalho de discussão sobre a integração da América do Sul realizado no Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) da UFRGS ao longo dos últimos três anos.

Produzidos inicialmente como capítulos ou esboços de dissertações de mestrado de Ciência Política e Relações Internacionais, os textos aqui reunidos expressam um momento importante na formação intelectual destes jovens pesquisadores. O momento em que escolhem seus temas de interesse, definem problemas, firmam convicções teóricas e políticas e começam a profissionalizar-se nestas áreas de pesquisa. O valor maior do trabalho que o leitor encontrará aqui reside justamente na diversidade de abordagens. A motivação comum dos trabalhos é o interesse pela integração da América do Sul, suas possibilidades e os desafios de toda ordem que ela enfrenta. Desafios nascidos da própria realidade desigual da região e de seu passado, mas também das pressões sistêmicas a que ela é submetida e das contradições e incertezas nas escolhas de caminhos possíveis para a emancipação.

De modo geral, podem-se separar os capítulos do livro em dois grandes blocos. O primeiro (capítulos de 1 a 5) enfatiza as questões políticas, estratégicas e institucionais, enquanto o segundo (capítulos 6 a 9) concentra-se mais nos aspectos econômicos e de infra-estrutura, sobretudo a difícil equação energética. Entretanto, não se deve levar longe demais esta simplificação. Ela esconderia, afinal, a impossibilidade contemporânea de separar a economia da política, além de ser simplificadora em relação a uma variedade maior de estratégias de pesquisa e pontos de vista adotados pelos autores, todos sérios e motivados por um elevado espírito público e rigor analítico.

Em termos teóricos, há desde autores mais próximos de uma abordagem realista estrutural até abordagens marxistas, passando por graus variados de institucionalismo, até chegarmos a textos influenciados pelo construtivismo. Longe de significar impossibilidade de diálogo e cacofonia, a teoria comparece nos capítulos deste livro para ajudar a explicar problemas reais, não como mero adorno ou ritual acadêmico. Assim, mesmo quando os autores divergem a respeito, por exemplo, do significado das ações do governo brasileiro no processo de integração, ou do objetivo final a ser alcançado (um Estado multinacional ou uma área de livre comércio integrada pela estrutura física de transportes?), o leitor notará ao longo do volume um horizonte normativo comum em torno da necessidade de eliminação da miséria, da pobreza e da desigualdade social abissal como condição para se poder viabilizar qualquer integração significativa na América do Sul.

Em 2007, os presidentes reunidos na I Cúpula Energética Sul-americana em Isla Margarita, Venezuela, decidiram modificar o nome do mecanismo de integração regional para União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Tal decisão foi acompanhada de gestos concretos para dotar o processo de integração dos meios econômicos e institucionais necessários para responder rapidamente a uma realidade nova do sistema

1 Professor do departamento de Ciência Política da UFRGS, pesquisador do Núcleo de Estratégia e

Relações Internacionais (NERINT-UFRGS) e do Grupo de Estudos Estratégicos (GEE-UFRJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq [http://lattes.cnpq.br/3923697331385475].

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internacional: a da crise econômica nos Estados Unidos e na Europa e o crescimento acelerado da Ásia. Além de criar uma Secretaria Permanente para a UNASUL com sede em Quito, no Equador, os presidentes da região firmaram as bases do Banco do Sul, com vistas a fazer convergir as políticas de financiamento para o desenvolvimento e também constituir um fundo regional de estabilização monetária.

Dando conseqüência para a decisão anterior da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), adotada na Declaração de Cuzco em 2006, de acelerar o processo de convergência entre o MERCOSUL, a Comunidade Andina de Nações (CAN) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), os presidentes decidiram em 2007 reforçar as negociações para a incorporação da Guiana, Suriname e Chile à UNASUL. Também decidiram reunir-se anualmente e determinaram que seus ministros de relações exteriores encontrem-se semestralmente. Parece uma decisão menor, mas sinaliza um grande esforço adiante em uma região na qual os presidentes dos países reuniram-se apenas seis vezes ao longo de toda a sua história independente (todas depois de 2000, como lembra o Itamaraty). É certo que o adiamento da reunião de presidentes para o primeiro semestre de 2008 e a crise diplomática entre a Venezuela e a Colômbia mostram que este é um processo lento e difícil, mas que parece finalmente adquirir contornos mais concretos e um consenso mais amplo.

Uma comparação simples entre a UNASUL e a ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) mostra o peso potencial que a América do Sul poderá ter, caso consiga superar suas dificuldades econômicas, culturais, políticas e de segurança no processo de integração. Enquanto os dez países membros do bloco do sudeste asiático contam com uma população de 553,9 milhões de habitantes com um PIB per capita de 4,4 mil dólares, os doze países membros da UNASUL contam com uma população de 366,6 milhões com um PIB per capita de 9,2 mil dólares. Com as iniciativas de integração energética, infra-estrutura de transportes e políticas de inclusão social em curso, o processo de integração sul-americano pode sim vir a ser um dos pólos de poder mais dinâmicos do século XXI.

Isto passa, no entanto, pela resolução de duas dificuldades centrais que têm dificultado o processo até agora. Por um lado, a incorporação de uma dimensão de segurança comum na agenda da integração, essencial em um contexto internacional de fortes pressões assimétricas e transformação das bases do poder militar com repercussão direta nas balanças regionais. Por outro lado, o desafio da integração passa pela criação uma identidade cultural e cívica comum, o que numa região tão marcada por desigualdades sociais só pode ser realizado por meio de uma abordagem radicalmente multinacional e socialmente inclusiva. Ambos os desafios convergem para a natureza da aparelhagem institucional que vem sendo debatida mais intensamente na América do Sul desde 2005, a qual nos parece requerer um Estado Multinacional, democrático e vertebrado por políticas públicas criativas e de alcance estratégico.

Com certeza os capítulos a seguir contribuem muito para a reflexão coletiva que os cidadãos de todos os países da região começam a fazer sobre o futuro da União dos Países da América do Sul.

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Capítulo 1

O Brasil e a Segurança Regional

Graciela Pagliari

O término da Guerra Fria acarretou imensas transformações na segurança internacional, produzindo também uma mudança na percepção dos principais atores do sistema internacional com relação à natureza e a intensidade relativa das ameaças para a segurança dos Estados e indivíduos na nova ordem mundial, gerando assim, uma reorientação, para muitos países, de sua política externa. Durante o período da Guerra Fria a temática da confrontação bipolar vinculava-se, sobretudo, às questões militares estratégicas, finda a mesma, novos temas somaram-se aos tradicionais e passaram a conformar a agenda internacional de pesquisa e os próprios debates públicos sobre o significado da segurança.

A mudança de entendimento quanto à agenda de segurança e a emergência de novos temas na agenda pública de segurança internacional decorrentes do fim da bipolaridade, indicam a necessidade de revisar os conceitos associados à segurança internacional. Os novos temas e ameaças relacionam-se também ao reconhecimento crescente da relevância de novos atores para os quais devem ser consideradas variáveis outras que permitam explicar os fenômenos em questão e definir os instrumentos necessários e possíveis para a configuração da segurança internacional.

A reflexão proposta neste trabalho, relativamente aos problemas contemporâneos de segurança internacional, considera dois aspectos em relação ao continente americano: o primeiro, é o da evolução e crise dos mecanismos institucionais de segurança e o segundo, o da emergência de uma agenda com temas de distinta importância para os atores da região.

A América Latina configura-se como uma região desnuclearizada, estável e com baixo nível de conflito, no entanto, é uma área que ainda enfrenta problemas tradicionais de segurança de caráter fronteiriço, múltiplos conflitos de natureza diversificada e distintas vulnerabilidades, o que favorece a chamada segurança coletiva: instituições débeis, ausência de mecanismos e foros multilaterais efetivos para agir de maneira eficiente perante os conflitos, e ausência de convergência de respostas comuns às ameaças e conflitos surgidos na região.

1.1. – Limites institucionais da Segurança Regional

Os mecanismos institucionais de segurança hemisférica foram criados na década de 1940, portanto, sob a ótica do conflito bipolar, com o objetivo de afastar a ameaça comunista da região e evitar subvenções internas. Contudo, tais instrumentos tornaram-se crescentemente disfuncionais para atores como o Brasil que, no entanto, adotou ao longo dos anos 1990, um baixo grau de prioridade e uma postura defensiva e reativa em relação ao esforço de transformação das condições de exercício da segurança coletiva na região.

Os mecanismos institucionais devem ser capazes de produzir respostas a todos os tipos de ameaças à segurança no continente americano, inclusive, as tradicionais que

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continuam presentes. Da mesma forma, precisam considerar que há uma grande disparidade de ‘situações de segurança’ nas sub-regiões da América Latina pois o término da Guerra Fria não trouxe o fim dos conflitos entre Estados, o que ocorreu foi uma certa relativização no seu dimensionamento uma vez que deixaram de ser vistos como parte do conflito ideológico Leste-Oeste. Com isso, o surgimento de uma nova agenda de segurança, na qual estão colocados novos riscos e ameaças, não exclui a agenda histórica de ameaça à segurança que enfrentam os países latino-americanos.

As turbulências surgidas internamente no hemisfério serviram para reativar as preocupações com relação à segurança, e, igualmente, no que diz respeito aos temas e prioridades hemisféricas, constata-se que, se por um lado, há uma agenda de discussão comum, por outro, existem assuntos discordantes - parcial ou integralmente. Desta forma, estes propósitos divergentes com relação à natureza e às implicações da nova agenda de segurança servem para obstruir possíveis respostas efetivas regionais.

As discussões em relação aos assuntos ligados à segurança internacional e, como seu resultado, as suas abordagens e definições, produzem reflexos na agenda de política externa da América Latina e, da mesma forma, na formulação da política externa do Brasil. Por isso, a modificação da posição relativa dos principais países do hemisfério na sua inserção internacional e regional, bem como a emergência de novos temas e ameaças, devem ser considerados na definição de sua agenda.

Em relação à reflexão proposta acerca dos mecanismos de segurança hemisféricos cabe destacar que os anos 1940 marcam o surgimento dos mecanismos hemisféricos de segurança coletiva, como elementos do Sistema Interamericano. 2

Tais instrumentos foram estabelecidos sob a ótica do conflito bipolar visando afastar o comunismo da região latino-americana e evitar subvenções internas. Como instrumentos ligados à defesa e segurança mais importantes dessa ‘solidariedade e cooperação interamericana’, citam-se: a JID - Junta Interamericana de Defesa, criada em 19423, como órgão encarregado de planejar a defesa do hemisfério de agressões extra-hemisféricas; o TIAR – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca ou Tratado do Rio, celebrado em 1947, pelo qual se configura um pacto de segurança e defesa coletiva multilateral mediante o uso de métodos pacíficos de solução de conflitos, condenando o uso da força ou o recurso à guerra; a OEA - Organização dos Estados Americanos, estabelecida em 1948, na qual ficaram consagrados os princípios fundamentais para a segurança coletiva, bem como os propósitos essenciais para garantir a paz e a segurança continentais; o Pacto de Bogotá - celebrado na mesma Conferência em que foi estabelecida a OEA - pelo qual as partes acordaram abster-se da ameaça, do uso da força ou de qualquer outro meio de coação para resolver as controvérsias e em recorrer a todo tempo a procedimentos pacíficos regionais antes de encaminhar as controvérsias ao Conselho de Segurança das Nações Unidas; e, por fim, o CID – Colégio Interamericano de Defesa, criado em 1962, como órgão da JID, com o objetivo de preparar pessoal militar e funcionários civis para ocuparem cargos de responsabilidade no hemisfério.

2 Pode-se caracterizar como sistema interamericano o conjunto de instituições, regimes e acordos multilaterais e bilaterais, criados durante a década de 40 do século XX, para lidar com as relações políticas e econômicas entre os Estados Unidos e a América Latina.

3 O sistema interamericano tem suas bases institucionais estabelecidas em 1942, entretanto, a partir de 1936 foi-se delineando a adoção de mecanismos comuns de segurança e defesa, mediante a aprovação da Declaração de Princípios de Solidariedade e Cooperação Interamericana, ocorrida na Conferência Interamericana para a Manutenção da Paz.

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Assim, estavam consolidados os mecanismos de segurança coletiva do sistema interamericano. Segundo esses instrumentos, as controvérsias e conflitos entre os países do continente deveriam ser resolvidos por meios pacíficos. Contudo, apesar desses mecanismos coletivos, o Brasil manteve sua posição pela qual a defesa da segurança interna e da manutenção da paz de cada país do continente, bem como a defesa das suas instituições democráticas, são de responsabilidade de seus governos e de suas forças armadas.

Posteriormente, durante os anos 1990, outros mecanismos sub-regionais de segurança foram criados com o intuito de revitalizar o sistema interamericano, que passava pelo questionamento de sua efetividade – sobretudo do TIAR – desde os anos 1960. Com o término da Guerra Fria, a validade e a capacidade de operação destes mecanismos passaram a ser mais fortemente criticadas, uma vez que as atuais questões relativas à segurança partem de dimensões novas e mais complexas. Considerando tais preocupações os países membros passaram a discutir acerca da necessidade de revitalizar as instituições de governo regionais – em que pese, para os países americanos, as instituições terem uma influência muito limitada no que diz respeito ao comportamento do Estado. Os debates revelaram a necessidade de revitalização e fortalecimento das instituições de segurança, todavia, não foram efetivos no sentido de conduzir a um marco final de caráter ativo que indicasse claramente uma configuração das instituições possível de atender às necessidades de segurança da região.

As discussões se desenvolveram mediante cúpulas e conferências no âmbito da OEA, assinalando para um fortalecimento das instituições regionais – especialmente da própria OEA – sem, contudo, indicar o caminho das mesmas na configuração das relações interamericanas que estavam se desenhando. Esses encontros estiveram centrados em alguns pontos chaves, considerando-se os novos parâmetros regionais e mundiais. Os debates, à luz dessas novas circunstâncias, consideraram importantes questões como: o fortalecimento da democracia na região como indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento regionais; a promoção da prosperidade mediante a integração econômica e o livre comércio; medidas para avançar no fomento da confiança e da solução pacífica de controvérsias; a cooperação em matéria de defesa; o papel das forças armadas na promoção da paz, cooperação e segurança; o compromisso de preservar a paz e a segurança mediante a utilização efetiva dos instrumentos hemisféricos de resolução pacífica de controvérsias.

No entanto, como se percebe no exame dos principais assuntos da agenda de segurança, a aparente multidimensionalidade dos temas consagrados debatidos e acordados não permite concluir que se estabeleceu uma agenda multidimensional real, uma vez que não se fixou um plano de ação cooperativo e nem há uma unidade de idéias e ações entre os vários países do hemisfério.

A mudança na percepção da agenda de segurança no pós-Guerra Fria não retirou a importância das questões de segurança estratégica, conforme referido por Sato (2000). O que ocorreu foi que elas assumiram uma nova dimensão ao serem vistas de modo integrado com os novos temas da agenda de segurança internacional. Ainda, segundo o autor, a mudança desencadeada com o fim da Guerra Fria assumiu um papel importante, mas essa modificação não apareceu de modo tão evidente na composição dessa agenda, e sim, no grau da importância que passou a ser atribuída às diversas questões porque a maior parte delas já existia, o que sofreu alteração foi o modo de percebê-las.

A dificuldade em fixar uma agenda comum de segurança está diretamente ligada ao papel de sócio hegemônico que os Estados Unidos desempenham no continente. Conforme Hurrell (1998), os divergentes propósitos entre os Estados americanos com

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relação à natureza e implicações da nova agenda de segurança refletem-se em termos políticos e impedem efetivas respostas regionais. Entretanto, para Hirst (1995), a subordinação estrutural à presença hegemônica dos Estados Unidos na América Latina tem servido para neutralizar o poderio econômico e militar desigual entre os Estados latino-americanos. Contudo, essa sujeição não tem impedido os países da região de desenvolverem políticas de defesa divergentes que, em algumas ocasiões, foram levadas adiante. A superioridade norte-americana que se mostra no sistema internacional no pós-Guerra Fria tem trazido inúmeras implicações para a agenda de segurança do hemisfério, inclusive, os Estados Unidos valeram-se dos diversos desacordos referentes às questões de segurança entre os países do hemisfério e passaram a negociar acordos bilaterais em detrimento da multilateralidade.

Para os países da região, o conteúdo e o significado das ameaças à sua segurança são indicados a partir da análise de sua posição relativa na balança de poder hemisférica; isto é, a pauta pode variar de acordo com os interesses em jogo. Assim sendo, a multidimensionalidade da agenda não se traduz em respostas aos problemas e ameaças aos diversos países do hemisfério, mas sim, na reiteração da relação Estados Unidos-América Latina ao caracterizar, com uma nova roupagem, esta relação na medida em que os principais temas da agenda continental continuam a ser os indicados pelos Estados Unidos.

O sistema interamericano mostrou-se, ao longo do tempo, ineficaz para responder positivamente às necessidades da região, ainda mais no atual momento em que as ameaças tradicionais perderam espaço na agenda norte-americana para outras de caráter mais difuso e em que as temáticas têm sido tratadas bilateralmente, permitindo pouco espaço para os organismos de concertação e reduzindo ainda mais o já estreito campo de ação.

As mudanças desencadeadas com o fim da Guerra Fria produziram diferentes reflexos entre os diversos Estados e regiões e se, num primeiro momento, o multilateralismo parecia emergir, posteriormente, o unilateralismo dos Estados Unidos nas ações relativas às questões de segurança internacional, passou a colocar em cheque a utilidade dos regimes internacionais de segurança.

Para responder a este novo cenário da segurança internacional, os países hemisféricos ampliaram os conceitos e as abordagens tradicionais para englobar as novas ameaças e as não-tradicionais que abrangem aspectos econômicos, políticos, sociais, de saúde e ambientais. Essa abordagem multidimensional de segurança hemisférica - adotada pela Declaração de Bridgetown (2002) - vai muito além do tradicional conceito de segurança vinculado à defesa da soberania e da integridade territorial. Para os Estados hemisféricos, muitas das novas ameaças e desafios a sua segurança são de natureza transnacional e podem requerer uma cooperação hemisférica adequada, bem como a arquitetura de segurança deve ser flexível para incluir as particularidades de cada sub-região e de cada Estado.

1.2 - A visão brasileira sobre as dinâmicas regionais de segurança

Apresentadas, de uma maneira geral, as questões de segurança regional, cabe refletir acerca dos desafios e constrangimentos que se apresentam para o Brasil, relativamente a sua participação nos mecanismos de segurança coletiva, bem como nas demais dinâmicas regionais de segurança.

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Enfocando-se a região verifica-se que, desde o final dos anos 1970, tem avançado a aproximação entre os vizinhos do Prata, intensificando-se com o final dos regimes militares e o retorno à democracia. Do mesmo modo, a política externa brasileira tornou-se mais assertiva em relação à região e o fortalecimento de sua atuação na América do Sul coloca ao Brasil a importância em atentar aos temas, dinâmicas de poder subjacentes e mecanismos institucionais de segurança da região.

O novo cenário internacional marca a emergência de uma agenda de temas e conteúdos de importância distinta para os atores relevantes na região. Assim, a América do Sul apresenta situações de segurança muito distintas: o Cone Sul tem desenvolvido políticas de aproximação por meio de medidas de fomento da confiança, enquanto a região andina/amazônica apresenta importantes dinâmicas de segurança, sendo o verdadeiro campo de tensões desde os anos 1990.

Numa perspectiva histórica das relações do Brasil com o eixo andino/amazônico, o que se percebe é que a estratégia brasileira se volta para duas frentes: a do Prata e a Andina. Se durante o período colonial aquela foi a de maior importância em função do potencial de conflito, nas duas últimas décadas o potencial de conflito se desloca para o norte, quando o eixo andino/amazônico ganha importância estratégica e uma agenda cada vez mais complexa. Durante os anos 1970, a ação do Brasil foi “muito mais orientada para evitar o isolamento político do que para aumentar efetivamente a presença política do país e ampliar sua área direta de influência” (SENNES, ONUKI e OLIVEIRA, 2004, p. 11). No entanto, na década seguinte, a percepção foi no sentido de que a principal preocupação de segurança era a região amazônica e não a Argentina, sendo necessário ao Brasil eliminar as desconfianças que os seus vizinhos tinham de que era expansionista e aliado especial dos Estados Unidos.

No pós-Guerra Fria o Brasil tem pautado sua política pela defesa da democracia e apoio à criação de mecanismos para garanti-la, como elemento fundamental para a manutenção da segurança. Assim, o governo brasileiro desenvolveu um relativo distanciamento da política da superpotência, não se envolvendo nas iniciativas de segurança internacional protagonizadas pela mesma. Tanto nos níveis regional quanto global, o Brasil tem procurado agir para contrabalançar a hegemonia norte-americana “reforçando a correlação entre o status de potência regional e o cálculo de opções internacionais”, conforme Oliveira e Onuki (2000, p. 110). Nesse sentido, sua ação tem sido de forte adesão aos regimes internacionais de segurança4 e também de adoção de uma política de prioridade da América do Sul, visando a articulação de um espaço de atuação sul-americano para, por meio dele, formar um eixo de confiança militar e política.

O multilateralismo e a ênfase na região sul-americana como área de influência se apresentam como os pilares fundamentais da inserção estratégica brasileira, delineados já nos anos 1990. Da mesma forma, apesar de não aceitar integralmente a nova agenda, o Brasil passa a incorporar o conceito amplo de segurança5. Contudo, essa incorporação

4 O Brasil ratificou o Tratado de Tlatelolco (1994); o TNP (1998); o Acordo Quadripartite de Salvaguardas Nucleares com a Argentina (ABACC e AIEA, 1994); e, no plano global, aderiu ao Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR, 1995); ao Grupo de Supridores Nucleares (NSG, 1996); e a Organização para a Proibição das Armas Nucleares (OPAQ, 1996).

5 Veja-se, a titulo de exemplo, o conceito de segurança utilizado pela Política de Defesa Nacional de 2005: “A segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças”.

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é, antes de tudo, seletiva na medida em que se tem o avanço em temas como o narcotráfico, mas há a preocupação em não se envolver em temas como o terrorismo.

A abordagem multidimensional para a segurança hemisférica que inclui as ameaças tradicionais e as novas ameaças, foi adotada para o sistema interamericano a partir da Declaração de Bridgetown de 2002. Posteriormente, foi reiterada na Conferência Especial de Segurança ocorrida no México em 2003, e enfatizada na Declaração de Quito, elaborada na VI Conferência de Ministros de Defesa das Américas, em 2004. Essa nova concepção de segurança reflete uma agenda plural e a manifesta vontade política dos Estados membros de fortalecer um regime de segurança hemisférico que atenda às condições geográficas, políticas, sociais, culturais e econômicas de cada país ou região, e as necessidades de cada Estado, da maneira que seja mais adequada, contribuindo assim, para aumentar a segurança na região. Contudo não se pode perder de vista, que existem diferenças de percepções entre as realidades político-estratégicas de cada região que precisam ser consideradas e respeitadas. As realidades diversas que, em muitos casos, apresentam fatores de desestabilidade ou crises políticas, permitem visualizar a fragilidade da região. Dessa forma, a idéia de que o entorno regional do Brasil é estável perde força na medida em que a questão do conflito colombiano é colocada de maneira crescente como uma grave ameaça uma vez que não se vislumbra uma saída de curto prazo, seja militar ou política. O fato de o Brasil ter se posicionado contrariamente à intervenção militar para o tratamento do conflito não foi seguida de nenhuma outra atitude que pudesse vir a contribuir para o encaminhamento da situação a um fim satisfatório.

O Brasil tem, historicamente, defendido posição contrária à militarização6, ou seja, atribuir às forças armadas o envolvimento em atividades que não têm sido suas tradicionalmente como, por exemplo, o combate às drogas. Tal posicionamento se justifica na medida em que o Brasil considera que o crime organizado e seus efeitos deveriam ser combatidos pelas forças policiais. A militarização gera preocupações em relação à segurança pública, pois apresenta conseqüências políticas, econômicas e sociais para todos os Estados da região. Para demonstrar, a militarização do combate ao tráfico de drogas na Colômbia em decorrência da aplicação do Plano Colômbia provocou deslocamento da população, aumento da violência e da insegurança. Apesar dos recursos de segurança oferecidos pelos Estados Unidos desde o início da década de 1990, houve um aumento da violência e da violação dos direitos humanos: entre 1990 e 1998 a Colômbia erradicou quase 220 mil hectares de cultivos ilícitos, os cartéis de Cali e Medellín foram desmantelados, mas o Estado não se fortaleceu e o poder dos atores armados cresceu (TOKATLIAN, 2002).

As questões consideradas na agenda como ligadas à segurança pública são as preocupações de destaque entre os países das Américas. Conforme apresentado por Bailey at al. (2001), a segurança pública engloba a segurança das pessoas e de seus bens contra agressões ou ameaças internas ou externas; a segurança física ou psicológica contra ameaças ou agressões físicas de outros; a segurança do cidadão contra coerção ilegal de agentes do Estado e a proteção às instituições democráticas. Para responder às ameaças à segurança pública, os governos empregam esforços para melhorar a cooperação entre forças de segurança7 e aprofundar a cooperação internacional.

6 Tal posição é contrária à defendida pelos Estados Unidos e adotada pela maioria dos países andinos. 7 Estas forças podem incluir Polícia Civil, Inteligência, Forças Militares e Agências de Controle de Fronteiras.

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Assim, o Estado tem a responsabilidade de combater o crime com os recursos humanos e materiais de suas forças policiais - sem incluir as forças armadas - para salvaguardar a liberdade, a vida e a propriedade, os direitos e garantias do povo, e as instituições de acordo com suas Constituições nacionais. E, visando eliminar os problemas de segurança pública, fazer interagir, dentro do sistema democrático, as instituições e as pessoas. O Brasil e países como Argentina, Bolívia, Chile e Colômbia apresentaram, nos últimos anos, estratégias para lidar com as questões relacionadas à segurança pública.

Todavia, os países da América do Sul têm sido incapazes de enfrentar de maneira eficaz esses problemas, como salienta Oliveira (2004); fator que gera vulnerabilidade também em função de componentes sociológicos como a fome, a pobreza extrema, delitos transnacionais e a fragilidade de alguns sistemas democráticos. Potencialmente, pode se tornar uma ameaça aos Estados latino-americanos na medida em que as suas estabilidades podem ser rompidas por conflitos internos ou transnacionais, como parte das novas ameaças à segurança dos Estados. Por isso, conforme análise de Estévez (BAILEY at al., 2001), as vulnerabilidades que ameaçam as democracias da região não podem ser desconsideradas na análise das questões de segurança, eis que os problemas de criminalidade e violência impossibilitam a estruturação de uma cultura democrática, causando instabilidade nos países da região.

Tal vulnerabilidade também fica demonstrada em relação à Amazônia – fator que é compartilhado com os vizinhos brasileiros - pois é uma área que apresenta, de uma maneira geral, problemas associados à desocupação, à escassa presença do Estado, e, decorrentes dessa ausência, inúmeros problemas sociais. Tal estrutura desenvolve um ambiente favorável à implantação e florescimento de atividades à margem da legalidade, tais como a questão das drogas e do tráfico de armas, segundo Vaz (2002).

Apesar de a grande maioria dos países americanos compartilharem esses problemas, pouca coisa em comum tem sido feita para resolvê-los. O Brasil tem demonstrado preocupação com a estabilidade na América do Sul, mas ela somente será possível se as ações forem desenvolvidas de maneira multilateral, sobretudo, articulando o espaço sul-americano. Pois, no caso de Estados que não possuem capacidade operacional adequada, a criação de estruturas comuns é uma alternativa a ser aprofundada.

1.3 - Breves considerações finais

Convém destacar que a adesão brasileira às instituições de segurança hemisféricas ou regionais no pós-Guerra Fria tem sido estabelecida na medida do seu peso relativo na balança de poder do subsistema americano, dessa forma, leva em conta os cálculos de custo-benefício dessa participação, considerando o grau de autonomia da política externa brasileira e a possibilidade de resistir à supremacia norte-americana. O Brasil parece ter se preocupado em influenciar mais diretamente a sua sub-região, e mostra-se mais disposto a institucionalizar os mecanismos nos quais o seu poder relativo é menor.

Não obstante essa relação de poder e dos cálculos a ela correlatos, a evolução político-econômica da década de 1990 fez com que as várias regiões do hemisfério e alguns países mais importantes priorizassem diferentes estratégias, mecanismos institucionais e temas de segurança. Neste período, diversos mecanismos sub-regionais foram sendo criados e - a despeito da retórica de que eles não fragmentam o continente,

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mas promovem sua união resguardando as diversidades de segurança de cada uma das regiões - servem, em última instância, para indicar uma regionalização da agenda e uma carência dos mecanismos existentes em unir o hemisfério em torno deles.

Portanto, a nova agenda, mais do que considerar as necessidades de segurança dos países do hemisfério, representa, até aqui, uma tentativa de acomodar descontentamentos sem alterar a relação de supremacia dos Estados Unidos no continente. Apesar de essa agenda parecer mais democrática porque considera, em sua composição, as distintas preocupações com segurança, ela não estabeleceu mecanismos de resposta às necessidades de segurança dos diversos países.

A despeito do papel marginal da América Latina na agenda internacional global dos Estados Unidos, os efeitos das suas políticas de segurança se refletem no continente. As prioridades como o terrorismo e o combate às drogas têm prevalecido na agenda norte-americana, expandindo-se para toda a região - especialmente os Andes - e vêm desencadeando respostas unilaterais que ocasionam uma ainda maior fragmentação política. As diferentes prioridades e necessidades de segurança geram múltiplas agendas, por isso, é muito difícil encontrar uma resposta efetiva comum que sirva para todos os dilemas de segurança apresentados na região.

A aproximação do Brasil com a América do Sul resulta também de uma tentativa de integrar o espaço sul-americano e permitir certa autonomia em relação à agenda de segurança dos Estados Unidos. A adoção de uma agenda de segurança comum entre esses países, permitiria fortalecer a integração. Mas, para isso, tanto no nível regional quanto sub-regional, o Brasil ainda precisa articular de maneira muito mais intensa uma política de segurança comum que vá além dos resultados já obtidos com as medidas de fomento da confiança entre os países do Cone Sul.

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Capítulo 2

Tribunal da América do Sul: Uma concepção cibernética da integração regional

Maria da Graça Hahn Mantovani

A prática e a doutrina do intervencionismo vêm-se alastrando em nome do “direito à

intervenção humanitária”. O intervencionismo é a feição mais visível da guerra assimétrica. Através de uma cibernética perversa, estamos diante de uma situação em que a guerra assumiu um papel de controle nas relações internacionais. 8

Este trabalho considera que, se atualmente a guerra é feita em nome do Direito, então temos de multiplicar os organismos que distribuam a justiça e controlem a guerra. Embora promover a justiça seja tarefa de toda a comunidade política (o Estado em sentido amplo), parece razoável reconhecer que um Tribunal é o principal éthos de distribuição da justiça.

Daí a proposição da criação de um Tribunal Sul-Americano como componente “anti-sistêmico”. Em relação à assimetria da guerra, opomos a simetria do Direito; à guerra “on-line”, contrapomos a justiça “on-line”; à batalha dirigida à distância em tempo real, propomos a justiça distribuída à distância também em tempo real; à cibernética autoritária, que pratica o controle através da automação e da guerra, afirmamos a cibernética aberta e o controle democraticamente distribuído. Em suma, trata-se de enfrentar o caos sistêmico através da construção de instituições supranacionais. 9

O Tribunal apresenta esta noção na medida em que cria elementos para forjar um consenso e sugerir aos Parlamentos nacionais bases legais para a ação dos exércitos sul-americanos contra os problemas que, alegadamente, trazem a presença de tropas norte-americanas à América do Sul. Trata-se, portanto, de criar a “interface” pela qual Estados e povos dispõem de suas forças militares para fazer frente ao narcotráfico, ao terrorismo e ao separatismo.

8 O termo “Cibernética” (do grego, ``kybernetiké'', que significa piloto, timoneiro, no sentido utilizado por Platão para qualificar a ação da alma) foi cunhado por Norbert Wiener em 1948 como o nome de uma nova ciência que visava à compreensão dos fenômenos naturais e artificiais através do estudo dos processos de comunicação e controle nos seres vivos, nas máquinas e nos processos sociais.

9 Conforme destaca Giovanni Arrighi, o caos sistêmico refere-se “a uma situação de falta total,

aparentemente irremediável, de organização (...) trata-se de uma situação que surge por haver uma escalada do conflito para além do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendências contrárias, ou porque um novo conjunto de regras e normas de comportamento é imposto ou brota de um conjunto mais antigo de regras e normas, sem anulá-lo, ou por uma combinação dessas duas circunstâncias. À que aumenta o caos sistêmico, a demanda de ‘ordem’ – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! – tende a se generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a oportunidade de se tornar mundialmente hegemônico.” ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora da Unesp, 1996, p. 30.

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Há, portanto, a necessidade de instituições tais como o Tribunal Sul-Americano, o qual se constitui numa resposta estratégica em profundidade ao desafio da guerra assimétrica e numa ferramenta para a realização efetiva dos ideais de liberdade, igualdade e de justiça, realizando uma integração assentada na eqüidade e presidida pelo controle de seus custos.

2.1 - O Perfil do Tribunal da UNASUL

Já discutimos o propósito geral do Tribunal como idéia-força da integração: símbolo da primazia do direito sobre a força. Vale citar, não obstante, que nossa preocupação é compartilhada por membros do corpo diplomático, como o Embaixador Argentino no Brasil, Juan Pablo Lohlé, que salienta a importância da segurança jurídica para o processo de integração e de um Tribunal a que “possam ter acesso os Estados, as pessoas físicas e jurídicas”

10 (grifo nosso).

Resta, agora, tentar unir estas duas idéias: a “máxima” de um Tribunal que, em conteúdo, é uma resposta à guerra assimétrica e ao intervencionismo, e a “mínima”, de um Tribunal permanente que se ocupe das questões de integração. Em suma, trata-se de difundir como construir um Tribunal que distribua justiça e cidadania e não, tão-somente, uma corte para julgar litígios comerciais.

Trata-se de um Tribunal comunitário, mas que tenha em seu escopo finalidades afetas também à segurança. Só assim poderemos derrubar o muro de irresponsabilidade que divide os países da região entre aqueles que se atêm estritamente ao conceito westfaliano de soberania, como o Brasil, e os que fazem da soberania um “conceito” para defender o “direito” dos mais fortes, como aconteceu no Equador quando foi dissolvido seu Tribunal Superior.

Por isso, no desenho institucional que defendemos, o Tribunal Sul-Americano deverá ter a seu cargo o julgamento de questões relativas ao narcotráfico, ao terrorismo e ao separatismo. Por mais de vinte anos, desde as redemocratizações e o lançamento do Mercosul, esperamos pelo surgimento de uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Diante de sua ausência, devemos ter no Tribunal um instrumento que vá forjando a PESC enquanto decide, de forma prática, sobre as mazelas que afetam a região.

Para ter a devida legalidade e legitimidade no julgamento de casos de tal natureza, o Tribunal deverá contar com membros das Supremas Cortes dos Estados-membros das nações da comunidade sul americana. Assim, haveria uma “fração” da magistratura de cada Corte Suprema que cumpriria um mandato de tempo determinado, no qual se dedicará preferencialmente às questões da comunidade sul-americana, sejam essas de natureza comercial ou de segurança. O Tribunal Sul-Americano será virtual, pois seu funcionamento, graças às tecnologias da informação e comunicação, poderá se dar, à distância e em tempo real, on-line. A seleção dos membros da fração será feita mediante sufrágio universal, podendo serem eleitos apenas os juízes já em exercício nas Supremas Cortes nacionais dos respectivos Estados-membros. Possuem direito a voto, portanto, todos os cidadãos aptos, em cada nação, conforme sua legislação nacional.

Dessa forma, associa-se o critério da reconhecida competência (pois se trata de juízes em exercício de funções supremas na Magistratura), com a necessidade da

10 LOHLÉ, Juan Pablo. www.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1605200409.htm (Acessado em 26/05/2004).

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legitimidade e do consentimento que deve cercar qualquer processo de desdobramento de tropas e ações multilaterais combinadas dos Estados-membros.

O que torna o processo de construção deste Tribunal inédito é sua “virtualidade”, a qual lhe permite fazer às vezes de interface, que objetiva a democracia e a faz permear no conjunto de sistemas e organismos. O Tribunal é um organismo que, além de ser intergovernamental, é também supranacional. 11

A noção de virtualidade está ligada ao ambiente em que se opera. Virtual, cumpre salientar, não deve ser tomado no sentido de “eventual” ou de “irreal”. O Tribunal virtual é real, reúne-se como qualquer outra corte de justiça, porém, de forma on-line. A digitalização das comunicações permitirá que essas reuniões se dêem em tempo real, sem o delay de que padecia a antiga “telemática”, baseada exclusivamente nas telecomunicações (telefone). Assim, cada fração que compõe o Tribunal permanece em seu país, não havendo a exigência de investimentos em prédios ou pessoal, quesito que geralmente demanda novos órgãos públicos.

Aqui se evidencia que a dimensão do Tribunal como interface (mediação orgânica e de esfera de relações) para implantar a democracia desde o âmbito continental até o local de trabalho e moradia dos cidadãos. Esta possibilidade de inovação está articulada a três inovações. A primeira é dada pela própria natureza do Tribunal, virtual; a segunda, pela imitação e ampliação dos juizados especiais, já existentes na Justiça Federal no Brasil; a terceira, pela faculdade, já dada pela Justiça Federal brasileira por qualquer cidadão, mesmo sem advogado, de poder ingressar com ação no Tribunal, dirigindo-se diretamente à Magistratura.

No tempo em que não estiverem sob demanda da Comunidade de Nações, os magistrados poderão dedicar-se às suas funções rotineiras. A “sede” do Tribunal, o que na diplomacia dá margem a inúmeras negociações, é simbólica, podendo perfeitamente ser rotativa, pois se trata de um sistema de “inteligência distribuída”, em que cada “nó” (fração nacional) é autônomo e “inteligente”, isto é, tem autonomia para, por conta própria, acionar os demais e dar funcionamento ao sistema.

Trata-se de uma tecnologia de fronteira na área da cibernética, que suscita um sem número de aplicações, ligadas às mais diversas áreas. Elas vão da segurança à educação, passando por todos os ramos da atividade humana que envolve a comunicação. Como veremos adiante, o processo brasileiro de “governo eletrônico” (que, mais propriamente, deveria chamar-se “governo digital”) já fornece inúmeros exemplos nesta direção. Ao mesmo tempo, a rede na qual se assenta a infra-estrutura do Tribunal permite uma verdadeira “revolução” em termos administrativos, cujos efeitos, sem prejuízo da segurança judicial, permitem maior celeridade no processo de julgamento.

A capacidade de operação do Tribunal Sul-Americano como interface dependerá, em larga medida, tanto da eficiência com que operar a distribuição da Justiça quanto da aparência de eficácia de suas decisões. Assim, deve haver um fio condutor claro, através do qual o Tribunal “informa” a sociedade seu conteúdo ético, e um mecanismo visível de retroalimentação através do qual a sociedade “vê” chegarem ao Tribunal seus anseios, seus valores e suas demandas. O aspecto ligado à eficiência e à eficácia depende em larga medida, das TICs e da organização cibernética em sentido estrito (harmonização entre programas, máquinas e cidadãos).

11 Intergovernamental porque se fundamenta no respeito à soberania dos Estados-membros. Supranacional

porque permite o exercício de poder em certas áreas nas quais os Estados-membros assim delegaram, no caso, o poder de julgar.

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2.2 - Integração Supranacional Como Revolução Nacional

Entendemos por “revolução” a real concretização da cidadania e da soberania de um Estado. Trata-se de criar instituições que tornem reais as condições para o desenvolvimento econômico de um país. Para alcançar estes objetivos, não raro faz-se necessário o cancelamento da estabilidade e da ordem vigentes. Já dizia Marx que toda a revolução que cancela uma velha sociedade é social. Ao derrubar uma “velha ordem”, a revolução social converte-se em revolução política. A isso, podemos acrescentar: para construir uma nova sociedade e uma nova ordem, a revolução erige-se em instituições. Portanto, se toda revolução social é política, toda revolução política é institucional.

No âmbito da América do Sul, a contribuição de alguns autores nos é fundamental para delinear o processo revolucionário que pode ser desencadeado pelo Tribunal Sul-americano. O primeiro deles, Celso Furtado, demonstra a importância dos chamados “centros de decisão”. Segundo Furtado, o que distinguiu a economia do Brasil colônia em relação ao Brasil moderno foi justamente a entronização de centros de decisão por meio da industrialização. Significa dizer que o que distingue uma colônia de um país soberano é a conquista, por parte do último, de centros de decisão materializados na industrialização do país.

Dentro dessa perspectiva, a economia brasileira de ciclos (pau-brasil, café, cacau, borracha, charque, etc), ao estar condicionando a exportação de um único ou de poucos produtos à demanda e preços dos centros hegemônicos, torna-se “dependente”, tal como pensaram Cardoso e Faletto. Mas a diferença entre a dependência brasileira e de seus vizinhos foi a capacidade que o Estado brasileiro teve de industrializar-se após a Revolução de 1930. A mudança do centro dinâmico da economia do setor agro-exportador para o da indústria permitiu a emergência de uma estrutura capaz de orientar minimamente a economia para as demandas da população nacional. Por meio dos centros de decisão, as instituições governamentais têm a possibilidade de orientar a produção nacional. A sociedade conhece e controla o que produz. Mais do que conseqüências econômicas, observamos que o desenvolvimento sempre traz implicações políticas, alterando o sistema social de dominação.

É justamente nesse sentido que o Tribunal é revolucionário. Uma vez que sua natureza será virtual, necessita-se de tecnologia e componentes avançados. Está aqui a oportunidade para gerarmos um centro de produção de semicondutores e componentes digitais. A produção de semicondutores é tão decisiva para o País como foi, a seu tempo, a indústria do aço, a do petróleo, e a nuclear. Trata-se de começarmos a construir, a partir do Tribunal, as bases institucionais, sociais e econômicas de um Estado multinacional democrático na América do Sul.

Neste processo, a inclusão social é decisiva. Trata-se de gerar um centro de decisão capaz de irradiar para as favelas sul-americanas redes de produção e de consumo de aparelhos e componentes digitais, pois este o único modo de consolidarmos o desenvolvimento nacional. Cada período do século XX teve um tipo de indústria de importância fundamental para o desenvolvimento: nos anos 1930, a siderurgia; na década de 1960, a química fina; agora, na era da digitalização, são os semicondutores. O risco da desindustrialização pela falta de domínio da tecnologia, pelo sucateamento do parque industrial (com o colapso insuportável nível de emprego e renda), ou pela elevação a patamares proibitivos do consumo de alta tecnologia por parte da indústria – é uma ameaça que faz da necessidade do controle público da digitalização uma questão de segurança nacional e de soberania também, por este viés indireto.

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Deste modo, nos termos de Furtado, a economia de ciclos torna-se permanentemente superada; na concepção de Cardoso e Faletto, rompe-se a dependência. Há, não obstante, um terceiro autor que oferece uma contribuição essencial para entendermos como estes processos podem se difundir pela América do Sul. Hélgio Trindade afirma: “(...) a interação entre a cultura política democrática e os efeitos da crise econômica constitui-se na variável estratégica para entender os limites da consolidação democrática”. Mais adiante, o autor assevera: “(...) podem ser criadas novas formas de estruturação institucional que, resguardadas as identidades nacionais e regionais, tornem-se um fator de consolidação das novas democracias”. 12 Como resposta aos problemas da falta de crescimento econômico e à consolidação das sempre frágeis democracias sul-americanas, surge a idéia de “uma nova forma institucional”: o Tribunal sul-americano. Por meio de novas instituições, empresas interagem, mercados se unificam, sociedades se aproximam: os problemas nacionais encontram solução em nível regional. Há uma portanto uma sinergia nas esferas política, econômica e social realizada por um processo de realimentação. Parafraseando os fundadores da Escola francesa dos Annales, trata-se, apenas, de constituirmos “novos problemas, novos enfoques e novas abordagens”: a proposta inédita do Tribunal, ao consolidar a integração, representa a resposta a dois dos dilemas clássicos da reflexão sociológica: democracia e desenvolvimento.

O Tribunal significa, portanto, além da materialização dos projetos de integração, a conclusão dos processos revolucionários na América do Sul. É a partir de instituições como essa que as mudanças revolucionárias se realizam de forma efetiva ou não. Este ponto é importante para constatar os motivos da vitória do modelo institucional da Revolução Americana sobre aquele das revoluções que a sucederam (francesa, russa e chinesa). A revolução americana, por ter sido presidida por instituições, permitiu que os custos do processo de construção dos Estados Unidos em um Estado continental fosse metabolizado socialmente. Trata-se, aliás, de não outra coisa que a democracia. Trata-se de um dispositivo complexo que permite relacionar entre si sistemas complexos: Estados e sociedades, através de uma grande “interface” (que é o próprio Tribunal), constituindo um sistema que integra organismos (cidadãos) e sistemas (Estados) de forma aberta. Ao constituir-se como sistema que regula a “entrada” e a “saída”, que altera e dispõe sobre os sistemas originários – os Estados sul-americanos –, o Tribunal permite uma realimentação da democracia e da justiça com a manutenção de um sistema estável.

Este é o propósito maior do Tribunal Sul-Americano: constituir-se em um instrumento, uma interface, uma mediação orgânica, que permita controlar a própria mudança (a integração dos Estados) mantendo, contudo, os sistemas globalmente estáveis. Este artifício é o que permite realizar a revolução “do fim para o início”, ou seja, das instituições para a guerra, com os fins humanos presidindo os meios para dar-lhes consecução. Em suma, a função do Tribunal Sul-Americano é efetivar, em bases legais e legítimas, o controle social na integração sul-americana, através da distribuição da justiça concluindo, destarte, os processos revolucionários na América do Sul.

2.3 - Digitalização no Brasil e o Estado na América do Sul

Neste assunto, nos deparamos com outro importante aspecto: a digitalização da justiça, os autos digitais e o processo cibernético de assinatura. A digitalização dos processos permitiu uma expressiva economia aos cofres públicos, uma redução de custos

12 Cf. TRINDADE (2000: 371-378).

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na operação do governo, de empresas e de particulares. Promoveu maior celeridade e agilidade de decisão; processos que antes, na sua forma física, demoravam dias com seus autos tramitando entre as partes, com prazos predefinidos para que tomassem ciência dos mesmos. Agora, os autos são disponibilizados, simultaneamente, a todas as partes. Um exemplo de benefícios oriundos da tecnologia ocorreu recentemente, quando um processo em tramitação na Justiça Federal, envolvendo 14 pessoas indiciadas pelo tráfico de mulheres para a Europa, teve sua fase de instrução concluída em aproximadamente dois meses. A velocidade explica-se pela participação das tecnologias de informação e comunicação na atuação cotidiana da Magistratura. Nesse caso, o juiz federal Walter Nunes da Silva Junior, da 2.ª Vara Criminal Federal de Natal, adquiriu um software que permite que depoimentos prestados em juízo sejam gravados no disco rígido do computador. Foi o que tornou possível realizar todos esses interrogatórios em um dia. Mais importante: a disponibilidade do texto por meio digital, sem necessitar de papéis. Trata-se dos referidos autos digitais. 13

Em casos como o do juiz Walter Nunes da Silva Junior, em que todos os depoimentos foram tomados em dois dias, por gravação em disco rígido, há a necessidade de um trabalho adicional: trata-se do processo de digitalização por estenotipia. O uso do estenótipo, (máquina dotada de teclas especiais para transcrição estenográfica de palavras inteiras através de símbolos) é um velho conhecido nosso. Podemos observá-lo com freqüência, não apenas em tribunais, mas em câmara de vereadores e legislativos de qualquer ordem. A novidade aqui é sua acoplagem ao computador, mediante um software que converte instantaneamente a linguagem da estenotipia em linguagem natural. Com isso, ganham as partes que se vêem atendidas em menor prazo; ganha o Judiciário, que se agiganta por sua eficiência e eficácia; e, sobretudo, ganha o Estado brasileiro e a cidadania.

