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1 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016 anos anos um bioma mergulhado em conitos AMAZÔNIA, Relatório Denúncia Foto: Joka Madruga

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1 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016

anosanos

um bioma mergulhado em conitos

AMAZÔNIA,Relatório Denúncia

Foto

: Jo

ka M

adru

ga

Apoio:

CARTA FRATERNASegunda Carta das Comunidades Extrativistas

Machadinho d' Oeste, Rondônia – Amazônia do Brasil19 de novembro de 2014

Por denunciar e sonhar com a oresta livre... Até a mata da várzea fumaceou

A canoa vazia no igapó cou... Tiro de espingarda nosso irmão matou

Violência e machado maldito que esquartejou... E o sonho da paz quase ndou

Dezesseis irmãos violentamente assassinados em dez anos... E o estado nada falou

E foi desta forma que nosso chão de oresta cou

Manchado com sangue do irmão seringueiro que por lá tombou

E agora tem mais oito companheiros que o crime também jurou

Sua vida e sua luta... Sua luta é a nossa luta. Nosso povo sempre o honrou

Mas, o Estado inerte. Não se manifestou

Haverá tempo de paz...

Como a natureza, a gente se refaz... E anima quem sempre amou.

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anosanos

AMAZÔNIA,um bioma mergulhado em conflitos

Articulação das CPT’s da Amazônia

Relatório Denúncia

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Diretoria da CPT:D. Enemésio Ângelo Lazzaris - PresidenteD. André De Witte - Vice-presidente

Coordenação Executiva Nacional:Jeane BelliniPaulo César MoreiraRuben Siqueira Thiago Valentim

Equipe de redação:Articulação das CPT’s da AmazôniaCPT AcreCPT AmapáCPT Araguaia/Mato GrossoCPT Araguaia/TocantinsCPT Itaituba/ParáCPT Lábrea/Amazonas CPT MaranhãoCPT RondôniaCPT RoraimaCPT Santarém/Pará

Assessoria: Elder Andrade de Paula

Edição e revisão:Antônio CanutoElvis MarquesJeane Bellini

Foto Capa:Joka Madruga

Diagramação:Vivaldo da Silva Souza

Impressão:Gráfica e Editora AméricaFone: (62) 3253-1307

Apoio:Misereor

Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Secretaria Nacional - Rua 19, nº 35, 1º andar – Centro Caixa Postal 749.74001-970 Goiânia-GO Fone: (62) 4008-6466 Fax: (62) 4008-6405 E-mails: [email protected]@cptnacional.org.br Site: www.cptnacional.org.br

Comissão Pastoral da Terra é um organismo ligado à Comissão para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, da CNBB. A CPT é membro da Pax Christi Internacional.

A Articulação das CPT’s da Amazônia é um projeto que reúne os nove regionais da Amazônia Legal da Comissão Pastoral da Terra.

Amazônia, fevereiro de 2016

Expediente

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Relatório-Denúncia mostra “fogo de monturo” .................................................................................................7Amazônia, conflitos tiram o brilho do verde ......................................................................................................9

RELATÓRIO-DENÚNCIA DA AMAZÔNIA

AmapáBoa Vista da Pedreira, justiça manipulada ........................................................................................................12

AcreA luta dos seringueiros do Riozinho e os Planos de Manejo Florestal. ..................................................................................................................................................23

AmazonasA comunidade de Lusitânia, o fim de um império ..........................................................................................30

MaranhãoConflito no quilombo Charco, uma novela emmuitos capítulos ....................................................................................................................................................39

Mato GrossoAssentamento na mira de quadrilha especializadaem grilagem de terras...........................................................................................................................................46

ParáConflito gerado por desmandos de funcionários do INCRA .........................................................................51

RondôniaA difícil retomada das terras públicas na Amazônia: O conflito dos assentamentos do Flor do Amazonas em Candeias do Jamari .............................................59

RoraimaMadeireira no caminho de comunidade camponesa.......................................................................................67

TocantinsComunidade Vitória: Terra Legal alimenta conflito ........................................................................................73

SUMÁRIO

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No momento em que finalizamos a leitura deste Relatório-Denúncia, lembramo-nos da ex-pressão “fogo de monturo” usado pela então pre-sidente do Sindicato dos Trabalhadores e Traba-lhadoras Rurais (STTR) de Xapuri, Dercy Teles. Ela a utilizou em uma conversa que mantivemos em 2013, para explicar os crescentes conflitos so-ciais na Reserva Extrativista (Resex) Chico Men-des, no período recente. De acordo com Dercy, os ditos conflitos não surgiram repentinamente, estavam em curso há algum tempo, assim como “fogo de monturo”, por isso não eram vistos ou percebidos externamente.