Ainda em relação ao caso aludido, temos mais um caso exemplar, da maior relevância para este trabalho e para o Tribunal Virtual Sul-Americano. Trata-se da prática de audiências on-line, através de vídeo-conferência. Em outro processo por tráfico internacional de drogas, o réu, detido em Natal, deveria ser ouvido, como testemunha, por uma juíza holandesa, cuja vara era sediada em uma das principais cidades daquele país, Roterdã. A parte brasileira fez todos os preparativos necessários; no entanto, a conferência não saiu: a justiça holandesa não dispunha dos meios adequados14. “Fiquei

13 Na justiça, o processo é comumente denominado de “virtual” e a assinatura que recebe sua autenticidade das respectivas partes, equivalente em tudo à do processo comum (que é autenticado com firma reconhecida em cartório) é denominada “eletrônica”. Não adotaremos tais expressões posto que, em nossa visão, o processo (os autos) não têm como serem “virtuais” porque não são ambiente, trata-se meramente de “dados”. Ambiente é um lugar onde se transita, onde transitam organismos e sistemas; ao que se saiba ninguém fez isso no interior de autos, apenas de modo figurado. No ambiente virtual, as pessoas realmente transitam, não é mera força de expressão ou figura de linguagem. Quanto à assinatura dita “eletrônica”, ela é, na verdade, cibernética. Trata-se de um processo de interação clássico entre a inteligência humana (portadora de uma determinada senha alfanumérica) e a da máquina, com um sistema programado previamente para abrir processo e reconhecer assinaturas que, mediante uma interface (um cartão semelhante aos que se usa em bancos), garantem a devida autenticidade às firmas com margem de segurança igual ou superior à do cartório.

14 A justiça holandesa ainda não chegou à digitalização: suas conexões com a Web mundial dependem

exclusivamente das telecomunicações. Como só dispunham de acesso discado, não era possível realizar a conferência que transmite, via digital (“banda larga”) e em tempo real imagens e sons. Para nós, é muito importante que a Justiça Federal brasileira tenha precedentes no uso de plenos virtuais como um exemplo para alavancar o Tribunal Virtual Sul-Americano.

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surpreso em ver que estamos muito mais adiantados que eles, inclusive no acompanhamento judicial, que lá não é feito como aqui”, reconheceu, perplexo, o juiz Walter Nunes da Silva Junior. 15

A modernização do Judiciário brasileiro não se resume a episódios isolados, como podemos constatar pelo conteúdo das declarações do Ministro Edson Vidigal, Presidente do Tribunal Superior de Justiça (STJ), as quais transcrevemos abaixo:

“De pouco vale um projeto de democracia e uma constituição, por mais legítima na sua promulgação, se o estado não se aparelha, se o estado não se oferece à cidadania, ao povo, nas condições plenas de cumprir suas promessas, que só na democracia são possíveis". (Grifos nossos)

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Vidigal afirma também:

“Agora mesmo, nós já tivemos aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado um projeto que vai possibilitar essa ampliação dos serviços judiciários a todo o povo brasileiro, utilizando, de forma plena, todas as tecnologias da informática". (Grifos nossos). (...)"Quanto mais informatização no processo judicial, mais cidadania vamos ter no Brasil e, portanto, mais democracia, e a República mais se afirmará no cumprimento das promessas democráticas escritas na Constituição" (Grifos nossos).

Isto não significa que qualquer Estado, em qualquer lugar do mundo, seja capaz de atender a todas as demandas de seus cidadãos; sinaliza, porém, que o Estado deve ser capaz de manter viva a expectativa de que algum dia será capaz de fazê-lo. Paradoxalmente, isso depende mais da eficácia do que da eficiência, já que a impressão da cidadania acerca do rendimento, do desempenho do seu Estado, é capturada mais por símbolos do que propriamente por uma modesta eficiência administrativa de longo prazo. Assim, ironicamente, pouco importa ao cidadão comum se “as variáveis macro-econômicas estão favoráveis” ou se o país antecipa o pagamento da dívida externa ou, ainda, se os governos ao longo do tempo têm mantido um “superávit primário”. Mesmo os que compreendem o significado dessas expressões, os cidadãos têm maiores preocupações com seus filhos voltando para casa, incólumes, de que com o quadro de estatísticas do qual nos valemos para atrair investimentos estrangeiros.

2.7 - Conclusão

Como procuramos demonstrar, os juizados especiais, as assinaturas cibernéticas, os processos digitais, a abertura de processo sem a obrigatoriedade de constituir advogado, as audiências virtuais (vídeo-conferência ou outros ambientes virtuais)

15 Marcelo Auler, o autor da matéria aqui citada, é jornalista [Boletim ConJur] Notícias Conjur - 30/01/2006.

Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2006. www.conjur.com.br (Acesso em 02.02.06).

16 Notícias do STJ: http://www.stj.gov.br/webstj/Noticias/ (Acesso 21/02/2006) quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006 12h35min - Acesso à Justiça Federal facilitado a milhares de brasileiros com assinatura de convênio.

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remetem a Justiça brasileira irreversivelmente ao campo da cibernética. A dificuldade, seja ela de natureza conceitual, terminológica ou até psicológica, está em constatarmos que pisamos já no terreno da cibernética, incompreensão que só tem criado dificuldades ao poder público no que diz respeito a dimensionar o desafio que tem pela frente.

O Tribunal Sul-Americano surge como a perspectiva de sincronização de todas essas inovações as quais, em seu conjunto, significam a afirmação de três valores que se opõem “simetricamente” à guerra assimétrica.

O primeiro valor é a utilização das simetrias constitucionais entre os países sul-americanos como “protocolo de autenticação” que, na ausência da PESC e da Constituição Sul-Americana, permite à Magistratura romper os impasses da integração, assumindo inclusive a parcela de responsabilidade constitucional que lhe cabe no processo de formação da comunidade sul-americana. Trata-se de cumprir um mandamento constitucional que designa aos Supremos a palavra final em questões constitucionais (vale dizer, em matéria de soberania), e compartilhar com os Executivos a direção do processo de integração.

O segundo valor está articulado à noção de “justiça em tempo real”, em oposição à “batalha em tempo real”, o que se torna possível graças a um processo de associação simultânea de ambientes virtuais, de computadores (plataformas e programas) e de redes. Através do Tribunal Sul-Americano, a “capilarização da justiça”, em uma rede que cubra todo o continente sul-americano, torna-se uma realidade factível. Este expediente revigora a idéia da onipresença, da eficiência e da eficácia da Justiça na vida do homem comum.

O terceiro valor, em oposição à idéia da “guerra on-line”, (trata-se de uma noção falsa, mas largamente difundida no senso-comum, de que a guerra digital é um “vídeo game”), diz respeito à afirmação da “Justiça on-line” explorando a noção de simultaneidade e acesso direto do homem comum (mesmo sem constituir advogado) à Suprema Magistratura do Estado. Trata-se de, por meio da Justiça, tornar a cidadania onipresente na vida de todos, e de cada um, dos cidadãos sul-americanos.

Não obstante, para além da segurança jurídica e da simetria legal, o Tribunal tem de enfrentar o processo de “automação” do direito. Ou seja, de buscar uma forma de tomar decisão, de criar jurisprudência, que não desvincule tão radicalmente o direito da soberania popular, como pretendem Bielefeldt e outros teóricos do direito. Trata-se, enfim, de um modo pacífico de levar a termo a revolução nacional, através da consecução de seus objetivos principais – a soberania e a cidadania – e, ao mesmo tempo, projetar um ideal de integração supranacional em que esta se dê não apenas pela união de governos e povos, mas, sobretudo, pela distribuição da justiça e a realização do bem-comum.

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Capítulo 3

O Mercosul e a Integração da América do Sul

Rogério Santos da Costa

As Relações Internacionais possuem uma dinâmica peculiar nas últimas décadas, e que se manifesta mais intensa a partir do fim da Guerra Fria. Ao mesmo tempo em que se processa um movimento de integração global, também se observa um movimento de integração regional. O movimento regional é, antes de mais nada, um movimento de fragmentação do seu correlato em âmbito global. Desta forma, as principais potências globais ou regionais estão aglutinando suas forças regionais em processos de integração como forma principal de inserção internacional. A América do Sul está inserida neste processo e a formatação e desenvolvimento da Comunidade Sulamericana de Nações, CASA, é o resultado político institucional dos países da região para a dinâmica global.

A conformação de uma Comunidade Sulamericana de Nações ensejará uma articulação político institucional dos Estados da região, e o resultado deverá espelhar as experiências e expectativas dos membros com o processo de integração. Neste sentido, conhecer as experiências de integração da região pode nos auxiliar a projetar possíveis contornos para a CASA, seus limites e possibilidades.

Este trabalho propõe uma análise institucional de um dos principais processos de integração da região, o do Mercado Comum do Sul – Mercosul, como forma de impulsionar o debate e o entendimento sobre as implicações que a formação da CASA ensejará sob a ótica das suas instituições. A questão a ser respondida é a de como a experiência institucional do Mercosul poderá afetar na formação e no desenvolvimento da Comunidade Sulamericana de Nações.

Trabalhamos com dois grandes pressupostos neste trabalho: primeiro, que os processos de integração regional tendem a obter melhores resultados quanto maior for a intensidade da sua institucionalização, e segundo, que a experiência institucional das integrações na América do Sul condiciona o desenvolvimento de instituições da Comunidade Sulamericana de Nações.

O artigo possui mais quatro seções, além desta introdução. Na próxima faz-se uma exposição da formação e desenvolvimento do Mercosul com ênfase na sua institucionalidade, na seguinte delimitamos as principais linhas do debate sobre as instituições do Mercosul. Na seção quatro levantamos algumas hipóteses avaliativas sobre as instituições do Mercosul tentando verificar a sua efetividade, enquanto que na seção seguinte, a guisa de conclusão, dedicamos atenção às possibilidades institucionais da CASA a partir da experiência do Mercosul, incluindo possíveis desdobramentos práticos em termos de pesquisa para aprofundamento da temática.

3.1 – Desenvolvimento Institucional do Mercosul O final do período desenvolvimentista na década de setenta para Brasil e Argentina

é também um período de transição de seus regimes políticos autoritários para a democracia, prenúncio de uma década marcada por crises de dívidas, guerras desastrosas, dificuldades macroeconômicas e de desenvolvimento social. Porém, é neste

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cenário turbulento que vão ganhando força e forma as tratativas que irão aproximar os dois países até a formação do Mercado Comum do Sul, o Mercosul.

Em 1979, Argentina, Brasil (juntamente com Paraguai) assinam Acordo para a regulação do uso do rio Paraná, e em 1980 um Acordo na área nuclear. Em 1985 é celebrada a Ata de Iguaçu que visou estreitar a cooperação, e culminou no ano seguinte com a criação do Programa Conjunto de Integração e Cooperação Econômica - PICAB, envolvendo diversas áreas. Já em 1988 é assinado o Tratado Bilateral de Integração, Cooperação e Desenvolvimento com o objetivo de criação de uma área de livre comércio entre os dois países no prazo de dez anos, portanto, deveria estar concluso em 1998. Esta aproximação entre os dois países foi regida por princípios de gradualidade, flexibilidade, simetria e equilíbrio, e que viriam a se consolidar no próprio Mercosul, com repercussões na sua estrutura institucional.

No início dos anos 90, os presidentes Collor do Brasil e Menem da Argentina assinam a Ata de Buenos Aires, objetivando a criação de um Mercado Comum, não mais uma Zona de Livre Comércio - ZLC, para 1995, ou seja, uma ambição maior e 3 (três) anos antes do prazo inicial para a criação de uma ZLC17. Em 1991 é assinado o Tratado de Assunção criando o Mercosul em 1995, incluindo Uruguai e Paraguai.

Do ponto de vista institucional, a aproximação entre Brasil e Argentina se constituía de Normas Internacionais, mais exatamente de Protocolos assinados entre os dois países, sem nenhuma vinculação orgânica específica para eles, ou seja, todos os efeitos práticos em termos de tomada de decisão eram operacionalizados pelas respectivas estruturas próprias dos dois Estados. Isto até 1990, quando a Ata de Buenos Aires criou o Grupo Mercado Comum e lhe deu a incumbência de criar um projeto para a criação de um Mercado Comum. No Tratado de Assunção foi criada uma estrutura institucional provisória, partindo de um Conselho Mercado Comum - CMC, de um Grupo Mercado Comum – GMC e de uma Secretaria Administrativa. O GMC poderia criar Subgrupos de trabalho, tendo inicialmente criado 10 (dez) deles em diversas áreas temáticas.

A estrutura institucional definitiva veio a se consolidar com o Protocolo de Ouro Preto, assinado em 1994 e que entrou em vigor em dezembro de 1995. Nesta houve a confirmação da estrutura provisória e uma pequena ampliação. Podemos agrupar as instituições do Mercosul em 2 grandes conjuntos. Uma é o conjunto das instituições decisoras e executoras, composto pelo Conselho Mercado Comum – CMC, o Grupo Mercado Comum e a Comissão de Comércio do Mercosul. O outro é o conjunto das instituições consultiva, arbitral e de assessoria técnica-administrativa, e é composto pelo Parlamento do Mercosul (que em 2007 tomou o lugar da Comissão Parlamentar Conjunta), Fórum Consultivo Econômico-Social, Tribunal Permanente de revisão do Mercosul, Secretaria do Mercosul, bem como o Tribunal Administrativo-Laboral do Mercosul e do Centro Mercosul de Promoção do Estado de Direito.

Os órgãos do primeiro conjunto são os principais órgãos do Mercosul e passam por eles os principais temas polêmicos da institucionalidade da integração.

Composto por Ministros de Relações Exteriores e de Economia, o Conselho Mercado Comum é o principal órgão, tendo poderes legislativos, detém a personalidade jurídica do Mercosul e toma suas decisões por consenso. Possui em suas subdivisões as Reuniões de Ministros, definidas por área, Grupos Técnicos de Alto Nível que trabalham em assuntos especificados pelo CMC, como o que trata de assuntos institucionais, além

17 Resgatamos este elemento na análise da experiência institucional do Mercosul comparada à da União Européia.

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de Grupos de concertação política no auxílio do CMC. Neste último agrupamento cabe salientar a existência do Foro de Consulta e Concertação Política (FCCP) e a Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM). O CMC somente adota decisões com a presença de todos os Estados membros.

O FCCP é formado por altos funcionários das chancelarias dos Estados parte e tem como função a aproximação política entre os Estados parte e os Estados associados nas áreas de agenda política e política externa comum. Já o CRPM possui uma forte conotação política e objetiva assistir ao CMC e ao presidente pró-tempore do Mercosul em tudo que seja solicitado, podendo representar o Mercosul em fóruns e negociações com outros Estados ou Organizações Internacionais.

O Grupo Mercado Comum (GMC) é composto por quatro membros por país, neles obrigatoriamente incluídos originários do Ministério das Relações Exteriores, da Economia e do Banco Central. É o órgão executivo do Mercosul e encarregado de regulamentar as decisões do CMC e administrar a integração, além de negociar com terceiros sob mandato proferido pelo CMC. Possui vários grupos de negociação e discussão que auxiliam na tomada de decisão, como subgrupos de trabalho, grupos, grupos ad hoc, grupos de alto nível, reuniões especializadas e comitês. É detentor da capacidade de criar a agenda decisória encaminhada ao CMC. O resultado do processo decisório do GMC recebe o nome de Recomendações e nas mesmas condições das Decisões emanadas do CMC.

A Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) é um órgão criado no Protocolo de Ouro Preto de 1994, e tem como principal atribuição ser uma espécie de administrador das regras comerciais criadas, dando assistência ao GMC a quem está hierarquicamente subordinado, almejando o bom funcionamento da União Aduaneira. Além disto, é responsável por receber e encaminhar procedimentos de Reclamações na área comercial, ou seja, mediação de conflitos comerciais, bem como fazer acompanhamento e revisão de temas relativos à política comercial comum intra e extra Mercosul. Sua composição obedece à mesma lógica do GMC e o resultado de seu processo decisório recebe o nome de Diretiva.

Os órgãos do segundo conjunto apontado anteriormente possuem, ainda, relevância secundária no processo decisório do Mercosul, mas em alguns reside a base de algumas críticas aos problemas institucionais da integração. Dentre estes destacamos a Secretaria do Mercosul (SM), o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (TPR), o Fórum Consultivo Econômico-Social (FCES) e o Parlamento do Mercosul. A SM tinha um caráter administrativo desde o período de transição, passou ao papel de Secretaria Técnica em 2003, mas ainda conserva um caráter mais administrativo em suas ações. O TPR foi instituído pelo Protocolo de Olivos, de 2003, e constitui-se num marco pela iniciativa de tentar criar uma jurisprudência mercosulina a partir da interpretação uniforme das regras. O FCES é o órgão criado com a incumbência de fazer a articulação das demandas e interesses da sociedade civil para os órgãos decisórios do Mercosul. Já o Parlamento, que se efetivou enquanto tal em 2007 após um longo período enquanto Comissão Parlamentar Conjunta tem como principal atribuição, além desta última relacionada ao FCES, a de facilitador da internalização das decisões do Mercosul, alvo das principais críticas ao modelo institucional intergovernamental.

Na seção seguinte apresentamos o que acreditamos serem as principais linhas do debate acerca da institucionalidade do Mercosul, que serão complementadas com a perspectiva de análise das suas instituições na seção subseqüente.

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3.2 – Supranacionalidade e Intergovernamentalidade no Mercosul Como processo de integração regional, o Mercosul faz parte de um movimento que

tem como ponto original mais recente a constituição das Comunidades Européias na década de cinqüenta, desenvolvendo até os dias atuais um complexo e intricado método de integração e de tomada de decisão que envolve instâncias supranacionais e um ordenamento jurídico comunitário, ou um Direito Comunitário. Por isto, muito do debate sobre as instituições do Mercosul tem como origem uma comparação ao modelo europeu.

Um dos mais importantes destes debates é sobre a natureza das instituições do Mercosul, que se reverte numa possível dicotomia supranacionalismo versus intergovernamentalismo. Nesta questão, como de resto quase todo o processo de integração mercosulino, o debate toma como ponto de referência a experiência do velho continente. Assim, é possível elencar algumas defesas e críticas ante uma ou outra perspectiva institucional da integração. 18

Na defesa da supranacionalidade, ou da criação de instituições supranacionais, há o argumento de que esta é uma condição necessária para a realização completa do que está previsto no Tratado de Assunção, ou seja, de um Mercado Comum entre os Estados membros. Estas instituições teriam capacidade de harmonização e comando de políticas macroeconômicas, pelo menos, deixando o processo menos dependente das dinâmicas políticas nacionais. As crises relativas à desvalorização do real em 1999 são utilizadas para corroborar o que ocorre sem uma instância supranacional. Neste caso, as instituições supranacionais seriam partes de um processo de soberania compartilhada com os Estados, portanto, com um viés político.

Ainda no campo da supranacionalidade, seus defensores pregam que instituições supranacionais possuem uma maior capacidade de realizar as demandas da sociedade civil a partir das maiores facilidades de acesso, transparência e legitimidade. Este é um aspecto relevante do debate sobre o Mercosul, pois é recorrente colocá-lo como um processo estado centrado, com baixa participação da sociedade civil.

Os defensores da supranacionalidade no seu âmbito jurídico advogam que estas instituições teriam isenção para criar uma jurisprudência comunitária, a partir da interpretação e aplicação uniforme das normas emanadas do processo decisório do Mercosul. Além disto, numa estrutura supranacional as normas teriam aplicabilidade direta ao serem decididas, não precisando uma internalização como na forma intergovernamental. Estes aspectos, e que serão resgatados adiante, são problemas recorrentes e mais críticos na perspectiva da eficácia do processo decisório do Mercosul.

Do ponto de vista dos defensores da intergovernabilidade há argumentos que contestam as premissas da supranacionalidade. Uma destas diz respeito ao desequilíbrio que uma estrutura supranacional traria como resultado das assimetrias existentes entre os Estados membros. Com peso muito superior em termos econômicos, territoriais e populacionais, o Brasil estaria propenso a ceder soberania para uma instância supranacional na medida em que os mecanismos de decisão fossem ponderados pela representatividade de cada sócio na integração, como o é em grande parte das instituições supranacionais européias. Nesta situação, as assimetrias trariam uma super-representação do Brasil no processo decisório.

18 Um trabalho de sistematização e análise da parte brasileira deste debate é feito por Lorentz, 2001. Nas suas conclusões, aponta que a constituição brasileira não permite a criação de instituições supranacionais, o que também é matéria controversa.

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Por isto, instituições intergovernamentais garantem aos sócios menores do Mercosul voz de Estado, como também existe a voz do bloco. Assim, instituições intergovernamentais legitimariam as decisões porque contam com peso decisório idêntico entre membros com grandes assimetrias19. De igual modo é a perspectiva da decisão por consenso e a necessidade de presença de todos os membros para a tomada de decisão no Mercosul, que tende a perder em rapidez, mas em compensação tende a ganhar em legitimidade.

Uma outra defesa de instituições intergovernamentais diz respeito à incompatibilidade entre instituições supranacionais e presidencialismo. Como a supranacionalidade é exercida no âmbito de governo e a intergovernamentabilidade no âmbito do Estado, os sistemas presidencialistas dos países membros do Mercosul seriam incompatíveis, ao contrário da tradição da maior parte dos países da União Européia, de tradição parlamentarista, onde há a separação entre governo e Estado.

Uma última e importante defesa da intergovernamentabilidade é a de que no estágio de União Aduaneira, que mais atende à realidade atual do Mercosul, é inadequado o processo de decisão numa estrutura supranacional pelas dificuldades inerentes ao processo e a necessidade de flexibilidade. A idéia é de que com uma estrutura intergovernamental tem-se uma flexibilidade para um processo do tipo sop and go, com possibilidades de reversão parcial e temporária de decisões em função de problemas nacionais, numa palavra, flexibilidade. Esta foi, efetivamente, a grande argumentação da política externa brasileira durante boa parte do governo de Fernando Henrique Cardoso, que passou pelas maiores dificuldades do Mercosul com a desvalorização de 1999 e a crise Argentina posterior20. Nestes momentos, esta flexibilidade se fez eficaz, mas não sem demonstrar problemas estruturais do ponto de vista institucional, como veremos a seguir.

Outros aspectos do debate sobre as instituições do Mercosul são relevantes para o entendimento dos limites e possibilidades do bloco, dando à dimensão institucional a relação com as questões pertinentes a todo o processo de integração, evitando uma análise “puramente” institucional típica em parte do debate anterior. Elegemos alguns destes itens, e que são abordados de forma sintética em seguida:

a) Assimetrias: o estabelecimento de instituições internacionais em geral, e os processos de integração em particular, possuem na questão das assimetrias entre os membros uma centralidade. Segundo Young21, as assimetrias agudas tendem a facilitar a criação de instituições internacionais, mas diminuem as possibilidades de sua efetividade em função das imposições do membro mais forte e das desconfianças e não legitimação dos mais fracos. Uma forma de aumentar esta efetividade é o exercício contundente da liderança dos membros com mais força22.

No caso do Mercosul, as assimetrias são utilizadas para justificar tanto a necessidade de instituições supranacionais quanto de intergovernamentais. Além disto, as

19 Vizentini, 2003. 20 Na segunda metade do seu segundo mandato FHC começava a dar sinais de que, em algum momento à

frente, o Mercosul deveria implementar instituições com certo grau de supranacionalidade. 21 Young, 2000. 22 Krasner (1992), nesta linha, afirma as dificuldades que existirão na formação de blocos com países em

grandes assimetrias de desenvolvimento econômico, além de capacidades de poder desigual e contando apenas com países em desenvolvimento.

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assimetrias também apontam para duas questões relevantes: por que um país pequeno precisa se integrar com um maior e por que este precisaria de países menores? Se a questão é estratégica há respostas condizentes. No Mercosul, um grande problema está, por um lado, na insuficiência de vantagens para os sócios menores, Uruguai e Paraguai, e por outro na insuficiência dos sócios maiores, Brasil e Argentina, em assumirem o ônus do aumento destas vantagens aos menores. De qualquer forma, este aspecto relativisa o peso das instituições do Mercosul nos resultados do bloco.

b) Contexto internacional: um dos principais objetivos estratégicos de aproximação de Brasil e Argentina e de criação do Mercosul é o de criar condições para uma melhor inserção dos sócios em escala internacional. O contexto internacional da origem do bloco era de fim da bipolaridade, e a opção adotada visava evitar o isolamento. Neste cenário e, apesar da aproximação anterior entre Brasil e Argentina, a ênfase em políticas neoliberais e a corrida pelo atrelamento automático por parte do governo Menen na Argentina levou a uma indefinição da necessidade do Mercosul para melhorar a inserção internacional. É em meio a este processo que ocorre a adoção da estrutura institucional definitiva do bloco, através do Protocolo de Ouro Preto, explicando em parte a adoção da mesma estrutura institucional “conservadora” e em parte as dificuldades de efetivar as regras emanadas desta estrutura institucional.

c) Contextos nacionais: além do contexto internacional apontado acima, no contexto nacional encontramos os dois outros objetivos estratégicos do Mercosul, a consolidação da democracia e o desenvolvimento econômico e social. O desenrolar do primeiro destes objetivos mostra que as sociedades nacionais têm conseguido seguir num ritmo de consolidação de suas democracias, e o formato institucional do Mercosul contribuiu para, por exemplo, evitar um golpe de Estado em 1996 no Paraguai. Por outro lado, esta própria estrutura institucional é apontada como limitadora do acesso da sociedade civil na tomada de decisão acerca das questões regionais, o que nos remete a uma limitação de aprofundamento dos processos democráticos nacionais.

Por seu turno, o desenvolvimento econômico-social23 possui duas etapas e duas esferas de implicações. Na primeira etapa, até a desvalorização do real em 1999, temos um processo de ampliação do comércio intra-regional, mas que possuía um caráter instável em função dos Planos Econômicos de Brasil e Argentina que estavam sendo implementados. Na segunda etapa, temos uma tendência à consolidação econômica dos países do bloco, após o caos argentino, porém, os fluxos de Comércio Exterior começam a mostrar sinais de diminuição do ritmo de crescimento, remetendo ao problema do esgotamento do próprio processo de integração em sua etapa de União Aduaneira, ainda que imperfeita. É neste momento que começam a ficar claras as limitações que o processo sofre em termos de aprofundamento da integração, e que possui elementos fundamentais do ponto de vista institucional.

É a partir daí que crescem as críticas aos limites da institucionalidade do Mercosul para avançar ao seu grande objetivo, o Mercado Comum. Não se trata da reprodução pura e simples da dicotomia supranacionalidade versus intergovernamentabilidade, mas sim da constatação da dificuldade da estrutura institucional em realizar a aproximação e a coordenação macroeconômica, condição não só para se chegar ao Mercado Comum, como para evitar as ações unilaterais desestabilizadoras que foram a desvalorização do real e os correlatos argentinos.

23 Toma-se como pressuposto que os impactos econômicos devem ter relação direta com os impactos sociais, apesar de toda controvérsia que esta relação enseja. É uma posição em função dos objetivos e das características deste trabalho.

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Há ainda de se salientar que, comparado aos períodos anteriores, os últimos anos têm dado ao Brasil (em maior grau) e à Argentina uma condição de buscar alavancar o processo de integração e marcar a liderança, em algum sentido, uma condição importante para a evolução da integração. Por outro lado, a questão a ser respondida é até que ponto o Brasil estaria disposto a aprofundar a integração e seus instrumentos institucionais numa condição cada vez maior de aumento de sua relevância no cenário internacional, cujo desempenho econômico nacional é um corolário importante.

3.3 - Avaliações sobre a institucionalidade do Mercosul A evolução do processo de integração no Mercosul remete a algumas linhas de

avaliações sobre a importância da sua estrutura institucional para os seus resultados e perspectivas. Nesta seção, procura-se apontar aquelas que têm sido recorrentemente ressaltadas em estudos orientados para esta temática, aliado a perspectiva deste trabalho de apontar suas possíveis implicações na formação da CASA em sua vertente institucional.

Inicialmente parece importante abordarmos as características da integração mercosulina ante sua antecessora no velho continente, a União Européia. Se por um lado é importante ressaltar a experiência européia em integração como parâmetro para pensarmos as instituições no Mercosul, por outro é impossível desconsiderar as características históricas e os condicionantes políticos e sócio-econômicos específicos.

Desta forma, as Comunidades Européias nascem com fim primeiro de evitar guerras, com instituições supranacionais, um viés funcionalista e com apoio da potência vencedora da guerra. Já o Mercosul nasce com fim primeiro de consolidação democrática, desenvolvimento sócio-econômico e como forma de melhorar a inserção internacional, mas com instituições intergovernamentais, um viés político e com uma ação desestabilizadora da potência mundial e regional, cujo primeiro objetivo foi dividir para reinar.

Acrescentamos ainda o tempo dedicado ao amadurecimento dos processos de integração. Enquanto a União Européia possui uma experiência que extrapola a casa dos cinqüenta anos e, nesta trajetória, viveu momentos de crise, estagnação e retração, o Mercosul tem uma experiência de pouco mais de dez anos, o que é um elemento relativisador quanto à análise de suas instituições. Este fato fica agravado pelo encurtamento do prazo e alargamento dos objetivos no início da década de noventa com os governos Menen e Collor. Assim, acreditamos ser importante o debate comparado das instituições de integração da União Européia e do Mercosul, mas não são, de per si, capazes de explicar as fissuras e descaminhos que o Mercosul vem acumulando no decorrer da sua trajetória.

Uma recorrente avaliação da questão jurídico-institucional do Mercosul é feita por Felix Peña24, que chama atenção para a importância econômica deste aspecto. A importância das instituições não está, a priori, ou seja, na sua configuração a partir de uma perspectiva teórica ou histórica. A importância das instituições está relacionada à sua capacidade de criar e manter as regras do jogo confiáveis e previsíveis.

Regras do jogo confusas afetam as percepções de ganhos mútuos, sustento político do Mercosul e da sua estrutura política, bem como diminuem a credibilidade que

24 O autor estuda e publica sobre o assunto desde o início do processo de integração do Mercosul, conforme referenciado.

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os agentes privados dão ao processo, e que, numa situação de incerteza, agregam de forma limitada as opções regionais nas suas decisões estratégicas de investimento. Uma situação desta acaba reforçando os investimentos nos países com maiores condições de atração, o que reforça os descontentamentos e descaminhos da integração, diminuindo as possibilidades de aprofundamento da complementaridade entre as economias dos sócios.

Para Peña25, uma possibilidade para o Mercosul é ter 3 (três) qualidades daqui em diante, retiradas da análise de sua experiência. Primeiro, uma questão institucional fundamental diz respeito à aceitação dos sócios em restringir a propensão a ações unilaterais arbitrárias, em desacordo com as regras aceitas. Segundo, uma flexibilização das regras do jogo para atender aquilo que sempre foi pregado como importante para o Mercosul, atender às dificuldades conjunturais de algum Estado membro, mas só até o ponto em que não prejudique a previsibilidade e confiança. Terceiro que tenha legitimidade social para sustentar as políticas, as regras, os instrumentos e as instituições de uma forma geral. Em suma, institucionalizar a flexibilização que já existe historicamente no Mercosul.26

A perspectiva acima remete a outras direções de avaliação institucional do Mercosul. Uma dela diz respeito à internalização das normas. A ausência de aplicabilidade direta das decisões emanadas das instituições do Mercosul faz com que elas precisem ser internalizadas. Em alguns casos isto significa medidas administrativas, em outros significa a aprovação de lei para poderem vigorar. Neste processo há dificuldades de interpretação da decisão e sua respectiva internalização, justamente pela dificuldade de homogeneização da norma emanada do bloco, ou um direito comunitário. Ainda tem-se as dificuldades com o tempo em que as decisões são internalizadas, o que causa um processo de congelamento da entrada em vigor das decisões, pois ela precisa estar internalizada em todos os membros27. Quando está internalizada em um Estado ela passa a vigorar internamente, mas não necessariamente regionalmente, o que causa insegurança jurídica para os agentes privados.28

Mas é em seu aspecto político que reside a maior dificuldade da internalização das normas do Mercosul. As deficiências no processo de internalização foram detectadas e medidas tomadas no sentido de eliminar os entraves, uma delas é a principal incumbência da Comissão Parlamentar Conjunta, desde 2007 o Parlamento do Mercosul. No entanto, as barreiras dos agentes privados nacionais, na busca de manterem seus interesses particulares, é mais eficaz nos órgãos técnicos responsáveis pela internalização e nos congressos responsáveis pela criação das leis de internalização. Em média, a dinâmica de internalização resulta no represamento de 70% para as decisões do CMC, 63% das Resoluções do GMC e 59% das diretivas do CCM29.

Este aspecto revela o déficit democrático e de acesso às decisões do Mercosul por parte da sociedade civil. O Foro Consultivo Econômico-Social não significou uma maior

25 Peña, 2007. 26 Peña;Rozemberg, 2005, criticam a flexibilidade existente até então no Mercosul no sentido de que ela tem

sido capaz de resolver problemas, mas não de evitá-los, o que também remete à problemática da desconfiança quanto às regras do jogo.

27 Gamelo, 1998. 28 Peña, 2005. 29 Herz, 2005.

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participação e legitimação das decisões por parte dos nacionais, pois suas recomendações pouco se refletem nas instituições decisórias do bloco. Por isto, são mais fortes os caminhos nacionais para travar ou destravar as decisões no Mercosul, para a busca de interesses por parte dos grupos de pressão e, portanto, pelo fortalecimento de uma estrutura institucional leve, mas ao mesmo tempo frágil e causadora de instabilidade e insegurança. A avaliação mais correta neste caso é a de que estas dificuldades institucionais de aprofundamento, ou mesmo da efetividade da institucionalidade prevista, reflete a dificuldade dos Estados membros em praticarem políticas de médio e longo prazo, estando o processo sujeito à dinâmica das agendas eleitorais de cada membro.

O processo de tomada de tomada de decisão merece avaliação igualmente no que diz respeito ao fluxo das decisões, particularmente no que diz respeito à passagem dos subgrupos de trabalho para o Conselho Mercado Comum. Os subgrupos de trabalho têm conhecido um processo de autonomização e distanciamento dos objetivos estratégicos do Mercosul, seja porque estes objetivos estão mais difusos com o desenvolvimento do processo, seja por estarem os subgrupos tratando de assuntos onde possuem suas posturas, ideologias e relações políticas próprias adquiridas em suas vertentes nacionais. Pelo seu próprio caráter, cuja ênfase é em questões especializadas, estas propostas de decisões emanadas dos subgrupos de trabalho acabam esbarrando na dificuldade de entendimento e acerto entre os membros do CMC, causando o que Bouzas (2002) chama de “inflação normativa”, processo que remete a uma paralisia em decisões no Mercosul que poderiam estar dando dinamismo ao bloco.

Segundo Bouzas (2002), o modelo institucional adotado no Mercosul, que enfatiza a negociação, a flexibilidade e a adaptabilidade responde às condições de demanda e oferta por instituições que o processo tem estabelecido, e que são verificáveis em processos de integração assimétricos. Do lado da demanda, as fracas relações de interdependência iniciais são responsáveis pelas débeis pressões por instituições, e que não se modificaram mesmo após o período de forte expansão comercial dentro do bloco. Do lado da oferta, ressalta que os lideres do processo de integração precisam estar disponíveis a criar instituições em função dos retornos esperados da integração, ou seja, se existem incentivos fora do processo mais atraentes que os internos não há predisposição dos lideres ao aprofundamento da institucionalidade na integração.

Nesta linha é importante levantar a tese de estudo recente de Vigevani (2007), corroborada por estudos anteriores, como de Ginesta (1999). Tullo Vigevani argumenta em seu estudo que a institucionalidade do Mercosul é a conjunção de dois fatores. De um lado, os princípios da política externa do Brasil, de soberania e universalismo, e, de outro, a adequação da estrutura intergovernamental aos interesses de parte das elites brasileiras, cujos interesses estariam atendidos nesta estrutura.30 Para Ginestra, o Mercosul reflete um projeto político brasileiro, o que, aliado às perspectivas de soberania e universalismo, resultaram nesta estrutura institucional.

Por fim, há que se considerar alguns indicativos de que o Mercosul passa por uma dinâmica institucional em transformação e que pode refletir no seu aprofundamento. São reflexões a partir de movimentos como a criação da Comissão de Representantes Permanentes, a criação do Fundo de Convergência Estrutural, a contratação constante de consultores e funcionários próprios, as mudanças nos sistemas de solução de controvérsias e o papel do Tribunal de Revisão, bem como a recente criação do Parlamento do Mercosul. Apesar de o Protocolo de Ouro Preto (POP) aparecer como

30 Corrobora este argumento estudo de Vizentini, 2001.

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definindo a “estrutura institucional definitiva” do Mercosul, seu artigo 47 prevê que os Estados parte podem convocar conferência diplomática para rever tanto as atribuições dos órgãos como a própria estrutura institucional criada com o POP.

3.4 – Considerações finais O desenvolvimento do Mercosul não deixa dúvidas sobre as dificuldades

encontradas em função de sua estrutura institucional. Não se trata apenas da dicotomia entre instituições supranacionais e intergovernamentais, mas da qualidade das instituições e de como elas dão respostas aos desafios do processo de integração. Assim, se por um lado as características institucionais do Mercosul deram capacidade para os países membros agirem de forma isolada em conivência (ou não) com os outros, não deram respostas quando o processo precisou de um aprofundamento no sentido de completar a União Aduaneira e rumar para a formação do Mercado Comum.

Uma das questões cruciais da integração, com sérias implicações do ponto de vista institucional, são as assimetrias encontradas entre os membros do Mercosul. A criação do Fundo de Convergência Estrutural é um caminho para buscar diminuir estas disparidades, ao mesmo tempo em que deve incorporar as economias de Uruguai e Paraguai no circuito econômico de Brasil e Argentina, alcançando níveis maiores de complementaridade e interdependência econômica. A entrada da Venezuela enquanto membro pleno vai aliviar, em parte, as assimetrias existentes entre os Estados do Mercosul. A possibilidade de ampliação do processo de integração para a América do Sul indica uma possibilidade de que, em uma situação de diminuição das assimetrias existentes, o Brasil, o maior parceiro, possa receber maiores incentivos e segurança no aprofundamento institucional.

Por outro lado, a experiência do Mercosul foi singular quanto à forma e conteúdo. Internamente o bloco aumento significativamente os fluxos de comércio regional, apesar de não lograr uma maior complementaridade entre suas economias. Externamente ganhou o status de uma das maiores zonas de integração do mundo tornando-se alvo de relações inter-bloco com a aproximação da União Européia, da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático), dos países árabes, da China, inclusive despertando a preocupação dos EUA que tentou a formação de uma Área de Livre Comércio das Américas, e, em não conseguindo, busca minar as aspirações regionais oferecendo vantagens em acordos preferenciais bilaterais.

A iniciativa de criação da Comunidade Sulamericana de Nações (CASA) é uma iniciativa do Brasil e que vai diminuindo barreiras regionais na medida em que ganha continuidade. Pela experiência do Mercosul e pela iniciativa da CASA é possível encontrar semelhanças e diferenças, com perspectivas institucionais para o novo bloco regional.

O processo de formação da CASA é semelhante ao do Mercosul do ponto de vista de suas ambições e seu caráter político, buscando uma melhor inserção internacional e a ampliação dos vínculos econômicos internos, e com um viés funcionalista. No âmbito internacional, a semelhança diz respeito à tendência de formação de blocos regionais enquanto etapa para a consolidação de negociações maiores em diversos fóruns, sem a existência de uma bipolaridade, apesar das indefinições muito presentes sobre o tipo de ordem que está prevalecendo atualmente. No aspecto institucional as semelhanças são vislumbradas na consolidação das negociações de cúpula, na aproximação dentro das estruturas existentes, notadamente o próprio Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN) e, de forma secundária, a Associação latinoamericana de Integração, sem a criação de estruturas institucionais densas e atendendo à característica da intergovernamentabilidade.

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As diferenças são também do ponto de vista do viés funcionalista, porque este está se dando pela concretização de um projeto de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA), que congrega uma integração de transporte, de energia e telecomunicações. Desta forma, diferente da experiência do Mercosul, a CASA já se projeta enquanto integração física antes de integração econômica, sendo a base desta. Esta situação pode alimentar um processo de complementaridade e interdependência entre as economias, forjando um ambiente de diminuição das assimetrias e encaminhando as possibilidades para a aceitação, principalmente por parte do Brasil, de uma maior institucionalidade em favor da coesão em torno dos grandes objetivos do bloco sulamericano.

Além disto, é uma realidade a existência de uma tendência da diplomacia brasileira em rechaçar algo que se assemelhe à supranacionalidade, ou seja, uma estrutura institucional que signifique um compartilhamento de soberania. Esta diminuição das assimetrias pode também minimizar esta tendência, o que se reforça pela experiência de supranacionalidade existente na CAN.

A Organização do Tratado de Cooperação Amazônico – OTCA é uma outra experiência institucional regional que trará implicações para a consolidação da CASA. É uma questão estratégica regional o tratamento da região amazônica sob o ponto de vista econômico, de recursos, climático e de segurança, neste caso principalmente, em função da questão dos conflitos a partir da região colombiana. Neste sentido, a OTCA é uma típica Organização Internacional de caráter governamental e que é um dos braços estratégicos da política externa brasileira na integração da América do Sul.

As experiências democráticas em curso na América do Sul são um grande diferenciador em comparação com o período de formação do Mercosul. Elas nos remetem a uma maior possibilidade de participação da sociedade civil no processo decisório da integração regional, e, portanto, numa tendência à legitimidade e efetividade das decisões. A vontade política dos povos da região em aglutinar forças para melhorarem suas condições de vida e inserção internacional pode ser um diferencial histórico a favor, tanto do processo de integração sulamericano como um todo, como para uma experiência institucional mais exitosa, à luz e em comparação com as já existentes na região.

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Capítulo 4

A Organização do Tratado Cooperação Amazônica e a Integração da América do Sul

Andrés Piedra Calderón

Nas palavras de Becker (2005), a integração na Amazônia responderia a um

segundo projeto dentro da internacionalização da região. Por isto, a compreensão atual da Amazônia Continental representa o desafio de saber refletir sobre as perspectivas de um cenário em constantes transformações, pressionadas pelas demandas políticas, econômicas, sociais e ambientais de um mundo cada vez mais globalizado e interdependente. Esta percepção implica uma visão holística e ampla de uma problemática que deixou de ser unicamente nacional e regional (Silva, 2004).

4.1 - Do TCA à OTCA

Em frente ao debate levantado com a internacionalização da Amazônia, em 3 de julho de 1978, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, reagiram e assinaram em Brasília o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). O principal objetivo consta no Primeiro Artigo do Tratado e disse:

As Partes Contratantes convêm em realizar esforços e ações conjuntas a fim de promover o desenvolvimento harmônico de seus respectivos territórios amazônicos, de modo a que essas ações conjuntas produzam resultados eqüitativos e mutuamente proveitosos, assim como para a preservação do meio ambiente e a conservação e utilização racional dos recursos naturais desses territórios (TCA, 1978).

O Tratado diz que a promoção do desenvolvimento harmônico da Amazônia deveria realizar-se através de ações conjuntas e compartilhando experiências bem sucedidas em cada uma das regiões de cada país, deixando claro que o desenvolvimento sócio-econômico e qualquer outra atividade – como a preservação do meio ambiente – são responsabilidades inerentes á soberania de cada Estado. Desta forma, a assinatura do Tratado, segundo Aragón (2002), reconhece a necessidade de cooperação internacional em um espaço mais coordenado entre os Países Membros, o que garantiria o exercício da soberania sobre seus respectivos territórios.

Desde sua criação até fins da década de 1980 e inicio de 1990, o TCA esteve inativo. Foi na Secretaria Pro Tempore do Equador onde se fizeram várias tentativas para formular ações conjuntas com o objetivo de apresentar uma proposta na reunião de Rio de Janeiro em 1992. Depois da Conferência as posteriores secretarias tentaram implementar alguns projetos, porém poucos avanços foram conseguidos. Os fatores que podem ter influenciado neste caso são: a fragilidade institucional do Tratado – falta de uma organização internacional com presença jurídica que pudesse, entre outras coisas, desenvolver e propor políticas concretas – e a rotatividade das Secretarias Pro Tempore – sem autonomia para negociar ou executar ações de largo prazo (Aragon, 2002). Este

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fraco progresso institucional do TCA teria limitado as atividades das Secretarias Pro Tempore, as quais desenvolveram micro-ações, que no seu conjunto foram pouco relevantes perante a magnitude de problemas e possibilidades da Amazônia (Costa-Filho, 2002).

O frágil progresso do TCA mostrou a ausência de um espaço definido para a consulta e a harmonização dos planos de desenvolvimento entre os Países Membros. Por isto e com a idéia de fortalecer os objetivos do Tratado em 1995 os oito países amazônicos decidiram criar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) por meio de um Protocolo de Emenda ao TCA, aprovado em 14 de dezembro de 1998. Neste Protocolo se instaurou a Secretaria Permanente da Organização e se estabeleceu em Brasília desde dezembro de 2002.

A criação da OTCA e particularmente da Secretaria Permanente, em substituição das Secretarias Pro Tempore, representou um grande esforço por parte dos Países Membros que assim reconheceram a importância estratégica da Amazônia na geopolítica regional e mundial e concedeu maior institucionalidade ao Tratado de 1978. Para Costa-Filho (2002), este fato foi de grande importância na história da cooperação amazônica e representa um símbolo que estabelece a busca de uma nova gestão solidária e comum, que responda aos problemas e aos desafios do desenvolvimento sustentável da região.

4.2 - A OTCA e a Integração Sul-americana

A posição adotada desde a OTCA é que esta Organização deve constituir um espaço político de diálogo regional para buscar consensos e convergências em temas de importância para o futuro da Amazônia (OTCA, 2005). Neste sentido, Arteaga (2006) propõe que mediante a vontade política dos Presidentes dos oito Países Membros a região amazônica deve configurar-se como o melhor lugar para apoiar à integração da América do Sul, por isto, desde a Primeira Secretaria Permanente da Organização foi demonstrado empenho em participar da construção da Comunidade Sul-americana de Nações, atual UNASUL, já que desde esta Secretaria, dirigida pela Dra. Rosalía Arteaga31 afirmava-se que não será possível alcançar a integração do subcontinente, deixando de lado à região que representa mais de 40% do total do território sul-americano.

A dinâmica proposta sob o objetivo do desenvolvimento harmônico da região amazônica envolveria elevados custos que os países individualmente não poderiam enfrentar, por isto o padrão de integração da OTCA gira ao redor da cooperação funcional e da conjugação de decisões que tratam de interesses comuns (Costa-Filho, 2002). Neste sentido a contribuição da OTCA para a integração da América do Sul – que avança sob a confluência da CAN e do Mercosul – dar-se-á por meio da consolidação de instrumentos de cooperação entre os Países Membros em volta da gestão e desenvolvimento sustentável da Amazônia (OTCA, 2006). Isto será realidade a través de políticas ou projetos conjuntos, como é o caso do “Projeto de Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Trans-fronteiras da Bacia do Rio Amazonas”, iniciativa que busca o fortalecimento institucional mediante um projeto que será útil para planejar e executar de forma coordenada as atividades de proteção e manejo sustentável dos recursos hídricos e do solo amazônico (OTCA, 2005b). Desta maneira tenta-se oferecer soluções integradas,

31 Política equatoriana, ex–presidenta e vice-presidenta do Equador; a Dra. Arteaga foi a primeira

Secretária Geral da OTCA.

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por exemplo, ao tema da água na região, o que é de grande importância pela falta que se verifica em algumas regiões do mundo; ademais a temática da água evidencia a interdependência existente entre os países amazônicos detentores de um sistema hidrográfico que se nutre em grande proporção com a água oriunda das alturas da cordilheira de Los Andes (Arteaga, 2006).

De outra parte, existem vários projetos nacionais que mostram a importância que os Países Membros dão à região amazônica e é de se esperar que sejam do interesse da totalidade dos integrantes da OTCA. Um destes projetos e o “Sistema de Proteção da Amazônia” (SIPAN), desenvolvido pelo Brasil, iniciativa que responde de maneira frontal ao desafio da internacionalização da Amazônia e cumpre com o objetivo de defesa da soberania da região. O SIPAN foi criado para gerar conhecimento e integrar informações atualizadas para coordenar, planejar e articular ações do governo do Brasil sobre a Amazônia Legal, com a finalidade de alcançar a inclusão social, a proteção e desenvolvimento sustentável da região. Este sistema, como indica Brigagão (1996), desenvolve seus recursos tecnológicos por meio do “Sistema de Vigilância da Amazônia” (SIVAM), seu objetivo é o controle, a fiscalização e a vigilância permanente da Amazônia Legal, fazendo uso da mais alta tecnologia – sensores de monitoramento ambiental, radares, satélites, sistemas aéreos de monitoramento, entre outros – para gerar informação que permita evitar ações ilegais de madeireiros, garimpeiros, narcotraficantes e em geral evitar quaisquer outras atividades ilícitas na região.32

Assim, se demonstra o papel importante que deve ter a OTCA, organização internacional que conta com a presença de oito países de América do Sul, entre eles, Guiana e Suriname, que não fazem parte do Mercosul nem da CAN. Isto representa uma das potencialidades que a Organização tem frente ao progresso de integração sul-americano.

Com o objetivo da integração e sem perder a integridade das autonomias e jurisdições nacionais, a OTCA tem um grande desafio na construção de uma identidade coletiva amazônica, que de alguma maneira faça que as fronteiras sejam relativas, para que se entenda e se trate à Amazônia como uma única região da América do Sul, formada por um conjunto de países. Isto está se consolidando por meio da participação da Organização em foros internacionais ou em negociações globais onde se tenta a Amazônia se apresente com uma só voz representante dos Países Membros, coordenada pela Organização (OTCA, 2006) – por exemplo: a Conferência Global de Eco-turismo que teve lugar em Oslo, Noruega, 14 e 16 de maio de 2007 ou a Sétima Sessão do Foro das Nações Unidas sobre Bosques (FNUB), Nova York, do 16 ao 27 de abril de 2007.

Falar de integração na região Amazônica significa colocar-se de frente à uma realidade de alta complexidade, sobre tudo no que se refere às relações e interações da sociedade e à composição político institucional amazônico. Para Arteaga (2006), uma forma de enfrentar esse entorno é incorporando na prática da agenda amazônica aos atores locais, municipaís, estaduais e subnacionais para assim ampliar a base social do diálogo em beneficio da região. A proposta da integração sub-regional, de uma gestão integrada dos recursos naturais e da promoção do desenvolvimento sustentável, segundo Silva (2006), fundamentalmente requer o envolvimento de todos esses atores, sem deixar de lado às ONGs e a cooperação internacional em geral, com os quais é necessário manter um diálogo permanente e fluido. É por isto que a OTCA desde sua criação tem buscado alianças estratégicas com estes atores, que ajudam a cumprir os objetivos e

32 Informação adicional do Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAN) e do Sistema de Vigilância da

Amazônia (SIVAM) pode se consultar os seguintes sites: www.sipam.gov.br e www.sivam.gov.br.

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metas propostas pela Organização. Desta forma, espera-se maior ganho de visibilidade e reconhecimento institucional, convertendo à OTCA em uma organização de referência regional obrigatória para o desenvolvimento e financiamento das atividades das organizações internacionais e de cooperação assim como das ONGs. A incorporação desta dimensão regional na visão destes atores é uma das principais contribuições desde a entrada em operação da Secretaria Permanente da OTCA (OTCA, 2006).

De outra parte Fontaine (2006b), critica a Organização no sentido de que existe uma contradição entre os critérios que orientam a formulação das políticas da OTCA, fazendo com que muitas das decisões sejam tomadas como declarações ou discursos reiterativos, sem implicações concretas. Ademais, indica o mesmo autor, existe uma baixa interação e coordenação entre os Estados Membros e a Organização, o que demonstra pouco entusiasmo para fazer da OTCA um instrumento de integração sub-regional. Como aponta Aragon (2002), a Organização tenta formular e implementar propostas que levem à integração e ao desenvolvimento sustentável da região amazônica como um todo, no entanto, são maiores as iniciativas nacionais existentes e poucas as propostas coordenadas entre os Países Membros e a OTCA, o qual demonstraria que ainda falta muito para concretizar esse espaço de cooperação tão almejado como colaboração ao processo de integração da América do Sul.

Neste sentido, a Secretaria Permanente tem a responsabilidade de representar aos Estados amazônicos, para construir uma nova institucionalidade que contribua na superação destes inconvenientes e se transforme num instrumento privilegiado para a implementação de princípios que guiem as políticas regionais e globais de desenvolvimento sustentável. Isto implica um exercício árduo de intervenção sobre um processo de desenvolvimento regional, no qual espera-se combinar eficiência econômica, equidade social e sustento ambiental. Uma ação coletiva de oito países que incidirá sobre as múltiplas e diferentes sub-regiões, cada uma com suas características particulares, como a pouca estabilidade política e econômica, os baixos níveis de participação e as assimetrias, entre outras (Aragon, 2002; Arteaga, 2006; Costa-Filho, 2002). Para Aragon (2002), a superação dos próprios conflitos, especialmente internos, dos Países Membros, é um fator determinante no impacto e no desempenho preponderante que a OTCA pode e deve ter no atual processo de globalização.

Há muitas razões para pensar que a Amazônia terá um papel ainda mais importante do que já tem e, por este motivo, a OTCA, segundo Arteaga (2006), está destinada a representar uma função de relevância, não somente na região, como no mundo inteiro. Sem dúvida a OTCA poderia inspirar e liderar iniciativas mais aprofundadas de desenvolvimento e cooperação, incluindo a todos os países amazônicos. No entanto, para que isto seja conseguido, aponta Costa-Filho (2002), é necessário que a capacidade institucional da OTCA ofereça resultados ágeis, concretos e eficientes. As instituições e organizações que interagem no espaço amazônico, em especial a OTCA, devem ser organismos dinâmicos de natureza histórica, aptos para seguir a evolução dos tempos, com capacidade para readequar-se a cada circunstância e contexto, e adaptar-se permanentemente com as mudanças sociais mais amplas que esta complexa realidade impõe (Melho, 2002).

Por este motivo, a discussão e o debate da integração amazônica e sul-americana, precisam da análise do papel da OTCA como um instrumento que viabilize este objetivo e como um mecanismo paraestatal de políticas públicas. Para isso é necessário um estudo mais aprofundado da estrutura institucional desta Organização.

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4.3 - Elementos do sistema político da OTCA

As organizações internacionais são sistemas políticos que como todos os sistemas convertem insumos (inputs) em produtos (outputs); quer dizer, as organizações internacionais reagem às demandas e outras ações realizadas por atores do seu entorno transformando-as em políticas dirigidas para a sua mesma esfera. A transformação de insumos em produtos dentro do sistema político das organizações internacionais, para muitos autores, parece que ocorrem dentro de uma “caixa preta” (Rittberger e Zangl, 2006). Para Josep Vallès (2000, p.48) um sistema seria “qualquer organização complexa que recolhe e transmite informação, gera atividades e controla resultados. Tem sua autonomia, mas está vinculado a um entorno do qual recebe informações e sobre o qual, por sua vez, atua”. Desta forma explica que um sistema político recebe do seu contexto social diferentes mensagens em forma de demandas, informações, apoios ou reivindicações de diferentes atores, processa esta informação e emite uma ordem de intervenção, uma política pública com disposições legais, mandatos, ações administrativas, etc., procurando incidir na realidade, modificando ou corrigindo a situação inicial, ou em outros casos reforçando-a com novos recursos. O impacto da política pública abrirá a possibilidade para novas informações que por sua vez alimentarão o sistema para gerar um novo ciclo do mesmo.

O entorno do sistema político da Organização, ou seja, a realidade da região amazônica, representa um conjunto de interações sociais, econômicas e culturais. Estas interações mostram situações de desigualdade e, muitas vezes, de tensão entre os diferentes atores. A distribuição desigual de recursos, o desmatamento da Amazônia Continental, o uso irracional dos recursos, entre outros problemas, motiva a intervenção e ação política da OTCA. Este contexto é, portanto, o que pressiona a política da organização.

A conexão entre o entorno e o núcleo do sistema político se faz por meio de demandas e apoios de atores coletivos ou individuais, denominados insumos – inputs ou entradas – para assim entender que estes vêm do exterior do sistema (Vallès, 2000). Para compreender esta dimensão, deve ser analisada a contribuição ao processo de formação de políticas feitas pelos diferentes de grupos de atores envolvidos nas organizações internacionais.

As entradas ou insumos gerados no entorno das organizações internacionais são processados pelo sistema até produzir uma reação às demandas e apoios. A este resultado se conhece como produto – output ou saída – do sistema. Os produtos podem ser de muitas classes tais como: decisões circunstanciais ou políticas setoriais mais estruturadas e de maior alcance, entre outras (Vallès, 2000).

4.3.1 - Produtos

Analisando o Informe de Gestión, Síntesis 2004 - 2007, da primeira Secretária

Geral da OTCA, Dra. Rosalía Arteaga, podem ser identificados os resultados, em outras palavras, as saídas que durante este período foram produzidas. Observando estes outputs poderão ser identificados os principais atores que participaram com seus insumos, alimentando o sistema político da OTCA.

Para examinar os produtos serão divididos em seis grupos: fortalecimento institucional; reuniões, declarações e resoluções; relação com Países Membros; programas políticos e projetos; cooperação e diálogo externo; e produção de informação.

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Este agrupamento de resultados foi realizado a partir da análise dos Informes de Gestão e do Plano Estratégico elaborados na Primeira Secretaria geral da OTCA.33 Produto 1: Fortalecimento Institucional

Este foi um dos pontos a que foi dada maior ênfase quando se analisa o trabalho da Primeira Secretaria Permanente, pois de acordo com os informes, deve-se lembrar que a OTCA é uma organização jovem e que sua estrutura institucional está ainda em construção. O primeiro passo mencionado foi a instalação dos escritórios da Secretaria Permanente em janeiro de 2005. Outro aspecto apontado é ter conseguido estabelecer o organograma desenhado pelos Países Membros, respeitando a estrutura da Organização, buscando a equidade entre todos os países na tomada de decisões e na sua representação nos órgãos plenários. O passo seguinte foi a contratação de pessoal para formar parte da organização que, de 09 funcionários em 2004, passou a ter 35 até a data do presente trabalho, entre pessoal técnico, administrativo, de apoio e consultores de projetos e programas. Outra conquista a ser salientada na institucionalização da Secretaria Permanente foi o empenho por parte dos governos no pagamento das cotas correspondentes, demonstrando compromisso com a organização, com cerca de 90% das cotas pagas desde 2003 até 2006. A dependência das organizações com respeito às contribuições financeiras dos Estados é inevitável, pois quase nenhuma organização internacional possui recursos próprios o que evidencia seu alto grau de vinculação e o papel importante que têm estes atores.

Produto 2: Reuniões, declarações e resoluções

Procurando fortalecer as instâncias do TCA é de se mencionar a organização de várias reuniões com a coordenação da Secretaria Permanente e com o apoio dos Países Membros. Assim, no período ocorreram três reuniões de Ministros de Relações Exteriores dos Países Membros, órgão supremo do TCA, que produziram duas declarações e 23 resoluções, que entre outros resultados, têm consignado diretrizes de importância para o caminho da OTCA nestes anos.

Aponta-se também que foram realizadas cinco reuniões do Conselho de Cooperação (CCA), 30 encontros da Comissão de Coordenação do Conselho de Cooperação Amazônica (CCOOR) e três reuniões das Comissões Nacionais Permanentes (CNPs). Adicionalmente, como decisão de uma das reuniões de Chanceleres, foram convocadas seis reuniões setoriais: de Altas Autoridades de Propriedade Industrial e Intelectual; de Ministros e Altas Autoridades de Ciência e Tecnologia; de Ministros de Saúde e Proteção Social; de Ministros de Meio Ambiente; de Ministros de Defesa e Segurança Integral; e de Ministros e Altas Autoridades de Turismo.

Neste produto novamente são os Países Membros e o staff administrativo os principais atores.

Produto 3: Relação com Países Membros e estabelecimento de uma agenda comum

Com relação a este produto, desde 2004, se indica que a Secretaria da OTCA vem atuando como promotora e catalisadora de esforços na região, levando-se isso em conta,

33 Serão apresentados os resultados que se consideram os principais deste período, pelo qual se deseja

maior profundidade em estes e outros resultados alcançados recomenda-se a leitura de: OTCA. (2007). Informe de Gestión. Síntesis 2004-2007. Brasilia, Secretaria Permanente. OTCA. (2006). Integrando la Amazonía Continental. Informe de Gestión: noviembre de 2005 a octubre de 2006. Brasilia, Secretaria Permanente. OTCA. (2005). Integrando la Amazonía Continental. Informe de Gestión: mayo de 2004 a octubre de 2005. Brasilia, Secretaria Permanente. Disponível em: www.otca.info e www.otca.org.br.

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o principal resultado neste output está baseado no fato de que sua atual estrutura permite a formação de espaços que buscam o consenso e o diálogo, como mecanismos para a solução de problemas comuns dos países amazônicos, assim, de maneira geral têm sido criados vários espaços políticos para o diálogo entre os Países Membros em temas de interesse para a Amazônia Continental. Desta forma, a Secretaria Geral junto com os Estados Membros da Organização são os principais atores nesta saída.

Produto 4: Programas políticos e projetos

No que se refere aos programas políticos da Organização a principal conquista que se ressalta nos documentos analisados foi a elaboração do Plano Estratégico 2004 - 2012, documento que constitui a “carta de navegação” da OTCA, aprovado numa das reuniões oficiais de Ministros de Relações Exteriores. Segundo o Informe de Gestión, Síntesis 2004 - 2007, os mandatos recebidos das instâncias de decisão da OTCA e a busca de meios para implementar o Plano Estratégico podem traduzir-se em duas grandes tarefas que estão vinculadas à implementação dos objetivos da integração e da busca do desenvolvimento sustentável da região amazônica.

Seguindo esta proposta, observa-se que a OTCA elaborou e implementou vários projetos. Foram iniciados 19 projetos em conjunto com organismos como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), a Agência Alemã de Cooperação (GTZ), entre outros, mobilizando recursos técnicos e financeiros para a região num montante de mais de US$33 milhões.

A seguir se apresenta uma lista dos projetos em execução junto com os organismos vinculados aos mesmos:

• Fortalecimento do Manejo Regional Conjunto para o Uso Sustentável da

Biodiversidade Amazônica – Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). • Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Além-fronteiras na Bacia do

Rio Amazonas considerando a variabilidade climática e as mudanças climáticas – Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF), Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Organização dos Estados Americanos (OEA).

• Programa Regional para o Uso Sustentável e Conservação dos Bosques e da Biodiversidade Amazônica – Agência Alemã de Cooperação (GTZ), The Netherlands Directorate General for International Cooperation (DGIS).

• Agenda Comum Amazônica. Capacitação e intercâmbio no setor florestal – Agência Brasileira de Cooperação (ABC), Ministério de Relações Exteriores do Brasil.

• Validação de Indicadores de Sustentabilidade do Bosque Amazônico – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

• Preparação do Programa Regional de Áreas Protegidas – The World Wildlife Fund (WWF), Centro de Cooperação Internacional em Investigação Agronômica para o Desenvolvimento (CIRAD, em francês: Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique Pour le Développement).

• Expedição Conhecendo a Amazônia. A OTCA e a Juventude. Caminhos de Orellana – Governos do Brasil, Equador e Peru, GTZ e empresas privadas.

• Informe sobre a Situação do Meio Ambiente. GEO Amazônia – PNUMA. • Apoio à elaboração de propostas de participação, comunicação e reuniões da OTCA –

GTZ. • Apoio ao diálogo do setor florestal na América Latina. Puembo II – Ministério da

Agricultura da Holanda e GTZ. • Cooperação sobre Indicadores de Sustentabilidade – Organização Internacional das

Madeiras Tropicais (OIMT).

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• Mecanismos de participação da sociedade civil na OTCA – União Mundial para a natureza (UICN), FLA, GTZ.

• Aplicação da Legislação Florestal na Amazônia. ALFA – FAO, OIMT. • Plano de Ação para Prevenção e Controle da Contaminação por Mercúrio – Programa

HUB. • Programa Regional de Uso Sustentável da Biodiversidade (Bio-comércio) –

Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), UNF. • Reforçando Capacidades para Aplicação de Critérios e Indicadores para o Manejo

Florestal Sustentável – OIMT. • Fortalecimento da Secretaria Permanente, OTCA – GBMF. • Conservação do Bosque Tropical Amazônico – GTZ. • Destino Amazônia – GTZ, DGIS. • Prevenção e combate à contaminação por Mercúrio – Governo dos Estados Unidos. • Projeto do Uso Econômico da Biodiversidade – UNCTA, Governo da Holanda, GTZ e

UNF. • Proposta do Projeto de Conservação da Floresta Amazônica II – GTZ, Ministério

Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento de Alemanha (BMZ). Como se pode observar, neste produto os principais atores são: as organizações

internacionais, os organismos multilaterais, as agências de cooperação internacional, as organizações não governamentais internacionais, as empresas privadas, alguns governos de países estrangeiros não membros da OTCA, os Países Membros e a Secretaria Permanente da Organização. Produto 5: Cooperação e diálogo externo

Em relação à cooperação e diálogo externo, se informa que tem se buscado a participação de observadores e de vários atores nos processos da Organização. Um que é considerado dos mais relevantes é a aproximação à Associação de Universidades Amazônicas (UNAMAZ), ao Parlamento Amazônico (PARLAMAZ) e à Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), com os quais tem se estabelecido um diálogo baseado na cooperação e trabalho conjunto. Ademais, comenta-se a assinatura de convênios com mais de 20 organismos de cooperação internacional, regional, do sistema de Nações Unidas, entre outros. Também tem se realizado consultas nacionais à sociedade civil em quatro dos Países Membros: Bolívia, Equador, Peru e Suriname.

Uma das principais contribuições foi colocar à OTCA como uma organização de importância regional e para dar uma voz à Amazônia participando desde o momento fundador da Comunidade Sul-americana de Nações (CSN), atual UNASUL. No âmbito internacional os países amazônicos apresentaram uma posição unida nas instâncias de negociação, como por exemplo, no Foro das Nações Unidas sobre Bosques (FNUB).

Nos documentos analisados não se explicam de forma clara e concreta os resultados obtidos com a participação dos atores sub-regionais ou sub-nacionais, como a UNAMAZ, por exemplo, motivo pelo qual, os atores mantêm uma relação dependente das ações da Secretaria Permanente e não influenciam no sistema político da Organização.

Produto 6: Produção de informação

No que se refere às atividades informativas, no esforço de divulgação da Organização, publicou-se no período de três anos, onze boletins trimestrais, dois CD-ROM informativos, sete panfletos informativos, um plano estratégico, três informes de

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gestão; ademais a OTCA conta com uma página web34 que é atualizada diariamente que teve um aumento de 300 visitantes por mês, em maio de 2004, para 30.000 visitas mensais em maio de 2007. A OTCA tem estado presente em diferentes meios de comunicação difundindo suas atividades, suas idéias e projetos em jornais regionais e internacionais, em agências internacionais de noticias, revistas especializadas, na radio e televisão. Finalmente registram-se 26 seminários e foros.

Neste output novamente a Secretaria Permanente como representante do staff administrativo, é o ator de maior influência.

4.3.2 - Atores criadores de insumos da OTCA

Uma vez analisados os principais outputs da OTCA, deve ser mencionado que nos diferentes informes consta claramente, que no transcorrer de três anos, conseguiu-se cumprir com uma ampla gama de objetivos e alcançar avanços significativos nos mandatos delegados pelos Países Membros. Ademais, confirma-se que a OTCA pode chegar até onde os governos permitirem, dependendo da vontade dos Países Membros para o sucesso da Organização.

Assim, agora é possível identificar os principais atores que no entorno das Organizações geram inputs. Segundo Rittberger e Zangl (2006) podem ser citados cinco atores diferenciados geradores de insumos ou entradas nas organizações internacionais: representantes dos Estados membros; staff administrativo da organização; assembléias parlamentares; grupos de interesse e comunidade de especialistas.

Nas organizações internacionais a grande maioria das contribuições e demandas é realizada por parte dos Estados membros, normalmente através das delegações nacionais ou seus representantes nas diferentes instâncias da organização, sendo o órgão plenário o espaço para onde os insumos são, geralmente, encaminhados, devido às suas características anteriormente analisadas. A OTCA não é exceção e isto pode ser claramente apreciado por meio da análise dos produtos 1, 2, 3, e 4 onde se demonstra que os Países Membros são os que com sua vontade acionam a Organização e constituem-se no primeiro grupo de atores relevantes.

É notório que a Secretaria Permanente ao longo do período em análise desempenhou uma função sumamente importante e pode se afirmar que a maior parte dos resultados apresentados no Informe de Gestión, Síntesis 2004 - 2007 foram conseguidos graças ao esforço e ao trabalho realizado por parte deste órgão. Por isso, a Secretaria Permanente é o segundo ator importante no sistema político da OTCA.

Analisando o output 4 evidencia-se a influência de outros atores como certas organizações internacionais, organismos multilaterais, agências de cooperação internacional, organizações não governamentais internacionais, empresas privadas e alguns governos de países estrangeiros não membros da OTCA. Utilizando a distinção de atores feita por Rittberger e Zangl (2006), juntar-se-ão todos estes atores nos denominados grupos de interesse, já que todos influenciam nos resultados do mesmo output da Organização, por isto seus objetivos poderiam qualificar-se em certa medida como similares no sentido de executar ou desenvolver um projeto específico.

Finalmente, é necessário salientar a grande ausência de atores sub-regionais, subnacionais, parlamentos, organizações da sociedade civil ou organizações representando a área acadêmica, como a UNAMAZ, com as quais apesar do nexo

34 www.otca.info e www.otca.org.br.

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existente, não obstante, estes atores continuem sendo secundários e, por isto, não têm influência direta nos outputs da Organização. 4.3.3 - Sistema político da OTCA

Muitos autores afirmam que o produto do sistema político das organizações internacionais não deve ser o fim da análise, pelo que é recomendável dar um passo a mais, que consiste em distinguir a resposta do sistema (output) do efeito que a organização produz sobre a realidade, o que se conhece como o impacto efetivo (outcome). Vallès (2000) explica que isto é necessário porque quando se põe em marcha uma ação política, nem sempre são alcançados os objetivos desejados: às vezes ocorrem de maneira parcial e em outras se produz o fracasso, ou inclusive pode conseguir-se efeitos contrários aos esperados. Conseqüentemente é importante averiguar se o resultado político modificou significativamente a realidade prévia e de que maneira o realizou.

Desta forma origina-se a retroalimentação do sistema, o feedback , ou seja, o resultado do impacto que a reação do sistema tem, sobre o entorno. Assim, o processo põe-se de novo em marcha, em um movimento ininterrupto de ajuste permanente. Se a ação deste sistema se detivesse poderia significar a desintegração da organização política, sendo, assim, incapaz de regular a tempo os conflitos internos e do entorno (Vallès, 2000). No entanto, o passo seguinte da análise (outcome) não será apresentado pois a OTCA sendo uma organização com pouco tempo de vida, seria prematuro tentar este tipo de análise, pois muitos de seus projetos estão ainda em processo de implementação e fortalecimento e qualquer resultado não seria o reflexo efetivo do impacto possível da Organização.

Desta forma se apresenta na figura 4.1 o resultado do modelo do sistema político da OTCA obtido através da análise anteriormente realizada. Figura 4.1 - Sistema político da OTCA

Entorno Entorno

Input Output

Demandas

Representantes

dos Estados

MembrosSecretaria

PermanenteGrupos de

interesses

Suportes

Entorno Entorno

Processamento

Conversão

Fortalecimento institucional.

Reuniões, declarações e resoluções.

Relação com Países Membros.

Programas políticos e projetos.

Cooperação e diálogo externo.

Produção de informação.

Retroalimentação (feedback )

Elaborado por: Andrés Piedra Calderón.

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4.4 - Conclusão

Explicar as organizações internacionais à luz da noção do sistema político como modelo, tem suas vantagens; isto explica seu sucesso desde que David Easton a introduziu na análise da política.35 Entretanto, como reconhece Josep Vallès (2000), os modelos apresentam limitações pela simplificação que exigem. No caso da OTCA, alguns de seus componentes resultam difíceis de enquadrar dentro de alguma das categorias do sistema. No entanto, o modelo do sistema político é útil para analisar a estrutura política da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica e de qualquer outra organização ou estrutura política, sempre e quando seja entendida como um instrumento de apoio e não como um modelo fechado e auto-suficiente.

A aplicação deste tipo de modelo é de grande ajuda no processo de integração proposto para a Comunidade Sul-americana de Nações, atual UNASUL, pois ajudará aos atores incluídos no processo de integração sul-americano a conhecer as fortalezas, oportunidades, capacidade institucional, tamanho, recursos, debilidades e problemas que têm enfrentado as organizações da América do Sul, as quais são convocadas a construir com esforços conjuntos o objetivo da integração, sob a coordenação da Secretaria Geral da UNASUL e a convergência da CAN e o Mercosul.

A interação da Secretaria Permanente da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica com os Países Membros e com outros atores possibilitou maior agilidade dos procedimentos e a dinamização da execução das decisões para a obtenção de melhores resultados práticos na busca do desenvolvimento sustentável da Amazônia e da integração da América do Sul.

A consolidação do processo de integração sul-americana implica, desde a OTCA, cumprir com os objetivos de preservação sustentável da Amazônia e o melhoramento da qualidade de vida de suas comunidades, as quais até o momento poderiam ter um balanço positivo, entretanto, falta força de vontade política dos Países Parte no seu compromisso com a Organização.

35 Para Arnoletto (2007), na Ciência Política, a proposta teórica estructural-funcionalista mais coerente e

sistemática é do David Easton. O objetivo geral de seu trabalho, explica Arnoletto, é desenvolver um conjunto logicamente integrado de categorias com transcendência empírica, que faça possível a análise da vida política como um sistema de comportamento; Easton tem interesse particularmente pelos processos básicos mediante os que o sistema político pode persistir e se manter, tanto em um mundo estável quanto em um mundo em mudança. Embora seu modelo não seja explicativo serve para descrever como ocorre o processo político e assim ajuda entender porque uma institucionalização robusta do processo de integração é importante atualmente na América do Sul. Para mais informação consultar: Easton, David (1979). Esquema para el análisis político. Buenos Aires, Amorrortu.

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Capítulo 5

Brasil e Argentina no Regime de Não-Proliferação Nuclear

Ricardo Castro

Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo nunca mais foi mesmo. Este período de nossa história moderna introduziu uma variável até então inexistente nas relações políticas internacionais, qual seja, a utilização da energia nuclear para fins bélicos.

Neste cenário, os cinco Estados que conseguiram chegar antes dos outros na corrida armamentista nuclear (China, Rússia, Estados Unidos, França e Grã-Bretanha), por meio do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), afirmaram ter o direito, por sua auto-declaração, de serem potências bélicas nucleares, enquanto que todos os demais Estados não teriam este direito (por mais que Israel, Índia e Paquistão tenham, também, construído artefatos nucleares). Quanto a este debate, o Brasil e a Argentina foram contrários à proibição esculpida no TNP, por entenderem que afrontava aos princípios de igualdade entre os Estados. Independentemente destes protestos, o texto do referido tratado foi endossado pela Assembléia Geral das Nações Unidas e assinado por mais de 60 países em julho de 1968, entrando em vigor em maio de 1970.

Além da criação destes mecanismos legais que semeavam a desigualdade no âmbito internacional, as grandes potências passaram a dificultar o repasse de tecnologia nuclear para fins pacíficos para o Brasil e para Argentina. Por isto, na década de 80, ambos países articularam programas nucleares secretos e militarizados, além de criarem uma estratégia multilateral na diplomacia nuclear. Na década de 90, todavia, verificou-se o abandono da referida multilateralização nestas relações, além da desmilitarização deste setor. Brasil e Argentina se aproximaram por meio de acordos de inspeção mútua do material dual (para uso civil e bélico) e abdicaram do direito de usar artefatos nucleares, a partir da assinatura do TNP.

Diversos autores acadêmicos, nacionais e internacionais (como Ethel Solingen, Marcelo Fonrouge, Maria Cristina Ferraz Alves, Igor Germano, Márcio Azevedo Guimarães, Dawisson Belém Lopes e Rut Diamint) afirmaram que a aproximação do Brasil e da Argentina (com a respectiva desistência do direito de produzir artefatos nucleares) serviria como registro empírico válido capaz de ratificar teorias liberais, colocando grande ênfase no potencial explicativo de variáveis eminentemente internas (como democracia ou modificação da percepção das elites decisórias) em detrimento de variáveis externas (como a balança de poder no cenário internacional). Além disto, os mencionados trabalhos afirmaram que a aproximação entre Brasil e Argentina consegue falsear a teoria realista, posto que, de acordo com alguns destes trabalhos, se países podem deixar de lado rivalidades históricas, desmilitarizando-se no âmbito nuclear e pensando nos ganhos absolutos da paz mundial e não em termos relativos de ganhos militares imediatos, é porque a anarquia internacional pode ser mitigada. Por isto, estes autores consideram que as regras relacionadas ao desarmamento (hard law) podem disciplinar o uso da força entre Estados (hard power).36

36 Muitos outros autores liberais estudaram casos similares ao do Brasil e da Argentina. De acordo com o

Dr.William Long e a Dra. Suzette Grillot, por exemplo, a Ucrânia e a África do Sul se desarmaram porque queriam pertencer ao Ocidente. Neste sentido, os autores afirmam que, sim, as idéias

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Feitas estas considerações iniciais, o presente artigo tem o objetivo de discutir se, de fato, a decisão brasileira e argentina de aderir a regimes não-proliferacionistas foi uma decisão eminentemente idealista e interna, destituída de qualquer pressão externa, capaz de mitigar a anarquia internacional, como concluíram os mencionados estudos, ou se haveria uma explicação alternativa. Este texto será dividido em duas partes: a primeira tratará das questões mais gerais sobre as normas internacionais de não-proliferação e a segunda sobre os possíveis interesses envolvidos na negociação de acordos não-proliferacionistas na década de 90.

5.1 – Anarquia e não-proliferação: o contexto internacional Antes de analisar se as normas e regimes internacionais conseguem mitigar a

anarquia internacional, deve-se analisar quais são as normas que existem atualmente para disciplinar o uso dos armamentos nucleares. Este é um ponto muito importante a ser analisado, tendo em vista que são extremamente questionáveis os limites do atual regime internacional de segurança relacionado a normas de não-proliferação nuclear.

Desde o irônico caso Shimoda e outros v. Japão.37, o caso mais importante em relação às regras dos regimes sobre armas nucleares foi julgado pela Corte Internacional de Justiça, na Opinião Consultiva sobre a legalidade do uso ou da ameaça do uso de armas nucleares. Esta Opinião Consultiva demonstra o quão controverso é o tema da não-proliferação. Por onze votos a três, a Corte entendeu que não existe nenhuma norma costumeira ou convencional, de ordem genérica, que proíba a utilização de armas nucleares. Além disto, pelo voto de minerva do presidente, que desempatou o impasse de sete votos a sete, houve reconhecimento explícito da Corte do dilema da segurança internacional e da possibilidade da utilização de armas nucleares para legítima defesa de um país.

Neste sentido, a hipótese liberal sobre a existência de um regime internacional que proíbe o uso de armamento nuclear não é compartilhada por muitos juristas e refere-se às críticas da decisão da Corte Internacional de Justiça. De fato, o voto dissidente do juiz Werramantry afirma que as armas nucleares contrariam diversas disposições do Direito Humanitário e não podem ser utilizadas de forma alguma. De acordo com o seu ponto de vista, o terror pertence ao mundo Hobbesiano, em que os Estados tomavam posturas de gladiadores, tendo suas armas apontadas para os outros. Por outro lado, o Direito

influenciaram o comportamento estatal de forma independente da política internacional, sendo possível construir uma sociedade internacional capaz de regulamentar os arsenais nucleares mundiais. Da mesma forma, o Dr. James Joseph Walsh apresentou sua tese ao Instituto de Tecnologia de Massachussets sobre o caso do Egito e da Austrália, demonstrando que as instituições, as normas e os regimes internacionais de não-proliferação foram essenciais para a desistência dos programas nucleares bélicos destes países.

37 Neste caso, o Japão estava na posição de réu em relação a cinco vítimas de Hiroshima, em virtude da imunidade dos Estados Unidos, instituída pelo artigo 19 do Tratado de Paz. Mesmo tendo reconhecido a possibilidade do ataque indiscriminado à cidade representar algum tipo de violação segundo a Corte de Tóquio, como no Direito Internacional é necessário ter proteção diplomática (neste caso representação estatal) para estar em juízo e como o próprio Japão era o réu, não se reconheceu nenhum direito às vitimas.

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Internacional deveria ultrapassar esta concepção Hobbesiana e incorporar a visão de Grotius, pautada no devido processo legal internacional. Além disto, Werramantry, afirma que não há razões para permitir armas nucleares no mundo, pois tais armas não tornaram o mundo mais pacífico. O juiz se refere ao incidente dos mísseis de Cuba em 1962 como uma prova de que a humanidade teve sorte de ter vivido um período sem um confronto direto entre as duas grandes potências. Ademais, as mais de 100 guerras com mais de 20 milhões de mortes desde 1945 são, na visão do juiz, um exemplo de que as armas nucleares não trouxeram estabilidade e paz ao mundo atual.

Ao contrário de Werramantry, há diversos outros autores que defendem a tese de que o sistema internacional ficou melhor com o surgimento das armas nucleares. Os otimistas em relação à proliferação nuclear bélica, como Kenneth Waltz (2003) e John Mearsheimer (1990), apontam para o caráter estabilizador das armas nucleares. De acordo com esta visão, o atual e maior período já conhecido de paz entre os países é devido, justamente, às armas nucleares, posto que uma guerra entre dois Estados nucleares apresenta custos enormes e insuportáveis àquele que iniciar o conflito. De forma contrária, os pessimistas em relação à proliferação nuclear bélica afirmam que este tipo de armamento aumenta a insegurança mundial. Para Scott Sagan (2003), que compartilha a visão de Werramantry, os Estados podem, atualmente, se aventurar em ataques nucleares preventivos, diminuindo a segurança e a previsibilidade da guerra que se tinha antigamente. De qualquer forma, independentemente de se ter uma visão pessimista ou otimista em relação ao armamento nuclear, o voto do Werramantry foi vencido na Corte Internacional de Justiça.

Além disto, outro precedente importante sobre proliferação, decidido recentemente pela Alta Corte da Escócia, é o caso Zelter que, também, ratificou a possibilidade de utilização de armas nucleares como política dissuasória. No referido caso, Angela Zelter, Bodil Roder e Ellen Moxley foram condenados por invadirem e causarem danos ao navio Maytime que transportava submarinos com mísseis nucleares Trident II. Os réus afirmaram que sua conduta era justificada pelo Direito Internacional, uma vez que estavam agindo em estado de necessidade e as políticas dissuasórias nucleares do Reino Unido eram ilegais. A Alta Corte da Escócia entendeu que não existia nenhuma norma costumeira capaz de considerar políticas nucleares dissuasórias ilegais, ratificando o entendimento da Corte Internacional de Justiça. Portanto, pode-se afirmar que não existe uma opinião unânime sobre a proibição dos arsenais nucleares, apesar das respeitáveis opiniões kantianas e grotianas de Werramantry e Cançado Trindade a este respeito.

Além disto, deve-se ressaltar que a discussão sobre aspectos morais e normativos do uso de armas nucleares difere do debate sobre o papel dissuasório de tais armas na interação entre as grandes potências, que ainda é intermediada, em parte, por esta dissuasão. O mundo atual, ainda, está muito distante do sonho liberal da total desnuclearização bélica. Existem, atualmente, mais de vinte mil armas nucleares e (caso realmente as potências nucleares se engajem na questão do desarmamento) estima-se a diminuição da metade do arsenal atual, mas a continuidade, por muito tempo, de, no mínimo, 10 mil ogivas nucleares. Não bastasse isto, os Estados Unidos continuam investindo em armamento nuclear. Por isto, antes de compreender a relevância do comportamento e das escolhas do Brasil e da Argentina no cenário nuclear mundial, é necessário contextualizar e estudar o sistema internacional de forma ampla, a fim de entender o papel de grandes potências como os Estados Unidos, a Rússia e a China.

Ao contrário do que preceitua a corrente liberal, o embaixador Linton Brooks explica que os Estados Unidos, baseado na Estratégia de Segurança Nacional norte-americana e no Nuclear Posture Review de 2002, não pode se desarmar porque, assim como reconheceu a Corte Internacional de Justiça, o dilema da segurança persiste.

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A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos está redigida nos seguintes termos: "Nós iremos reter forças nucleares suficientes para impedir qualquer liderança estrangeira futura hostil, com acesso a forças nucleares estratégicas, de realizar atos contra nossos interesses vitais, convencendo-os de que a busca por vantagem nuclear será inútil. Portanto, nós iremos manter forças nucleares de tamanho e capacidades suficientes para ter vantagens que sejam reconhecidas por tais líderes políticos e militares” (Tradução do autor). 38

Existe, também, muita apreensão em relação ao destino dos arsenais nucleares da Rússia e da China. Tais preocupações mostram-se condizentes com a realidade. Contrariando a visão liberal do tenente norte-americano Kevin Donavan, as recentes ameaças do general chinês Zhu Chenghu são claras no sentido de utilizar armas nucleares contra os norte-americanos, se os mesmos insistirem em interferir no relacionamento político da China com Taiwan.

Da mesma forma, a política nuclear da Rússia atrapalhou os interesses segurança de Washington. Os Estados Unidos, por exemplo, tentaram forçar o governo de Moscou a interromper a ajuda russa ao Irã, na usina de Bushehr, pois acusaram Teerã de utilizar a construção de usinas nucleares para encobrir o desenvolvimento de armas proibidas. Mesmo assim, a relação entre russos e norte-americanos neste âmbito foi extremamente conturbada e envolveu a briga por um acordo de mais de 800 milhões de dólares. Deve-se salientar que o programa nuclear iraniano, durante toda sua história, recebeu o auxílio de diversos países, como China, Estados Unidos, Argentina, dentre outros. A própria questão da construção do programa nuclear da tão temida Coréia do Norte envolveu interesses econômicos e estratégicos conflitantes dos Estados Unidos e da Rússia.

Além disto, de acordo com Kier Lieber, os Estados Unidos buscam, com o seu programa antimísseis, uma proteção dos armamentos nucleares da China e da Rússia, independentemente dos possíveis custos e da insegurança que esta política venha a acarretar no Oriente. Nesta esteira, como salienta Marco Aurélio Chaves Cepik, a aproximação Sino-Russa (como a do Tratado de Boa Vizinhança e Cooperação Amistosa assinado em 2001) pode ter implicações geopolíticas consideráveis (CEPIK, Marco A.. 2004. p.43). Não bastasse este conflito latente, John Deutch afirma que o possível desarmamento nuclear dos Estados Unidos poderia incentivar a Alemanha e o Japão a se armarem nuclearmente por se sentirem desprotegidos sem o guarda-chuva nuclear norte-americano.

Por isto, François de Soete afirma que as armas nucleares não perderam a sua utilidade no cenário internacional como muitos analistas liberais insistem em relatar.39 Tanto é verdade que as armas nucleares continuam importantes para tratar do dilema da segurança que muitos cientistas políticos norte-americanos sugerem a melhoria e a inovação destes arsenais. De acordo com Fred Kaplan, o Departamento de Energia norte-americano gastou a quantia de 6,5 bilhões de dólares em armas nucleares em 2004, sendo que a previsão de gastos para os próximos quatro anos no setor de armas nucleares é de, aproximadamente, 30 bilhões de dólares. Este total não inclui o tão comentado programa de defesa por mísseis, abrangendo, apenas, a manutenção, modernização, desenvolvimento e produção de bombas atômicas.

38 De acordo com o site http://www.fas.org/nuke/guide/usa/doctrine/dod/95_npr.htm, verificado em 15 de

julho de 2005. 39 SOETE, François. The Nuclear Non-Proliferation Regime: Trying to Maintain the Status Quo. De acordo

com o site http://www.cda-cdai.ca/symposia/2003/soete.htm, verificado em 15 de Julho de 2005.

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Como afirma David Ruppe, os Estados Unidos devem produzir uma nova família de armas nucleares para conseguir atualizar o seu antigo arsenal proveniente da Guerra Fria. O programa intitulado Reliable Replacement Warhead (RRW), dirigido por Dave Hobson, tem o objetivo de criar um arsenal menor, mais moderno e mais barato.

Certamente, existe a posição daqueles que são mais moderados. O ex-senador Sam Nunn, por exemplo, afirma que deve diminuir o número de armas nucleares prontas para serem detonadas, tanto do lado norte-americano quanto do lado russo. Christopher Paine argumenta que não se deve continuar investindo em armamento nuclear. De qualquer sorte, ainda que não se invista em arsenais bélicos nucleares, o desarmamento nuclear total dos Estados Unidos está muito longe de ocorrer, sendo que, muitas vezes, o discurso liberal acaba refletindo seus interesses monopolísticos na área nuclear. Em 11 de fevereiro de 2004, por exemplo, o presidente George W. Bush proferiu um discurso, na National Defense University, com o objetivo de apresentar seu plano de contenção das armas de destruição em massa. Neste plano, uma das estratégias apresentadas era, justamente, encorajar os países que não são possuidores de armas nucleares para desistirem de seus programas nucleares, incluindo, aqueles que, como o Brasil, afirmam utilizar a energia nuclear, exclusivamente, para fins civis.

De acordo com Robin Cook, embora exista toda esta preocupação norte-americana com a segurança mundial, o seu discurso da não-proliferação é utilizado para desarmar o Irã e a Coréia do Norte, mas não para desarmar a si próprio. Assim, as falhas da conferência do Tratado de Não-Proliferação de 2005 são atribuídas à política nuclear armamentista dos Estados Unidos. Nas palavras de David Krieger, a hipocrisia norte-americana continua a pressionar outros países a desistirem de seus planos nucleares, enquanto os próprios norte-americanos não obedecem a este tratado.

Além dos tratados internacionais e da retórica liberal, os Estados Unidos utilizam diversos mecanismos internos contrários à proliferação. De acordo com o Escritório de Auxílio Tecnológico do Congresso norte-americano, o segredo em relação ao conhecimento da tecnologia nuclear sempre foi uma “ferramenta utilizada pela política dos Estados Unidos desde a criação da primeira arma nuclear durante a Segunda Guerra Mundial. Todavia, hoje, alguns princípios básicos de produção de materiais nucleares, do desenho de armas nucleares e sua manufatura são conhecidos mundialmente. Por outro lado, detalhes importantes de engenharia e alguns pormenores técnicos ainda são considerados confidenciais pelas potências nucleares atuais” (tradução do autor). 40

Além do segredo, existe uma vasta legislação interna (como a Lei dos Negócios com o Inimigo de 1917; Lei do Export-Import Bank, com Emendas - Export-Import Bank Act de 1945; a Lei de Energia Nuclear de 1954; a Lei Glenn de 1977; a Lei Symington 1977 relativa às emendas (seções 669 e 670) à Lei de Assistência aos Estrangeiros de 1961; Lei de Poderes Econômicos Internacionais de Emergência de 1977; a Lei de Não-Proliferação Nuclear de 1978; a Lei de Administração das Exportações de 1979 e a Ordem Executiva 12735 de 1990; a Lei do Controle de Tecnologia de Mísseis de 1990; Lei de Autorização da Defesa Nacional de 1991; a Lei das Armas de Destruição em

40 “Mesmo havendo uma política de segredo, os Estados que possuem armas nucleares, várias vezes, auxiliaram outros Estados a desenvolverem armas: os Estados Unidos cooperou com o programa nuclear britânico, a União Soviérica ajudou a China antes da cisão Sino-Soviética; a assistência nuclear ajudou o programa bélico israelense a se desenvolver; a China supostamente auxiliou o Paquistão; Israel supostamente auxiliou a África do Sul, embora o governo da África do Sul admita a existência de um programa bélico nuclear no passado, não reconhece este relacionamento com Israel.” De acordo com o site http://www.wws.princeton.edu/cgi-bin/byteserv.prl/~ota/disk1/1993/9341/9341.PDF, verificado em 15 de agosto de 2005.

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Massa de 1992; a Lei de Não- Proliferação Irã-Iraque de 1992; a Lei de Suporte à Liberdade de 1992; a Lei para a Prevenção da Proliferação Nuclear de 1994; dentre outras) que permite ao executivo norte-americano impor sanções políticas e econômicas àquele que desrespeitar a política de não-proliferação nuclear, tais como a negativa de status de nação mais favorecida; a apreensão de propriedade estrangeira; a negativa de assistência de instituições internacionais (como FMI e Banco Mundial); a negativa de transferência de armamentos; a negativa de crédito em bancos de importação e exportação; e a negativa de pouso em aeroportos norte-americanos.

Os Estados Unidos podem sancionar terceiros Estados, empresas ou indivíduos que mantenham relações comerciais nucleares contrárias aos interesses norte-americanos, incluindo penalidades criminais e embargos comerciais (como aconteceu em 1992, quando os Estados Unidos impuseram embargos à exportação e importação à empresa russa Glavkosmos por ter vendido tecnologia de mísseis nucleares à Índia em violação do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis).

Frise-se que o Brasil e a Argentina já sofreram estas sanções. Basta lembrar que a tentativa de Vargas de importar material para produção de urânio enriquecido na Alemanha foi barrada pelo Military Security Board dos Estados Unidos. Também, a tentativa de aquisição de tecnologia nuclear da Alemanha, na década de 70, sofreu pressão do governo Carter que ameaçou colocar em prática um "programa de estágios repressivos" (que incluía intervenção militar norte-americana) se o Brasil e a Alemanha não aceitassem a interferência dos Estados Unidos no referido acordo.

Aliás, em 1977, Jimmy Carter requisitou ao Export-Import-Bank e ao Chase Manhattan para congelar os créditos negociados com o Brasil, pressionando o Fundo Monetário Mundial a agir da mesma forma. Além disto, os Estados Unidos embargaram o carregamento de urânio enriquecido para o Brasil e para a Alemanha e enviaram seu vice-presidente, Walter Mondale, para conversar com Helmut Schimidt, com o propósito de convencer os alemães a desistirem do acordo. Da mesma forma, defendendo o pragmatismo norte-americano, Warren Christopher viajou para Brasília para conversar com o governo brasileiro a respeito da possibilidade de interromper o Tratado Brasil-Alemanha. A Argentina, também, sofreu pressões norte-americanas. A mesma teve que readaptar o orçamento público para proceder à construção de suas usinas nucleares e para saldar suas responsabilidades com a KWU, tendo em vista que o Export-Import-Bank, em 1978, negou empréstimos à Argentina em razão das “violações de direitos humanos” que ocorriam no país. (BANDEIRA, Moniz, 1995. p.261)

Todas estas ferramentas de pressão foram utilizadas em prol das regras neutras que buscavam a paz mundial por meio de regimes não-proliferacionistas contra ditaduras latino-americanas. Ditaduras estas cuja implantação foi, em grande parte, auxiliada pela operação Brother Sam. Além disto, embora os militares tenham assumido o governo no Brasil em meados da década de 60 no Brasil, tais sanções foram utilizadas justamente quando o Brasil e a Argentina buscaram uma alternativa aos tratados comerciais tidos com os Estados Unidos relativos à produção de energia nuclear.

Frise-se, no entanto, que os Estados Unidos não é o único país que chama a si a responsabilidade de zelar pela paz mundial e pelas regras não-proliferacionistas. Outros países também se acham no direito de impor sanções a Estados que desrespeitam os regimes internacionais. Israel, por exemplo, impôs severas sanções penais a técnicos nucleares (como Mordechai Vanunu que disseminou informações sobre seu programa). Também, Israel aplicou a sanção mais severa, relacionada à utilização da força militar, para conter a proliferação bélica nuclear, bombardeando o reator nuclear iraquiano Osirak, em 1981. Na região, os Estados Unidos incentivaram tanto o Irã como o Iraque a

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continuarem sua guerra doméstica. Ao mesmo tempo que os norte-americanos vendiam armas ao Irã por intermédio de Oliver North, era fornecido grande auxílio ao Iraque, que redundou, inclusive, no bombardeio iraquiano da usina iraniana de Bushrein em fevereiro e março de 1985. Além disto, de acordo com Leonardo Spector, existem provas da criação de uma coalizão entre Estados Unidos, Turquia e Israel para destruir a usina de Bushehr.

Não bastasse isto, a Operação Tempestade no Deserto, em Al Atheer, atacou e destruiu construções iraquianas que se suponha ter conexão com um programa relativo à construção de armas de destruição em massa. Mesmo depois de ter acabado a Guerra do Golfo, os Estados Unidos continuaram a atacar os centros de pesquisa nuclear do Iraque. O caso iraquiano serviria de exemplo a todo Estado que não aderisse, eufemisticamente de forma voluntária, no início da década de 90, ao tão discutido regime de não-proliferação.

O Irã e o Iraque, que sofreram diversas sanções no plano internacional, eram parceiros que o Brasil e a Argentina tinham na década de 80 na área nuclear. Na referida década, quando os Estados Unidos e as grandes potências inviabilizaram o desenvolvimento autônomo de tecnologia nacional, Brasil e Argentina empreenderam uma grande estratégia multilateral no âmbito da diplomacia nuclear, contando com o apoio de países como a Turquia, a Síria, o Iraque, o Irã, a Argélia, a Índia e a China. A assinatura por parte do Brasil e da Argentina de acordos de não-proliferação e a desistência desta diplomacia nuclear multilateral, como a seguir será demonstrado, fazem parte de um contexto mais amplo. Por isto, ao se estudar a desistência de determinados países de possíveis programas bélicos nucleares, em especial na década de 90, deve-se levar em consideração não apenas idéias e regras abstratas, mas é imprescindível analisar o panorama da política nuclear mundial. O acordo de salvaguardas nucleares que o Brasil assinou com a Argentina, em 1991 em meio à mudança da forma como foi conduzida a política externa nuclear nacional ocorreu, justamente, após a queda do muro de Berlim e do império soviético. Neste período, as forças políticas e econômicas mundiais estavam se reestruturando. Tanto Brasil como Argentina precisavam se aproximar dos Estados Unidos, tendo em vista as necessidades de financiamento internacional e das diversas vulnerabilidades econômicas, como uma grande dívida externa e uma enorme inflação. Coincidentemente, vários outros países que aceitaram as regras dos regimes nucleares assimétricos também estavam em uma posição econômica desfavorável e necessitavam de financiamento internacional.

Após a promessa de que seria respeitada a inviolabilidade de suas fronteiras, a Ucrânia aceitou cooperar com a Rússia em matéria de desarmamento nuclear, sendo que a mesma devia mais de 4,2 bilhões de dólares à Rússia. Logo após assinar este acordo, a Ucrânia aceitou o plano internacional para fechar a problemática usina nuclear de Chernobyl, recebendo a módica quantia de US$ 2 bilhões dólares do Grupo dos Sete e da União Européia. O Cazaquistão, que se desfez de mais de 1.040 armas nucleares estratégicas, não tinha as contas externas equilibradas e chegou a uma inflação de mais de 3.000% em 1994. Neste mesmo ano, foram enviados do Cazaquistão aos Estados Unidos mais de 600 quilos de urânio enriquecido pela Operação Sapphire, sendo que o país recebeu a generosa assistência de mais de 172 milhões de dólares do governo norte-americano. Além disto, empréstimos muito maiores, como os 550 milhões de dólares do Fundo Monetário Internacional e os 160 milhões de dólares do Banco Europeu, auxiliaram a reestruturar a economia do país. Assim, com o apoio de Clinton e Ieltsin, o Cazaquistão, a Ucrânia e Belarus desistiram de seus arsenais nucleares, impedindo, em certa medida, o grande aumento que existia nesta época do mercado negro dos materiais nucleares das ex-repúblicas soviéticas.

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Da mesma forma, as potências nucleares não estão imunes a sanções econômicas relacionadas à proliferação nuclear. Os Estados Unidos, por exemplo, reiniciaram a venda de satélites para a China em 1994, apenas, depois que Pequim afirmou que iria parar com a transferência de tecnologia nuclear a outros países.

Se grandes potências mundiais negociaram seus interesses no Regime Internacional de Não-Proliferação nuclear feito por normas que não são normas técnicas e neutras, mas criadas à força pelas potências nucleares, em meio a um ambiente político e, ainda, anárquico, o mesmo também ocorreu com Brasil e Argentina.

5.2 – Interesses no Brasil e Argentina e a adesão ao Regime

O Brasil e a Argentina apresentavam grandes vulnerabilidades econômicas, especialmente, no final década de 80, como uma alta inflação, com um grande endividamento externo e, inclusive, no caso brasileiro, com a moratória de 1987. No empenho de estabilizar a economia e de minimizar as mencionadas vulnerabilidades, de acordo com Mônica Hirst e Maria Regina Soares de Lima, o Brasil, na década de 90, realizou “gestos de boa vontade” condizentes com as expectativas norte-americanas relacionadas aos regimes de não-proliferação como “a aprovação do acordo quadripartite com a Argentina e a revisão do Tratado de Tlateloco” (HIRST, Mônica. 1994. p.60).

De acordo com Gary Milhollin e Jennifer Weeks, tais gestos de “boa vontade” ocorreram, em grande parte, porque, no início de 1990, a Alemanha (ator principal dos dois programas nucleares) afirmou que iria parar suas exportações aos países que não aceitassem, totalmente, as salvaguardas nucleares (como previa o acordo quadripartite). O Canadá, outro importante fornecedor, já havia tomado esta posição há alguns anos. Não bastasse isto, os Estados Unidos estavam impedindo o repasse de tecnologia do supercomputador da IBM à Petrobras, pois, de acordo com a imprensa internacional, o Brasil, além de não aceitar totalmente as salvaguardas nucleares da AIEA, estava auxiliando o Iraque em seu programa nuclear e no desenvolvimento de mísseis balísticos.

De fato, como relatou José Goldemberg (secretário de Ciência e Tecnologia e ministro da Educação do governo Collor) à Folha de São Paulo, para que o Brasil tivesse acesso à tecnologia dos supercomputadores, foi necessário assinar estes acordos de salvaguardas nucleares. De acordo com Goldemberg, a “primeira das ações do governo Collor foi colocar ciência e tecnologia dentro do contexto de modernização e da integração do país no contexto internacional, e não apenas como uma atividade isolada que se restringia à distribuição de bolsas e auxílios aos cientistas. (...) Neste contexto, coube à Secretaria de Ciência e Tecnologia da Presidência da República, com a aprovação do Congresso Nacional, remover gradualmente a reserva de mercado da informática que impedia não só o reequipamento das universidades como também a modernização de vários setores industriais. No período de três anos desde então, computadores caíram dramaticamente de preço e sua qualidade melhorou sensivelmente. Ao mesmo tempo, foi removido todo o contencioso e suspeitas dos Estados Unidos e outros países nas áreas consideradas estratégicas de energia nuclear e atividades espaciais, que criavam sérias dificuldades para a importação de equipamentos sofisticados como supercomputadores. Só como exemplo, pode-se dizer que a solução destes problemas permitiu a instalação de um grande centro de computação e previsões climáticas no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais”(Grifo nosso) (GOLDEMBERG, José.1994. p.1-3).

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Para realizar este negócio no início da década de 90, o Brasil aceitou o empréstimo japonês de 30 milhões de dólares. Para realizar a venda do referido computador, os Estados Unidos exigiu que o governo Collor fizesse uma declaração afirmando que o supercomputador não seria utilizado para fins militares. Tal preocupação norte-americana deve-se ao fato de que é esta espécie de computador que controla o arsenal atômico norte-americano, por conseguir realizar milhares de cálculos por segundo. O Lawrence Livermore National Laboratory da Califórnia, por intermédio destes supercomputadores, consegue controlar a confiabilidade das ogivas nucleares norte-americanas sem que ocorra qualquer detonação.

A necessidade de aquisição das novas tecnologias e da reformulação da política externa nuclear brasileira era utilizada por Collor para fortificar seu discurso de ruptura com o passado, qualificando o período anterior como o da imoralidade e do atraso. Collor escolheu assessores que “apoiavam explicitamente um maior controle civil sobre as atividades nucleares e eram mais favoráveis ao avanço do regime de não-proliferação de armas nucleares”. 41

O Brasil já havia renunciado à utilização bélica da energia nuclear na Constituição Federal de 1988. Por outro lado, o governo Collor renunciou a qualquer espécie de explosão atômica e (em troca da tecnologia do supercomputador) afirmou que seria possível deixar o desenvolvimento da tecnologia do submarino nuclear em segundo plano (embora, sem grandes pressões, a pesquisa das ultracentrífugas tenha continuado nos anos 90). A mudança de posicionamento da política externa brasileira com a aceitação dos princípios do Consenso de Washington fica evidente nas palavras do Ministro das Relações Exteriores de Collor, Francisco Rezek: “Se o governo norte-americano, cujo bom entendimento dos projetos brasileiro é importante para que desenvolvamos alta tecnologia, “implicar”, digamos, com o projeto do submarino movido à energia nuclear, então deveremos negociar e o próprio descarte dessa idéia [do submarino nuclear] não está excluído. Não está excluído na medida em que a relação custo-benefício nos conduza a tanto. É uma questão de saber o que perderemos se levarmos o projeto avante, à revelia de um país que nos pode transferir alta tecnologia. Creio que temos a ganhar com outros tópicos de alta tecnologia. Custo a crer que um submarino seja tão importante que justifique a renúncia, inevitável renúncia pelo Brasil, a outras formas de assistência tecnológica que podemos obter e esperamos obter a curto prazo”(SIMOES, Viviane. 2001).

Neste sentido, a assinatura do acordo quadripartite foi, em parte, fruto de pressões externas e de uma estratégia de negociação, que buscava conseguir dos Estados Unidos transferência de tecnologia. Além dos condicionantes sistêmicos, as variáveis regionais de segurança, também, foram importantes no estabelecimento de um sistema de transparência da política nuclear brasileira. A adoção do acordo de salvaguardas nucleares entre Brasil e Argentina no governo Fernando Collor foi feita com bases em cálculos de custo e benefício regional, para aumentar a segurança dos dois países e evitar a drenagem dos escassos recursos públicos para uma corrida armamentista nuclear despropositada.

Além das vantagens que se perderiam se o Brasil e a Argentina construíssem a bomba atômica, Guglialmelli entende que existem diversas desvantagens nesta empresa, eis que os mesmos não se tornariam potências nucleares, mas seriam alvos de ataques nucleares sem capacidade de resposta, diminuindo a segurança regional.

41 Conforme entrevista concedida ao "The Wall Street Journal", Brasília-DF, 21/09/90, disponível no site http://www.collor.com, verificado em 01 de Fevereiro de 2005.

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Por outro lado, mesmo depois de ter assinado os acordos de salvaguardas nucleares em 1991, criando a ABACC, e de ter aceitado as inspeções pela AIEA, pelo acordo quadripartite, alguns analistas, ainda duvidavam do caráter pacifista dos programas nucleares do Brasil e da Argentina. Em um artigo escrito em 1994, Jean Krasno afirmou que o Brasil e a Argentina construíram um sistema de verificação de seus programas nucleares para colaborarem na construção de uma bomba atômica regional sem antagonizar com as potências nucleares das quais dependem tecnológica e comercialmente.

Ao menos a curto e médio prazo, a hipótese levantada por Krasno é pouco plausível, levando-se em consideração o grande custo político que a nuclearização bélica da América do Sul poderia trazer ao Brasil e à Argentina. Esta conduta poderia causar atritos com os Estados Unidos que investem maciçamente em seu orçamento militar e que tem, freqüentemente, desincentivado a proliferação horizontal (como no caso iraquiano, iraniano, norte-coreano, dentre outros).

De qualquer sorte, o confortável guarda-chuva nuclear norte-americano, por mais que seja imposto por um regime assimétrico, é uma das poucas opções que brasileiros e argentinos têm. De acordo com José Eduardo M. Felício, “torna-se necessário aderir às regras do jogo do mundo atual, o que implica, necessariamente, em participar dos regimes de controle das tecnologias de uso duplo. A opção contrária leva a colocar o Brasil sob suspeita, desnecessariamente – de querer, inclusive, acobertar ações de países com perfis totalmente distintos e que vivem em regiões de tensão – e a impossibilitar que o governo possa influenciar, com seu respeitado ponto de vista, o rumo das tendências em matérias de controles”. (FELICIO, José Eduardo. 1994. p.280) A opção contrária a que Felício faz menção poderia significar sanções indesejáveis ao desenvolvimento econômico e à segurança nacional.

Portanto, a participação nos regimes de não-proliferação não era apenas uma opção relativa à obediência a regras internacionais justas em busca de um mundo pacífico, mas representava uma estratégia de aproximação aos Estados Unidos. Estratégia esta que incluía a tão discutida questão sobre o maior e mais desigual tratado de salvaguardas nucleares: o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares.

O Brasil e a Argentina, desde a gênese de seus programas nucleares, refutaram este tratado. Mesmo assim, o presidente Fernando Henrique Cardoso e presidente Menem, contrariando uma larga tradição diplomática, aderiram ao TNP. Como mencionado na introdução autores como Dawisson Belém Lopes entendem que esta postura ratifica o pensamento liberal, sendo uma decisão eminentemente idealista e interna, destituída de qualquer pressão externa.42

Seguindo esta mesma linha argumentativa, Márcio Azevedo Guimarães afirma que o posicionamento do ex-presidente FHC e de seu chanceler em relação ao TNP “convencionou-se chamar, em Teoria das Relações Internacionais, de Escola Idealista. Baseada na contribuição filosófica de Immanuel Kant (obra clássica Paz Perpétua) e também de pensadores renascentistas como Hugo Grotius, que foi um dos pioneiros no estudo do Direito Internacional, esta teoria teve no Presidente norte-americano Woodrow Wilson, com seus Quatorze Pontos, uma figura internacional de maior destaque”. Por esta interpretação, o Brasil estaria assumindo que os Estados iriam cooperar nas questões de segurança e a anarquia internacional poderia ser, de alguma forma, mitigada, em virtude

42 De acordo com o site http://www.odebatedouro.com.br/editorial40.html, verificado em 20 de novembro de 2005.

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da obediência de todos os países de normas que proíbam a proliferação. Segundo o autor, “seria simplista aceitar a idéia de que Washington teve um papel preponderante e condicionante no processo de decisão brasileira. Historicamente, todas as iniciativas brasileiras que favoreceram os interesses econômicos ou estratégicos dos EUA, assim o foram por vontade autônoma dos dirigentes brasileiros. No caso do Tratado de Não-Proliferação, da mesma forma, foi o cálculo político decisório interno que foi o determinante para o Brasil optar pela alternativa da adesão”(grifo nosso). (GUIMARÃES, Marcio A.. 2005. p.192)

Ora, não parece crível que política externa nuclear brasileira tenha se afirmado de forma independente do contexto internacional restritivo ao acesso à tecnologia nuclear, ou seja, nem sempre a “vontade autônoma dos dirigentes brasileiros” foi suficiente para efetivar todas as iniciativas brasileiras, principalmente, no âmbito nuclear. De outra forma, o Brasil não teria assinado, no início de seu programa nuclear, tantos acordos lesivos à soberania nacional, como, por exemplo, o que Vargas assinou dias antes de sua morte. Lembre-se que, por estes acordos, o Brasil teve que comprar trigo subsidiado norte-americano em troca do Tório brasileiro.

Também, não se deve confundir o discurso diplomático de FHC com suas reais intenções. Neste sentido, é possível compreender que a mudança da postura de contrariedade ao TNP para a aceitação do mesmo foi, em certa medida, pragmática. Assim, por mais que esta seja uma decisão extremamente criticada, ela não foi meramente idealista e destituída de qualquer pressão externa. Por isto, antes de tecer comentários a este respeito, é importante analisar os grandes interesses econômicos e estratégicos que envolviam o programa espacial brasileiro.

Conforme as conclusões da tese de Steven Flank sobre política internacional, apresentada ao MIT, o Brasil construiu seu programa espacial e de lançamento de foguetes exclusivamente para fins pacíficos e por variáveis eminentemente internas. Por outro lado, de acordo com as considerações de Scott D. Tollefson, à época Professor de Assuntos Latino-Americanos do Departamento de Segurança Nacional da Academia Naval na Califórnia, publicadas pela Livraria do Congresso norte-americano e pelo World Factbook da CIA, em abril de 1997, o Brasil, na década de 80, estava preocupado com os desdobramentos da Operação Condor II. Assim, tendo em vista que Condor II daria à Argentina a possibilidade de lançar mísseis com alcance maior de 1000 quilômetros, na visão de Tollefson, com o propósito de se proteger, o Brasil teria incentivado a continuidade da construção e do desenvolvimento de seu programa espacial, uma vez que este poderia construir tecnologia dual, capaz de ser utilizada tanto para o lançamento de satélites comerciais como de foguetes e mísseis de longa distância.

De qualquer sorte, o programa espacial brasileiro já era desenvolvido desde 1965. No mencionado ano, foi criado o centro de lançamento na “barreira do inferno”, cidade próxima à Natal, no Rio Grande do Norte. Além disto, no início da década de 70, foi criada a Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (COBAE) - órgão vinculado ao Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) – que passou a coordenar e acompanhar a execução do programa espacial, incluindo a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), aprovada em 1980. Pela MECB, “o desenvolvimento e construção de satélites nacionais para coleta de dados e sensoriamento remoto, lançados por um veículo nacional lançador de satélites a partir de um centro nacional de lançamentos, constituiu-se em acontecimento fundamental ao efetivo desenvolvimento de nossas atividades espaciais”.43

43 De acordo com o site http://www.spacestation.hpg.ig.com.br/galeriabrasil.htm, verificado em 15 de setembro de 2005.

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Posteriormente, o Brasil passou a ter uma perspectiva, com o estabelecimento da base de Alcântara e com o aprofundamento do programa espacial, de obter ganhos em aspectos políticos, econômicos e militares. Pelo ponto de vista econômico, o programa conseguiu desenvolver tecnologias que foram aproveitadas pela EMBRAER, relativas a propelentes, a metais altamente resistentes, a aerodinâmica, a materiais compostos, a sistemas de guiagem, óptico e de navegação. No campo militar, este projeto possibilitou a criação de armamento nacional, como o míssil ar-ar MAA-1 “Piranha”, MAR-1, além de desenvolver uma cobertura RAM que dificulta a detecção dos aviões militares por radares. Quanto à questão político-estratégica, este programa além de diminuir a dependência nacional relativa ao lançamento de satélites, insere o país neste competitivo mercado, uma vez que a posição geográfica privilegiada do Centro de Alcântara traz até 30% de economia no lançamento de foguetes.

Todas estas questões, por si só, já despertariam o interesse dos Estados Unidos ao projeto de construção do Veiculo Lançador de Satélites em Alcântara. Também, o estreitamento das relações do Brasil com a China e com a Rússia neste âmbito auxiliou a acirrar os ânimos com os norte-americanos.

No que se refere à China, já haviam sido assinados, em julho de 1988, diversos acordos com o Brasil para a construção conjunta de satélites de sensoriamento remoto, em que o Brasil cooperaria com 30% do total de 150 milhões do projeto. Em 1993, deu-se início a esta cooperação que foi extremamente frutífera, com o lançamento do SCD 1, que permitiu, posteriormente, os lançamentos do SCD 2 e do CBERS 1 e 2.

Da mesma forma, o Brasil e a Rússia, em 1994, haviam realizado um grande acordo sobre cooperação nuclear e negociaram a venda de tecnologia de foguetes, contrariando o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (RCTM). Segundo o próprio Fernando Henrique Cardoso (FHC), esta negociação era tão secreta que, quando foi chanceler de Itamar Franco, o ex-presidente afirma ter ficado sabendo indiretamente da mesma, pelo secretário de Estado norte-americano Warren Christopher. No que se refere à cooperação nuclear com a Rússia, o presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, José Mauro Esteves dos Santos, defendia que a cooperação incluísse a pesquisa militar para fins pacíficos. Além disto, “Mauro dos Santos, subordinado ao ministro-chefe da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), embaixador Ronaldo Sardenberg, fez uma viagem no início de 1995, para conhecer instalações de pesquisa nuclear russas. A referida viagem causou inquietação no Departamento de Estado dos EUA. A informação dos norte-americanos era de que militares brasileiros estavam visitando instalações nucleares da Rússia. O embaixador do Brasil nos EUA, Paulo Tarso Flecha de Lima, foi chamado a dar explicações sobre o assunto no Departamento de Estado.”44

Neste cenário, o norte-americano John Holum, Diretor do US Arms Control and Disarmament Agency, passou a conversar com as autoridades brasileiras sobre a necessidade de aderir aos regimes de não-proliferação, em especial, o TNP. Posteriormente, em abril de 1995, o presidente Clinton lembrou ao presidente Fernando Henrique Cardoso que a legislação interna dos Estados Unidos obrigava o executivo a impor sanções ao Brasil em virtude dos seus contatos com a Rússia para compra de tecnologia sensível. Coincidentemente, depois desta reunião de abril de 1995, tanto o Brasil passou a atuar de forma mais enérgica para aprovar os tratados de não-

44 De acordo com o site http://www.energiatomica.hpg.ig.com.br/pnp.html, verificado em 15 de setembro de 2005.

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proliferação, como os Estados Unidos “esqueceram” as possíveis sanções que poderia aplicar contra o Brasil pela inobservância do RCTM.

Dentre as diversas ações que foram realizadas em prol da não-proliferação, FHC propôs que o Brasil entrasse para o referido RCTM. Além disto, em 18 de agosto de 1995, em São José dos Campos, no lançamento do avião da Embraer (ERJ 135), FHC tornou público o acordo entre Brasil e Rússia e a intenção do Brasil cooperar com a não-proliferação mundial. Foi publicada, no jornal do O Globo, em 19 de agosto de 2005, a seguinte notícia: “Segundo o presidente, o país já domina a tecnologia de foguetes lançadores de satélites e de mísseis, fato que tem gerado especulações sobre o desenvolvimento de um projeto militar paralelo, com o objetivo de fabricar mísseis de longo alcance para transportar armas de destruição em massa”. (NETO, p.196) De qualquer forma, os norte-americanos já conheciam, há muito tempo, este acordo e estavam atentos à reforma legislativa nesta área, tal como se observou pela lei 9.112/95, pelo Decreto nº 1.861, de 12 de abril de 1996, pela Portaria SAE/PR nº 61, de 12 abril de 1996, pela Medida Provisória nº 2.049-26, de 21 de dezembro de 2000, pela Portaria Interministerial MCT/MD nº 631, de 13.11.2001 e pelo Decreto Nº 4.214, de 30 de abril de 2002.

Além das questões relativas ao programa espacial brasileiro, os Estados Unidos preocupavam-se, também, com a problemática da tecnologia de reprocessamento de Urânio no Brasil e na Argentina. Mesmo após a assinatura do Acordo Quadripartite, os regimes internacionais restritivos continuaram a pressionar o desenvolvimento dos programas nucleares do Brasil e da Argentina. De acordo com pesquisa realizada por Tânia Malheiros, os Estados Unidos pressionaram Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem para que Brasil e Argentina não cooperassem em matéria de reprocessamento do combustível nuclear. Neste sentido, foi enviado, em 1996, um ofício ao Ministério de Relações Exteriores do Brasil, informando que a “legislação interna dos EUA obriga o Poder Executivo a impor sanções a terceiros países que cooperem em matéria de reprocessamento”(MALHEIROS, Tânia. p. 157, 1996).

Ora, a tecnologia de reprocessamento de urânio, muito mais do que produzir plutônio, consegue aumentar a vida útil do combustível nuclear, protegendo as reservas nacionais de minerais estratégicos (e diminuindo a dependência estrangeira).

As tentativas de desenvolver tecnologia de reprocessamento iniciaram no laboratório “Celeste” do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Tânia Malheiros, ao entrevistar Cláudio Rodrigues, diretor superintendente do IPEN, descobriu que tais pesquisas foram paralisadas no governo de Fernando Collor de Melo e que, embora muito se tenha investido neste projeto, é lamentável que o laboratório “Celeste” não esteja sendo utilizado para pesquisas nesta área.

Além da preocupação com os Estados Unidos, a pressão por parte da Alemanha, um dos principais parceiros do programa nuclear brasileiro, era muito forte. Desde a viagem ao Brasil realizada em outubro de 1993, o ministro das relações exteriores alemão, Klaus Kinkel, afirmou que a Alemanha “ficaria muito satisfeita” se o Brasil assinasse em breve o Tratado de Não-Proliferação. De acordo com as entrevistas realizadas por John Redick, “os oficiais alemães não foram sutis ao ligar o apoio financeiro para cooperação nuclear pelo progresso contínuo dos esforços em não-proliferação, sendo que esta mensagem foi entendida pelas autoridades brasileiras, incluindo o ministro da fazenda e o futuro presidente Cardoso”(tradução do autor) (REDICK, John, 1995).

Realmente, os alemães estavam dispostos a romper o acordo nuclear e a suspender o repasse de tecnologias, se não fossem ratificados, em 1994, os acordos que

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previam salvaguardas totais, como o quadripartite e o TNP, mesmo que a Alemanha pudesse ser prejudicada. Conforme o porta-voz do partido conservador da Alemanha, União Democrata Cristã, se o preço a pagar para levar a Alemanha a um posto fixo no Conselho de Segurança da ONU era apoiar “países irresponsáveis como o Brasil ou a Nigéria” então o preço seria “muito alto". De acordo com William Waack, a posição da Alemanha era clara no sentido de que o Brasil não receberia um só parafuso da Alemanha se o Senado brasileiro não ratificasse esses tratados, além de continuar na lista H da Alemanha, que restringe e dificulta a venda de tecnologia sensível (William, WAACK. 1994).

Também, Redick afirma que muitos congressistas brasileiros estavam preocupados com as vantagens comparativas que a Argentina estava ganhando por ter aceito e atuado de forma vigorosa a favor do TNP, além de ter uma política externa favorável aos norte-americanos. Realmente, a mudança da política externa da Argentina foi muito mais brusca do que a brasileira, envolvendo medidas como a decisão de mandar tropas para a Guerra do Golfo, o fim do projeto Condor II e o posicionamento alinhado aos Estados Unidos em organismos internacionais. Como salienta Riva Deijk, em 1987, houve coincidência de apenas 12,4% dos votos da Argentina e dos Estados Unidos na Assembléia Geral das Nações Unidas. Esta porcentagem aumentou, sensivelmente, com a mudança da política externa que em 1991 chegou a 41% e em 1995 alcançou 68,8%.

Dentre as diversas negociações e variáveis capazes de explicar a mudança na política externa argentina, é possível ressaltar que, em 1992, o embaixador dos Estados Unidos, Terrence Todman, teve uma conversa com as autoridades argentinas, permitindo a INVAP ganhar, facilmente, a licitação internacional do ETRR2 no Egito, com a retirada da General Atomics desta concorrência. Assim, a INVAP pôde construir no Egito um reator de investigação de 22 MW com sistema de monitoração ambiental e a General Atomics passou a auxiliar a INVAP nesta negociação. Este contrato foi assinado em troca da renúncia da Argentina a muitos contratos internacionais no Oriente Médio, além da aceitação das teses não-proliferacionistas. Mesmo que a oferta da Argentina contivesse o financiamento dos bancos argentinos, a INVAP teve que fazer, também, um desconto de 10% no preço do projeto para ganhar a licitação pela Argentina. O Egito, também, pediu à CNEA que fizesse a remodelação de um velho reator experimental russo, ocioso há mais de vinte anos, que construísse uma planta de fabricação de elementos combustíveis e que fornecesse serviços adicionais, tais como a construção da obra civil e de outros itens (como os tanques e as estruturas de aço inoxidável) que elevaram o preço do contrato para 100 milhões de dólares. Foi estabelecida uma filial da INVAP no Egito para que se conseguisse cumprir o prazo de 5 anos a partir de 1993 para a finalização da obra. Transferiu-se tecnologia nuclear pela capacitação de cerca de 80 profissionais egípcios em Bariloche, sendo que foi permitida a participação de alguns nos projetos de engenharia.Posteriormente, a INVAP foi selecionada em outra licitação internacional para prover novas plantas: uma de instalação e armazenamento de elementos combustíveis e outra para a produção de radioisótopos, perfazendo o referido contrato a quantia de 32,5 milhões de dólares.

Em virtude destes contatos com o Egito e os Estados Unidos, o presidente Menem passou a defender a não- proliferação, anunciando, desde 3 de dezembro de 1993, sua intenção de buscar a ratificação do TNP pelo Congresso Nacional.

O discurso oficial do governo argentino afirmava que o governo deveria se adaptar à nova situação internacional e que existia uma grande aceitação mundial do TNP. O Partido Radical fez oposição à ratificação do referido acordo por ser discriminatório e por não facilitar o acesso à tecnologia nuclear ou a outras tecnologias de forma mais fácil, não trazendo qualquer benefício extra à Argentina. O governo defendeu que este acordo não

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era discriminatório, mas representava um reconhecimento de um estado fático que existe desde a assinatura do TNP.

Ademais, afirmou-se que todas as dificuldades que a Argentina teve em conseguir tecnologia dos países desenvolvidos para seu programa nuclear ocorreram porque a Argentina não fazia parte deste acordo (sendo que os acordos que a Argentina assinara com os Estados Unidos e com a França foram usados como prova disto). O TNP foi, assim, aprovado no Congresso em dezembro de 1994.

Quanto ao Brasil, as vulnerabilidades externas aumentaram ainda mais, em 1996, quando diminui drasticamente a exportação de urânio para o Brasil. Este fato auxiliou para que, neste mesmo ano, o Brasil passasse a fazer parte do Grupo de Supridores Nucleares e buscasse apoio norte-americano e alemão. “Em sinal do comportamento brasileiro na não-proliferação de armas nucleares em mais de 20 anos, em 1° de março de 1996, Estados Unidos e Brasil rubricaram um novo acordo de cooperação (dois tratados bilaterais de cooperação nuclear e espacial). Estão previstos o desenvolvimento e uso conjunto de reatores, salvaguardas de materiais e componentes nucleares e intercâmbio de técnicas de proteção contra a radiação, permitindo acesso do Brasil a combustível para Angra I. Enquanto não havia acordo, quando se precisou de nova carga de combustível para Angra, FURNAS o negociou com a Siemens e este mesmo combustível apresentou problema de fabricação quando a usina estava funcionando. Após aprovação do Legislativo dos países, o acordo foi assinado em 14.10.1997, pela secretária de Estado Madeleine Albright e o chanceler Luís Felipe Lampréia em Brasília”(grifo nosso). 45

Mesmo com esta dependência de países como Alemanha e Estados Unidos, o Brasil realizou um acordo (não muito agradável aos norte-americanos) de cooperação nuclear com Índia, em 1996, para continuar a pesquisa do tório, interrompida nos governos militares. Tal acordo era arriscado, levando-se em consideração o fato de que, desde 1994, existiam grandes pressões internas para a Índia construir armas nucleares (por mais que já houvesse realizado testes em 1974). Hugo Piva criticou, extremamente, este acordo por ser inócuo, uma vez que não haveria necessidade de celebrar o referido acordo para realizar o intercâmbio de pesquisadores. Por outro lado, no que se refere à transferência de tecnologia, o mencionado acordo é extremamente lacônico, além de causar atritos na relação com os Estados Unidos. Na opinião de Hugo Piva, “os Estados Unidos estão sempre preocupados em acompanhar e controlar todos os projetos que possam trazer desenvolvimento e independência aos países do terceiro mundo. Uma cooperação Brasil-Índia na área nuclear seria um assunto altamente preocupante para os EUA se desse certo. Eu não acredito que tal acordo venha a dar bons frutos e os Estados Unidos certamente tem a mesma opinião” (MALHEIROS, Tânia. p. 197, 1996).

Justamente, em 1998, no ano em que a Índia (parceiro do Brasil) tornou público seu arsenal bélico nuclear, FHC decidiu assinar o tão controverso tratado de não- proliferação de armas nucleares, reconhecendo o status quo mundial neste aspecto, dentre outros motivos, para não criar atritos (e mal-entendidos) com determinados países do Norte, como Estados Unidos e Alemanha.

45 De acordo com o site http://www.energiatomica.hpg.ig.com.br/pnp.html, verificado em 15 de setembro de 2005.

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5. 3 – COMENTÁRIOS FINAIS

Como se pôde verificar, não existem regras internacionais (hard law) que proíbam a utilização de armas nucleares, em especial para legítima defesa dos Estados. O Regime Internacional não-proliferacionista são normas que cristalizaram o status quo mundial outorgando direitos diferenciados aos Estados que conseguiram obter a tecnologia bélica nuclear antes dos outros. Não bastasse isto, tais Estados, em diversas oportunidades, utilizaram este suposto regime em nome da paz mundial, mas, na realidade, visaram, por meio destas regras, obter vantagens políticas e econômicas em razão de seu status nuclear.

Por outro lado, o Brasil e a Argentina aderiram a este sistema não por motivos altruístas, mas, como diversos outros países, agiram assim por estarem em busca de vantagens econômicas e políticas específicas. Por isto, este exemplo de cooperação não deve ser utilizado como uma prova irrefutável de que a anarquia no âmbito da segurança mundial pode ser mitigada ou que todos os Estados podem deixar de lado os seus próprios interesses em troca de ganhos absolutos. O cálculo de custo e benefício realizado por Menem e por Fernando Henrique no que tange à adesão destes regimes desiguais está longe de ser uma posição idealista na concepção kantiana. A aproximação com os Estados Unidos por parte destes governantes pode ser explicada por motivos de segurança e econômicos, em um contexto mundial pós-queda do muro de Berlim.

Além disto, mesmo isolando a relação interestatal Brasil-Argentina deste contexto mais amplo, as interpretações liberais têm dificuldade em explicar a “influência das idéias” na política de segurança regional. Por mais que se tenha sido possível chegar a uma “dissuasão desarmada” na América Latina e se tenha conseguido avançar em diversos aspectos relativos à cooperação na área da segurança, ainda há muitas divergências em matéria de segurança internacional e regional entre Brasil e Argentina. Não se pretende negar os avanços notórios neste âmbito, tais como a aprovação, em 1986, da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) e os diversos exercícios militares conjuntos (como ARAEX, ATLASUR, FRATERNO e Cruzeiro do Sul), porém, como bem salienta Miryam Colacrai, o apoio imediato da Argentina à Guerra do Golfo sem consultar o Brasil e as controvérsias sobre a participação da Argentina como membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte e sobre a participação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU são exemplos de que não se criou uma política externa de segurança regional consistente.

Portanto, a adesão aos regimes internacionais de não-proliferação pode ser analisada, apenas, como uma parte da política externa de segurança de ambos países que, ainda, está longe de ser harmônica ou mesmo destituída de pressões externas.

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Capítulo 6

As Empresas Brasileiras e os Desafios da Integração Regional

Mathias Luce

A reestruturação do capitalismo nas últimas décadas deu origem a uma nova fase do imperialismo, marcada pela projeção da empresa multinacional internalizando operações à escala mundial. Esse movimento de expansão sem precedentes foi definido por François Chesnais como mundialização do capital (Chesnais, 1996). Esse processo provocou sérias conseqüências sobre os países dependentes. À drenagem do excedente econômico desencadeada pela crise da dívida dos anos 1980, somaram-se outras formas de transferência de riqueza Sul-Norte como a intensificação da apropriação dos recursos naturais – e a conseqüente destruição ecológica –, o aumento da superexploração do trabalho e a desnacionalização das economias através de fusões e aquisições. Esses e outros expedientes têm cumprido a função, na estratégia das grandes corporações, de elevar sua competitividade mediante a obtenção de lucros extraordinários.

O Brasil vem sendo objeto – mais acentuadamente desde a década de 1990 – dessa reestruturação produtiva que tem as empresas multinacionais dos países imperialistas como atores decisivos. O movimento de fusões e aquisições na economia brasileira absorveu não somente setores dependentes de tecnologia estrangeira, mas inclusive empresas do agribusiness. Ao mesmo tempo, a desnacionalização foi acompanhada de uma tendência à reprimarização do comércio exterior do Brasil, ensejando a hipótese de uma inserção regressiva do país no mercado mundial (Gonçalves, 2000; 2005). Essa integração subordinada à estrutura produtiva das economias dominantes tem sido secundada, contudo, por um movimento expansivo análogo de empresas brasileiras, com um peso importante na América do Sul, onde estas são sujeito e não objeto do processo de reconversão, desempenhando papel codjuvante na privatização e desnacionalização das economias dos países sul-americanos, através de investimentos vultosos.

A incipiente literatura sobre o Investimento Brasileiro Direto (IBD) procura explicar o surgimento de multinacionais de capital brasileiro como resposta à abertura econômica, em que a internacionalização tornou-se estratégia de sobrevivência, à medida que as empresas ficaram expostas à concorrência das grandes corporações (Almeida, 2007; Tavares, 2006). Duas questões, no entanto, permanecem de fora do objeto das análises correntes: o exame crítico da posição oligopolista, no mercado brasileiro, das empresas que logram se internacionalizar; e seu papel na reprodução intrarregional do intercâmbio desigual. Ou seja, as relações de dominação capitalistas interna e externamente. Também o governo brasileiro, que vem apoiando a internacionalização de empresas, ignora esses dados. Enquanto a imprensa de negócios é nua e crua ao retratar esse expansionismo, o governo sai em defesa da política de promoção de investimentos brasileiros no exterior como instrumento de uma integração supostamente não-assimétrica.

Essas questões remetem para a hipótese de um retorno do subimperialismo na América do Sul. Neste artigo, pretendemos discutir a presença de um novo subimperialismo no sistema regional de poder sul-americano, materializado no incremento do Investimento Brasileiro Direto (IBD). Para discutir esse tema, o texto encontra-se organizado em quatro seções. Partiremos de um breve exame da tese do subimperialismo

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e suas implicações na questão da realização do capital. Após, passaremos à revisão do debate sobre a internacionalização de empresas brasileiras. A seguir, apresentaremos estudo de alguns casos de investimentos de firmas brasileiras em países do Mercosul e da Comunidade Andina de Nações, para então lançarmos alguns elementos conclusivos.

6.1 - O subimperialismo e a realização do capital

Formulada por Ruy Mauro Marini nos anos 1960 e 1970, a tese do subimperialismo discutiu o papel do Brasil como potência regional, moldando uma divisão regional desigual do trabalho, com foco na exportação de manufaturas. A expansão econômica do capitalismo brasileiro foi sintetizada por Marini nos seguintes termos:

O esquema subimperialista partiu das reivindicações do capital, proporcionando-lhe facilidades para uma maior e imediata exploração do trabalho e procurando-lhe novas oportunidades de mercado. Para isto, tinha que atuar em uma dupla frente: complementar o mercado interno através do consumo público e abrir-lhe [ao capital] as portas do mercado exterior.46

O tema da realização do capital está diretamente associado ao da sobreacumulação de capital, “definida como excesso de capital em relação às oportunidades em empregar esse capital rentavelmente”. Para que esse valor sobreacumulado não se desvalorize, os empresários têm de lançar mão de estratégias como as do ajuste espacial.47 “O capitalismo apenas consegue escapar de sua própria contradição por meio da expansão. A expansão é, simultaneamente, intensificação (de desejos e necessidades sociais, de populações totais e assim por diante) e expansão geográfica. Para a empresa capitalista, deverá contar com novo espaço para a acumulação.48 Marini escrevera que:

“(...) a integração imperialista, sublinha, pois, a tendência do capitalismo industrial brasileiro que o torna incapaz de criar mercados na proporção de seu desenvolvimento e, mais ainda, o impulsa a restringir tais mercados em termos relativos. Trata-se de uma agudização da lei geral da acumulação capitalista, ou seja, a absolutização da tendência ao pauperismo, que leva ao estrangulamento da própria capacidade produtiva do sistema, já evidenciada pelos altos índices de “capacidade ociosa” verificados na indústria brasileira ainda em sua fase de maior expansão.” (MARINI, 1974, p.100).

[...] O eixo do esquema subimperialista está constituído pelo problema do mercado. Para a indústria de bens duráveis, a crise dos sessenta se apresenta como impossibilidade de seguir desenvolvendo-se em linha ascendente com base em um mercado interno insuficiente (Id., p.192).

46 S y R, p.108. Grifo nosso.

47 David Harvey. A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume, 2005, p.114-15.

48 Ibid., p.64.

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O texto acima foi atacado de estagnacionismo, quando, na verdade, Marini identificou a possibilidade de driblar a estagnação por meio da expansão. Essa tendência permanece presente, corroborando a hipótese sobre a atualidade do subimperialismo. Hoje, “a impossibilidade de seguir desenvolvendo-se em linha ascendente com base em um mercado interno insuficiente” permanece um elemento de relevo na economia brasileira. E está na origem da motivação de muitas das operações de internacionalização. Cabe realçar que esse elemento vai muito além de uma questão de vontade de investir no Brasil ou fora. Trata-se de imperativos para a realização do capital. Imperativos para os quais a expansão no exterior torna-se ainda mais relevante a partir da abertura econômica neoliberal e das políticas monetária e cambial adotadas sob a égide do neoliberalismo. Daí a necessidade de buscar vantagens no exterior. Este é um ponto importante, com implicações sobre o subimperialismo na fase neoliberal. Nesta, porém, há uma componente nova no fenômeno subimperialista – daí a revisitação a que nos referimos no título deste trabalho.

A reflexão de Marini sobre a questão da realização do capital encontra um desenvolvimento mais maduro em seu texto Sobre el padrón de reproducción del capital en Chile. Ali, Marini resgata a formulação de Marx de que o capitalismo assentou seus pilares através da expansão das economias nacionais sobre a base do mercado mundial, tendência que desembocou nas relações imperialistas. A expansão é marcada pela luta pela conquista de lucros extraordinários, ou seja, superiores aos dos capitalistas concorrentes. Daí a necessidade da expansão permanente em escala crescente, o que Marx definiu como realização do capital. “A extensão da realização é, pois, função e condição do incremento da acumulação”. No texto de 1982, Marini discutiu duas modalidades de obtenção de lucros extraordinários. A mais-valia extraordinária e a renda diferencial. A mais-valia extraordinária foi o mecanismo que recebeu maior atenção nos escritos de Marini, relacionada à superexploração do trabalho, conceito que vertebra toda sua obra. A renda diferencial corresponde à redução de custos através do monopólios sobre fontes de matérias-primas e também ao uso intensivo das mesmas.

Tendo passado por um arrefecimento nos anos 90, a dinâmica subimperialista retorna à cena em nossos dias, em um contexto onde o capitalismo brasileiro se colocaria como coadjuvante do imperialismo dominante na extração do produto excedente das nações sul-americanas.49 Quais os instrumentos de que se valem para a realização do capital?

6.2 - O debate sobre a internacionalização de empresas brasileiras

O fenômeno histórico comumente chamado de globalização corresponde, do ponto de vista marxista, a uma nova fase do imperialismo. Essa fase é marcada pela reestruturação produtiva, com o advento de novos padrões de competitividade em todo o espectro da economia. Essa reorganização da produção e da valorização da mais-valia em escala mundial caracteriza-se pelo aumento da produtividade e da eficiência, com novos referentes tecnológicos, novas formas de gestão e novas formas de exploração do trabalho.

49 Essa hipótese foi discutida em nossa dissertação de Mestrado, O subimperialismo brasileiro revisitado: a

política de integração regional do governo Lula. 2003-2007. Programa de Relações Internacionais/UFRGS, 2007.

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Essa transformação trouxe como resultado a mudança no regime de acumulação, com reflexo na taxa média de lucro. As empresas que logram dominar a eficiência, do ponto de vista da acumulação dentro do novo padrão, são as que obtêm êxito através da lucratividade acima da taxa média, isto é, auferem lucros extraordinários, assegurando competitividade.

A mundialização financeira trouxe à tona novas modalidades de auferição de lucros extraordinários. Esses instrumentos foram discutidos por John Dunning, em sua teoria sobre a internacionalização da firma. Segundo o autor, existem quatro modalidades de vantagens competitivas exploradas através da internacionalização: (1) recursos; (2) mercados; (3) distribuição; (4) eficiência. O quesito recursos – que abrange mão-de-obra e matérias-primas – corresponde aos instrumentos discutidos por Marx, assim como a conquista de novos mercados. A novidade da presente etapa do capitalismo, que não estava no horizonte histórico da época de Marx, é a formação de redes de distribuição e novas técnicas de organização do processo produtivo, como outsourcing, provendo ganhos de eficiência. Estes fatores cumprem hoje papel determinante na definição do poder das empresas, combinadamente à mais-valia extraordinária e à renda diferencial.

Entre os marxistas contemporâneos, quem melhor se debruçou sobre este tema foi Chesnais. Para o economista francês, a estratégia de mundialização das corporações econômicas erige-se sobre três elementos: (1) vantagens próprias do país de origem; (2) aquisição dos insumos estratégicos à produção; (3) conjuntos regionais produção/comercialização. As vantagens por conta da posse de recursos encontram-se no item 2 da classificação de Chesnais. Os mercados são agrupados no item 3, com a tendência à formação de blocos regionais na luta pela competitividade dos capitais na economia mundial. O item 1 informa a visão marxista de Chesnais, ao realçar o papel do Estado no imperialismo. O autor faz uma leitura marxista de elementos da análise de Dunning, considerado por Chesnais “a única posição cientificamente honesta” entre os autores adeptos da teoria da internalização dos custos de transação no exame da empresa multinacional.50

O aumento da importância da formação de multinacionais brasileiras insere-se no contexto da competição do mercado mundial, em que a internacionalização de empresas dos países dependentes vem se configurando como uma tendência. No Brasil, estudos vêm se proliferando, recomendando a internacionalização das firmas brasileiras como meio de alcançar competitividade sistêmica. A literatura disponível vem ressaltando, com unanimidade, a mesma causa última que determinou o processo de internacionalização das empresas brasileiras. O cerne do argumento é que a abertura econômica dos 90, ao incrementar a exposição das firmas nacionais à concorrência externa, impeliu-as a buscar vantagens competitivas, mediante estratégias de internacionalização, com vistas a não perder posições no mercado, inclusive brasileiro, e mesmo para não serem absorvidas (Da Silva, 2003; Gouvêa e Santos, 2004; Iglesias e Veiga, 2002; Tavares, 2006; Almeida, 2007).

Entre os determinantes encontram-se também os de contornar o baixo crescimento do mercado brasileiro e driblar o risco-Brasil. Esse contexto levou analistas a falarem na presença, na verdade, de uma internacionalização às avessas. Márcia Tavares procurou distinguir, no conjunto do processo, o que seria internacionalização às avessas e o que configuraria uma internacionalização competitiva. A premissa que preside esse raciocínio é a possibilidade de uma internacionalização tal como nos países dominantes. Em nosso

50 Ibid., p.85.

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ponto de vista, porém, este é o modo como se dá a internacionalização dentro das leis do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo.

O exame setorial das firmas que lograram a internacionalização revela duas características centrais: o uso intensivo de recursos naturais e a base estatal na trajetória da empresa (Tavares, 2006, p.20).

Estes fatores são dois atributos que compõem o fator vantagens próprias do país de origem, discutido por Chesnais. Essas vantagens próprias permitiram que corporações de capital brasileiro também lançassem mão de estratégias internacionalizadoras, tornando-se sujeitos do processo de privatização e desnacionalização das economias dos países sul-americanos. Esse argumento será desenvolvido a seguir, nos estudos de caso.

6.3 - O Investimento Brasileiro Direto na América do Sul Nessa seção, examinaremos alguns casos que corroboram a hipótese de que está

em curso o aprofundamento de uma especialização produtiva desigual na América do Sul, com a transferência de propriedade de ativos econômicos dos países vizinhos para segmentos da burguesia brasileira, com a conseqüente extração do produto excedente pelas empresas de capital brasileiro. Aliado a isto, verifica-se o exercício de um papel instrumental que a diplomacia brasileira vêm imprimindo nesse sentido. Os casos a seguir correspondem a países do Mercosul (Argentina, Uruguai) e da Comunidade Andina, onde ocorre um avanço acentuado de interesses de empresas de capital brasileiro (Bolívia, Peru e Equador).

Uruguai Desde o advento da segunda revolução industrial, no último quartel do século XIX,

a economia uruguaia aumentou sua integração ao capital imperialista, a partir da formação de um mercado mundial de carnes, impulsionado pelo surgimento da tecnologia de refrigeração e o navio a vapor. Desde então, os frigoríficos passaram a ter lugar chave na economia uruguaia. Em anos recentes, tem-se registrado o avanço da desnacionalização da economia uruguaia, com a aquisição de diversos frigoríficos por grupos estrangeiros, entre os quais encontram-se empresas de matriz brasileira. A agroindústria é a principal atividade econômica do Uruguai, sendo responsável por 60% das exportações totais do país. Destas, somente a pecuária – fundamentalmente a bovina – responde por 25% do volume exportado, ocupando o lugar de maior relevo, na condição de primeira fonte de divisas da economia uruguaia.51

O movimento de desnacionalização que afeta a cadeia da carne no país fez com que os frigoríficos locais sob controle de capital estrangeiro passassem a concentrar 42% das exportações do setor. A desnacionalização da cadeia da carne no Uruguai tem contado com a participação de frigoríficos brasileiros, que absorveram recentemente ativos no país vizinho. Hoje alguns dos principais frigoríficos uruguaios encontram-se nas mãos de firmas brasileiras, em aquisições realizadas em sua maior parte nos últimos dois anos. O grupo Marfrig, segundo maior do ramo de carnes no Brasil, tornou-se o maior frigorífico e o maior exportador de carne bovina no Uruguai, após uma série de aquisições. Entre 2006 e 2007, o Marfrig adquiriu quatro frigoríficos: Tacuarembó, Elbio

51 Oficina Econômica y Comercial de la Embajada de España em Montevideo.

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Pérez Rodríguez (San José), La Caballada (Salto) e Colonia.52 A posição oligopolista no Brasil forneceu bases para essa expansão, corroborando a análise de que as grandes empresas que se internacionalizam usufruem de vantagens que lhes permitem absorver capital de economias mais frágeis.53 Um fator que vem a adicionar vantagens competitivas é a disponibilidade de financiamento. O Marfrig estabeleceu, recentemente, (agosto de 2007) convênio com o Banco do Brasil, prevendo aporte de R$100 milhões, 90% dos quais para financiamento dos pecuaristas integrados e o restante para capital de giro do grupo. Com base na expansão no Uruguai, o Marfrig reuniu ativos que projetaram o grupo, configurando um fator importante na atração de investidores. E, em julho de 2007, o grupo abriu capital na Bolsa de Valores de São Paulo.

Segundo dados do Instituto Nacional de la Carne – órgão do Estado uruguaio –, no movimento das exportações do setor no ano de 2007, as exportações controladas por empresas brasileiras, somadas, perfazem 25% do total (antes da compra do Colonia pelo Marfrig).54 Isso significa que o capital da burguesia brasileira controla algumas das mais importantes empresas da principal atividade econômica do Uruguai. A esse processo de absorção de unidades no país vizinho subjazem três objetivos na estratégia das firmas brasileiras: (1) ampliar as reservas de carne à sua disposição; (2) contar com uma plataforma de exportação livre de barreiras sanitárias em mercados como os EUA, visto que o Uruguai é reconhecido como país livre de febre aftosa55; e (3) contar com uma base para usufruir de preferências tarifárias em caso da assinatura de acordo de livre comércio entre Estados Unidos e Uruguai, que estava sendo negociado pelo governo de Tabaré Vázquez.

Com relação a este último aspecto, cabe dizer que o flerte do governo uruguaio com o assédio estadunidense para um tratado de comércio e investimentos não deixa de ser um fato que passou a ser considerado opção em conseqüência das desvantagens sofridas pelo país no contexto de desequilíbrios existentes no interior do Mercosul. E que é reflexo, portanto, do mesmo quadro de relações do subimperialismo.56

52 Outras aquisições. o Canelones, pelo grupo Bertin; o Pulsa, pelo investidor brasileiro Ernesto Correa, que se tornou seu acionista principal. “Grupo Marfrig compra su cuarta planta en Uruguay”. La República, 18 de setembro de 2007, p.51; “El Grupo Marfrig de Brasil, gran importador de corderos, ultima los detalles de la compra del Tacuarembó”. <http://www.elpais.com.uy/06/09/19/pecono_237897.asp>.

53 “Para o especialista em pecuária do Instituto FNP, José Vicente Ferraz, o avanço dos frigoríficos

brasileiros no Mercosul ocorre devido às ‘margens excelentes’ dos últimos anos, quando essas empresas ‘compraram matéria-prima barata e venderam [carne] caro’. Eles aproveitaram o cenário positivo, diz ele, para lançar ações no mercado e ampliar os negócios. Com margens mais apertadas, na casa dos 2% a 3%, afirma Ferraz, frigoríficos dos países vizinhos não resistiram à oferta dos brasileiros”. Janes Rocha. Carne argentina sob nova direção. Valor Econômico, 18 de setembro de 2007.

54 Instituto Nacional de la Carne. O frigorífico Tacuarembó é atualmente o maior exportador do país, com

9,37% do total exportado. O Pulsa e o Canelones vêm logo adiante no ranking – na 5a e na 6a posições, com, respectivamente, 8,22% e 7,47% do total das exportações. O Elbio Rodríguez responde por parcela menor (0,18%).

55 Cf. Uruguay – Eligible Plants Certified to Export Meat to the US. January 2007.

<http://www.fsis.usda.gov/PDF/Uruguay_establishments.pdf>.

56 “De 1999 para 2005, os Estados Unidos passaram a importar de 6% a 22% dos produtos uruguaios. O

Brasil, porém, baixou de 25% para 14%. A Argentina, de 16% para 7%”.56

No quadro de intercâmbio desigual Mercosul-Uruguai, e no contexto de crescimento das importações estadunidenses de produtos uruguaios, passa-se a preferir a dependência perante uma potência maior, mas que

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No rol de aquisições brasileiras, podemos citar, ainda, as realizadas pela Petrobrás, que “adquirió en 2004 el 51% de las acciones de Gaseba (Gaz de France) y al comprar las 89 estaciones de servicio de Shell, en diciembre pasado, domina el 22% del mercado de combustibles”.57

Peru O Peru é o país sul-americano onde a atividade mineradora apresenta maior

densidade no produto interno nacional. Desde a década de 1970, o setor mineiro responde por metade das exportações peruanas. Em 2004, perfez 55% do valor exportado. Os principais minerais exportados são ouro, cobre e zinco (MEM, 2004). O país é o terceiro produtor mundial de cobre, zinco e estanho; o maior produtor mundial de prata, o 4o de chumbo e o 5o maior produtor de ouro.

No começo dos anos 1990, sob o governo de Alberto Fujimori, teve início a privatização do setor mineiro com a venda das minas e refinarias pertencentes a empresas estatais e o incentivo a investimentos privados. Esse processo teve continuidade com Alejandro Toledo na presidência, aprofundando a desnacionalização e a concentração da economia peruana por oligopólios estrangeiros (Campodónico, 1999). Em anos recentes, empresas brasileiras do ramo da mineração ou que se utilizam de seus produtos entraram para o rol de investidores que açambarcaram ativos privatizados da economia do Peru.

Um dos primeiros empreendimentos a despertar interesse entre corporações brasileiras foi a exploração das jazidas de fostatos de Bayovar, no noroeste do país – negócio conquistado em 2004, pela CVRD, mediante proposta de produção de 3,3 milhões de toneladas anuais de fosfato – 1,2 milhões acima do mínimo que fora estabelecido. A licitação que privatizou a exploração da jazida remonta-se a setembro de 2000, quando lançada quase simultaneamente ao projeto da IIRSA. A exploração dos fosfatos integra, de fato, o Eixo Multimodal do Amazonas, sendo referida como de importância vital para viabilizar as obras do mesmo. A CVRD será beneficiada pelos projetos de interligação da infra-estrutura consubstanciados na IIRSA, à medida que a construção de um porto de águas profundas em Paita e da estrada entre este último, no Pacífico, e o porto fluvial de Yurimáguas, na Amazônia peruana, formarão a conexão para dois imensos mercados em franca expansão: o mercado asiático, a partir do litoral peruano; e o suprimento das plantações de soja brasileiras, seja as da região da amazônica, através da hidrovia Solimões-Manaus, seja as do Centro-Oeste, a partir da BR-364, que liga o Acre a Mato Grosso.58

assegura o escoamento dos produtos ali produzidos... O acordo esteve prestes a ser assinado. Em maio de 2006, Tabaré declarava em entrevista ao Canal 10 de Montevidéu que invocaria os artigos 20 e 21 do Tratado de Assunção com vistas a renunciar à condição de membro pleno do bloco, passando ao nível de simples associado – o que abriria o caminho para a assinatura de tratado bilateral com os EUA. Essa posição parece ter recuado após a Cúpula do Mercosul de julho de 2006. Não deve ser descartada a hipótese, mesmo, de o governo Uruguaio ter sinalizado a saída do bloco e a adesão ao tratado com os EUA como instrumento de barganha pela alteração das condições enfrentadas pela economia uruguaia dentro do bloco. Mas a questão segue em aberto.

57 Raúl Zibechi. Brasil y el difícil camino hacia el multilateralismo. <http://www.ircamericas.org>. 21 de

febrero de 2006, p.4.

58 CVRD vence concorrência para exploração de depósito de fosfatos no Peru. <http://www.cvrd.com.br>.

Relações com Investidores. Press Releases. 16/03/2005. A participação da CVRD no certame contou com os ofícios da embaixada do Brasil no Peru, que ajudou a articular encontros entre a Vale e

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A Petrobras se faz presente no Peru desde 2002, quando assumiu as instalações da Perez Companc, que já explorava um lote petroleiro na localidade de Talara, noroeste do país (lote 10). “Só em 2005 a Petrobrás investiu mais de US$50 milhões no Peru e extrai hoje, apenas daquele lote, 13.000 barris diários, cifra que alçou a empresa ao posto de segundo maior produtor do país, que produz aproximadamente 100 mil barris diários”.59 Em 2007, a empresa anunciou investimentos da ordem de US$ 70 milhões, para elevar a produção de 13.100 para 14.500 barris diários no lote 10. A Petrobrás explora outros lotes e é “a empresa responsável pela mais extensa área de exploração no Peru”. Com a eleição de Alan García, a Petrobrás avalia transferir o projeto de planta de gás-químico para o Peru, em lugar da Bolívia.60

Em 2004, a Votorantim Metais (VM) comprou a Refinaria de Zinc Cajamarquilla, empresa estatal criada em 1981 e depois privatizada, quando passou para as mãos de um consórcio nipo-canadense. A refinaria consta no rol das 30 maiores empresas peruanas que passaram ao controle de grupos estrangeiros, em estudo sobre o processo de desnacionalização (Durand, 2004). A compra da unidade de Cajamarquilla pela empresa brasileira, em 2004, dotou-lhe de uma instalação que goza de um dos menores custos de produção do mundo e de uma localização estratégica, a 25 km de distância da capital Lima. Em 2005, a VM ampliou sua presença no Peru, adquirindo participação acionária de 24,9% no controle da Companhia Mineira Milpo, a quarta maior mineradora de zinco no país.61 As duas aquisições projetaram a VM como o 5o maior produtor mundial de zinco. Em 2007, o grupo anunciou um investimento adicional de 500 milhões

autoridades peruanas. Telegrama. De Brasilemb Lima para Exteriores em 03/03/2004. Peru. Investimentos no setor de mineração. Interesse da Companhia Vale do Rio Doce. Nr.00344. A contrapartida financeira pela concessão foi de 1 milhão dólares ao governo da província de Sechura, onde encontra-se a jazida, mais 500 mil dólares adicionais ao ano, no período em que durar a concessão. Telegrama. De Brasilemb Lima para Exteriores em 16/03/2005. Nr.00371. Em 2000, noticiava-se: “segundo Carlos Alfredo Lazary Teixeira, chefe da divisão de operações de promoção comercial do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o chamado Projeto Fosfato Bayovar pode viabilizar-se com a venda de fertilizantes a agricultores brasileiros do Centro-Oeste. O maior fornecedor do Brasil, atualmente, é o Marrocos, mas o frente encarece o produto. Com o projeto de integração física entre os dois países, a operação poderá ficar mais viável, com utilização da BR-364, que liga o Acre a Mato Grosso, diz o diplomata”. Paulo Paiva. Brasil interessado em fosfato do Peru. Gazeta Mercantil Latino-Americana. 28 de agosto a 3 de setembro de 2000. Em 2002, discurso do embaixador peruano Eduardo Ponce Vivanco. “La concreción de este Eje debería caminar de la mano con la explotación intensiva de los fosfatos de Bayovar y con la construcción de un puerto que aproveche plenamente la gran profundidad de las aguas de esa bahía para el atraque de buques de gran tonelaje, hasta convertirla en el mejor megapuerto del Pacífico. Ello permitiría una óptima complementación entre la utilización de los fosfatos y sus derivados para fertilizar los suelos ácidos de las crecientes plantaciones de soya en la Amazonía brasileña y la exportación masiva de este grano a algunos mercados de la Cuenca del Pacífico, cuyo consumo crece geométricamente”. Na data em que a Vale vencia a licitação, outro diplomata declararia: “A adjudicação da obra à CVRD abre importante importante espaço ao Brasil na Macronorte peruana, fortalece a viabilidade do projeto bioceânico (estrada entre o Porto de Paita, no Pacífico, e o de Yurimáguas na Amazônia) e muito contribui para consolidação de “aliança estratégica” com o Peru”. Telegrama. De Brasilemb Lima para Exteriores em 15/03/2005. Brasil-Peru. Projeto Bayovar. Companhia Vale do Rio Doce. Nr.00358.

59 Telegrama. De Brasilemb Lima para Exteriores em 16/05/2006. Brasil-Peru. Investimentos brasileiros no

Peru. Petrobrás. Expansão de atividades. Nr. 00915.

60 “Petrobras decide tirar pólo gás-químico da Bolívia”. <http://www.gazeta.com.br/>. 11 de setembro de

2007.

61 Essa operação de compra foi assessorada pelo JP Morgan. Maria Christina Carvalho. JP Morgan terá no

Brasil dois co-presidentes. Valor Econômico, 1o de fevereiro de 2006.

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de dólares. A finalidade principal destes investimentos do Grupo Votorantim no Peru é fornecer matéria-prima para suas atividades industriais no Brasil. Considerando que a VM importa do Peru 40% do concentrado de zinco utilizado em suas plantas processadoras do Brasil, a conquista de fontes a baixo custo dota a empresa de vantagens competitivas perante concorrentes. Segundo cálculos da revista Exame, a VM estaria controlando hoje 62% da produção de zinco no Peru. 62

Em 2006, foi a vez do Grupo Gerdau lançar-se na expansão de negócios no Peru. O grupo brasileiro arrematou a privatização da companhia siderúrgica estatal, Siderperú, realizada pelo governo do presidente Alejandro Toledo. Dessa vez, o presidente Lula intercedeu diretamente no assunto.63

Os casos de investimentos brasileiros no Peru apresentam um conjunto de tendências. A VM busca reduzir custos através do controle de fonte de matéria-prima barata para suprir suas fábricas em Minas Gerais. A empresa também destina parte do minério produzido vendendo-o a siderúrgicas brasileiras. O motivo que presidiu os investimentos do grupo Gerdau no país, com a compra da Siderperú e o anúncio de novo aporte de capitais foi ingressar no mercado peruano, com vistas a explorar seu potencial de crescimento de modo a obter ganhos de escala. Além dessa finalidade, encontra-se a de ampliar os ativos do grupo. O investimento da CVRD no Projeto Bayovar vai na direção da estratégia da companhia de diversificar o leque de commodities minerais exploradas pela empresa. Os mercados em potencial para a venda de fertilizantes a partir do fosfato peruano foram um atrativo importante desse investimento greenfield, assim como as facilidades logísticas previstas nos planos da IIRSA. A presença de empresas brasileiras no controle de segmentos importantes da economia peruana ensejou a busca de um tratado de proteção de investimentos, em razão do temor da burguesia brasileira de que algo possa vir a passar.64

62 A área de zinco da VM responde por 40% dos negócios da empresa. A VM é o 5o produtor mundial de

minérios em geral e o 8o maior produtor de zinco. A VM vende cerca de 60% do zinco que fabrica para as siderúrgicas brasileiras, que o utilizam para a galvanização do aço (dados da empresa e do jornal Gazeta Mercantil. Raimundo José Pinto e Gustavo Viana. Dois metais que valem ouro. 24/06/2004). Site Votorantim. Exame.

63 “Lula tem feito o papel de mascate brasileiro no exterior com gosto e eficácia. Em junho passado, por

exemplo, atuou representante comercial da Gerdau, a maior produtora de aço do Brasil, comandada por seu amigo Jorge Gerdau – que chegou a aparecer na lista de ministeriáveis do segundo governo. A Gerdau tinha interesse em participar do leilão de privatização da Siderperú, a empresa de siderurgia do Peru, mas a venda estava ameaçada por falta de concorrentes. Informado disso, Lula ligou para o então presidente do Peru, Alejandro Toledo, garantiu que uma grande empresa brasileira daria um lance na compra e pediu que o leilão fosse mantido. Dias depois, Lula tratou do assunto em audiências em Brasília – uma com Gerdau e outra com o próprio presidente peruano. Deu tudo certo. No dia 28 de junho, o leilão foi realizado e a Gerdau arrematou a Siderperú por 60 milhões de dólares”. Algúem quer comprar? Em viagens lá fora e em contatos com líderes estrangeiros, Lula atua como um bom vendedor. Veja, ano 39, n.46, 22 de novembro de 2006, pp.62-64. .

64 Durante as eleições de 2006, executivos da CVRD entrevistaram-se com os coordenadores das

campanhas dos principais candidatos, para fazer uma leitura do clima institucional (leia-se preservação do status quo) do país pós-pleito. Telegrama. De Brasemb Lima para Exteriores em 28/03/2006. Brasil-Peru. Missão da CVRD. Reuniões em Lima. Nr.00526. Um diplomata não ocultou que a vitória de um governo com feições nacionalistas como o de Evo Morales – o que poderia se concretizar com uma vitória do nacionalista Ollanta Humala – seria uma pedra no sapato dos interesses brasileiros lá. Declaração do embaixador Henrique Sardinha, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. “Além de um presidente que mostrou disposição incondicional e desarmada de aproximação, o Peru tem a vantagem de não ter nenhuma pedra no sapato com o

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Equador Assim como na Bolívia, a economia equatoriana está fundamentalmente baseada

nas exportações de hidrocarbonetos – sendo o petróleo o principal produto do país.65 Devido à drenagem do produto excedente pela economia capitalista nos marcos das relações imperialistas, as reservas equatorianas deste recurso, ao longo de trinta anos de atividade petroleira mais intensa, não proporcionaram um melhor nível de vida à população – a não ser às classes dominantes. “A participação do petróleo nas exportações passou de 18,5% a 62% entre 1972 e 1980 e em 1985 alcançava 62,4% do PIB”.66 Na década de 1990, as políticas neoliberais retiraram ainda mais o que restava de controle estatal sobre a cadeia dos hidrocarbonetos. Em 1992, o governo promoveu a saída do país da OPEP. Um processo de privatização do setor teve início. A legislação ambiental foi flexibilizada. Hoje, o petróleo é responsável por 1/3 das receitas do Estado, mas 70% são destinados ao pagamento da dívida. É na conjunção de fatores oriunda desse contexto que a Petrobras iniciou suas operações no país.

Os investimentos brasileiros no Equador concentram-se nos ramos mais dinâmicos da economia – petróleo e infra-estrutura. A Petrobras, assim como no caso peruano, chegou ao país a partir da compra da Pérez Companc, ao absorver os ativos da companhia argentina. No momento da transferência de ações da Pecom para a companhia brasileira, a primeira controlava duas concessões no Equador – os blocos petroleiros 18 e 31. No transcurso dos cinco anos que separam o momento presente e a operação de aquisição em 2002, a troca de propriedade dos ativos veio sendo motivo de contenciosos.

PETROBRAS opera el Bloque 18 y el Campo ayacente Palo Azul, en la región Amazónica Ecuatoriana, en forma ilegal y provocando millonarios perjuicios económicos al Estado, al haber comprado hace cuatro años las acciones de PECOM ENERGIA, equivalentes al 70% de derechos en el Bloque 18, sin autorización del Ministerio de Energía y Minas, y más grave aún, al haber firmado un CONVENIO de venta del 40% de participación con la compañía japonesa TEIKOKU OIL el 24 de enero de 2005 en Buenos Aires, sin tener ningún derecho contractual sobre las citadas áreas petroleras” (Fernando Villavicencio).

Para além de formalidades, os blocos passados ao controle da Petrobrás apresentam problemas de ordem mais aguda. O Bloco 31 encontra-sem em pleno Parque de Yasuní, um das áreas de maior biodiversidade do mundo, na Amazônia equatoriana, onde a exploração de atividades econômicas é objeto de conflitos entre diferentes ramos da legislação do Equador (legislação de hidrocarbonetos versus legislação ambiental) e

Brasil” (apud Sergio Leo). A incômoda pedra a entrar no sapato poderia seria uma vitória de Humala nas eleições, que tinha em seu programa a bandeira da nacionalização do controle dos recursos minerais.

65 “Ecuador es un país que tiene el petróleo como el principal producto generador de commodities. En

2004, la exportación de petróleo bruto representó casi el 56% de las exportaciones totales del país”. Julianna Malerba, Maria Elena Rodríguez. Extraterritorialidad y derechos humanos: el doble estándar de la Petrobras en Yasuní (Ecuador). In: Petrobras: integración o explotación, p.26.

66 Guillaume Fontaine. A Política Petroleira e o Futuro da Amazônia Equatoriana. DEP, n.2, janeiro-março

2005, pp.105-118.

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onde principalmente residem povos indígenas, que seriam afetados pela atividade petroleira, sem falar nos graves danos ambientais implicados. Apesar disso, a Petrobrás levou adiante seus planos de explorar o bloco 31. Durante o governo de Gutiérrez recebeu aval para isso.

Aí residiria, segundo analistas equatorianos, o esforço diplomático do governo brasileiro, através da figura de Marco Aurélio Garia, para primeiramente tentar apaziguar os ânimos da crise institucional que se acometeu sobre o governo Gutiérrez em 2005; e depois, quando não havia outra saída, para oferecer asilo diplomático para o presidente deposto, que foi removido para o Brasil em avião da FAB. Segundo o jornalista Janio de Freitas, “ainda que não o tenha afirmado por palavras, o Brasil ficou contrariado com a destituição de Lucio Gutiérrez, que demonstrava simpatias especiais pelo governo Lula, ao qual procurou mesmo seguir em política econômica – razão, por sinal, de sua queda”.67 Seguir em política econômica deve ser entendido também como seguir os interesses da Petrobrás no Equador, cujo governo, em contrapartida, teria atendidos pedidos de financiamento ao BNDES para vultosas obras como a hidrelétrica de San Francisco ou o aeroporto de Tena. Após a saída de Gutiérrez, durante a presidência de Alfredo Palacio o Ministério do Meio Ambiente determinou a suspensão das atividades da Peobtrás na área de Yasuní. Em resposta, o presidente Lula, em 26 de julho de 2005, enviava uma carta ao presidente do Equador, afirmando: “Deseo manifestar a vuestra excelencia mi preocupación por la reciente decisión del Gobierno de suspender las actividades de Petrobras en el bloque 31, hecho que pone en riesgo el propio futuro del proyecto”.68 Em agosto seguinte, o ministro Celso Amorim reunia-se com as autoridades equatorianas. Em telegrama datado em 13 de setembro, a embaixada do Brasil em Quito relatava os compromissos assumidos na reunião:

Pelo lado equatoriano: facilitar o diálogo para superar as dificuldades enfrentadas pela PETROBRAS para explorar petróleo no Bloco 31. Providência a ser tomada pela Chancelaria equatoriana: procurar restabelecer entre o Ministério do Ambiente do Equador e a PETROBRAS um diálogo produtivo e consistente para superar as divergências que impedem a continuidade das operações de exploração de petróleo no Bloco 31. 69

No mesmo contexto da reunião, foram liberados créditos do BNDES para obras de infra-estrutura no Equador realizadas por cmpreiteiras brasileiras. O método indutivo, no contexto colocado, leva-nos a encontrar uma relação direta entre as pressões do governo

67 Perigos do comeplxo. Folha de São Paulo, 5 de maio de 2005. O governo brasileiro, na verdade, emitiu

declarações expressando descontentamento com a deposição de Gutiérrez. O ministro Celso Amorim afirmou que a queda de Gutiérrez “não foi de acordo com o texto da Constituição” do Equador. Para Amorim, deposição de Gutiérrez não foi constitucional. BBC Brasil. 22 de abril de 2005. Chama atenção que o mesmo tipo de declaração não foi utilizado quando Aristide sofrera um golpe de Estado, no Haiti, em fevereiro de 2004.

68 “Lula presiona para que se autorice el ingreso al Yasuní”. 11/08/2005. El Comercio, Quito.

69 Telegrama de Brasemb Quito para Exteriores em 13/09/2005. Visitas e viagens oficiais. Compromissos

assumidos. Seguimento. Base de dados. Nr. 01084.

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brasileiro, no bojo das quais estaria o atendimento dos interesses da Petrobrás como condicionalidade para os financiamentos do BNDES.70

Um argumento adicional nesse sentido é que, durante o governo Gutiérrez, a petroleira estadunidense Occidental (Oxy), por irregularidades similares às cometidas pela Petrobrás no Equador, teve declarada a caducidade de seu contrato, tendo de deixar o país, sendo que as áreas até então sob controle da Oxy eram cobiçadas pela Petrobrás. Enquanto o último presidente de Petroecuador, sob o governo Gutiérrez, fora o responsável pela elaboração do informe de caducidade do contrato da Occidental, a Petrobrás teve reconhecido o status de sua presença nos blocos 18 e 31, pouco antes de o presidente eleito Rafael Correa tomar posse, quando o ministro dos hidrocarbonetos de Alfredo Palacio, que sucedeu Gutiérrez na transição mediada pelo governo brasileiro, assinou decreto legalizando a transferência de direitos dos Blocos 18 e 31 da Petrobrás à Teikoku.71

Argentina Historicamente rival do Brasil na disputa pela hegemonia no Cone Sul, a Argentina

foi suplantada pela economia brasileira na segunda metade do século XX. Durante o regime militar argentino, foi levada a cabo uma forma de gestão da economia distinta daquele imprimida pelos seus congêneres brasileiros, ao promoverem a desinsdustrialização de setores da indústria nacional. E, nos anos 90, as políticas neoliberais foram praticadas de maneira muito mais aguda que no Brasil, ampliando esse processo. Nesse quadro, os capitais nacionais passaram em largas proporções para o controle de empresas estrangeiras.72

Em anos recentes, investimentos vultosos foram realizados por grandes empresas brasileiras no país, fazendo com que o processo de internacionalização das firmas brasileiras tivessem a economia argentina como uma importante plataforma para projetar os capitais brasileiros, como registrou Márcia Tavares: (1) a compra do controle da Perez Companc pela Petrobrás, em 2002, em operação no valor de US$ 1,126 bilhões; (2) a aquisição pela Ambev do controle da cervejaria Quilmes, entre 2002 e 2006, transferência da ordem de US$ 1,8 bilhões; (3) a absorção da empresa Loma Negra, maior fabricante nacional de cimento, com 50% do mercado, pela Camargo Correa, em 2005, em transação no valor de US$ 1,025 bilhões; (4) a compra, em 2005, da Swift Argentina, maior frigorífico do país, pelo grupo brasileiro Friboi, em operação da ordem de US$ 200 milhões, tendo contado com financiamento da linha do BNDES para internacionalização de empresas brasileiras, discutida no capítulo 3.

70 Zibechi (op. cit.) levantou essa hipótese: “En la visita se adelantaron varios proyectos: financiación de

190 millones de dólares por Brasil para que Ecuador constryua un proyecto hidroeléctrico, financiar con 70 millones de dólares la construcción del aeropuerto en Tena, aportar créditos para construir la autopista Quito-Guayaquil, se ratificó la venta de tres aviones de la brasileña Embraer a TAME y se concretó la compra de Ecuador de medicamentos genéricos a bajo precio a Brasil”.

71 Em seu balanço financeiro e contábil, a Petobrás fez publicar: “El 11 de enero de 2007, fue aprobado por

el Ministerio de Minas de Ecuador el acuerdo, firmado entre Pesa [Petrobras Ecuador S.A.] y Teikoku, para la venta por 40% de los derechos y obligaciones de los contratos de participación en los Bloques 18 y 31 en Ecuador”. Petrobras. Análisis Financiero y Estados Contables 2006.

72 Cf. Aldo Ferrer. A Economia Argentina. De Suas Origens ao Início do Século XXI. Rio de Janeiro,

Elsevier, 2006.

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Esse processo de transferência de setores importantes da economia argentina para o controle de empresas brasileiras, aliado à reversão dos saldos comerciais positivos que a Argentina vinha obtendo com o Brasil no Mercosul, levaram a que as autoridades da segunda maior economia do Cone Sul passassem a protestar com relação aos benefícios obtidos dentro do bloco.

Esse contexto reforçou a desconfiança argentina com as pretensões hegemonistas do Brasil, o que se materializou no caso do litígio entre os governos argentino e uruguaio por conta da instalação de fábricas de celulose na fronteira entre os dois países. Diante do impasse, o presidente Tabaré Vázquez propôs que o Brasil mediasse o contencioso. O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, preferiu, contudo, o nome do Rei da Espanha como árbitro do conflito, demonstrando receio de que o Estado brasileiro, que historicamente rivalizou com a Argentina pelo predomínio no Cone Sul, tivesse uma inclinação pró-Uruguai na resolução da matéria.73

O retorno de desconfianças por parte das autoridades argentinas é uma preocupação da diplomacia brasileira, como revela a seguinte correspondência diplomática:

Nas últimas semanas, com a venda da Loma Negra, uma das maiores e mais tradicionais empresas argentinas, para a Camargo Corrêa, reaqueceu-se o debate em torno do risco da desnacionalização industrial, da ‘invasão brasileira’ e das assimetrias bilaterais [...] Será importante, no tratamento público da questão da crescente presença brasileira na Argentina, valorizar o movimento que existe em sentido contrário, em clara demonstração de que o Mercosul e a aliança estratégica vêm gerando um grande impulso econômico intra-regional, valioso sob todas as luzes.

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Bolívia A Bolívia é o caso mais emblemático que traduz o subimperialismo brasileiro na

atualidade. Ao longo dos 10 anos que marcam a criação da Petrobrás Bolívia (1996) e a nacionalização dos hidrocarbonetos decretada pelo governo de Evo Morales (2006), a Petrobrás afirmou-se na condição de maior empresa em atividade na Bolívia. Quando da chegada de Morales à presidência, a compahia detinha 45,9% das reservas provadas e prováveis de gás e 39,5% das reservas de petróleo, além de controlar etapas de toda a cadeia de hidrocarbonetos (prospecção, exploração, refino, distribuição e comercialização). Na atividade de refino, por exemplo, a empresa detinha o controle de 100%, na condição de proprietária das refinarias de Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra, adquiridas em 1999, em consórcio com a empresa argentina Perez Companc.

A escalada dos investimentos e da presença da Petrobrás na Bolívia foram concomitantes ao processo de privatização dos ativos da estatal boliviana YPFB (iniciado em 1996) e à construção do Gasoduto Brasil-Bolívia (GASBOL), que entrou em operação

73 Para uma panorama da visão do governo uruguaio sobre o litígio das papeleiras, leia-se a entrevista do

ministro de Ganadería, Pepe Mujica. “Los argentinos son demasiado ricos, eso los mata”. Veintitres, 13 de abrl de 2006, pp.27-29.

74 Telegrama Nr. 01253. Embaixada do Brasil em Buenos Aires. 01/06/2005. Brasil-Argentina.

Investimentos. Loma Negra. Análise. SET/AHI. Bolívia. Equador. Peru. Acompanhamento do DPR. Colige informações sobre os principais investimentos e oportunidades de negócios. Relata reações países vizinhos, temores com expansionismo econômico brasileiro.

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em 1999. Até 2006, a Petrobrás importou gás boliviano abaixo dos preços de mercado e pagou royalties também considerados baixos. Essa expansão acentuada das atividades da companhia brasileira na região contaram com o concurso da ação do Estado.

O decreto de nacionalização foi um desafio à política de integração regional do governo brasileiro. O presidente Lula procurou não expressar descontentamento, reconhecendo a autodeterminação do Estado boliviano para gerir seus assuntos internos. Uma campanha foi desencadeada exigindo medidas mais enérgicas, incluindo diplomatas com visão distinta da linha exercida por Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães. Os embaixadores Rubens Ricúpero e Sebastião do Rego Barros (este mencionado no capítulo 3 pela sua defesa da integração sul-americana como via de escoar os manufaturados brasileiros) saíram em defesa da via judicial contra o Estado boliviano.75 Embora não existisse diretamente um tratado de proteção de investimentos entre Bolívia e Brasil, a Holanda possui um tratado dessa natureza com a Bolívia, que poderia ser acionado, visto que parte dos ativos controlados pela Petrobrás no país vizinho pertencem à Petrobrás-Holanda, inscrita na legislação nacional do país europeu.76 Mas a diplomacia brasileira decidiu mover-se por outra via. Essas atitudes foram mencionadas por alguns como signo de uma política de integração solidária, que se somaria ao perdão da dívida boliviana como componentes de uma estratégia generosa que visa a equilibrar as assimetrias regionais. É preciso, porém, se quisermos ir além da mera aparência dos fatos, desvelar a cortina que separa os acontecimentos da rationale que lhes está por trás.

O que presidiu, então, a postura brasileira? Em primeiro lugar, na percepção da chancelaria, uma medida mais dura colocaria ainda mais pólvora em um pavio prestes a estourar, quando a necessidade era assegurar estabilidade ao projeto de conformação da geoeconomia sul-americana, que seria abalada em caso de uma posição de confrontação por parte do governo brasileiro. Daí a resposta do ministro Celso Amorim afirmando que “o Brasil não usa Marines”, em alusão ao intervencionismo dos EUA quando se trata de assegurar interesses econômicos da grande potência.77

A razão dessa postura deve ser entendida pela importância conferida a relações amistosas com a Bolívia, dada sua importância no projeto de integração sul-americana. Não é só o gás que interessa. A posição geográfica da Bolívia é crucial nos planos da IIRSA, como espaço de trânsito no acesso ao Pacífico. Por conseguinte, o governo brasileiro resolveu conceder nas reinvindações bolivianas para reajustar a tarifa do gás, mas não sem contrapartida. Segundo se sugeriu em uma matéria publicada em fevereiro de 2007, a tática do Itamaraty foi colocar, subrepticiamente na mesa de negociações, o compromisso boliviano de não obstar a execução do projeto Complexo do Rio Madeira, que prevê duas mega usina hidrelétricas e a Hidrovia do Rio Madeira, mediante

75 Rubens Ricúpero. Entrevista ao jornal Zero Hora. 7 de maio de 2006; Sebastião do Rego Barros. “A nacionalização boliviana e o Barão de Rio Branco”. Conjuntura Econômica, FGV, junho de 2006, pp.24-25. No texto, o embaixador escreve que “está na hora de revisitar o barão do Rio Branco, antes que tenhamos de ver o governo brasileiro aplaudir Evo Morales por nos tomar de volta o Acre”. O Barão também foi evocado pelo general Carlos de Meira Mattos. Cf. “Os dois Rio Branco na nossa diplomacia”. Folha de São Paulo, Tendências e Debates, p.A3, 21 de setembro de 2006.

76 Barros, op. cit.

77 Entrevista a revista Carta Capital. O presidente Lula repetiu a idéia, na condição de candidato à

reeleição, em debate com o opositor Geraldo Alckmin, durante o segundo turno das eleições de 2006.

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construção de eclusas, consistindo em ponto nevrálgico do Eixo Orinoco-Amazonas-Prata da IIRSA.

O futuro das nacionalização dos recursos na Bolívia segue ainda em aberto, mas seu andamento revela o acentuada dependênia de que o país padece, nos marcos das relações capitalistas, realçados pela dinâmica subimperialista. Ao contrário da retórica da integração solidária, as fontes diplomáticas evidenciam que não há interesse em uma integração produtiva que corresponda às expectativas de mobilização do excedente econômico potencial de países como a Bolívia, para o usufruto de seu próprio povo, se persistir a mesma estrutura de poder:

A dificuldade em transformar em realidade o anseio de grande parte da população boliviana pela industrialização do gás natural reside, justamente, na incompatibilidade entre a execução dos projetos GTL e petroquímicos - que requerem investimentos significativos - e as outras três principais reivindicações dos movimentos populares que derrubaram o Presidente Sánchez de Lozada: evitar a exportação de gás, aumentar a carga impositiva sobre as empresas de hidrocarbonetos e levar a cabo alguma medida de nacionalização dos hidrocarbonetos. A perspectiva da reforma da Lei de Hidrocarbonetos e da realização do referendo vinculante sobre o destino do gás, cujos resultados são imprevisíveis, afastam, no momento, qualquer decisão de investimento [o que vale para a Petrobrás]. 78

Em outras palavras, no status quo capitalista, regido pela lei do intercâmbio desigual, investimento para as empresas é aquele em que se garantem lucros extraordinários. Do contrário, não terão interesse em investir. Daí o caráter subimperialista.

E frente à tentativa do governo boliviano para usar a dependência relativa da economia brasileira perante o gás boliviano para tentar diminuir a dependência estrutural da Bolívia às relações subimperialistas estabelecidas pelo capitalismo brasileiro, a resposta do governo de Lula foi a aliança com Bush em torno do etanol. Tanto foi assim que na semana seguinte ao decreto de nacionalização na Bolívia, o embaixador do Brasil nos EUA, Roberto Abdenur, escrevia, ainda que nas entrelinhas:

O ambiente econômico e político das Américas vem mudando rapidamente, criando novos desafios para os dois países, os quais podemos enfrentar melhor se trabalharmos conjuntamente (...) Além disso, nossos dois países enfrentam desafios em relação à sua segurança energética, decorrentes da acentuada e crescente demanda mundial de energia. Preços internacionais mais altos, maior vulnerabilidade a choques na área energética e maior potencial de conflito são conseqüências que afetarão a todos os países, não importa se grandes ou pequenos. Em meio a essa nova ameaça na área energética, temos também a oportunidade de dar a tal desafio resposta que beneficie igualmente a ambos os países. A resposta-chave é o etanol, que o Brasil há muitos anos transformou em um elemento importante de sua estratégia energética, e que agora proporciona 18% de todo o combustível automotivo do país, graças à florescente indústria do etanol derivado da cana-de-açúcar. (...) Juntos, o Brasil e os EUA

78 Embaixador Antonio Mena Gonçalves. Telegrama Embaixada do Brasil em La Paz. 08/12/2003. Arquivo

Histórico do Itamaraty - SET.

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poderiam empreender uma ação internacional conjunta para globalizar a produção e utilização de etanol, inclusive mediante o compartilhamento de sua tecnologia com produtores protenciais de etanol em todo mundo, particularmente nos países em desenvolvimento.

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6.4 - Conclusão

Se fora a exportação de manufaturas e não a de capitais o traço marcante do subimperialismo no período do regime militar, no novo subimperialismo é a última que ganha maior contorno como modus operandi. Como procuramos demonstrar na análise de casos, a expansão de empresas brasileiras na América do Sul vem contribuindo para o aumento da extração da riqueza dos países da região, bem como para a destruição ambiental. Se a análise quantitativa do estoque de IED brasileiro no exterior não evidencia a tendência em curso, os casos estudados permitem-nos falar na emergência de um novo subimperialismo. Isto porque empresas brasileiras vêm se apropriando do controle de algumas das principais fontes de riqueza das economias vizinhas.

Essa apropriação reúne elementos que vertebram nossa hipótese: (1) existe correspondência entre os setores que não foram absorvidos pelo capital estrangeiro e que se internacionalizaram, evidenciando seu papel na realização do capital nesses ramos da economia brasileira; (2) as vantagens obtidas se dão, principalmente, na obtenção de recursos naturais e expansão de mercados; (3) essa internacionalização é reação ao processo de reconversão, mas não transcende a tendência à integração regressiva do Brasil no mercado mundial (especialização em setores intensivos em recursos naturais), embora amorteça o impacto da reconversão, assegurando competitividade às firmas brasileiras, através de lucros extraordinários através de matérias-primas a baixo custo (zinco peruano, gás boliviano), ganhos de escala e rendas de monopólio; (4) a forte presença de estatais ou ex-estatais e a política de Estado de apoio à internacionalização são elementos que denotam a componente da base estatal como fator de realização do capital, ao lado do mercado externo; (5) enquanto a trajetória ou respaldo estatal são fatores que propiciam vantagens, a abertura de capital/privatização de empresas brasileiras fez com que as firmas se lançassem com maior ímpeto à internacionalização, seja para fazer frente à concorrência externa, seja sob os novos critérios de rentabilidade a partir da abertura de capital. Em outras palavras, contraditoriamente, a privatização e a abertura exerceram pressão pela internacionalização, na dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo na região, fazendo das firmas brasileiras coadjuvantes do processo de reconversão na região, participando como atores do processo de reconversão e contribuindo no aumento da extração do produto excedente das nações sul-americanas.

O processo neoliberal expôs tanto a economia brasileira como a dos demais países latino-americanos à concorrência externa e à desnacionalização mediante a penetração de capitais dos países imperialistas. Contudo, a dialética do desenvolvimento desigual na região fez com que empresas como a Petrobrás resistissem à onda de privatizações dos países do continente, buscando compensar a perda do monopólio no mercado brasileiro expandindo suas atividades pela América do Sul.

79 Richard G. Lugar, Roberto Abdenur. EUA e Brasil: começar pela energia. Folha de São Paulo,

Tendências e Debates, p.A3, 7 de maio de 2006.

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Capítulo 7

O Setor Elétrico e a Integração da América do Sul

José Antônio Neves

A integração energética é um objeto importante quando se trata do estudo das relações internacionais. A possibilidade de crescimento ou desenvolvimento de uma nação depende fundamentalmente das políticas energéticas por ela adotadas. Mesmo os países mais desenvolvidos e os que se encontram em processo significativo de crescimento precisam atentar para a importância do equilíbrio de suas matrizes energéticas. Atualmente a busca pela auto-suficiência energética tem se destacado nas relações e diálogos estabelecidos entre nações de todo mundo, uma vez que os processos industriais, o crescimento da economia, a estrutura da renda dos indivíduos tornaram-se extremamente dependentes desse setor.

Sobre isso é importante salientar as bases sobre as quais pode se desenvolver uma política de integração energética. Os contratos que estruturam tal integração são decisivos e precisam ser contextualizados, observando principalmente as vicissitudes e características regionais. Para ilustrar essa argumentação, e deter-se apenas às questões locais, basta observar atualmente os embates sobre o gás natural boliviano e suas conseqüências políticas no âmbito regional, que têm alterado sobremaneira as políticas externas não só dos países envolvidos, no caso, Brasil e Bolívia, mas também de toda uma região.

A América do Sul é uma região que tem condições de obter auto-suficiência energética. Considerando-se suas fontes energéticas próprias, tais como gás natural, petróleo, carvão e um potencial hidrelétrico na ordem de 119.701MW, dos quais 67.572 estão concentrados no Brasil (CIER, 2004), a região pode se tornar um exemplo de produção energética ecologicamente viável para o mundo todo. Contudo, a realização desse potencial depende das atitudes políticas dos dirigentes dos países envolvidos, criando meios políticos, institucionais e jurídicos que garantam uma integração efetiva.

Atualmente a integração elétrica regional situa-se em torno de 3.931MW (CIER, 2004). Se compararmos isso ao tamanho do mercado regional sul-americano, situado na faixa dos 186.068MW (CIER, 2004), observa-se que essa integração é ainda muito pequena, ou seja, não representa nem cinco por cento do total do mercado de energia na América do Sul. Considerando-se ainda todos os projetos em andamento nessa área, a integração elétrica totalizaria ainda assim somente 5.531MW (CIER, 2004). Desse mercado Argentina e Brasil possuem 63% de toda capacidade de geração instalada, enquanto os demais países somam o restante. De alguma forma, isso estabelece uma assimetria muito grande na relação entre esses países, no que tange a possíveis interconexões elétricas. A prevalência dos dois maiores países da região pode inibir futuros acordos, principalmente se suas diplomacias não conseguirem um equilíbrio entre os objetivos políticos de longo prazo da integração e os ganhos econômicos mais imediatos que podem parecer menos prementes.

Se a finalidade do Estado é maximizar o bem-estar de seus próprios cidadãos (Darc Costa, 2003a), a tentativa de associação por meio de interligações elétricas, pode ser vista como uma forma racional do Estado de estabelecer metas de desenvolvimento abrangentes, mesmo que isso signifique alguma perda de autonomia ou soberania. Numa região conhecida por tantas assimetrias, o estímulo para a integração deve ser observado

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como uma provável saída para problemas mais prementes, ainda que não seja a única. Dessa forma ao longo desses anos, em especial a partir da última década do século XX, foram criados organismos que tentaram desenvolver e integrar a região caribenha e sul-americana. As idéias desenvolvimentistas de Raul Prebish e Leopoldo Zea, dentre outros, influenciaram a criação de instituições como a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), a ALADI (Associação Latino-Americana de Integração), o INTAL (Instituto para Integração da América - Latina e Caribe), a IIRSA (Iniciativa para Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana) e outras. Essas tentativas de fundamentar o desenvolvimento regional evidenciam a necessidade de uma maior de aproximação dos países da região (Darc Costa, 2003b), fazendo com que as integrações energéticas, especialmente na área elétrica, componham com os demais setores uma grande malha que permita definitivamente um crescimento sustentável da região sul-americana.

A relação positiva e de dependência mútua entre crescimento, desenvolvimento e energia elétrica é premissa básica. A industrialização de um país permite seu desenvolvimento e essa depende diretamente da energia elétrica disponível. A disponibilidade de recursos para esse crescimento deve ser regrada visando-se as variações intertemporais e a incerteza climática e contextual. A responsabilidade de criação de mecanismos de controle, supervisão e fomento do mercado elétrico devem ser do Estado, pois em linhas gerais, é ele quem detém o estoque de conhecimentos sobre as necessidades da sociedade e os instrumentos de poder legítimo necessários para compatibilizar interesses divergentes. A prioridade de determinadas áreas em relação às outras ou entre projetos, deve ser bem caracterizada. A participação do capital privado na construção de um parque elétrico regional também deve ser estimulada, mas essa participação vai sempre procurar um mercado onde as regras estejam estabelecidas e sejam claras. Tudo isso teoricamente parece óbvio, mas a prática tem mostrado que não é bem assim. Nesse aspecto torna-se relevante o entendimento de todos, mas principalmente dos atores efetivamente que possuem a capacidade de promover o desenvolvimento, diante das graves diferenças sociais da região. Quanto maior for o conhecimento das assimetrias de uma região, mais solidária será a construção de um processo de integração, propiciando um desenvolvimento mais harmônico e equilibrado.

7.1 - As instituições e a matriz elétrica regional.

Institucionalmente o setor elétrico na América do Sul fundamenta-se basicamente nas reformas implementadas pelos países a partir do final do século passado.

No Brasil o setor elétrico estabelece-se pela Lei 9074/95, que visou a introdução de um mercado competitivo, caracterizando uma livre competição nos segmentos de geração e distribuição de eletricidade, numa tentativa de buscar o capital privado para esses ramos de atividade. Com a criação da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) em 1996, autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia, o governo brasileiro procurou formar um ente regulador e fiscalizador desse novo mercado. As funções desse novo órgão são: regular e fiscalizar a geração, distribuição e comercialização de energia elétrica; mediar conflitos de interesses entre os agentes do setor e entre estes e o consumidor. Em 1998, foi criado o ONS (Operador do Nacional do Sistema Elétrico), entidade de direito privado, sem fins lucrativos responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica do SIN (Sistema Interligado Nacional).

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Com Lei 10848/2004 foi definido o novo marco regulatório do setor elétrico, com a função de estimular os investimentos privados. A base do novo modelo foi criar condições de redução do risco para o investidor. Essa lei corretiva procurou introduzir a redução da tarifa, mediante a realização de leilões de energia e garantir a manutenção do fornecimento de energia, adotando contratos de longo prazo, garantindo os repasses às tarifas dos consumidores finais.

Contudo, muito embora o esforço do governo brasileiro de aumentar a participação do capital privado no setor e com isso uma maior competitividade, a Eletrobrás, empresa estatal, continua sendo a principal geradora de energia, controlando mais da metade da capacidade elétrica instalada no país.

Na Argentina, no contexto da reformas neoliberais realizadas a partir de 1991, iniciaram-se os processos de transformação das matrizes elétricas e do gás. Nesse mesmo ano houve o estabelecimento do marco regulatório elétrico, reformulando o papel do estado e entre outras mudanças criou o ENRE (Ente Nacional Regulador de la Electricidad). No setor elétrico, além da participação do Estado, a presença do capital privado é forte em todas as áreas da indústria elétrica, havendo apenas restrições para que uma mesma empresa não participe em mais de uma atividade.

O Paraguai parceiro de Brasil e Argentina nos importantes projetos binacionais de geração de energia elétrica, não introduziu nenhuma mudança regulatória nesse setor, caracterizando-se por ser um mercado monopolista estatal. Em 1964 foi criada a ANDE (Administración Nacional del Electricidad), que possui a função de regular, operar e fornecer os serviços elétricos no país. Esse órgão mantém o monopólio no controle de eletricidade, com uma estrutura verticalizante de administração dos setores de geração, transmissão e distribuição de eletricidade.

O outro parceiro do Mercosul o Uruguai, assim como Brasil e Argentina, introduziu mudanças no setor elétrico através da Lei de Março de 1997, que estimulou o desenvolvimento de um mercado livre para geração de eletricidade. Ainda assim, o serviço elétrico é conduzido pela UTE (Administración Nacional de Usinas y Trasmiciones Eléctricas), uma empresa estatal que participa de todos os segmentos da indústria elétrica e tem caráter monopolista. Isso, juntamente com uma fraca demanda, tem inibido a participação do capital privado no setor. A URSEA (Unidad Reguladora de Servicios de Energia y Água), criada em 2002, é o ente regulador dos serviços de energia elétrica, gás e combustíveis líquidos.

Dos países sul-americanos o Chile, mesmo com um desempenho superior economicamente aos outros países da região, sofre de importantes restrições energéticas, dependendo muito do gás Argentino para compor sua matriz energética. Além disso, o setor elétrico através de uma lei antiga de 1980, apresenta rigidez e inadequação, sendo considerado um mercado pouco competitivo, dividido entre duas empresas a canadense Transelec e a espanhola Endesa, Sennes, Mendes e Pedrotti (2006). A entidade reguladora do mercado energético é a CNE (Comissión Nacional de Energia).

Na região andina a Colômbia começou sua mudança no setor elétrico em 1994, com um processo de desverticalização e livre acesso à transmissão. No país com sobra de geração térmica, o grande problema é a falta de infra-estrutura e os ataques constantes da guerrilha na área de transmissão. De alguma forma isso inibe a formação de um mercado mais forte de eletricidade, afastando principalmente o capital privado. Ainda assim o país exporta excedente de produção ao Equador e à Venezuela.

A CREG (Comissión Reguladora de Electricidad y Gás) é o órgão que regula tanto o setor de gás, quanto ao elétrico. Esse, segundo a OLADE (Organización

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Latinoamericana de Energia) é uma entidade semi-autônoma que não possui uma independência necessária do Estado e por isso não responde a evolução do mercado.

O Equador aprovou a implementação de um novo marco regulatório em 1999, mas a maioria das empresas estatais de geração de energia permanece com o Estado. A INECEL (Instituto Ecuatoriano de Electrificación), empresa estatal foi desmembrada em várias outras, formando um bloco de seis empresas estatais responsáveis pela transmissão de energia. Com uma demanda interna fraca, característica de outro país da região como a Bolívia, não despertou o interesse do capital privado. No país o principal órgão regulador é a CONELEC (Consejo Nacional de Electricidad), vinculado ao Ministério de Minas e Energia.

Na Bolívia, a Ley Del Sistema de Regulación Sectorial de 1994, institui o SIRESE (Sistema de Regulación Sectorial), órgão autônomo vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Econômico, cujas atividades são de controlar, regular e supervisionar os setores de telecomunicações, eletricidade, hidrocarbonetos, transportes e águas. A americana Duke, a britânica Guaracachi e a Valle Hermoso de investidores bolivianos controlam esse fraco mercado. Assim como a Venezuela, o governo boliviano do presidente Evo Morales, já sinalizou o interesse em assumir o controle das empresas do setor elétrico.

O setor elétrico peruano introduziu reformas a partir de 1992, através da Ley de Concesiones Eléctricas. A Electroperu, empresa estatal, é a principal empresa geradora de energia do país, que conta ainda com as empresas de capital privado a Edegel e a Egenor, a primeira subsidiária de espanhola Endesa e a segunda da norte-americana Duke Energy. Os segmentos de transmissão e distribuição de energia encontram-se nas mãos do capital privado. A colombiana ISA detém mais da metade da malha de transporte de energia do país.

A Venezuela aprovou em 1999 a Ley Del Servicio Eléctrico visando a reforma nesse setor. Nessa área, o país introduziu a desverticalização das atividades de geração, transmissão e distribuição de energia. Assim como em outros países da região, esse processo ainda não se efetivou na prática, pois a estatal EDELCA controla grande parte da geração instalada no país. A entidade que regula o setor elétrico venezuelana é a CNEE (Comissión Nacional de Energia Eléctrica).

Sobre a matriz elétrica da América do Sul é importante salientar que essa estabelece-se através de gerações hidráulicas e térmicas, conforme mostra a tabela a seguir, onde destaca-se o Brasil como grande centro de geração e consumo da região.

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Tabela 7.1 - Oferta e Demanda de eletricidade na América do Sul

Potência Instalada (MW) ano / 2000 Demanda Máxima (MW) ano / 2000

País Hidro Térmica Total Hidro (%) MW GWh P/D*

Argentina 8926 11785 20711 43 13754 79996 1.51

Bolívia 336 629 965 35 645 3336 1.50

Brasil 56262 9929 66191 85 56000 322464 1.20

Chile 4030 2622 6652 61 4285 27322 1.55

Colômbia 8026 4238 12264 65 7712 42460 1.61

Equador 1707 1643 3350 51 1954 9881 1.71

Paraguai 7840 0 7840 100 1120 5800 7.00

Peru 2860 3210 6070 47 2621 19902 2.32

Uruguai 1534 563 2097 73 1463 7926 1.43

Venezuela 12316 7233 19549 63 12000 61194 1.63

Total 103837 41852 145689 71 101554 580254 1.43

Fonte: OLADE março 2003. *Potência Instalada / Demanda Máxima.

Quando se verifica a oferta e demanda de energia elétrica na América do Sul, observa-se que alguns países estão mais bem posicionados em termos de recursos elétricos do que outros. Com exceção do Brasil e Uruguai que possuem uma baixa relação de P/D 1,20 e 1,43 respectivamente, os demais países, aparentemente, sobram nesse quesito. Mas isso é apenas um lado da realidade energética do continente. Em um sistema geracional, a potência de instalação poderá nunca ser atingida. Níveis de reservatórios, características técnicas das turbinas, das caldeiras quando de usina térmicas, das vazões sanitárias80 de um determinado rio, da hidrologia, do meio-ambiente e outros fatores técnicos podem contribuir para limitar a real potência de uma usina.

Na Argentina, no ano de 2001, segundo um estudo do ENRE, havia entre 20.000MW e 25.000MW de potência instalada, mas em função das restrições operacionais, sua potência firme81 situava-se aproximadamente em 18.000MW, para uma demanda de 14.000MW. Isto representou um P/D de 1,28, bem abaixo daquele apresentado na tabela 8, que é de 1,51. De acordo com esse mesmo órgão, o SIN argentino não teria condições de satisfazer sua demanda, caso se materializasse a segunda e terceira fase de exportação de energia elétrica para o Brasil.

No Brasil, os níveis dos reservatórios das usinas das regiões Sul/Sudeste passaram de 77% em 1991 a 19% em 1999, recuperando-se um pouco em 2001, ficando em torno de 30%. Isso demonstra a princípio, uma falta de planejamento, pois houve uma grande

80 Vazão sanitária é uma exigência ambiental, necessária para manter o curso original do rio e o

ecossistema local.

81 Potência firme é o maior valor possível capaz de ser produzido continuamente pelo sistema, sem

ocorrência de déficit, no caso de repetição das afluências dos registros históricos.

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sobre-utilização do potencial hidráulico do país. O Brasil é um exemplo de um país que consome mais do que seus reservatórios podem armazenar regularmente.

No Chile o SIC, um sistema que possui um forte componente hidráulico, possui restrições operacionais com certa freqüência, em função da falta de chuva naquela região. Um estudo sobre potência firme elaborado CDEC-SIC para o ano de 2002 chegou a seguinte conclusão: se houvesse uma seca similar ao período 1998/1999: a potência instalada seria da ordem de 6.700MW, com uma demanda de 4.900MW e uma potência firme de 4.200MW, ou seja, haveria um déficit de geração em torno de 700MW.

Esses exemplos que tomam como referência as principais economias de região, servem de alerta no sentido de aprofundar os estudos para que se efetive de fato a integração elétrica da região.

7.2 - Interligações Elétricas na América do Sul e o Caso Europeu

As interconexões elétricas que existem na região sul-americana, salientam a binacionalidade das relações nesse setor e foram gestadas em vários períodos, sem harmonização setorial, abarcando apenas necessidades de momento, ou seja, consolidaram-se através da lógica da necessidade e da abundância entre os países envolvidos, principalmente com os governos nacionais assumindo papel empreendedor de tal política. Tecnicamente uma integração elétrica bem articulada deve permitir o aproveitamento máximo das capacidades de geração de cada país, maximizando comportamentos hidrológicos, bem como a separação entre períodos de ponta82 de cada país envolvido no processo. Essa visão sistêmica de mercado tem que ficar bem definida, pois a economia que pode ocorrer, mesmo em países com fusos horários, como no caso da América do Sul, não muito distantes é importante e isso já seria suficiente para uma mobilização político-social para estimular a integração elétrica da região.

82 Período definido pelas concessionárias dentro dos limites estipulados e compostos normalmente por três

horas diárias consecutivas, exceção feitas aos sábados, domingos e feriados considerando as características

do sistema elétrico. Período em que o consumo de energia elétrica se amplia substancialmente.

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Tabela 7.2 - Interligações elétricas na América do Sul

Países Localização Potência Tensão Freqüência

Colômbia – Venezuela Cuelecita – Cuatricentenário 150 MW 230 kV 60 Hz

Colômbia – Venezuela Tibu – La fria 80 MW 115 kV 60 Hz

Colômbia – Venezuela San Mateo – Corozco 150 MW 230 kV 60 Hz

Colômbia – Equador Ipiales – Tulcán/Ibarra 113 MW 115kV 60 Hz

Colômbia – Equador Pasto – Quito 260 MW 230 kV 60 Hz

Equador – Peru Machala – Zorritos 100 MW 230 kV 60 Hz

Bolívia – Perú La Paz - Puno* 150 MW 230 kV 50/60 Hz

Argentina – Paraguai Central de Yaceretá 800 MW 500 kV 50 Hz

Argentina – Paraguai Clorinda – Guarambaré 80 MW 220 kV 50 Hz

Argentina – Paraguai El Dorado – Mal. Lopez 30 MW 132 kV 50 Hz

Argentina – Brasil Rincón – Garabi 2000 MW 500 kV 50/60 Hz

Argentina – Brasil Paso de los Libres - Uruguaiana 50 MW 230 kV 50/60 Hz

Argentina – Uruguai Central Salto Grande 1890 MW 500 kV 50 Hz

Argentina – Uruguai Paysandu - Concepción 100 MW 150 kV 50 Hz

Argentina – Uruguai Colônia – San Javier 1000 MW 500 kV 50 Hz

Argentina – Chile Termoandes – Sub. Andes 643 MW 345 kV 50 Hz

Argentina – Chile C. H. Alicurá - Valdívia* 250 MW 220 kV 50 Hz

Brasil – Uruguai Riveira – Livramento 70 MW 230 kV 50/60 Hz

Brasil – Paraguai Central de Itaipu 12600 MW 220 kV 60/50 Hz

Brasil – Paraguai Acaray – Foz do Iguaçu 70 MW 138 kV 60/50 Hz

Brasil – Venezuela Boa Vista – El Guri 200 MW 230 kV 60 Hz

Fonte: CIER (2005). * – Interconexão em projeto ou estudo.

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Na tabela 7.2 é possível constatar que as interligações na região nunca foram um objetivo geral bem delineado. Os valores de freqüência elétrica de 50Hz e 60Hz podem não impedir uma integração, até porque as tecnologias de conversão hoje em dia avançaram significativamente, mas mostram uma tendência de dispersão, que por muito tempo fez parte das políticas elétricas governamentais da região.

Ainda com relação às interligações podemos salientar algumas características negativas. As interconexões entre Venezuela e Colômbia só são usadas em situações de emergência, as interconexões menores entre Argentina-Uruguai-Brasil estão sendo afetadas por divergência nos mecanismos regulatórios, as interconexões entre Argentina e Paraguai estão limitadas porque as linhas de 220kV são vulneráveis para unir os dois sistemas elétricos com características distintas. De outra forma, se forem retiradas as interligações surgidas através das usinas binacionais, esse potencial de interligação cai para níveis irrisórios se comparados com o potencial da região.

Atualmente, as políticas do setor elétrico no continente têm apontado para a busca de uma maior convergência de interesses e complementaridade de investimentos. Na CAN (Comunidade Andina de Nações) esse processo está mais desenvolvido. A Decisão 536 do ano de 2002, o chamado “Marco General para la Interconexión Sub-regional de Sistemas Eléctricos e Intercambio Intercomunitário de Electricidad, estabeleceu uma ação visando à integração elétrica dessa região, objetivando com isso maior confiabilidade dos sistemas elétricos”. No Mercosul, o Memorando de Entendimento relativo aos intercâmbios elétricos e integração elétrica tem procurado harmonizar e definir as políticas de integração energética desse bloco. Contudo, as experiências de interligação desenvolvidas até o momento na região possuem apenas um forte apelo econômico e podem ser identificados em três tipos básicos (CIER, 2003). O primeiro é aquele realizado através dos acordos bilaterais, entre estatais, para construção de centrais hidrelétricas, tais como Itaipu, Yaceretá e Salto Grande. O segundo, com o objetivo específico de venda de energia, dos quais são exemplos os acordos firmados entre Argentina e Brasil, Brasil e Venezuela e Argentina e Chile. Por último, aqueles estabelecidos com a finalidade de realizar intercâmbios de oportunidade, aproveitando as diferenças entre custos de produção, dos sistemas interligados, tendo como exemplos os acordos firmados por Colômbia e Venezuela (Cuastecitas-Cuatricentenário), Colômbia e Equador e Brasil e Uruguai.

Quando se pensa em integração elétrica, a comparação é inevitável. Enquanto entre os anos 50 e 60 do século passado, a Europa Ocidental tinha praticamente interligado e integrado suas redes de transmissões elétricas, na América do Sul os recursos energéticos eram objetos de disputas e confrontos, quadro que passado cinqüenta anos ainda não mudou completamente, como evidenciam os atuais conflitos em torno do gás boliviano e do petróleo venezuelano. A integração energética européia foi de fato estabelecida, a partir da proposta francesa de criar um mercado unificado para os setores de carvão e aço através da CECA (Comunidade Européia do Carvão e do Aço), denominado Plano Schuman, que seria regulado por uma instituição supranacional. Uma outra proposta foi a criação da UCPTE (União para Coordenação da Produção de Transmissão de Eletricidade), com o objetivo de coordenar e integrar os fluxos elétricos das redes de transmissões européias ainda no começo da década de 1950. O fato relevante desse processo é a base institucional formada pela UCPTE, em função dos objetivos de reconstrução das infra-estruturas, promovidos no seio da região, por meio do Plano Marshall, que orientou os requerimentos institucionais que fomentaram a formação do estado de bem-estar, a unidade política e econômica. Em ambos os casos, tanto na CECA, quanto na UCPTE, a gestão desses órgãos foi verticalizante e centralizada,

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ocupando o Estado papel decisivo na articulação das políticas energéticas, a partir de monopólios públicos estatais. Sobre isso é importante salientar a formação dos blocos regionais, nesse processo de integração energética. O primeiro aconteceu com os países da Escandinávia liderados pelo Reino Unido, após os países do Benelux e por fim as maiores nações européias, onde estão incluídas à França e a Alemanha.

No começo dos anos 1990, a unificação do mercado interno europeu, por meio do ato único, e o Tratado de Maastrich com a formatação da UE (União Européia), estabeleceram as bases e condições da abertura e liberalização do setor energético, bem como viabilizaram as reformas para a realização do mercado interno de energia. Essas reformas podem ser divididas em três aspectos assim descritos: a questão legal/institucional que define a clareza dos contratos e as estruturas de organização do setor; a questão do desenvolvimento da infra-estrutura técnica e comercial, que possibilita a operação dos mercados e as condições de acessibilidade física e comercial e a questão do mercado propriamente dito, com as reestruturações de monopólios públicos, diversificação, formação de parcerias e outros, ligados às formas contratuais. Dessa forma segundo Glachant (2002), o sistema energético europeu, do ponto de vista físico e comercial, se agrupou em vários blocos: integração física (grau e capacidade de interconexão) bastante interligada, incluindo a França, Alemanha, Itália, Benelux e os países alpinos, separados dos demais países membros, os quais constituem cinco blocos autônomos: Irlanda, Reino Unido, Escandinávia, Península Ibérica e Grécia; integração comercial (abertura e acesso), com o Norpool formado pela Noruega, Suécia e Finlândia e o inglês New Electricity Trading Arrangements (NETA). Esses configuram os mercados formais de energia efetivos, sendo que os demais efetuam suas transações energéticas através de contratos bilaterais.

Dessa forma é preciso salientar que não existe apenas um único mercado integrado na UE, pois como observamos a prioridade foi a formação de blocos regionais no setor. Na Europa o que existe realmente é um sistema elétrico interligado.

De todo modo, o conflito entre eficiência econômica, e objetivos estratégicos como os da segurança energética e meio ambiente permanecem, aparecendo com freqüência nos debates que configuram o processo de integração. Dessa forma a presença estatal, através das políticas energéticas, intervém, estruturando a coordenação de forma a induzir as mudanças necessárias para atingir esses objetivos. Isso de alguma forma conforma uma dificuldade entre regras de abertura de mercado e a presença do Estado como fomentador de políticas públicas na área energética. Essa dualidade entre Estado e mercado continuará sendo fator imperativo nos debates sobre as reformas do setor elétrico, principalmente quando encontramos mercados não regulados gerando níveis inaceitáveis de desigualdades sociais e onde a presença estatal democrática deverá ser decisiva como agente de redistribuição de uma sociedade mais eqüitativa.

7.3 - Considerações finais

O panorama das principais interligações físicas no continente estabelece de forma clara a pouca evolução no sentido de uma integração efetiva. Um olhar menos criterioso nas potências elétricas instaladas e as demandas internas dos países estudados, pode levar a conclusões precipitadas, no sentido da real necessidade de um grande sistema interligado regional. No Brasil, a crise dos anos 2000 e 2001 custou algo entre 2,5 e 3% do PIB nacional, ou seja, algo entre quinze e dezoito bilhões de dólares no ano de 2001, isso com uma diminuição permanente do consumo de quase 20%, o que influenciou negativamente futuros investimentos no país. Na Argentina a situação foi ainda mais

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dramática, com uma redução significativa de investimentos na área elétrica, o que dificultou inclusive o cumprimento dos contratos de venda de energia para o Chile, o Uruguai e Brasil, demonstrando o quanto são vulneráveis as interconexões elétricas na América do Sul. Essa vulnerabilidade pode ser atestada utilizando a capacidade de interconexão em relação à demanda máxima dos países da região. Segundo dados da CIER em 2003, esses eram os seguintes: Argentina, 30% (capacidade apenas para exportar); Brasil, 21% (a maior parte se deve a interconexão com Itaipu); Colômbia, 11%; Chile, o SING com 40% (importa da Argentina, não se conectando na rede desse país); Equador, 8%; Venezuela, 4,5% (exporta para uma região não interconectada no Brasil); Paraguai e Uruguai maior que 100% e Bolívia sem interconexão na região. A abordagem técnica dos diversos fatores de promoção da interligação elétrica nos países da América do Sul é irrefutável. Existe capacidade elétrica ociosa em algumas regiões e déficit em outras regiões. Isso determina espaço para crescimento e cooperação entre estas, mas existem outras realidades locais que também devem ser observadas. Um fator preponderante nas relações para formação de um mercado comum de eletricidade é a política interna dos países envolvidos.

Na América do Sul, as divergências entre as orientações ideológicas dos governos não são recentes. Hoje, convivem juntos o bolivarianismo de Morales e Chavez, o conservadorismo de Uribe e a formação de centro-esquerda de Lula, Bachelet e Tabaré Vasquez. De alguma forma, todos têm de lidar com o duplo desafio, ou seja, tornar as sociedades nacionais menos desiguais e procurar resolver tensões históricas com seus vizinhos, isso se quiserem proporcionar aos seus paises um desenvolvimento econômico, social e político sustentável. Este desafio comum é que pode demandar soluções integracionistas que serão mais fortes, do que as dissensões em assuntos específicos. Mas é importante observar que todo esforço político é sempre uma aposta, uma construção de difícil definição.

Outro fator a ser considerado numa integração elétrica é a relação entre o público e o privado. O Estado, suas instituições e o capital privado devem trabalhar de forma a ampliar as possibilidades de novos enlaces e parques energéticos. Isso passa necessariamente pela questão de estabelecer responsabilidades e normas que fundamentem essa relação. Essa parceria Público/Privado teve, segundo o Banco Mundial, seu ápice em 1997, com um aporte de investimentos de USD 50.000 milhões no setor elétrico, mas, a partir de 2002, os investimentos nesse setor, no mundo, caíram para USD 5.000 milhões. Isso é preocupante, principalmente para uma região que precisa de investimentos em infra-estrutura como é o caso da América do Sul. Podem-se citar entre as causas do afastamento dos investidores na região, além dos riscos regulatórios, os constantes riscos de racionamento elétrico causados por políticas inadequadas dos governos quando o assunto é energia e as recorrentes crises econômicas e sociais.

Habitualmente se relaciona diretamente crescimento do setor energético e desenvolvimento. Assim, o investimento no setor elétrico justifica-se pela necessidade de gerar emprego, gerar riqueza e universalizar o consumo de eletricidade. No entanto, Honty (2004, p. 132), argumenta que a “história sul-americana dos últimos vinte e cinco anos demonstra que foi duplicado o consumo de energia elétrica, sem que tenha havido redução significativa no nível de pobreza relativo”. Portanto a participação da sociedade é fundamental nesse processo. Até hoje essas questões sobre integração foram debatidas no âmbito político e dos órgãos estatais sem um envolvimento social maior, que por vezes só aparece quando algum fator de desequilíbrio surge. Esses fatores podem ser de importância geral, como no caso do “apagão” brasileiro em 2001, ou específico, quando ocorre em virtude de uma ação focalizada do Estado, por exemplo, a construção de

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represas das usinas hidrelétricas que inundam determinadas áreas residenciais e provocam impactos sociais e ambientais significativos.

Os acordos já firmados na região indicam preponderantemente um compromisso bilateral dos governos sul-americanos. Mesmo que os países da CAN e do Mercosul tenham colocado em suas agendas a importância da integração energética regional, ainda assim se notam apenas movimentos bilaterais específicos, que envolvem a totalidade da energia gerada, não configurando um processo de integração. Por outro lado, não é menos importante que isso aconteça. Numa visão mais otimista, isso pode refletir um interesse inicial que culminará com a integração elétrica dos mercados na região sul-americana. E sobre isso é importante observar que, mesmo que a termoeletricidade perca em competitividade em relação à hidroeletricidade, em função de um custo mais elevado tanto em investimento, quanto em operação, é possível utilizar esse recurso para gerar energia elétrica, complementando com a matriz hidráulica o mercado regional elétrico. Obviamente que a complementaridade elétrica não é dependente apenas da geração de energia. A forma como está desenvolvida a infra-estrutura da interconexão também é importante. Sobre isso, talvez repouse a maior dificuldade das interligações físicas da região sul americana. Se, por um lado, existe interesse na construção das usinas, tanto econômico, quanto político, por outro lado pela dimensão territorial do continente e sua grande área não povoada, as construções de linhas de transmissão elétricas podem inibir maiores investimentos tanto públicos, quanto privados.

Todos os processos de integração, e no setor elétrico não é diferente, estão predispostos a variações multidimensionais complexas, onde os fatores econômicos, políticos e institucionais se misturam, condicionados por interesses de curto, médio e longo prazo. Entre estes se podem citar a complementaridade elétrica. Esse fator pode ser um bom motivo para estimular a integração efetivamente. Sabe-se que os recursos hidráulicos são abundantes, tanto no sul quanto no norte da América do Sul. Se uma região sofre com um baixo índice pluviométrico, a outra pode possuir excesso de água nos seus reservatórios, complementando todo o sistema interligado.

Complementando todo o processo, a construção de uma base institucional forte deve existir tanto a nível interno dos países integradores, quanto externa ou regionalmente. É preciso desenvolver uma infra-estrutura com redes de transmissões fortes, adequadas e com tecnologia avançada, bem como é preciso prover segurança e garantia do abastecimento. Atualmente o que se vê são políticas energéticas desintegradas, muitas vezes construídas sem uma base técnica voltada para a integração desde o princípio. Na medida em que se sabe que apenas a vontade política das chancelarias e presidências da República dos países da região são insuficientes para solucionar todos os problemas, trata-se de construir uma institucionalidade vocacionada para a integração elétrica da América do Sul. Portanto, não pode haver um marco regulatório interno de um país que desconheça outro em nível regional. Ainda que funcionem com gestões distintas, a questão política e a técnica precisam ser cuidadosamente coordenadas. É preciso focar tanto o mercado quanto a sociedade, é preciso ter foco no crescimento equilibrado e nas assimetrias entre países da região sul-americana.

Enfim, todas as soluções devem ser pautadas pela busca de um consenso entre os diversos interesses e atores nacionais e regionais. Ainda que hoje existam contendas energéticas importantes, estas devem ser colocadas num plano inferior. É preciso avançar decididamente nesse processo de integração elétrica, assegurando a participação ativa dos governos, através de uma institucionalidade regional, que permita estabelecer metas estratégicas de política energética regional. A América do Sul já

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perdeu muito tempo em disputas que privilegiaram os recursos energéticos como instrumento de pressão no plano global.

Portanto, embora o cenário econômico e político da região seja de crise em vários países e de crescimento sem redistribuição de renda em outros, uma das formas para superá-la é alcançar a autonomia elétrica e isso depende basicamente de uma volição regional fundada em uma nova concepção compartilhada de soberania para alcançar esse fim.

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Capítulo 8

O Setor de Hidrocarbonetos na Bolívia

Alessandro Segabinazzi

A nacionalização dos hidrocarbonetos decretada por Evo Morales em 1º. de Maio de 2006, além de afetar seriamente os interesses da Petrobrás e, por conseqüência, do Brasil, levantou muito ceticismo quanto ao futuro da integração regional. Para esboçar algumas conjunturas, evitando o imediatismo da imprensa e proselitismos, pretendemos realizar uma análise mais ampla, abarcando as últimas três décadas da história boliviana. O foco reside em questões macroeconômicas que afetaram as políticas energéticas na América do Sul, ocasionando mudança de um padrão histórico na condução das empresas estatais associado ao nacional-desenvolvimentismo.

Não é novidade afirmar que alterações econômicas significativas tiveram lugar na América do Sul em decorrência do agravamento da pressão externa sobre os diversos mercados nacionais a partir de meados da década de 80. Para adaptar-se a um novo ambiente competitivo internacional, os países sul-americanos, à falta de um projeto político-econômico que pudesse tomar o lugar, satisfatoriamente, do esgotado modelo substitutivo de importações, acabaram por promover, na década de 90, uma ampla abertura de suas economias.

Mesmo em um setor tão sensível e estratégico quanto o energético, a liberalização econômica teve um efeito significativo. As grandes companhias petrolíferas estatais sul-americanas, cujo desenvolvimento fora ancorado no modelo substutivo de importações, se não foram privatizadas, sofreram uma forte flexibilização, colocando à disposição do setor privado boa parte de seu controle acionário. Nos países em que as estatais não foram privatizadas por completo, um novo ethos empresarial foi definido, aumento as incongruências entre os objetivos meramente empresarias das companhias e os objetivos políticos como definição de arcabouços regulatórios e de investimentos (ALVEAL, 1999).

Por outro lado, a liberalização econômica acentuou a disposição dos governos sul-americanos em promover a integração continental, inclusive com projetos de infra-estrutura energética. Assim, durante a década de 1990, diversos projetos bilaterais para a construção de gasodutos foram realizados, dos quais são exemplo as construções entre Argentina e Chile, entre Brasil e Bolívia. Entretanto, as estratégias adotadas no setor energético variaram, em cada país, de acordo com o tamanho do mercado doméstico, com a disponibilidade de recursos naturais, com a vulnerabilidade externa e com a escala das empresas petrolíferas estatais. Se, de um lado, como no caso da Argentina, ocorreu completa privatização do setor de hidrocarbonetos, em outros países, como Brasil e Venezuela, houve a flexibilização do setor de petróleo e gás, persistindo ainda o controle estatal sobre as empresas, embora com participação expressiva do capital privado.

Com a Bolívia não ocorreu diferente. Foi um dos primeiros países sul-americanos a ceder a pressão externa e a adotar um plano de desenvolvimento que incluía medidas econômicas que mais tarde passariam a ser conhecidas como Consenso de Washington, o que afetou seriamente a política energética. Em meados da década de 1980, o presidente Victor Paz Estenssoro começou a colocar em prática uma agenda econômica que revertia o modelo estatizante adotado pela Revolução Nacionalista de 1952. O ajuste estrutural da economia, inspirado pelas idéias do economista Jeffrey Sachs, promoveu a abertura do mercado ao capital externo, o qual passou a ser considerada uma variável-

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chave para o crescimento. As grandes empresas estatais como a Corporação Mineira da Bolívia (Comibol) e a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), estatal boliviana de petróleo e gás natural, sofreram forte reestruturação com base na contenção de gastos, juntamente com a eliminação do seu crédito fiscal e um número elevado de demissões.

A liberação da economia boliviana foi acentuada no governo de Gonzalo Sanchez de Losada (1993-97), ex-ministro de Paz Estenssoro e responsável pelo plano de capitalização das empresas estatais.83 Seu objetivo era o de dar início a um projeto modernizador que incluía também reformas ministeriais, educacionais e constitucionais. Pela reforma constitucional, o governo, a fim amainar a fermentação político-social, reconhecia o caráter multi-étnico e pluricultural da República boliviana, embora consagrasse a unicidade do Estado.84

Paralelamente, o governo de Losada esforçou-se para melhorar a inserção internacional da Bolívia, país que, a despeito de integrar os sistemas andino, amazônico e platino, não havia aproveitado sua posição geográfica para manter trocas intensas com seus vizinhos. A disposição de Losada em promover a integração da Bolívia com o restante do continente era evidente e, de certa maneira, dava continuidade a projetos iniciados na administração anterior por Paz Zamora, que logrou concluir negociações com o Peru, em 1992, para a concessão à Bolívia de uma zona franca no Porto de Ilo, o que reduziu significativamente a dependência boliviana aos portos chilenos de Antofagasta e de Ararica para escoar mercadorias pelo Pacífico. Com efeito, em 1993, Bolívia e Brasil iniciaram negociações para a construção de um gasoduto entre os dois países. À época, ambas empresas estatais a YPFB, do lado boliviano, e a Petrobrás, do brasileiro, estavam sendo alvo de questionamentos acerca de seu desempenho econômico.

A história da YPFB, a exemplo da Petrobrás, é marcada por intenso debate acerca não apenas da eficiência da companhia, como também de um próprio modelo de desenvolvimento. A companhia estatal de petróleo e gás bolivianos foi criada em 1938, quando todas as concessões e propriedades da companhia Standard Oil foram confiscadas pelo governo de David Toro, o qual esperava fortalecer a economia boliviana após a Guerra do Chaco. Os esforços para o desenvolvimento autônomo do setor de hidrocarbonetos, no entanto, esbarraram sempre na insuficiência de capitais, em razão da baixa diversificação econômica e do limitado mercado interno boliviano. Não é a toa que, durante a própria revolução nacionalista, tenha-se introduzido um código de petróleo favorável a investimentos externos.85 Durante sua história contemporânea, a Bolívia dependeu muito de inversões de companhias estrangeiras para o aumento da oferta interna, o que levava os governos a oscilar entre posições extremamente liberais, quando estabeleciam um novo código de hidrocarbonetos com condições bastante permissivas aos capitais estrangeiros, e estatizantes, quando promoviam nacionalizações, a fim de aumentar sua parcela na riqueza produzida ou tomá-la por completo. Embora a escala da YPFB pudesse aumentar após as nacionalizações, a companhia nunca conseguiu ter um

83 A privatização da Comibol já se havia realizado anteriormente ao governo de Losada. Porém, sob sua

administração, além da YPFB, foram privatizadas a empresa ferroviária (Enfe), a de comunicações internacionais (Entel), a de linhas aéreas (LAB), de eletricidade (Ende).

84 Ver: CAMARGO, A. J. C. de. Bolívia – A Criação de um Novo País: A Ascensão de um Poder Político

Autóctone das Civilizações Pré-Colombianas a Evo Morales. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2006.

85 Código Schuster y Davenport.

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padrão tecnológico que lhe permitisse operar com eficiência por muito tempo. Até a década de 1980, a principal receita do Estado boliviano provinha da companhia de extração de estanho, a Comibol, a qual também não era um modelo de gestão. 86

A intenção do governo, ao capitalizar a YPFB, era a de que a Bolívia pudesse representar um centro energético no continente sul-americano, o que seria viabilizado pela exportação intensiva de gás natural para o Brasil e pelo aumento da exportação de petróleo. Para capitalizar a YPFB, o governo dividiu a companhia previamente em três unidades – duas envolvendo a exploração e a produção de hidrocarbonetos e uma o transporte. A Petrolera Andina (consórcio formado pela Perez Compac, Plus Petrol, Repsol-YPF) e a Petrolera Chaco (consórcio abarcando a Amoco e Exxon Móbil) adquiriram as unidades de exploração e produção, enquanto a unidade de transporte foi adquirida pela Transredes (consórcio Enron-Shell). Com a capitalização da YPFB, o governo esperava não apenas aumentar o aporte de investimento estrangeiro, como também obter divisas para saldar os déficits do sistema previdenciário. A chamada política do “triângulo energético”, do governo Sánchez de Losada, desenvolveu-se da seguinte maneira: em primeiro lugar, procedia-se à capitalização da YPFB, que significava a entrega de parcelas da companhia à administração privada, enquanto que o Estado se transformava em uma agente regulador do setor de hidrocarbonetos; o próximo passo então era o desenvolvimento de um novo marco legal para a efetivação desse processo; e, por fim, dava-se início a meta de obter importantes receitas com a exportação de gás natural ao Brasil.

O marco regulatório foi definido pela Lei de Hidrocarbonetos n: 1689, de 30 de abril de 1996, que tinha por objetivos atrair a inversão privada no setor, proporcionar um marco regulador claro, criar um ambiente fiscal atrativo com vistas a orientar o desenvolvimento do setor segundo as leis de mercado. A lei de hidrocarbonetos determinou a forma por meio da qual ocorreria a capitalização da YPFB, além de criar uma nova agência reguladora, o Sistema de Regulação Setorial (Sirese). Ficava estabelecido também que, a partir de então, ocorreriam, para novas explorações, apenas contratos de risco compartilhado com as empresas privadas, recebendo o crivo da YPFB, que representaria o Estado boliviano. Por essa lei, a YPFB fica claramente excluída de realizar essas operações diretamente.87 Como complemento, o Decreto do Supremo 24806/1997 estabeleceu que os recursos de hidrocarbonetos “na boca do poço” passariam à propriedade dos produtores privados, o que implicava a concessão de uma grande margem de manobra para que eles determinassem preços, condições e tipos de produtos para comercialização e exportação.88 A reforma do sistema energético boliviano teve como escopo uma maior participação do setor privado que deveria ser alcançada por meio da desregulação do mercado de energia para que se atingissem ganhos de competitividade e de eficiência.

A decisão brasileira de aumentar a participação do gás na matriz energética, de um lado, e a vontade boliviana de transformar o país em um centro energético do continente, de outro, concorreram para que a Petrobrás e a YPFB elaborassem em 1991 a Carta de

86 GUMUCIO, M. B. Breve Historia Contemporánea de Bolívia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996.

87 COMPODÓNICO, H. Reformas e inversión em la industria de hidrocarburos de América Latina. Santiago

do Chile: Cepal, 2004.

88 TREBAT, N.M.; ALMEIDA. E. A Crise na Bolívia e Seus Impactos para a Indústria de Gás. IN: Boletim

Infopetro. Julho, 2004.

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Intenções sobre o Processo de Integração Energética entre Bolívia e Brasil, que tinha modestamente a previsão de venda 8 mm3/dia de gás boliviano, com a possibilidade de alcançar 16 mm3/dia em razão da evolução do mercado. O acordo foi assinado em 1993, entrando em vigor no momento de sua assinatura, muito embora sua eficácia dependesse de financiamentos para a viabilidade econômica do projeto. Somente em 1996, com a inclusão do projeto entre os 42 empreendimentos prioritários do Programa Brasil em Ação, é que o gasoduto Bolívia-Brasil passa a dispor dos créditos necessários para sua viabilização, o que permitiu que em julho de 1997 fossem assinados os contratos para a construção e montagem do gasoduto.89 Os acordos estabeleceram o sistema de take or pay, segundo o qual a YPFB se comprometia a vender um volume diário fixado e a Petrobrás a comprá-lo, sob pena do pagamento de multas, de inicialmente 6 mm3/dia que logo passaram a 16 mm3/dia. Foram criados mecanismos que permitiam também ao comprador, Petrobrás, o aumento da capacidade de transporte, se as quantidades fossem pagas antecipadamente (Transportation Capacity Option – TCO; Transportation Capacity Extra –TCX), o que possibilitava que o volume, a depender da evolução das condições de mercado, chegasse a próximos 30 mm3/dia, limite da capacidade de transporte do gasoduto. Os preços fixados inicialmente foram de US$ 0,95 mil m/3 para um transporte de 8 a 16 mm/3 dia e de US$ 1,20 mil m/3 para a exportação de volumes superiores, alcançando até 30 mm/3 dia. 90

A construção do Gasoduto Bolívia-Brasil foi a grande mola propulsora dos investimentos da Petrobrás na Bolívia. De 1999 a 2003, os investimentos da Petrobrás na Bolívia ocorreram em uma intensidade impressionante, de modo que a companhia tornou-se rapidamente a maior empresa atuando no país, respondendo a cerca de 20% do PIB boliviano. Suas atividades passaram a abarcar exploração, prospecção, refino, distribuição, comercialização de petróleo, gás natural e derivados. Para o Brasil, o gasoduto contribuiu para o aumento da participação do gás natural na matriz energética nacional, abastecendo, sobretudo, o parque industrial de São Paulo.

O sucesso de construção e operação do Gasbol figura, certamente, como um dos razões que animaram a Cúpula dos Presidentes da América do Sul de 2000. A reunião, em que foi formulada a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), parecia demonstrar a convicção uníssona de que integração efetiva das economias regionais dependia de projetos de infra-estrutura de grande porte que garantissem o aumento de eficiência e competitividade das economias nacionais na América do Sul. A elaboração do IIRSA foi assentada na idéia de eixos de desenvolvimento - corredores logísticos multimodais necessários para superar as deficiências em infra-estrutura. O IIRSA, com efeito, representa um conjunto de projetos de infra-estrutura e de investimento, a fim de intensificar os fluxos de comércio, comunicação, transporte, energia. Muitos dos projetos do IIRSA deitam-se em território boliviano, como o do Eixo Inter-oceânico Central, vital para o fluxo de mercadorias entre o Atlântico e o Pacífico, e a Hidrovia do Paraná, indispensável para o escoamento da produção agrícola tanto brasileira quanto boliviana.

89 PASSOS, M.F.S.A. (1998) Gasoduto Brasil-Bolivia. Economia e Energia. Ano II, n: 10, setembro-outubro

1998. http://ecen.com/eee10/gasp.htm acessado em 28/06/2006

90 Op. Cit. COMPODÓNICO. H

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8.1 – O impacto de Morales na Integração Regional

A trajetória de Evo Morales para o Palácio Quemado resulta de um processo de tempos históricos diversos, ao qual também estão associadas questões de segregação étnica. 91

A escalada dos protestos sociais, na Bolívia, no entanto, teve seu estopim em 2003, quando o governo de Sanchez Losada, em seu segundo mandato, anunciou o projeto Pacific-LNG.92 O desagrado da população não se relacionava apenas às divergências históricas com o Chile, ou com o suposto imperialismo dos Estados Unidos, mas também ao modelo de gerenciamento dos recursos naturais, implantado a partir da década de 1990, ao enfraquecimento do Estado e à inclusão precária da população no sistema de seguridade social.

O saldo de duas administrações liberais de Losada, em cujo período foram transferidas do domínio público para o privado as grandes empresas, não foi positivo aos olhos dos bolivianos. Não eram apenas os trabalhadores da YPFB, mas também diversos setores sociais que se mobilizaram com a preocupação de que os recursos naturais bolivianos se esgotassem sem que isso se traduzisse em benefícios para a população. O governo demonstrou-se incapaz, mesmo após as privatizações, de saldar a “dívida social boliviana” que abarcava o fraco sistema previdenciário, o deficitário sistema educacional, o precário sistema de saúde e o setor agrário em crise.93

Além disso, pesava ainda sobre a administração de Losada acusações de corrupção, principalmente no referente à capitalização da YPFB. Uma delas que era a reclassificação dos campos que seriam objeto de concessão. Ocorria que o governo procedeu à diferenciação entre campos já existente e campos novos a serem descobertos, fixando impostos diferenciados para ambos. Ao passo que a alíquota de imposto para os campos já existentes chegava a 50%, a dos campos novos era fixada apenas em 18%. Muitas vezes, porém, campos já existentes, no momento de negociação com as transnacionais, eram classificados como campos novos, o que burlava o que era acordado, gerando perdas significativas de receita fiscal para o Estado. Dessa forma,

91 Embora haja na Bolívia uma segregação étnico-social, as quais refletem, por vezes, tensões regionais,

não compartilhamos da visão de que os indígenas, ao longo da história contemporânea boliviana, tenham ficado à margem do processo político. A despeito do movimento Katarista, de origem aymara, que clamava por mais direitos aos indígenas, os quais considerava o setor social mais excluído, as agremiações e os sindicatos rurais, desde a Revolução de 1952, foram uma força importante, da qual mesmo governos autoritários governos não puderam prescindir. A recente exclusão dos indígenas do processo político tem como fator principal a reforma econômica ultra-liberal boliviana da década de 1980. Em outra perspectiva, conferir a análise interessante desenvolvida por Marcelo Argenta Câmara em torno do conceito de formação social abigarrada, do teórico boliviano René Zavaleta. CÂMARA, M. A. Bolívia: de 1952 ao Século XXI – Processos Sociais, Transformações Políticas. Prêmio América do Sul 2006. Brasília: FUNAG/IPRI, 2007.

92 O consórcio Pacif-LNG, formado pela British Gas, British Petroleum e Repsol, previa a extração de gás

natural do campo de Margarida(Tarija) e seu transporte por gasoduto até um porto do Pacífico no Chile, para que fosse liquefeito, permitindo o transporte marítimo até o México, onde seria novamente convertido em gás para atender os mercados dos Estados Unidos(Califórnia) e México. Os preços previamente acordados desagradaram a população, associando o projeto a um certo tipo de imperialismo.

93 FERNÁNDEZ, M; BIRHUET, E. Resultado de la Reestruturacción Energética em Bolívia. Serie

Recursos Naturales e Infraestructura. Santiago do Chile: Cepal, 2002.

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muitas negociações entre o governo e as empresas assumiam ares de corrupção, o que causava intensa repercussão nos meios sindicais e partidos de oposição. Como se não bastasse, os fundos de pensão que deveriam resultar das capitalizações tiveram uma duração perene. Não tardou para que os recursos escasseassem, o que recrudesceu os protestos dos trabalhadores.

O cosmopolitismo de Sanchez de Losada, em vez de ser considerado uma virtude, transformou-se em uma fraqueza. Para a maioria dos bolivianos, o presidente não passava de um “vendepatria”.94 Dado o contexto descrito acima, tanto o liberalismo, principalmente no que se referia ao gerenciamento dos recursos naturais, quanto à opção regional, característicos da administração de Sanchez Losada, passaram a ser questionados juntamente com o governo. O nacionalismo boliviano ganhou grande vigor, e os movimentos sociais organizados passaram a ser a principal força política da sociedade boliviana. O episódio que marcou a ascendência das forças sociais, de acordo com Linera, foi a chamada “Guerra da Água”, na qual os setores populares insurgiram-se contra a empresa Bechtel, concessionária dos serviços de abastecimento de água da cidade de Cochabamba.95 No entanto, o modelo de gestão econômica de Losada seria colocado em cheque na chamada “Guerra do Gás” em 2003, quando os protestos sociais literalmente paralisaram o país. Incapaz de contornar a situação, sem bases políticas sustentáveis, o presidente renunciou.

As administrações de Losada, com efeito, procuraram reverter um padrão histórico, no qual o Estado era o grande fomentador do desenvolvimento e do gerenciamento dos recursos naturais. O novo arranjo entre o poder público e as empresas privadas revelou, para usar o conceito de Alveal, incongruências que não puderam ser superadas, seja, por vezes, pelo descumprimento da legislação, seja pelas condições extremamente permissivas ao capital que fora acordado. Ademais, ao orientar o gerenciamento dos recursos naturais para um modelo liberal, Losada falhou em seus planos de modernização, não podendo responder satisfatoriamente às demandas sociais. Embora o Estado tenha obtido importantes fontes de receita com a descoberta de novas reservas, com novos investimentos e com a venda intensiva do gás natural, que decorreram da integração regional, os efeitos multiplicadores dos benefícios econômicos sobre a sociedade não foram suficientes para satisfazer as necessidades de uma população díspar. Se, de um lado, os industriais de Santa Cruz de la Sierra prosperavam, de outro, a massa da população camponesa continuava a dispor de uma renda escassa.

A Petrobrás, já em outubro de 2003, data da renúncia de Losada, era a maior companhia atuando em território boliviano. A internacionalização da Petrobrás teve impulso significativo depois que ocorreu a quebra do monopólio estatal pela lei 9478/97, a qual, além de inúmeras disposições que reestruturaram o setor de gás e petróleo no Brasil, definiu ainda diretrizes para que se aumentasse a participação do gás natural na matriz energética brasileira. A opção pela importação do gás natural boliviano foi a que oferecia o menor custo de oportunidade, razão pela qual se celebrou o contrato de construção do gasoduto e de compra e venda de gás.

Segundo a Petrobrás, sua estratégia exterior guia-se pelo posicionamento vantajoso em “áreas-foco” da América do Sul e pela atuação seletiva, como operadora ou em parceria, na exploração e na produção de petróleo em águas profundas. No que

94 Op. Cit. CAMARGO, A. J. C.

95 LINERA, A. G. La crisis boliviana en el contexto regional. IN: Geopolítica de los recursos naturales y

acuerdos comerciales en sudamerica. Disponível: www. fobomade.bo/

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concerne seu posicionamento vantajoso na América do Sul, dois países se destacam: a Argentina e a Bolívia. A expansão da Petrobrás nestes dois mercados ocorreu não ocorreu de maneira concomitante. Como já foi exposto, a intensificação da presença da Petrobrás na Bolívia teve lugar a partir de meados da década de 1990, com os acordos para a construção do gasoduto Bolívia-Brasil. O recrudescimento dos investimentos da Petrobrás na Argentina é mais tardio, no que foi definido por Compodónico como um “segundo momento” das privatizações na Argentina.96 Porém, por vezes, a penetração da Petrobrás no mercado argentino concorria para que seus negócios se expandissem também pelo lado boliviano.97

De qualquer maneira, no auge da crise boliviana, a Petrobrás era a principal companhia petrolífera atuando na Bolívia. Era de se esperar que, contestando o modelo de gerenciamento dos hidrocarbonetos, os movimentos que se aglutinavam em torno de Evo Morales colocassem também em questão os acordos firmados pelos governos precedentes com as companhias estrangeiras. A Petrobrás não foi a única empresa que foi afetada pela nacionalização de maio de 2006, mas foi, sem dúvida, a mais atingida. Não foi por outra razão que a medida teve ampla repercussão sobre a opinião pública nacional. Setores da imprensa questionaram a passividade da resposta do governo brasileiro, questionando inclusive a política de integração regional.

8.2 – Considerações Finais

Do ponto de vista da integração regional, a questão que não está muito clara ainda é se essa nova orientação nacionalista colocará em jogo o processo de integração regional, ou se ela o dará um novo impulso. No entanto, países de menor dimensão econômica, como a Bolívia e o Equador, começam a clamar por políticas que levem em consideração as disparidades de renda entre os países nos projetos de interligação da infra-estrutura, principalmente no setor de energia, dada a sensibilidade estratégica.

O limite da economia de mercado na América do Sul expressou-se pelo baixo dinamismo econômico que não forneceu condições para a emancipação social. Como reação neste início de século, teve lugar o fortalecimento de movimentos sociais e de lideranças de centro-esquerda que têm uma orientação contrária à atuação das livres forças do mercado e que imprimem um forte cunho nacionalista na condução da economia, como ocorre na Venezuela de Hugo Chávez e ultimamente na Bolívia de Evo Morales. No fim das contas, o que está em jogo nestas economias, no atual contexto, é um conflito distributivo que acentua a disposição do Estado de apropriar-se de uma parcela maior das rendas provenientes dos hidrocarbonetos em um período de alta dos preços internacionais. Com mais receitas, o Estado estaria apto a traduzir os recursos econômicos em maiores benefícios sociais.

Conforme Cepik e Carra (2006), ao contrário das nacionalizações anteriores, o atual governo boliviano conta com duas vantagens: a legitimidade política, uma vez que foi democraticamente eleito com uma plataforma que previa a nacionalização dos

96 Op. Cit. COMPODÓNICO, H. (2004).

97 A compra da empresa argentina Perez Compac pela Petrobrás, em 2001, possibilitou uma expansão

ainda maior dos negócios da Petrobrás na Bolívia, já que pela compra a Petrobrás adquiriu os ativos da companhia argentina na Bolívia, os quais abarcavam duas refinarias.

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hidrocarbonetos; e a assistência técnico-financeira da estatal venezuelana PVDSA. De acordo ainda com os autores, o adensamento das relações entre Morales e Chávez cria uma dificuldade adicional para o processo de construção da Comunidade Sul-americana de nações (CASA).

Caso os governos de Morales e de Hugo Chávez dêem um novo impulso à integração regional, pelo que se pode depreender pela retórica dos presidentes, as premissas que anteriormente orientavam o processo de integração, como eficiência e competitividade, para promover a integração ao mercado regional, passam a ser questionadas. Em seu lugar, a nova tendência nacionalista e centralizadora que, com especial atenção para os interesses brasileiros, atinge a Bolívia sugere que a dinâmica do processo de integração, sobretudo energética, se deve pautar pelo equacionamento das assimetrias regionais – que se deve traduzir pelo aumento dos preços de gás – e pelo caráter mais político do que econômico na tomada de decisões. Se, na década de 90, era consensual a necessidade de integração regional para criar um ambiente favorável a inversões externas que dinamizassem o mercado energético da região, atualmente, se assiste a desconfiança acerca de um modelo econômico que põe ênfase nos fatores externos.

Conquanto não se manifestem contrários à inversão externa direta, os governos de Morales e de Chávez afirmam a necessidade de terem mais controle sobre os negócios seja pelo fortalecimento das empresas estatais, seja pela alteração do marco regulatório, seja, enfim, pela alteração dos contratos. Esses fatores concorrem para que ocorra uma diminuição dos investimentos externos diretos, embora sua dinâmica seja determinada por fatores endógenos e exógenos. Em um cenário de queda de investimentos no setor energético, restará aos Estados um envolvimento financeiro mais robusto para alcançar o cumprimento dos planos de integração energética regional no médio prazo.

A queda da participação do setor privado no processo de integração implica, necessariamente, além da maior mobilização de recursos dos Estados, uma melhor definição e regulação de normas para a consecução de uma matriz energética regional que ultrapasse meramente alinhamentos políticos conjunturais. Não que exista necessidade de uma plena convergência do arcabouço legal entre as legislações nacionais, mas seria desejável que fossem estabelecidos, para a confiança dos investimentos nos cumprimentos dos contratos, padrões mínimos em âmbito sub-regional ou regional. De outra forma, a incerteza quanto à disposição dos governos nacionais em assegurar normas claras para o desenvolvimento de um mercado energético regional persiste.

Para o Brasil a questão merece atenção especial, pois a Bolívia é um país-chave para os desígnios de integração física regional não apenas no que se refere ao setor energético, mas também em relação à sua condição geográfica. O país é o único do continente a integrar simultaneamente os sistemas Andino, Amazônico e do Prata. Os eixos de integração continental, elaborados pelo projeto do IIRSA, cortam o território boliviano, situado a meio caminho do Atlântico e do Pacífico. Corredores de exportação e de importação, vitais para o acesso facilitado ao dinâmico mercado asiático, dependem da viabilidade de uma infra-estrutura de transporte que incorpore o território boliviano, conforme previsto pelo Eixo Inter-oceânico Central. No Brasil, sobretudo para a região Centro-Oeste, a integração física é fundamental para o desenvolvimento econômico dos Estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul.

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Capítulo 9

Petróleo e Integração Energética da América do Sul

Marcos Carra

Os países da América do Sul possuem evoluções históricas diferentes e problemas, interesses, expectativas e visões diferentes de inserção no mundo globalizado, questões que condicionam as estratégias de como deve ser a atuação das companhias transnacionais em seus territórios, bem como o que esperar delas.

Em toda a América Latina foram as grandes companhias internacionais as pioneiras na exploração dos hidrocarbonetos. A participação do Estado no setor iniciou com a atuação de empresas estatais criadas ao longo do século vinte: YPF, 1922 (Argentina); Ancap, 1931 (Uruguai); YPFB, 1937 (Bolívia); ENAP, 1946 (Chile); Ecopetrol, 1951 (Colômbia); Petrobras, 1953 (Brasil); CVP, 1960 (Venezuela); CEPE, 1972 (Equador) etc. Posteriormente as estatais incorporaram as atividades até então executadas por concessionárias estrangeiras, mas nos anos 1970 elas eram um instrumento necessário para o desenvolvimento desta indústria. Em alguns casos, as estatais tinham o monopólio da atividade, devendo garantir o abastecimento interno e ser o vetor de desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico do país.

Pode-se dizer que o mesmo quadro da crise que atingiu o Brasil nos anos 1980: inflação elevada, crise da dívida externa, baixa capacidade de investimentos, crise estatal, crise das contas públicas, etc, puderam ser observados em toda América Latina. O Consenso de Washington apontado pelos neoliberais como única alternativa à crise deu o tom também para as reformas do setor de petróleo e gás. Em trabalho recente, Compodônico (2004) faz uma análise detalhada do processo de mudança (jurídica, estrutura concorrencial, divisão do mercado e resultados gerais) destacando alguns pontos em comum da flexibilização nos países da América do Sul que serão posteriormente examinados caso a caso neste capítulo.

9.1 – Semelhanças e Diferenças no Setor de Hidrocarbonetos

Todos os países da América do Sul promoveram algum tipo de reestruturação no setor de hidrocarbonetos, mas em diferentes graus, desde a abertura total ao capital privado até a aceitação de sua presença em determinados tipos de contratos. Os objetivos gerais das reformas são basicamente os mesmos: flexibilizar o setor atraindo os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED’s) a fim de reativar, dinamizar e modernizar o setor petrolífero e de infra-estrutura. Em alguns casos há também o objetivo do Estado de obter rendimentos através da taxação dos interessados. O aproveitamento das reservas (ou introdução) de gás natural na matriz energética faz parte dos planos de todos os países da América do Sul. Especificamente o setor o gás natural tanto a nível internacional como interno foi totalmente aberto para a participação do capital privado. As exceções são o Paraguai, onde a indústria ainda inexiste e o Uruguai, que permite apenas a participação privada na distribuição interna.

As reservas de hidrocarbonetos permanecem como propriedades do Estado. Aplicaram-se formas jurídicas diferentes das concessões para a exploração de

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hidrocarbonetos, como os contratos de partilha, contratos de risco, contratos de produção e/ou de serviços. 98 Quase todos os países confiaram a agências a função regulatória do setor e em todos os países o petróleo ainda é a principal fonte de energia. Todos os países que privatizaram o setor de hidrocarbonetos viram seus mercados passarem de uma situação de monopólio estatal para oligopólio privado. Por questões de mercado e logística apenas o upstream tem despertado interesse nas companhias estrangeiras. As atividades de midstream e downstream por terem poucas demandas (exceção feita à Argentina e Brasil) não atraem muito interesse.

Ainda conforme Compodônico (2004), as diferenças de políticas entre os países permitem agrupá-los em quatro grupos:

1) Países bastante fechados ao capital internacional: caso do Chile, Paraguai e Uruguai. Estes países mantêm um controle estreito sobre o setor, onde a primazia pertence a uma estatal legalmente constituída. Companhias estrangeiras são admitidas apenas em convênios de operação conjunta com a estatal para atuar em áreas específicas. Alguns fatores podem explicar a rigidez dos controles, como por exemplo, o fato destes países não possuírem reservas apreciáveis de hidrocarbonetos sendo portanto basicamente importadores. Isto os torna vulneráveis ao mercado externo (e daí o provável receio de ficar a mercê da flutuação do mercado e de companhias descompromissadas), também tem o efeito de torná-los pouco atraentes às empresas estrangeiras, um desinteresse reforçado pelo pequeno mercado de consumo interno destes países.

2) Países que admitiram a presença do capital internacional: caso do Brasil, Colômbia e Equador. Todos possuem uma estatal legalmente constituída capaz de operar sozinha ou em parceria com empresas privadas, nacionais ou não. Existem diferenças consideráveis entre os membros deste grupo. O Brasil dispõe de vasto mercado interno, reservas apreciáveis e uma companhia gigante e capacitada tecnicamente e as companhias podem ou não operar em conjunto com a estatal. Em contrapartida o mesmo não se pode dizer dos outros dois que possuem de atrativo apenas suas reservas hidrocarbonetos e a atuação de companhias estrangeiras é permitida apenas em associações com as estatais, que tem tamanho modesto pelos padrões internacionais.

3) Países que abriram completamente o setor de hidrocarbonetos ao capital internacional: caso da Argentina, Bolívia e Peru. Outro ponto em comum do grupo é a privatização das estatais que atuavam na área. As diferenças estão no fato de que a Argentina tem reservas razoáveis de hidrocarbonetos e um expressivo mercado consumidor enquanto a Bolívia e Peru têm pequeno mercado interno e pequenas reservas de petróleo mas reservas apreciáveis de gás.

4) O caso isolado é o da Venezuela, com imensa jazida, grande produtor e exportador de hidrocarbonetos e que possui uma companhia gigantesca (PDVSA) que, por motivos que veremos, permitiu a entrada de companhias estrangeiras.

Neste sentido, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela teriam em comum a baixa industrialização ou, no mínimo, um parque industrial incompleto. Além de riqueza natural os hidrocarbonetos são dos poucos produtos competitivos no mercado globalizado.

98 Embora existam várias formas jurídicas, dois são os tipos principais: as concessões e a partilha de

produção. A diferença entre eles é a propriedade do petróleo. Na concessão, o óleo produzido pertence ao mercado. Na partilha o óleo é do Estado e o investidor recebe uma parte do óleo produzido (profit oil).

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Tabela 9.1 - Acesso das Companhias nos Países da América do Sul

Argentina Bolívia Chile Colômbia Equador Paraguai Peru Uruguai Venezuela

Livre Acesso ao Upstream Petróleo

Sim Não

Não

Não

Não

Não Existe

Sim Não Existe

Não

Livre Acesso ao Midstream Petróleo

Sim Não Não Sim Sim Não Sim Não Não

Livre Acesso ao

Downstream Petróleo

Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim Sim

Livre Acesso ao Upstream

Gás Natural

Sim

Sim

Não

Não

Não

Não Existe

Sim

Não Existe

Não

Livre Acesso ao Midstream

Gás Natural

Sim

Não

Não

Sim

Sim

Não Existe

Sim Não Sim

Livre Acesso ao Downstram Gás Natural

Sim Não

Sim

Sim

Sim

Não Existe

Sim Sim Sim

Maturidade da Indústria

de Gás Natural

Alta Baixa Baixa

Baixa

Baixa

Não Existe

Baixa Não Existe

Baixa

Fonte: Elaboração Própria. Marcos Carra (2008)

Dito isto, farei a seguir uma rápida análise sobre a situação em cada país. Os dados são de 2003 e a análise é baseada em Campodônico (1999 e 2004), Fernandes & Silveria (1999), bem como na literatura especializada e páginas eletrônicas das companhias.

Argentina A Argentina tem área de 2.780.092 km2 e 37,8 milhões de habitantes e possui

reservas pequenas de petróleo (2,821 bilhão de barris), mas grandes de gás natural (663,72 bilhões de m3).

A política petrolífera do país é marcada pela instabilidade, reflexo das tendências política que se alteraram no poder. Quando este era ocupado pelos defensores da empresa pública era mais forte a tendência ao monopólio estatal, quando o poder era ocupado por simpatizantes dos liberais era mais forte a tendência à participação da empresa privada no setor. Devido as fortes pressões feitos pelos grupos privados internos

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e externos nunca houve continuidade na política do petróleo e a ex-estatal YPF nunca desfrutou do monopólio integral das atividades petrolíferas. (Fernandes & Silveira, 1999).

As origens da indústria petrolífera argentina remontam a 1885 quando às próprias espensas investidores encontraram petróleo na província de Mendoza e posteriormente organizaram a Companhia Mendocina de Petróleo, que abriu três poços e construiu um oleoduto de 40 km. Oficialmente o primeir achado de petróleo no país data de 13 de dezembro de 1907, quando uma equipe do governo federal, abrindo poços de água no deserto da Patagônia encontrou-o em Comodoro Rivadavia a apenas 539 m de profundidade. Conforme Contreras (2006) vem dai também o debate sobre o monopólio estatal.

Neste momento o governo argentino não deu muita importância ao fato porque conforme O´Connor (1962) o país era rico em carvão e recursos hidrelétricos, importando da Grã-Bretanha os energéticos de que precisava (carvão para a marinha e derivados de petróleo para os veículos). Além disso não eram claras as possibilidades do veículo com motor a explosão. Em função disto, segundo Fernandes e Silveira (op. cit) a elite agro-exportadora e as empresas estrangeiras que atuavam no país mostraram-se contrárias à estatização das atividades petrolíferas. Em 1910 o governo criou a Dirección General de Explotación del Petróleo órgão que regulava de forma bastante genérica a atuação das pequenas estatais provinciais e a atuação dos trustes internacionais, que na prática regulavam o mercado.

Esta opção não se mostrou satisfatória. Eram constantes os problemas de abastecimento e disputas entre as estatais provinciais e as companhias estrangeiras, mas foi o advento da Primeira Guerra Mundial que alertou o governo para a gravidade do problema do petróleo. Quase imediatamente após o início das hostilidades a Grã-Bretanha suspendeu a exportação de carvão ameaçando a marinha argentina de paralisia por falta de combustível. A urgência por uma solução aumentou após o conflito quando uma greve de mineiros britânicos evidenciou a fragilidade do abastecimento argentino. Alem disso não passou despercebido aos militares argentinos que a guerra comprovara que os novos veículos com motor a explosão (aviões, caminhões, navios, tanques, submarinos, etc) seriam decisivos no campo de batalha.

Os problemas atingiram o clímax em 1922 quando o então coronel (depois general) Henrique Mosconi comandante da Força Aérea ordenou um vôo de prova e para sua surpresa foi informado pela West India Oil Company 99 que a benzina de avião devia ser paga antecipadamente. Ante condições consideradas uma ameaça à defesa nacional Mosconi solicitou ao Presidente Hipólito Irigoyen que criasse uma estatal sob controle federal. Assim em 16 de outubro de 1922 era estabelecida a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), tendo o próprio Mosconi como primeiro presidente.

Inicialmente a YPF recebeu uma verba de US$ 8.655.000,00 e Mosconi tornou-a auto-suficiente enquanto organizava o setor criando o Instituto do Petróleo da Universidade de Buenos Aires (para preparar técnicos) e impondo um um preço uniforme pelo petróleo e derivados em todo país. 100 Lentamente a YPF foi absorvendo as concessões que expiravam e as instalações das companhias privadas. Em 1925 Mosconi chegou a pensar em estabelecer uma sociedade mista entre a YPF e o capital privado, mas frente à pressão das companhias internacionais voltou atrás em 1928 e passou a

99 Subsidiária da Standard Oil of New Jersey que operava na Argentina.

100 Cerca de US$ 4.000.000,00.

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defender o monopólio estatal integral. Neste sentido em 1 de agosto de 1929 a YPF assumiu o monopólio da distribuição de derivados. 101

Em breve a política petrolífera argentina seria redirecionada. A crise de 1929 alarmou a elite agro-exportadora que dependia das importações inglesas e defendia alguma forma de entendimento com a Grã-Bretanha. Insatisfeitos com a condução da política econômica de Irigoyen essa elite apoiou sua queda em setembro de 1930 e a ascenção do general José Francisco Uriburu. Sem apoio Mosconi deixou a presidência da YPF em 19 de outubro de 1930 sem conseguir implementar todas suas idéias. Até 1935 não havia um Código especifico para a atividade petrolífera (era regulado pelo Código de Minas) e a YPF competia com as companhias privadas já estabelecidas. Neste ano cerca de 60% da produção era de origem privada, destacando-se a Royal Dutch/Shell a West Indian Oil Company e uma companhia privada argentina, a ASTRA (Fernandes & Silveira, op cit).

Em 1935 foi aprovada a Lei do Petróleo e Gás nº 12.161, regulando o setor e permitindo a atuação da YPF, dos capitais mistos e dos capitais privados. Seguiu-se uma série de decretos que ampliaram as concessões da YPF para quase todo território argentino o que limitou as atividades privadas ao refino e comercialização. Em 1936 Royal Dutch/Shell a West Indian Oil Company recebiam uma porcentagem fixa do mercado de combustíveis.

Esta situação se manteve até o governo de Perón (1946-1955) quando adotou-se um amplo programa de nacionalizações utilizando as reservas em libras esterlinas acumuladas durante a Segunda Guerra Mundial para comprar do capital privado internacional as ferrovias, sistema de telefonia, empresas de gás, navegação fluvial, entre outras. Em 1949 uma reforma constitucional reservou para a União a propriedade das reservas de hidrocarbonetos. No ano seguinte ao mesmo tempo que era criada a Empresa Nacional de Energia para administrar as atividades energéticas, um decreto privava a YPF de autonomia e independência financeira.

As nacionalizações de Perón não deram os resultados esperados por uma série de razões102. Também não foi construída uma indústria de base, nem houve o aproveitamento adequado dos recursos energéticos e uma vez esgotadas as reservas em libras esterlinas a economia começou a se deteriorar. No final dos anos 50 a Argentina carecia de energia e importava 50% do petróleo que consumia.

Caberia ao governo Arturo Frondizi (1958-1962) tentar solucionar os problemas econômicos da Argentina. Em 1958 ante a falta de recursos Frondizi baixou a Lei No 14.773 modificando a Lei do Petróleo e Gás 12.161/35 delegando as atividades de petróleo a YPF e a de gás natural a Gás del Estado, mantendo os direitos das companhias privadas. Frondizi também autorizou os contratos de produção, exploração e

101 Mosconi ia além: defendia a idéia de que todos os recursos naturais deveriam ser nacionalizados e

explorados e comercializados por monopólios 100% estatais, acreditanto que era necessário os países latino-americanos tomarem medidas coordenadas neste assunto e promulgar leis relacionadas com os recursos naturais que fossem vantajosas para o Estado-Nacional, impedindo a atuação dos capitais internacionais. Para divulgar suas idéias viajou pela América Latina entre 1927/28 expondo suas experiências com o petróleo. Suas idéias influenciaram as políticas estatizantes da Bolívia, Brasil, Colômbia, México e Venezuela.

102 Entre elas a corrupção e má administração do setor estatal, elevados custos da previdência social,

depreciação dos produtos primários, encarecimento dos produtos importados, etc.

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comercialização de petróleo entre a YPF e as empresas estrangeiras. Em 1963 estes contratos foram anulados.

As medidas de Frondizi deram resultado. A Argentina conseguiu aumentar suas reservas provadas em 50% e diminuir drasticamente as importações de petróleo.

Em 1967 sob o governo militar (1966-1973), houve nova tentativa de abrir o setor ao capital privado através da Lei de Hidrocarbonetos no. 17.319103, que permitiu a concessão para a exploração, produção e transporte de petróleo e gás natural a empresas privadas e autorizava contratos de parceria entre elas e a YPF. No âmbito da lei foram outorgados 21 concessões em áreas marginais e como não houve descobertas elas foram devolvidas à Secretaria de Energia. Também foram autorizados 5 contratos de parceria entre YPF e empresas privadas em campos operados pela estatal, mas apenas 3 mostraram-se rentáveis, viabilizando o ingresso da Pérez Companc e Bridas no setor.

No governo de Isabel Perón (1974-1976) a forte onda nacionalista inibiu os contratos com o setor privado e os existentes tiveram inversões diminuídas. Os choques do petróleo de 1973 e 1979 levaram a Argentina a rever suas políticas energéticas, com a introdução inclusive dos contratos de risco, no geral mal-sucedidos. A introdução do gás natural, da hidroeletricidade e energia nuclear na matriz energética teve melhor resultado.

Como o restante da América Latina a Argentina também sofreu com os efeitos combinados do segundo choque do petróleo de 1979 e aumento dos juros básicos nos EUA que levaram a crise da dívida de 82, quadro piorado com a derrota na Guerra das Malvinas (1982). No final da década a situação econômica do país era crítica. No setor externo o país apresentava elevada dívida externa, acesso restrito a créditos externos e via a queda do preço de seus produtos básicos de exportação (trigo e carnes). Já no setor interno havia alta taxa inflacionária e alto déficit público, baixa da capacidade de consumo e baixa capacidade de financiamento, que resultaram em empobrecimento da população.

Os problemas econômicos do Estado argentino refletiam-se na YPF que sem recursos mostrava resultados ruins: baixo índice de descoberta, queda na produção, baixo potencial de investimento e baixa capitalização.

Estes problemas e o fracasso dos contratos de risco levaram o governo Alfonsín (1983-1988) a adotar (amparado na Lei 17.319/67) o Plano Houston (1985-1991), permitindo ao capital privado o acesso a licitações públicas para exploração como contratadas. Foram oferecidas 165 áreas. Novamente os resultados ficaram aquém do esperado: as reservas provadas não cresceram e caíu a produção doméstica de petróleo.

Em 1988, numa tentativa de de mudar o setor petrolífero a Argentina instituiu o Petroplan. Três eram os principais aspectos desta nova tentativa: 1) Permissão para realização de joint-ventures entre a YPF e empresas estrangeiras em 4 áreas centrais, com a estatal tendo participação superior a 50% e negociação livre de petróleo, na proporção de cada participação. 2) Devolução à União de 141 áreas cuja produção era inferior a 1.300 bpd. Também deveriam ser devolvidas às Províncias 117 que não possuíam um programa sistemático de exploração. 3) Desregulamentação do setor, especificamente com a eliminação da “Mesa del Crudo”, regime de cotas de petróleo para o refino que estava a cargo da Secretaria de Energia.

A partir de 1989 as mudanças do setor de hidrocarbonetos argentino se fizeram dentro do chamado Proceso de Reorganización Nacional, um conjunto de políticas neoliberais inspirados pelo Consenso de Washington. Em 1989 foram aprovadas a Ley de

103 Foi o marco jurídico legal que permitiu a abertura do setor nos anos 90.

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la Reforma del Estado (Lei 23.696) e a Ley de Emergência Econômica (Lei 23.697)104, com objetivo de reestruturar o aparelho estatal.

No setor de hidrocarbonetos os pontos críticos eram os seguintes: todo petróleo extraído através de contratos de produção e de risco era entregues à YPF para a comercialização, o que motivava contínuas negociações entre as contratistas e a YPF; a importação e a exportação de petróleo e derivados eram autorizadas pela Secretaria de Energia e a operação realizada através da empresa mista Interpol (49% das ações em poder do Estado), gerando transações desnecessárias e/ou pouco vantajosas; os preços de petróleo e derivados (fixos para todo o território nacional) eram determinados pelo Ministério da Economia, que não apresentava competência para a tarefa; existiam impostos em demasia no petróleo e derivados; o eixo principal da política energética até então era o abastecimento interno; a empresa YPF, super dimensionada, apresentava ineficiência. (Fernandes & Silveira op. cit).

Entre os meses de outubro e dezembro de 1989 definiu-se o programa de reformas para a YPF que segundo Fernandes & Silveira (op.cit) tinham os seguintes objetivos: reconversão dos contratos de produção da YPF em concessões ou associações; devolução das áreas entregues à YPF para a exploração; livre disponibilidade de petróleo e derivados para os concessionários ou associados e disponibilidade de 70% de divisas resultantes da venda do petróleo; flexibilização do setor de refino, quando a produção de petróleo pelo setor privado atingisse um patamar de 30% (meta atingida em 31/12/1990); equiparação de preços nacionais aos internacionais; estabelecimento de nova tributação para os derivados de petróleo; autorização ás importações e exportações de derivados; liberação de capacidades adicionais de refino; liberação para a abertura de postos de revenda de combustíveis; regulação do transporte de dutos; definição da venda de refinarias, dutos e outras instalações pertencentes à YPF.

Posteriormente se fizeram outras mudanças. Através da Lei 17.319/67 e da Lei 23.696/89 o monopólio da YPF foi rompido e a estatal sofreu completa reestruturação (venda de ativos não rentáveis, saneamento administrativo etc) preparatória para a privatização, aprovada pela Lei 25.561 de 24/09/1992. O processo teve inicio em 1993, por meio da alienação de ações em oferta pública internacional (bolsa de NY), tendo sido concluído apenas em 1999. A YPF teve sua estrutura vertical preservada e foi comprada pela Repsol espanhola que desembolsou cerca de US$ 13,158 bilhões para ficar com 83,4% (em 2004) da ex-estatal, que passou a se chamar Repsol-YPF S.A. O Estado argentino manteve pequena parcela de ações que funcionam como golden share e lhes garantem o controle estratégico sobre a companhia, com a última palavra sobre questões de mudança de sede, dissolução, absorção e venda.

Esperava-se que através da privatização, a iniciativa privada trouxesse capitais e a tecnologias capazes de modernizar setores chave, incluindo a infra-estrutura. A fim de assegurar a aplicação das novas regulamentações, algumas estratégias foram implementadas nos segmentos de exploração, produção, refino, transporte, preços, comercialização e impostos de hidrocarbonetos, seguindo a presente ordem:

Exploração: realização de auditoria em 234 campos pela empresa Gaffney & Cline Associates Inc., financiada pelo Banco Mundial, tendo como objetivo o dimensionamento das reservas provadas argentinas, em 31 de dezembro de 1989. O resultado da auditoria, indicou uma redução de 28% das estimativas de reservas oficiais consideradas anteriormente.

104 Para maiores destalhes ver Fernades & Silveria (1999) e Sanchez (2004).

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Transporte: estabelecimentos de normas legais para o livre acesso, privatização de oleodutos, polidutos, terminais marítimos.

Refino: venda de algumas refinarias antes pertencentes a YPF, ficando a empresa com três refinarias (La Plata, a maior; Luján de Cuyo, a 2ª maior; e Plaza Huincul).

Comercialização: privatização da trading Interpol.

Cabe ainda registrar a chamada internacional relativa a 23 áreas consideradas de alto risco, dentro do chamado Plano Argentina, realizada em 1991/1992. Devido às características das áreas, os critérios habituais para a licitação, em que se consideram as melhores ofertas em dinheiro, foram substituídos pelos melhores programas de investimento.

Enquanto se vendia a YPF, em 1995 começou a tramitar um projeto de lei para adequar a Lei 17.319/67, prevendo a instituição de uma agência reguladora (Ente Federal de Hidrocarburos, EFH), com o poder de normatizar as atividades referentes aos hidrocarbonetos. Enquanto a lei não era aprovada os preços dos combustíveis deixaram de ser fixados pelo Governo, passando para o controle do oligopólio. Apenas depois dos graves distúrbios ocorridos no final de 2001 o Governo aprovou um pacote de medidas na Lei 25561/02 visando regular os preços.

Com a privatização o setor de hidrocarbonetos passou totalmente para o setor privado e hoje está oligopolizado: as atividades de upstream são concentradas em 7 companhias que detém 91% das reservas e 88% da produção de petróleo (sozinha a Repsol-YPF detém 49% das reservas e 53% da produção) e 70% das reservas e produção de gás natural. No downstream há um oligopólio com 4 empresas controlando 90% do refino e 92% das vendas internas.

Apesar da incerteza jurídica de um modo geral o objetivo da privatização tem sido alcançado: os investimentos no setor aumentaram, as reservas de petróleo foram ampliadas e a produção incrementada, o que permitiu uma pequena exportação para o Brasil e Chile. Um caso à parte é o setor do gás natural, visto que seus preços são subsidiados pelo governo, o que inibe os investimentos embora o país tenha uma estrutura gasífera madura e desde 1997 exporte para o Chile.

Ainda em 2006 se debatia a eventual reestatização da YPF, mesmo depois que o governo Néstor Kirchner criou em 2004 uma nova estatal de energia chamada Enarsa (Energía Argentina S.A.), com a clara intenção de retomar atividades outrora a cargo da YPF. A Enarsa tem o direito de exploração da plataforma submarina pertencente a Argentina, mas desenvolveu poucas atividades até agora, procurando articular-se com a PDVSA e a Petrobras para realizar estudos e tarefas conjuntas na região.

Bolívia Com uma área de 1.098.581 km2 e 8,78 milhões de habitantes a Bolívia tem

pequenas reservas de petróleo (441 milhões de barris), mas a segunda maior reserva de gás natural da América do Sul (1,4 trilhão de m3).

Não se pode dizer que o conhecimento do petróleo é novo para os bolivianos, porque os incas que habitavam o Alto Peru registravam sua ocorrência antes da chegada de Pizzaro. Sob a administração espanhola o conhecimento perdeu-se e foi apenas em 1896 que Manuel Cellar descobriu acidentalmente o primeiro manancial de petróleo em Mandiyuti. Em 16 de novembro de 1921 foi publicado o primeiro Código petrolífero do país, através do qual as concessões feitas um ano antes para uma empresa americana

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foram transferidas para a Standard Oil que criou uma subsidiária boliviana. Esta descobriu petróleo em escala comercial no Campo Bermejo em 1924.

Logo surgiu um problema técnico para a Standard, insolúvel até hoje105: como escoar os hidrocarbonetos bolivianos? A saída pelo porto de Arica (Chile) só seria possível quando as relações entre os dois países fossem normalizadas (que não era o caso), mesmo assim seria necessário construir um oleoduto de 1.482 km cruzando a Cordilheira dos Andes a uma altitude de 3.600 m. Aqui outro problema, o frio, que chegava a -40oC, podia congelar o óleo ou romper o duto, tornando sua operacionalização tão onerosa que seria anti-econômica. O transporte pelo rio Paraguai também é problemático: só pode ser feito em períodos de cheias (entre abril e agosto) através de chatas rebocadas num percurso de 3.500 km até a foz.

Essa última solução era a menos problemática. Um oleoduto cortando o Gran Chaco ligando os campos ao Rio Paraguai resolveria, mas a Bolívia não aceitou as exigências de passagem do governo paraguaio. Para agravar a situação a arqui-rival da Standard, a Royal Dutch/Shell, dominava as regiões meridionais do Chaco impedindo sua passagem.

As diferenças entre Bolívia e Paraguai não eram novas e diziam respeito a posse do Gran Chaco (ou Chaco Boreal) uma região fértil e despovoada, então território boliviano. A Bolívia ressentiam-se com a ocupação irregular da área pelos paraguaios que também bloqueavam seu acesso ao rio Paraguai, sua única saída aquaviária desde a perda do litoral. Por sua vez os paraguaios, que tiveram sua economia destruída durante a Guerra do Paraguai (1865/70), ocuparam o Chaco para cultivar erva-mate (seu produto mais importante) e a perda do território poderia significar o colapso da sua economia. Por fim acreditava que o Gran Chaco era rico em petróleo. A disputa envolvendo a Standard Oil e a Royal Dutch/Shell foi o ingrediente que faltava para o início da Guerra do Chaco (15/06/1932 a 12/06/1935).

Os resultados do conflito foram terríveis para dois países já pobres. O Paraguai ganhou a guerra e os poços de petróleo da Standard Oil106 mas perdeu 43.000 soldados e contraiu uma dívida de US$ 140 milhões. A Bolívia perdeu 57.000 soldados, uma área de 235.000 km² e a saída para o Rio Paraguai em definitivo.

Existiam outros dois interessados no petróleo boliviano: Argentina e Brasil, que disputavam a proeminência no Prata. Além da Conferência de Paz ter sido conduzida em Buenos Aires107 os argentinos dispunham de condições financeiras, capacidade tecnológica e mercado. Um tratado relativo a transportes ferroviários e aproveitamento do petróleo boliviano seria assinado entre os dois países em 10 de fevereiro de 1941.

Enquanto as negociações prosseguiam os bolivianos realizaram a primeira nacionalização dos hidrocarbonetos. Em 21 de dezembro de 1936 o governo do General David Toro determinava que todas as concessões petrolíferas caducariam em 13 de março de 1937 quando os ativos das petroleiras (diga-se Standard Oil) passariam sem indenização para o controle de uma estatal, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos

105 Na verdade até hoje só existe uma solução adequada: os hidrocarbonetos bolivianos só podem ser

escoados a preços competitivos através de dutos que cortem o Brasil.

106 Que lacrou os poços de petróleo e que por acordo só podem ser abertos em 2006.

107 O Tratado de Paz, Amizade e Limites entre Bolívia e Paraguai datado de 21 de agosto de 1938 foi

assinado em Buenos Aires.

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(YPFB). Os bolivianos justificaram o ato acusando a Standard Oil de evasão fiscal, fraude contábil, contrabando de petróleo e ingerência na política local108. Posteriormente a Standard conseguiu cobrar dos bolivianos uma indenização de US$ 1,7 milhões109.

Atento ao aumento da influência argentina na região (ver Minadeo, 2002) o Brasil também propôs um tratado relativo a transportes ferroviários e aproveitamento do petróleo boliviano (Tratado de Roboré 25 de novembro de 1938) mas a inexistência de uma companhia petrolífera, conhecimento técnico e recursos aliados aos problemas internos (crise econômica e política) impediram sua implementação. Mais tarde Bolívia e Brasil voltaram a negociar acordos envolvendo os hidrocarbonetos110 mas por diversas razões nenhum foi implementado. 111

Apenas nos anos 50 as petrolíferas norte-americanas voltaram a operar na Bolívia. Sob pressão dos sindicatos e partidos de esquerda, em 31 de outubro de 1952 o governo Paz Estenssoro proclamava a Revolução e era publicada a Ata de Independência Econômica da Bolívia que promoveu uma série de reformas, entre elas a agrária e a nacionalização das minas de estanho. Conforme Bandeira (2006) o ambiente era pouco propício para uma revolução com matizes esquerdistas: a época era de Guerra Fria e os EUA não estavam dispostos a tolerar desafios e agiram fazendo pressão através do preço do estanho. Em 1953 o governo Paz Estenssoro foi obrigado a capitular frente aos EUA e depois deu uma concessão de 200.000 km2 as petrolíferas norte-americanas em troca de uma ajuda de US$ 22 milhões112.

Para consolidar o domínio das petrolíferas norte-americanas em 29 de outubro de 1956 era promulgado o novo “Código del Petróleo” boliviano conhecido como “Código Davenport” por ter sido redigido em New York pelo advogado Henry Holland, especializado em assuntos petrolíferos. Ele determinou que as empresas seriam taxadas

108 As mesmas razões foram usadas para justificar as nacionalizações de 1969 e de 2006, mas neste

momento existiam agravantes. A Standard se indispunha com a Argentina após a querela que deu origem a YPF e havia informado os bolivianos que não aceitaria aumento de impostos nem participaria de um acordo com os argentinos. Além disso, agora o Chaco estava bloqueado e ficara claro que nem os EUA (em crise e sob o New Deal), nem Chile (por ser muito débil) e nem o Brasil (por ter seus próprios problemas) se interporiam a Argentina. Assim a Bolívia resolveu assumir o controle do seu petróleo e aceitar as ofertas argentinas.

109 A Standard Oil utilizou sua influência política junto ao Departamento de Estado para pressionar a

Bolívia. A indenização (US$ 21,233 milhões em valores atuais) foi paga em 1942.

110 Foram assinadas Notas Reversais do Acordo de Roboré de 29 de março de 1958 e em foram feitas

propostas para a construção de um gasoduto entre os dois países em 1965 e 1973.

111 Após 1954 as negociações sempre envolviam a Petrobras. Nessa época a estatal não tinha recursos

econômicos nem conhecimento técnico para conduzir operações petrolíferas no exterior, estava envolvida com a pesquisa no Brasil e o corpo administrativo da estatal resistia a idéia de operar no exterior. Ademais se temia que uma reviravolta na Bolívia (conhecida por sua instabilidade política) poderia levar à desapropriação dos investimentos da estatal (ver Minadeo op. cit). Depois de 1968 a Petrobras teria ainda menos condições de operar no exterior porque estava compromentida com a construção da indústria petroquímica. Por outro lado, os bolivianos resistiam a idéia de chegar a um entendimento com o Brasil porque ainda ressentiam-se com a questão do Acre, dos atrasos nos pagamentos acordados em diferentes tratados e temiam que os brasileiros estivessem na verdade querendo exercer um “imperialismo” velado através da Petrobras.

112 Hoje: US$ 134.600.000,00.

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em 18%, podendo reter 82%113 dos lucros. Nesse código os interesses norte-americanos eram protegidos pelo artigo 21 que proibida a atuação de petrolíferas estatais e para-estatais na Bolívia. O dispositivo jurídico tinha um alvo: impedir a atuação da recém-nascida Petrobrás e a YPF (leia-se Brasil e Argentina) de atuar na Bolívia (ver Minadeo op. cit).

O insucesso das pesquisas de lavra aliado ao problema do transporte de hidrocarbonetos fez com que lentamente as empresas norte-americanas se retirassem até que restasse apenas a Gulf Oil Comp. Os estudos da Gulf logo mostraram que a Bolívia era rica sim em hidrocarbonetos, não sob a forma de petróleo, mas de gás natural. Em 1961 a Gulf descobria os campos de gás em Caranda, Colpa e Rio Grande. Como a YPFB não tinha a menor condição de explorá-los o governo entregou-os a Gulf.

No final dos anos 60 o descontentamento social levou ao golpe do General Alfredo Ovando Candia (1969/70). Em 17 de outubro de 1969 Candia baixava o Decreto Supremo 8.956 determinando a segunda nacionalização do setor, desta vez contra a Gulf. O ato teve forte influência do líder socialista e então ministro dos hidrocarbonetos Marcelo Quiroga Santa Cruz114 e contou com apoio dos nacionalistas e partidos de esquerda. A Gulf reagiu conseguindo que o governo dos EUA retaliasse a Bolívia: suas exportações foram bloqueadas, a construção do gasoduto com a Argentina foi suspensa (pela retenção de equipamentos na fronteira), os desembolsos do Banco Mundial foram suspensos. Os bloqueios foram suspensos depois que o Estado pagou uma indenização de US$ 78 milhões.115

Marcada pela instabilidade política, até agosto de 1985 a situação econômica da Bolívia era caótica: 2/3 da economia era controlada pelo governo através das estatais, haviam cerca de 450 impostos e a inflação atingia 24.000% a.a. Para tentar resolver estes problemas o governo Paz Estenssoro adotou a política neoliberal (assessorada pelo economista Jeffrey Sachs) buscando sanear o setor público: minas foram privatizadas, fim da estabilidade do emprego, livre negociação salarial, fim de tabelamento de juros e preços, fim de subsídios a alimentos, livre flutuação da moeda, livre importação (com imposto de 20%), balanços obrigatórios a cada dois meses pelas estatais, etc.

O Consenso de Washington inspirou o governo Gonzalo Sánchez de Lozada (1993/2001) a aprofundar o processo privatizante que, pela Lei 1.689/96, atingiu a YPFB. Seu desmanche visava atrair investidores capazes de trazer capitais e tecnologia para reativar o setor e fazer caixa para saldar as obrigações previdenciárias do governo.

Assim foi privatizado todo setor de hidrocarbonetos mas ao contrário do caso argentino, a YPFB sobreviveu como agente estatal através do qual o Governo intervêm na área, sendo proibida (pela Lei 1.689) de produzir e explorar hidrocarbonetos, executados exclusivamente através de contratos de risco. Também ao contrário do caso argentino os ativos YPFB foram divididos antes da privatização rompendo sua linha vertical. Os campos foram reunidos em duas sociedades anônimas mistas (SAM), Andina SA (composta por 50% fundos de pensão bolivianos; 20,25% Repsol-YPF; 20,25% Petrobras

113 São as mesmas percentagens fixadas no Decreto Supremo 1.689 que reprivatizou o setor em 1996.

114 Um dos principais intelectuais socialistas do país Santa Cruz escreveu os livros El Saqueo de Bolívia e

El Gás que ya no Tenemos. A mando do ditador Luis García Meza, Santa Cruz foi preso, torturado e assassinado em 17 de julho de 1980. Atualmente seu nome é um dos mais invocados por Evo Morales.

115 US$ 401,7 milhões em valores de hoje.

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e 9,5% Pluspetrol) e Chaco SA (composta por 50% fundos de pensão bolivianos; 30%, BP e 20% Bridas). As duas refinarias foram vendidas por US$ 102 milhões para o consórcio Petrobras (70%) e Pecom (30%) e hoje pertencem a primeira. A Lei também liberou a importação e exportação de petróleo, gás e derivados.

A tentativa de reanimar a produção de hidrocarbonetos e a construção do gasoduto Bolíva-Brasil se insere num contexto mais amplo debate do cultivo de coca, fonte de renda da grande maioria da população e de grande importância para o narcotráfico. Em 1997, sob orientação dos EUA, o governo desenvolveu o Plano Dignidade, que previa auxílio financeiro dos norte-americanos em troca da erradicação/controle do cultivo de coca. Os plantadores de coca (ou cocaleros) que aceitassem fazer parte do programa receberiam benefícios de US$ 2,5 mil\ para cada hectare de coca eliminado, US$ 933,00 anuais pelo cultivo de produtos lícitos, terra gratuita e assistência técnica, entre outros. Segundo os cocaleros as vantagens oferecidas eram muito pequenas pois os rendimentos das novas lavouras reduziam a renda de 30 para 4,5 dólares semanal por família.

A insatisfação dos preços recebidos com a mudança de cultura também tem despertado grande contestação interna sobre o papel das companhias que operam no país e sua proeminência sobre as riquezas naturais.

Chile País de 756.626 km2 e 15,6 milhões de habitantes, o Chile tem poucas reservas de

hidrocarbonetos (150 milhões de barris de petróleo e 89,99 bilhões de m3 de gás natural).

No Chile a busca por hidrocarbonetos concentrou-se na Terra do Fogo. Como já acontecia nos países vizinhos em 1917 foi permitida a atuação do capital privado através do regime de concessões, mas os resultados foram desanimadores. Em 1926/27 a Standar Oil e a Royal Dutch/Shell fizeram prospecções que também indicaram não existir hidrocarbonetos em quantidades comerciais. Em 1928 o governo chileno reservou 10 milhões de pesos para explorar o local, também com resultados negativos.

A partir de 1943 as buscas de hidrocarbonetos continuaram sob estimulo da Corporación de Fomento de la Produción (CORFO), que contratou junto a firmas americanas a exploração e perfuração de poços na Terra do Fogo e no Estreito de Magalhães. Após dois anos de pesquisas o petróleo foi encontrado no setor de Springhil na Terra do Fogo em 29 de dezembro de 1945. Depois de feitos os primeiros testes, Eduardo Simián o engenheiro responsável, recomendou a CORFO que se criasse uma estatal capaz de explorar comercialmenta as jazidas. Em 19 de junho de 1950 era promulgada a Lei No 9.618 que criava a estatal Enap (Empresa Nacional de Petróleo), empresa que controla até hoje o setor de hidrocarbonetos no Chile. 116

No Chile ao pequeno tamanho das jazidas de hidrocarbonetos se deve somar as dificuldades impostas por suas localizações, na Terra do Fogo e no Estreito de Magalhães, onde a exploração é feita em condições climáticas terríveis. Em função destes problemas o país importa quase todos os hidrocarbonetos de que necessita e o Estado mantém um controle bastante rígido sobre o setor admitindo IED’s apenas na distribuição. A Enap tem participação acionária em todas as principais empresas chilenas

116 A Corporación de Fomento de la Produción é uma entidade governamental chilena criada em 1939

encarregada de fomentar o desenvolvimento industrial do país. Fornece aos interessados privados ou públicos assistência técnica, créditos, possibilidade de acesso a novas tecnologias, etc.

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do setor de hidrocarbonetos e responde por 100% das importações, refinoe transporte de petróleo, supre 89,5% da demanda de combustíveis e 81% do gás natural consumido. 117 Para as companhias privadas é mais viável comprar os produtos da Enap do que trazê-los das próprias plantas. 118

Em 1990 a Enap criou a Enap Sociedad Internacional Petrolera SA (Sipetrol SA) para desenvolver atividades exploratórias no exterior. Através da Sipetrol SA a Enap explora petróleo na Argentina (em Cuenca Neuquina, que responde por 50% da demanda nacional), Colômbia, Egito, Equador (que responde por 10% da demanda nacional), Irã, Nigéria (cobre 25% da demanda nacional) Peru e Yemen.

Colômbia A Colômbia tem área de 1.141.748 km2 e 43,5 milhões de habitantes, tendo

reservas modestas de petróleo (1,842 bilhão de barris) e gás natural (112,61 bilhões de m3).

Antes da chegada dos espanhóis os indígenas já haviam encontrado infiltrações de petróleo nas orlas do rio Magdalena, utilizado-o para fins domésticos e medicinais. O interesse por esse conhecimento só renasceu no século XIX. Foi nas margens do mesmo rio Magdalena perto da cidade de Barrancabermeja (zona de La Cira-Infantas, hoje El Centro) que em 1905 José Joaquín Bohórquez encontrou os primeiros indícios de petróleo.

Daí em diante a indústria petrolífera na Colômbia desenvolveu-se sobre duas concessões. A primeira concessão data de 30 de novembro de 1905 quando, após tomar conhecimento do achado de Bohórquez, Roberto de Mares obteve os direitos de exploração petrolífera sobre uma área de 50.000 km2 entre os rios Magdalena e Carare, devendo iniciar os trabalhos exploratórios em 18 meses. Sem capital, apenas em 14 de julho de 1916 foi que De Mares concedeu uma opção de exploração para a firma petrolífera Benedum Trees (de Pittsburgh) que organizou a Tropical Oil Company (Troco). A Tropical descobriu petróleo em escala comercial em 1918. No ano seguinte a Standard Oil of New Jersey comprou a Tropical por US$ 33.000.000,00 119 e logo depois obteve concessão do governo do General Rafael Reyes para desenvolver a infra-estrutura a fim de explorar, beneficiar e transportar o petróleo.

A segunda concessão foi outorgada a Virgílio Barco em 16 de outubro de 1905. No ano seguinte Barco construía em Cúcuta a primeira refinaria do país. Em 15 de maio de 1907 Barco repassou sua concessão para Compañia Colombiana de Petróleos. 120

117 São as seguintes empresas: A&C Pipeline Holding, Compañía Latinoamericana Petrolera SA,

Distribuidora Petrox SA (Perú), Empresa Nacional de Geotermina, Éteres y Alcoholes SA, Gasoducto del Pacífico Argentina SA, Gasoducto del Pacífico Chile SA, Geotérmica del Norte SA, Innergy Holdings SA, Inversiones Electrogas SA, Norgas SA, Oleoducto Trasandino Argentina, Oleoducto Trasandino Chile (OT), Petropower Energía Ltda, Petrosul SA, Productora de Diesel SA, Sipetrol SA, Terminales Marítimas Patagónicas SA (Argentina).

118 A Enap é dona das três refinarias do país: Aconcágua (construída em 1954, localizada em Concón), Bio

Bio (construída em 1967, localizada em San Vicente) e Gregório (localizada em Gregório).

119 Hoje US$ 397.200.000,00.

120 Na qual Henry L.Doherty Comp. detinha 75%, Carib Syndicate 12,5% e a Gulf Oil Comp 12,5%.

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A titularidade de petrolíferas norte-americanas nessas concessões era reprovada pelos colombianos em função do envolvimento dos EUA na independência do Panamá121. A Colômbia ainda ressentia-se com o episódio e aguardava o pagamento de uma indenização prometida pelos norte-americanos. O pagamento foi feito em 1921 depois que os colombianos tentaram cancelar as concessões das petrolíferas norte-americanas122. Isto não encerrou a questão. Conforme O´Connor (op.cit) o pagamento não impediu os colombianos de continuar procurando meios de cancelar as concessões ao mesmo tempo que dificultavam as operações das petrolíferas norte-americanas. A isto os EUA responderam negando-se a conceder novos empréstimos à Colômbia. O impasse foi resolvido quando a falta de fundos e a crise de 29 ameaçaram levar a economia colombiana ao colapso. Em 1930 os norte-americanos condicionaram um empréstimo de US$ 20.000.000,00123 a várias exigências, entre elas a resolução do problema das concessões petrolíferas. Em consequência coube ao advogado norte-americano George Rublee a redação de um documento que a Ley 80 de 10 de junho de 1931 transformou no Código do petróleo colombiano.

Pelo código as concessões petrolíferas expirariam após 30 anos. Em 1948 foi aprovada a Ley 165 facultando ao governo criar uma estatal, a Empresa Colombiana de Petróleos (Ecopetrol) que deveria substituir as companhias privadas a partir de 1951 quando começariam as primeiras reversões. A Ecopetrol passou a existir oficialmente pela Ley 30 de 25 de agosto de 1951 quando assumiu os ativos das concessionárias bem como a função de administrar a política de hidrocarbonetos do país. Em 1961 a refinaria de Barrancabermeja passou para o controle da estatal. Em 1974 a Ecopetrol comprou a Refinaria de Cartagena. 124

Em 1953 era publicado o Decreto Ley 1056 conhedido como Código do Petróleo, que vigora até hoje. Duas foram as principais mudanças sofridas pelo código: 1) A Ley 20 de 1969, reafirmando o direito do Estado sobre o subsolo sem prejuízo de terceiros e autorizou a Ecopetrol a celebrar contratos de exploração e produção com terceiros; 2) A Ley 2.310 de 1974 que eliminou as concessões e autorizou a Ecopetrol a atuar nas atividades de E&P diretamente ou através de terceiros.

Não foi proibida a participação do capital privado na exploração do petróleo que deve se encaixar em quatro tipos de contratos: 1) Contrato de Asociación (ou standard): onde se que prevê a formação de uma joint-venture 50/50 entre a Ecopetrol e o sócio privado após esta encontrar petróleo em escala comercial; 2) Asociación con Riesgo Compartido: onde se prevê a formação de uma joint-venture onde a Ecopetrol e o sócio

121 O direito de construir um canal ligando o Oceano Atlântico ao Pacífico cortando o istmo do Panamá

(então província da Colômbia) pertencia a New Panama Canal Company, mas a companhia faliu em 1888. Em 1903 a companhia vendeu seus direis para os EUA por US$ 40 milhões (hoje US$ 809,2 milhões). Como a Colômbia negou-se a aceitar as exigências americanas, que virtualmente tirariam a soberania do país na área, os EUA articularam uma rebelião no Panamá que teve início em em 3/11/1903. No dia seguinte o Panamá declarava sua independência, reconhecida pelos americanos no dia 6/11. Neste mesmo dia foi firmado um acordo que cedia perpetuamente aos Estados Unidos uma faixa de terra de 10 milhas de largura conhecida como Zona do Canal. O canal foi inaugurado em 1914.

122 Segundo O´Connor (op.cit) a Standard Oil utilizou sua influência junto ao congresso para forçar o

pagamento de uma indenização de US$ 25.000.000,00 (hoje: US$ 505.750.000,00).

123 Hoje: US$ 239.600.000,00.

124 Construída em 1956 pela IPC.

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privado participam desde a atividade exploratória; 3) Contrato de Producción Acumulada; 4) Asociación de Distribuición Escalonada, onde se prevê a divisão escalonada da produção entre a Ecopetrol e o sócio privado.

Em 1994, todos os contratos passaram a ser balizados pelo Fator R. De acordos com este critério a participação da Ecopetrol no upstream pode variar de 100% a 25% e do sócio privado de 0% a 75%. Em função disto a Ecopetrol tem participação direta em apenas 17% do upstream mas atinge o total de 56% em função dos contratos. O restante está nas mãos da BP (42%) Occidental Petroleum (Oxy, 1%) e outros participantes (1%).

Mudanças recentes (DL 1.760/03) visam internacionalizar e aumentar a força competitiva da Ecopetrol que foi convertida em sociedade anônima (Ecopetrol SA), ficando seu controle acionário com estatais lideradas pelo Ministerio de Hacienda y Crédito Público. O governo continua com a posse das reservas de hidrocarbonetos, mas a regulação está a cargo de duas agências, a ANH (Agencia Nacional de Hidrocarburos) e La Sociedad Promotora de Energía de Colombia SA.

O setor de midstream também foi aberto, mas não houve interesse em investir nas duas grandes refinarias do país, ainda controladas pela Ecopetrol que também controla, 11.048 km dos 11.859 km de dutos do país (são 3.980 km de polidutos, 2.603 km de gasodutos e 4.465 km de oleodutos). 125

O setor do gás colombiano é totalmente aberto à iniciativa privada e desde 1994 o governo tenta atrair interessados no seu Programa Para La Masificacíon del Consumo de Gás.

Equador O Equador tem área de 283.561 km2 e 13,1 milhões de habitantes, com reservas

medianas de petróleo (4,63 bilhão de barris) e pequenas de gás natural (108,99 bilhões de m3), mas com grande importância para a economia equatoriana, responde por 33% das receitas do Estado; 40% das exportações e 12% do PIB.

As crônicas da época da conquista espanhola relatam que os indígenas utilizavam como medicamento uma substância com características do petróleo. A história moderna do petróleo no Ecuador remonta a 1878 quando a MG Mier Comp. obteve uma concessão para procurar petróleona Península de Santa Helena tendo resultado negativo. Em 1911 vestígios de petróleo foram encontrados em La Costa. A busca continuou e a primeira descoberta oficial de petróleo no país foi feita em 1924 pela companhia inglesa Anglo Ecuadorian Oilfields Ltd. na mesma península de Santa Elena.

Na Região Oriental a busca começou em 1921 com a norte-americana Leonard Exploration Co. que obteve concessão para explorar uma área de 25.000 km2 durante 50 anos. Em 1937 a Royal Dutch/Shell recebeu uma concessão para pesquisar na Amazônia equatoriana, mas em breve a devolvia dizendo que não existia petróleo.

125 Complejo Industrial de Barrancabermeja, com capacidade de processar 225.000 bpe/dia. Produz

gasolina (75% das necessidades do país) benzina, diesel, querosene, propano, combustóleo, enxofre, ceras parafínicas, lubrificantes, polietileno, aromáticos, asfaltos, alquilobenzenos, ciclohexanos, dissolventes. Junto a esta refinaria está o único pólo petroquímico da Colômbia que cobre 70% das necessidades do país. E a Refinaria de Cartagena, com capacidade instalada de 75.000 bpe. Produz gasolina, propano e combustóleo. Estas duas abastecem Bogotá, Medellín, Barranquilla e Cáli. Para os mercados menores existem duas refinarias menores: em Orito, no sul da Colômbia e em Tibú, no noroeste colombiano, que suprem a demanda local.

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Após estas tentativas a produção de petróleo continou sendo modesta, a cargo da Anglo Ecuadorian Oilfields Ltd.. Nos anos 30 começou uma pequena exportação.

As grandes petrolíferas voltaram a se interessar pelo Equador no início dos anos 60. Em 5 de março de 1964 um consórcio 50/50 entre a Texaco e a Gulf Oil Comp. obteve concessão de 1,5 milhão de hectares para procurar hidrocarbonetos na Amazônia. Usando técnicas mais modernas o consórcio achou petróleo em 1967. Seguiu-se uma corrida que consolidou o domínio das companhias estrangeiras no país (Zambrano, 2006).

A produção amazônica começa a ser comercializada em 1972 após o consórcio finalizar um oleduto ligando os campos a um terminal no Pacífico. No mesmo ano o governo cria a Corporación Estatal Petrolera Ecuatoriana (CEPE) para participar do setor. Novas descobertas elevam o Equador a condição de segundo maior exportador de petróleo da América do Sul, posição que justificaria sua entrada na OPEP (28 de junho de 1973).

O processo de estatização do setor inicia em 1974, quando a CEPE adquire 25% das ações do consórcio Texaco-Gulf. Em 31 de dezembro de 1976 a CEPE absorve a parte da Gulf Oil acusando-a de várias irregularidades fiscais o que fez a participação da estatal no consórcio atingir 62,5%. Em 1 de março de 1986 a CEPE assume o controle do oleoduto. Em 26 de julho de 1989, como preparativo para a nacionalização da cadeia petrolífera, a CEPE é convertida na Petroecuador SA, com quatro filiais: Petroproducción, Petroindustrial, Petrocomercial y Petroamazonas. O processo de estatização é concluído em 30 de junho de 1990 quando é absorvido o restante do consórcio, pertencente a Texaco. 126 Daí em diante a Petroecuador SA passou a controlar o upstream e o midstream 127 e parte do downstream no país.

A flexibilização do setor (ainda em andamento) iniciou com a Lei No 44 de 1993, no Governo Sixto Durán Ballén (que também retirou o país da OPEP). Pela nova política qualquer interessado pode participar do upstream, mas apenas em joint-ventures com a Petroecuador. As taxas variam em cada contrato, mas depois que o Estado é ressarcido a operadora pode ficar com o restante da produção. Com este mecanismo a estatal participa de 57% da produção do petróleo. Em 2000 a Lei No 4 abriu o midstream (sem despertar interesse até agora) para participação das IED’s numa das 4 refinarias, e no downstream onde foi aceito um consórcio de sete empresas para a construção do Oleoduto de Crudos e Pesados (OCP)128

No país a questão do petróleo está longe de ser simples, passando pela contestação sobre quem se beneficia com as rendas do petróleo e do excessivo poder dado às companhias. Os problemas assumiram uma dimensão mais aguda após o Equador adotar o dólar como moeda oficial (processo conduzido entre 2000/01). Por esta política, a obtenção da moeda norte-americana está vinculada a produção e exportação do petróleo. Entretanto, tal medida retirou do Governo a capacidade de fazer política econômica e por extensão o orçamento público ficou seriamente limitado. Os cortes posteriores descapitalizaram as estatais (inclusive a Petroecuador) o que, aliado ao fim

126 Não houve acordo sobre as indenizações a serem pagas pelo Equador o que originou uma demanda

jurídica que se estende até 2003.

127 São quatro refinarias: Amazonas, Esmeraldas, e Lago Agrio e La Libertad.

128São elas: Alberta Energy (Canadá, 31,4%); Repsol-YPF (Espanha, 25,69%); Petrobras (Brasil, 15%);

Oxy (EUA, 12,26%); ENI (Itália, 7,5%); Kerr-Mcgree-Corp (EUA, 4,12%) e Bridas (Argentina, 4,12%).

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dos subsídios dos combustíveis teve impacto negativo sobre o poder aquisitivo da população.

Ao lado das questões econômicas, existem as questões ambientais, onde as companhias são favorecidas pelas falhas da legislação. O exemplo mais importante da contestação nesta área é a dos indígenas que habitam na reserva de Yasuní, declarada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Os indígenas não querem a presença das companhias num dos últimos ecossistemas intocados do planeta e tem respondido com seqüestros e sabotagens.

Paraguai O Paraguai tem área de 406.752 km2 e 5,8 milhões de habitantes e até

recentemente acreditava que não possuía reservas de hidrocarbonetos.

Foram conduzidas pesquisas em busca de hidrocarbonetos no Paraguai antes da Guerra do Chaco (15/06/1932 a 12/06/1935) mas o resultado foi negativo. Nova tentativa foi feita depois de assinado em Buenos Aires o Tratado de Paz, Amizade e Limites entre Bolívia e Paraguai em 21 de agosto de 1938, quando o país tomou posse do Gran Chaco região que se acreditava rica em hidrocarbonetos.

As primeiras pesquisas no Chaco foram permitidas pelo Decreto Ley No 5.449 de 1944 que autorizou a Union Oil Co. (Unocal) da Califórnia a procurar por hidrocarbonetos. Cinco poços exploratórios foram abertos, com resultados negativos.

Em 1966 a iniciativa privada obteve uma concessão de 15 anos para explorar a atividade do refino, através da Refinería Paraguaya Sociedad Anónima (REPSA). Em março de 1981 começou o processo de intervenção estatal, quando foi criada a Petropar (Petroleos de Paraguay), com 60% de capital estatal e 40% da Repsa. A estatização da refinaria ocorreru em 9 de janeiro de 1986 quando entrou em vigor a lei No 1.182/1985 instituindo Petroleos de Paraguay SA (Petropar SA), estatal com o monopólio das atividades petrolíferas. Atualmenta a Petropar opera a única refinaria do Paraguai, que abastece todo o país, mas a distribuição fica à cargo de terceiros. 129

A flexibilização teve início com a lei N° 1.658/2000 modificou o Art. 57 da lei 1.182/1985 permitindo a criação de empresas de risco compartilhado (joint ventures) onde a Petropar SA pode participar como sócia, desde que os contratos fossem autorizados pelo Poder Executivo ou aprovados por lei.

Em 2001 foram publicados os Decretos No 11.884, No 12.108 e No 12.820 que constituíram a Coordinadora y Promotora del Gas Natural e Inversiones Ligadas (Comigas) para coordenar e introdução de gás natural na matriz energética do Paraguai e estudar um esboço de legislação referente ao assunto.

As buscas por hidrocarbonetos prosseguem, agora com foco no gás natural. Em 2005 foi encontrado gás em Gabino Mendoza, fronteira com a Bolívia, pela CDS Energya SA e pela Primo Cano Martinez SA. A potencialidade das reservas ainda é objeto de estudo.

129 Refineria de Villa Elisa a 15 km de Asunción, com terminal no Río Paraguay. Tem capacidade de

processar 7.500 bpd e GLP.

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Peru O Peru tem área de 1.285.215 km2 e 26,5 milhões de habitantes e pequenas

reservas de petróleo (285 milhões de barris) e medianas de gás natural (246,89 bilhões de m3).

Quando Francisco Pizzaro chegou ao Peru em 1533 encontrou uma refinaria primitiva em funcionamento, montada e operada pelos incas que recolhiam o petróleo da mina de Amotape (depois Mina la Brea) armazenando-o em vasilhas. Conforme o relato de Eduardo Ramos, o petróleo era usado como calafetante, tinta, combustível, material de construção, em rituais religiosos e “como elemento medicinal e de prazer com o qual fabricavam uma espécie de goma de mascar que chamavam de ‘chicle”.

A exemplo de outros locais na América Latina o petróleo só voltou a chamar a atenção no século XIX. Em setembro de 1826 o governo peruano vendeu a mina de betume de Amotape então localizada na fazenda Pariñas a José Antonio de la Quintana. Em 1839, a fazenda passou a pertencer a José Lama Sedamanos. Após a morte de Sedamanos em 1850 a fazenda Pariñas foi dividida em duas: uma reteve o nome Pariñas e ficou com a viúva, Luísa, outra foi chamada la Brea e ficou com sua filha Josefa que depois herdaria a parte da mãe. Uma terceira fazenda, Máncora seria herdada pelo filho de Sedamanos, Diego Lama.

Após a descoberta do petróleo nos EUA (27 de agosto de 1859 em Titusville) Diego Lamas formou uma sociedade com Mr Rudens, cônsul inglês de Paita para procurar petróleo na fazenda de Máncora, encontrando-o em 26 de novembro de 1863. Em 1864 ambos associaram-se na Peruvian Petroleum y Comp. para explorar o petróleo. Em 1900 a exploração do petróleo em Máncora passaria para uma companhia inglesa, a The Lobitos Oilfields Ltda (Compañia Petrolera de Lobitos após 1927).

Josefa também financiou explorações em la Brea e Pariñas encontrando petróleo em 1863. Em 1872 as fazendas passaram para o seu marido, Juan Genaro Helguero. Em 1886 Helguero dividiu suas fazendas em dez Pertenencias, vendendo-as em 1888 para Herber Tweddle, que no ano seguinte formou a The London Pacific Petroleum. 130

Em 1905 o Ministério de Fomento ordenou uma reavaliação das dimensões das Pertenencias da The London Pacific Petroleum sob suspeita de que elas estavam em estado irregular, o que se fez apenas em 1914 após muita resistência da The London Pacific Petroleum. Então se descobriu que Helguero não havia regularizado a situação de suas terras em tempo hábil, que as 10 Pertenecias eram na realidade 41.641 e que tampouco haviam sido recolhidos impostos sobre esta área, que atingiam US$ 16.000.000,00 (Moya, op. cit). 131

A complexidade do problema aumentou com a presença de uma terceira parte interessada: a Standard Oil. Após a dissolução da Standard Oil of Ohio em 1911 a Standard Oil começou a procurar uma fonte de petróleo para abastecer o Extremo Oriente. Em 1914, enquanto corria o litígio com o governo peruano, a The London Pacific Petroleum arrendou as terras para a Imperial Oil (subsidiária canadense da Standard Oil). Em 1914, a Standard Oil organizou a International Petroleum Company Limited (IPC)

130 Em 28 de abril de 1873 o governo peruano promulgou uma lei estabelecendo como unidade de

extensão mineira a Pertenencia (equivalente a 40.000 m2) marcando para agosto do mesmo ano o prazo final para regularização das minas. Em 1877 foram definindos os impostos para cada unidade.

131 Hoje: US$ 323.680.000,00.

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como companhia canadense para susbstuir a Imperial Oil e assumiu a questão contra o governo peruano.

Conforme O´Conell (op.cit), em 1922 foi fixado em Paris o Laudo Arbitral Brea y Patiñas referente aos impostos atrasados estipulando que a Jersey não precisaria pagar royalties por 50 anos em troca de uma taxa fixa de US$ 0,25132 ao barril a ser paga durante 20 anos. O congresso peruano rejeitou a decisão e a questão ficou em aberto até 1960 gerando uma tensão latente entre o Peru e a IPC (Moya op. Cit). Até lá a produção de hidrocarbonetos foi controlado por três companhias: a IPC, a inglesa Compañia Lobitos e a texana Ganso Azul. Apenas em 1934 o governo organizou uma entidade estatal, a Empresa Petrolera Fiscal (EPF) que operava em campos marginais.

Em 1949 um golpe conduzia à presidência o general Odría, que pouco depois solicitou a opinião das companhias estrangeiras sobre um código petrolífero. Assim em 1952 era publicada a Lei de Odría que dava concessões de 40 a 50 anos seguindo a divisão 50% a 50%.

Em 1955, a IPC comprou 55% das propriedades da Lobitos. Um ano depois uma disputa em torno dos preços dos combustíveis elevou a animosidade dos peruanos contra a IPC. Sob o governo Manuel Prado (1956-1962) o ministro Pedro Beltrán tomou uma série de decisões favoráveis a IPC que desagradaram os peruanos. Em 1956 Béltran aprovou uma lei que obrigava a EPF vender sua frota petrolífera e entregar sua organização de vendas e produção para a IPC. Em 1960 Béltran propôs novo projeto favorecendo a IPC num momento em que a companhia praticamente monopolizava a produção, distribuição e comercialização do petróleo peruano. O projeto foi reprovado mas gerou um debate sobre a posse do petróleo que se extendeu por toda década (ver Moya op. cit).

A solução nacionalista começou a tomar forma em 1962 quando os militares depuseram Prado e entregaram a presidência a Fernando Belaúnde. Em 1963 Belaúnde enviou ao Congresso um projeto que declarava nulo o Laudo Arbitral Brea y Patiñas e solicitava que os campos Brea y Patiñas passassem para o controle da EPF. Pela Ley 14.596 o Congresso aprovava o primeiro ponto mas silenciava sobre o segundo.

Sob forte pressão do público em 13 de agosto de 1968 era firmada a Acta de Talara que passava para a EPF a posse de todos os campos petrolíferos, encerrando a longa disputa pelos campos de Brea y Pariñas. Permanecia em aberto a questão da refinaria, ainda em poder da IPC. A falta de uma página (chamada de Pagina Once) serviu de pretexto para um golpe militar que derrubou o presidente Belaúnde em 3 de outubro de 1968 (Moya op. cit). Em 9 de outubro o chefe da junta militar, general Juan Velasco Alvarado ordenou que o exército ocupasse a refinaria. A estatização foi concluída em 24 de julho de 1969 quando o Governo decretava a estatização dos ativos da EPF e da IPC na Petróleos de Perú SA (Petroperú). A estatal obteve o monopólio de todas as atividades petrolíferas com exceção da exploração e produção, mas não se proibiu a participação das empresas privadas. Foi uma empresa privada, a Gulf Oil que descobriu os campos de gás de Camisea em 1982.

A flexibilização do setor começou no Governo Fujimori em 1992 através do Decreto Legislativo 665, que rompeu o monopólio da Petroperú e deu início ao processo de privatização da estatal que a exemplo da YPFB boliviana teve os ativos divididos antes da venda. A Lei 26.221 (Ley Orgánica de Hidrocarburos) de 18 de novembro de 1993

132 Hoje: US$ 2,44.

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permitiu o livre acesso às IED’s em toda a cadeia do petróleo e criou uma nova estatal, a Perupetro SA que atua como agente regulador do setor, tendo a função de negociar, firmar e supervisionar contratos e convênios de desenvolvimento técnico e comercializar através de terceiros os hidrocarbonetos. Deve obediência aos objetivos, políticas e estratégias definidas pelo Ministerio de Energía y Minas e está sujeita a fiscalização da Contraloría General de la República e do setor Energía y Minas e ao mesmo regime tributário das empresas privadas.

O processo de privatização foi suspenso em 1996 devido aos problemas de cartelização dos preços dos combustíveis impostos pelas IED’s entretanto todas as atividades relativas aos hidrocarbonetos estão abertas aos capitais privados. Atualmente 63% da produção petrolífera está concentrado nas mãos da argentina Pluspetrol, enquanto a Repsol-YPF domina o refino. A Petroperú SA. reteve uma das cinco refinarias, o único oleoduto (Oleoducto Norperuano) e alguns terminais no interior.

Uruguai O Uruguai tem área de 176.215 km2 e 3,4 milhões de habitantes e cedo se

constatou que não possuía petróleo em quantidades comerciais. Inteiramente dependente da importação, o governo decidiu manter o controle estratégico sobre o setor petrolífero. Assim pela lei 8.764 de 15 de outubro de 1931, era criada a estatal Ancap (Administración Nacional de Combustibles, Alcohol y Portland). 133

A Ancap tem função dupla como agente administrador, regularizador e fiscalizador do setor e como agente executor do monopólio para explorar o álcool e de importar, refinar e vender petróleo, derivados e cimento.

Em 1935 com auxílio da YPF argentina foi construída a Refinaria de La Teja (única do país, localizada em Montevidéo) que passou por várias adaptações e reformas ao longo do tempo. Com a inauguração da refinaria (1937) cessa a importação de derivados, no ano seguinte a produção cobre 100% da demanda nacional. Paulatinamente a Ancap absorveu outras funções: produção de lubrificantes, asfaltos e gás liquefeito (em 1951); cimento (em 1954); geração de energia elétrica (em 1960) e exportação de gás liquefeito para o Brasil (em 1963).

A exemplo do caso chileno e paraguaio, a vulnerabilidade do país em relação aos hidrocarbonetos, o minúsculo mercado interno e a ausência de jazidas torna o Uruguai desinteressante para os IED’s. Desde 1933 a Ancap busca petróleo no Uruguai mas as tentativas em terra e na plataforma continental (desde 1968) não tiveram sucesso. Apenas em 1991 e na Argentina, a Ancap conseguiu (através da subsidiária Petrouruguay SA) produzir pela primeira vez seu próprio petróleo.

Mais interessante (em especial para o Brasil) é a posição estratégica do Uruguai na questão do gás natural. Em 1995 a Ancap iniciou estudos para introduzir o gás (procedente da Argentina) na matriz energética do país. Dois gasodutos foram planejados, o Gasoducto del Litoral (pronto em 1998, 100% da Ancap) entre a Província de Entre Ríos (Argentina) e o Departamento de Paysandú (Uruguai) e o Gasoducto Cruz del Sur SA (iniciado em 2001, a Ancap detém 20% do capital) ligará Punta Lara (Argentina) a Colônia e Monteviéo (Uruguai).

133 Portland aqui significa cimento em geral.

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Dentro do Uruguai a Ancap confiou a distribuição do gás natural ao setor privado, podendo participar em até 45% no consórcio vencedor das licitações. Duas são as únicas redes de distribuição: a Gaseba Uruguay (constituída em pela Ancap e a Acodike y Riogas em 1997), que distribui o gás exclusivamente em Montevidéo e a Conecta SA, que distribuí gás no interior do país.

Ambos os projetos são acompanhados com vivo interesse do Brasil porque viabilizariam o antigo projeto de gasoduto unindo Uruguaiana a Porto Alegre, unindo o mercado produtor argentino ao mercado consumidor brasileiro.

Venezuela Com uma área de 912.050 km2 e 25,1 milhões de habitantes a Venezuela detém a

sexta maior reserva de petróleo (77,8 bilhão de barris) e a nona maior de gás natural (4,148 trilhões de m3) do mundo, as maiores fora do Oriente Médio.

Em 1878, o governo outorgou uma concessão de 100 hectares a Manuel Antonio Pulido para procurar petróleo na Hacienda de la Alquitrana (estado de Táchira) originando a Petrolia del Táchira. Vestígios de petróleo foram encontrados, mas a indústria começou em 1922, após os achados no Lago Maracaíbo, iniciando uma acirrada disputa entre companhias, rapidamente elevando o país a status de grande produtor de petróleo. Em 1930 mais de 100 companhias operavam no país, as maiores eram a Shell, Chevron, Mobil, Texaco, Standard Oil, Sun, Gulf e Amoco.

Em 1918 foi promulgado o primeiro regulamento sobre hidrocarbonetos; em 1920 surgia a primeira lei. Em 1943, foi criada a Ley del Impuesto Sobre la Renta, que estabeleceu o princípio 50/50 (fifthy-fifthy) sobre as rendas do petróleo e serviu de modelo para as políticas petrolíferas dos demais produtores. Em 1950 criou-se o Ministerio de Minas e Hidrocarburos. Em 1960 foi criada a estatal Corporación Venezoelana de Petróleo (CVP).

Em 1971, a Lei de Reversão Petrolífera iniciou o processo de estatização, determinando quem em três anos reverteriam para o Estado às concessões não exploradas, o processo findaria em 1983 quando expiravam todas concessões. O setor de gás natural também ficaria restrito ao Estado. Em 30 de agosto de 1975 era aprovada a Lei de Nacionalização no 1.123 pondo fim as concessões e reservando ao Estado o monopólio das atividades petrolíferas. Pela Lei a 1° de janeiro de 1976 começaria a operar a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), holding de capital 100% estatal que absorveria a CVP. Desde então o setor de hidrocarbonetos é controlado por três organizações estatais: o Ministério de Minas e Energia (MME) que é poder concedente e determina as políticas do setor, a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA) e Petroquímica de Venezuela SA (Pequiven).

Além do monopólio legal a PDVSA exercia a planificação, coordenação e supervisão da indústria petrolífera e fiscalizava as normas impostas pelo MME. Foram mantidas as estruturas, as atividades, o quadro de funcionários (exceto os executivos estrangeiros, substituídos por indicados do legislativo) e as jurisdições das maiores concessionárias agora operadas por três filiais da holding: Lagoven sucessora da Creole (Exxon), operando em Cerro Negro; Maraven, sucessora da Shell, operando em Zuata e Corpoven, sucessora da Mene Grande (Gulf Oil), operando em Machete e Hamaca. Esta estrutura manteve-se até os anos 1990.

Por volta de 1985, os baixos preços e o excesso de oferta do petróleo levaram a PDVSA a rever suas estratégias em direção a expansão mundial visando fortalecer sua posição no dowstream. Em 1989, a renda do petróleo, que sustentava 80% da economia

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caiu abaixo dos 50% devido à queda dos preços mundiais. Com o país à beira da insolvência, forçou a reavaliação da política petrolífera e decidiu-se, através da Política Petrolera de Apertura reabrir o setor ao capital privado, processo acelerado entre 1992/94, quando o país enfrentou forte crise política, que acabou afetando as condições econômicas, com o aumento do déficit público, a baixa capacidade de autofinanciamento e financiamento externo restrito.

Nesta época três estratégias foram adotadas para maximizar a renda petrolífera apropriada pelo Estado. A primeira foi flexibilizar o setor, aproveitando o Art.5 da Lei Nacional do Petróleo de 1975, com objetivo de reativar certos campos, aumentar a tecnologia, aumentar a renda via taxação das interessadas e estimular a indústria local. Assim, a PDVSA foi autorizada a assinar cinco tipos de contratos com companhias estrangeiras: associações estratégicas; contratos de risco e lucros compartilhados; convênios de operação; empresas mistas e contratos de out-sourcing. Todos ainda vigoram, assim vejamos como funcionam.134

As associações estratégicas135 (contratos de até 35 anos) entre PDVSA e as companhias privadas são restritas a exploração do petróleo extra-pesado e gás natural. Um objetivo secundário é trocar tecnologia e garantir novos mercados externos para a PDVSA. Enquadradas como produtoras as companhias estão sujeitas às taxas de hidrocarbonetos e royalties, sendo o último estabelecido entre 1% e 16,6%, segundo o custo de cada campo.

Os contratos de risco e lucros compartilhados136 (de até 20 anos, podendo ser renovados por mais 19 anos) permitem associações (na forma de joint-ventures) entre a CVP137 e os interessados. Se encontrado óleo nos campos oferecidos, os custos das companhias são ressarcidos (cost oil) e os lucros divididos com o Estado (profit oil). Os convênios pagam imposto de renda de 67,7%, royalty de 16,7%, e o PEG (máximo de 50% sobre o retorno dos ativos).

Os convênios de operação (contratos de 20 anos) ou Programa de Reactivación de Campos Petroleros foram instituídos em 1992, tendo como objetivo recuperar campos marginais inativos ou abandonados pelas ex-concessionárias. Em troca do barril extraído e entregue a PDVSA, as operadoras recebem um valor pré-fixado, sendo taxadas sobre a renda (34%) e não como empresa petrolífera. A taxa imposta (67,7%) e os royalties eram pagos pela PDVSA.

134 Uma descrição pormenorizada dos arranjos pode ser encontrada em Fernandes & Silveira, 1999.

135 São três as áreas a ser desenvolvidas nesta modalidade: 1) A Bacia do Orinoco (ou Faja del Orinoco) subdivida em quatro zonas: Zuata (em parceria com a Conoco); Cerro Negro (em parceria com a Exxon-Mobil e Veba Oil); Machete (em parceria com a TotalFinaElf e Statoil) e Hamaca (em parceria com a Chevron-Texaco e Philllips). A participação da PDVSA fica entre 30 e 49,9%. 2) Plataforma Deltana, rica em gás natural. De quatro zonas, duas foram contratadas, um entre a PDVSA e a Chevron-Texaco e outro com a Statoil. Calcula-se que os dois restantes, bloco II e bloco IV tenham respectivamente, reservas de 28 milhões e 1,064 bilhão de metros cúbicos de gás. 3) Costa de Paria, estado de Sucre: onde está em andamento o Proyecto Mariscal Sucre para exploração de gás. Foram firmados contratos entre a PDVSA e a Mitsubishi e a Shell para explorar reservas estimadas de 28 milhões de metros cúbicos de gás.

136 Para explorar dez áreas: 1) La Ceiba (Trujillo, Mérida, Zulia); 2) Golfo de Paria Este; 3) Golfo de Paria

Oeste (Sucre); 4) Guarapiche (Monagas); 5) Guanare (Portuguesa); 6) San Carlos (Cojedes); 7) El Sombrero (Guárico); 8) Catatumbo (Zulia); 9) Punta Pescador e 10) Delta Centro (Delta Amacuro).

137 Em 1996 a CVP foi recriada como filial da PDVSA para gerir os contratos de risco.

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As empresas mistas são de três espécies: 1) as que visam a melhorar o setor petroquímico firmados com a Pequiven; 2) as que visam desenvolver as jazidas carboníferas de Guasare (localizadas no estado de Zulia, as maiores do país), acertados com a PDVSA Carbozulia e 3) as visam o negócio da Orimulsión138, fechados com a Bitor (filial da PDVSA).

Outros contratos firmados com as companhias estrangeiras buscam melhorar o perfil técnico das refinarias do país tanto por questões de mercado, como pelas novas exigências ambientais (Bravo,1997 in: Fernandes & Silveira, 1999) mas o pequeno mercado interno de derivados não atraiu o interesse estrangeiro por isto os investimentos ficaram restritos a PDVSA. Afinal, os contratos de outsourcing visam a atrair exclusivamente o capital privado, em projetos específicos de prestação de serviços, como de informática e telecomunicações, transporte e refino de petróleo, transporte e compressão de gás.

A segunda estratégia foi aumentar a força exportadora da PDVSA com a compra e/ou acordos de parceria em refinarias na Alemanha139, Bélgica140, Curaçao141, EUA142, Grã-Bretanha e Suécia.

A terceira estratégia é transformar a PDVSA em empresa global, expandindo-a através de aquisições no exterior. O primeiro passo nesta direção foi a reestruturação da PDVSA, centralizando as atividades. Em 1 de janeiro de 1998, a Lagoven, a Maraven e a Corpoven foram extintas, absorvidas no corpo da PDVSA e substituídas por três unidades funcionais: PDVSA Exploración y Producción, PDVSA Manufactura y Mercadeo e PDVSA Servicios.

A PDVSA ainda é 100% estatal e um colosso do setor petrolífero (e industrial) mundial: é a maior companhia da Venezuela e da América Latina, é a terceira petrolífera em faturamento, exportação de petróleo e derivados, quarta em capacidade de refino e quinta em reservas provadas e produção. No todo a PDVSA é a quarta corporação mundial do petróleo e controla 68% das reservas de petróleo da Venezuela, 25% da produção e 100% do refino, distribuição e comercialização. A importância da estatal para a economia do país é ainda mais evidente quando se sabe que o petróleo responde por

138 Óleo pesado com teor de enxofre de 30% abundante no país. Serve para queimar em termelétricas.

Orimulsion é marca registrada.

139 Quatro refinarias com a marca Ruhr Oel GmbH, parceria 50/50 entre a PDVSA e a Veba Oel, a maior

companhia alemã do setor do refino. Responde por 20% do fornecimento de derivados e petroquímicos para o setor químico alemão, o maior do mundo.

140 Quatro refinarias com a marca AB Nynäs Petroleum, parceria 50/50 entre a PDVSA e a Neste

Corporation (Finlândia): uma na Suécia (Nynasshamn), uma na Bélgica (Antwerp) e duas na Grã-Bretanha (Dundee, Escocia e Eastham, Inglaterra).

141 Uma refinaria e um terminal de armazenamento em Isla, Curaçao. Começou a operar em 1985 e atende

o mercado norte-americano, centro-americano e o caribe.

142 A PDVSA é dona da Citgo Petroleum Corporation. Sediada em Tulsa (Oklahoma) a Citgo foi comprada

em 15/09/1986 dando início a estratégia de expansão da PDVSA nos EUA. A Citgo possui 8 refinarias (em Corpus Christi e Houston, Texas; Lemont, Illinois; Paulsboro, New Jersey; Saint Croix, Virginia; Lake Charles e Chalmette, Lousiana, e Savannah, Georgia); uma petroquímica (Champlin) e uma rede de 13.000 postos com a marca PDV America. Além da Citgo a PDVSA é dona da Seaview Oil Company, companhia de refino e produção e de 50% da Uno-Vem, que possui instalações para refino, petroquímica e comercialização. No país a PDVSA responde por cerca de 20% da venda de gasolina (a maior fatia do mercado), combustível de aviação e destilados.

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96% das divisas, 80% das exportações, 60% dos tributos e 25% do PIB (de US$ 120,5 bilhões) venezuelano.

Nos anos recentes tentou-se diversificar as fontes de renda, com o turismo e agricultura, mesmo assim, o país ainda é extremamente dependente dos rendimentos das exportações do petróleo e muito vulnerável a mudanças no setor que acabam afetando sua política econômica.

Em suas linhas gerais os contratos ainda valem mas o Governo Hugo Chavéz em 1999 trouxe modificações. Pela Ley Orgânica de Hidrocarburos (LOH) DL No 1.500/02 nenhuma sociedade pode ter mais de 49% de participação do capital privado. Mas o setor do gás continua 100% aberto à iniciativa privada.

9.2 – Considerações Finais

Os hidrocarbonetos e o papel das grandes empresas estatais e do investimento externo direto são temas centrais na agenda de integração regional da América do Sul. Estão no centro dos conflitos e também das soluções. Embora muitos teóricos destaquem o excessivo poderio tecnológico e econômico concentrado em algumas empresas, poucos chegam a afirmar que as empresas subordinam os estados soberanos ou podem vir a substituí-lo. É importante discutir esta relação numa região historicamente deficitária em termos de capital e tecnologia, onde o Estado nem sempre consegue cumprir suas obrigações. Certamente, o Brasil tem seus próprios interesses na condução da integração regional, que passa pela construção e/ou reforço dos laços econômicos, culturais, políticos e de amizade na América do Sul. Neste contexto, os vínculos podem ser construídos também com o aumento dos investimentos diretos brasileiros, desde que subordinados aos interesses maiores de construção de uma efetiva União da América do Sul. Tais investimentos cruzados no setor de hidrocarbonetos e infra-estrutura energética de modo geral têm, em função de razões econômicas, estratégicas e técnicas, o poder de aumentar e aprofundar rapidamente os laços e interesses que unem os países, como o provam a rápida superação das crises entre Brasil, Bolívia, Argentina e Venezuela nos últimos anos e o avanço, não sem percalços, da integração sul-americana..

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