Não seria exagero afirmar que atualmen-te esse tipo de “fogo de monturo” se espraia por toda Amazônia brasileira. Nesse sentido, devemos ressalvar, inicialmente, a inestimável importân-cia dessa iniciativa da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no sentido de construir este Relatório sobre os conflitos por terra/território na região amazô-nica. Os casos escolhidos para ilustrar a natureza dos conflitos em cada estado dão uma ideia desse novo ciclo de espoliação na virada do século XX para o XXI.

Entre as semelhanças com o ciclo anterior desencadeado pela ditadura militar (1964-1984) merece destaque a centralidade das transgressões da legislação como conduta padrão do capital. A primeira transgressão se processa na grilagem da terra para fins de negócio, e o passo seguinte é alte-rar a lei para legitimar a transgressão anterior. En-tre outros, o Programa Terra Legal tem se prestado a esse papel, conforme mostrado neste Relatório.

Relatório-Denúncia mostra “fogo de monturo”

A “inovação” em relação ao ciclo expansio-nista comandado pela ditadura militar pode ser apontada nas políticas que favoreceram o avanço da mercantilização da natureza para além da apro-priação privada da terra. A lei 11284/2006, que instituiu a concessão de florestas públicas para ex-ploração madeireira, bem como outras desregula-mentações que abriram as portas para exploração florestal madeireira em unidades de conservação como as Resex, ilustram exemplarmente essas ou-tras formas de expropriação dos bens comuns.

Os conflitos com as madeireiras aqui re-portados mostram exemplarmente os efeitos per-versos dessa frente de expansão legitimada pela ideologia do “desenvolvimento sustentável”. Vale ressalvar que as madeireiras, como as citadas nos casos do Riozinho (Acre) e Cujubim (Roraima), atuam legalmente via “Planos de Manejo Florestal Sustentável”. Cabe lembrar ainda que este tipo de exploração tem sido amplamente defendido por uma vasta rede de ONGs ambientalistas atuantes em múltiplas escalas. Um dos argumentos utiliza-dos por elas é o de que diminuiriam os conflitos e conservariam as florestas... O pior de tudo é que muita “gente boa” acreditou e segue acreditando nessa quimera.

Concorre ainda para a vitalidade desta pu-blicação, tanto o fato de ter sido elaborado por agentes da CPT que vivenciam cotidianamente o drama das comunidades camponesas envolvidas nesses conflitos, quanto o de fazer ecoar as vozes desses sujeitos desde a Amazônia profunda. In-sistimos nessa valoração porque nas duas últimas

“O fogo vai se alastrando devagarinho por baixo e nem se percebe a fumaça, por isso ninguém vê, quando aparece já quei-

mou tudo”. (Dercy Teles de Carvalho)

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décadas essas vozes dos “de baixo” foram paulati-namente sufocadas ou silenciadas.

Pior ainda, parte expressiva das represen-tações camponesas atuantes na Amazônia1 resig-nou-se com esse confisco da voz e o seu gradativo deslocamento da condição de sujeitos para a de objetos no decorrer desse processo. Ademais de assimilarem a ideologia do “desenvolvimento sus-tentável” e as políticas de privatização e mercanti-lização da natureza legitimadas sob dito arcabouço ideológico, aceitaram que “outros” −, sobretudo grandes ONGs conservacionistas e suas interme-diárias locais bem como diversos agentes institu-cionais − passassem a falar em nome desse cam-pesinato.

Também por essa razão, alteraram-se as condições do enfrentamento, das lutas de resis-tência em cada frente de expansão do capital. Neste Relatório-Denúncia foram apontadas três frentes predominantes: exploração da madeireira, pecuária e monocultivos. Enquanto os interesses representados por essas frentes lograram o alar-gamento do seu poder e influência no aparato estatal, a maioria das comunidades camponesas em luta perderam seus lastros de apoio existentes anteriormente por parte de suas representações de caráter mais abrangente, como o sindicalismo rural.

Dos nove conflitos reportados nesta pu-blicação, os sindicatos de trabalhadores rurais só aparecem como aliados em três casos. Aparente-mente de forma tímida. Chama atenção, inclusive, sua ausência no caso do conflito no Riozinho, caso do estado do Acre. Como sabemos, em terras acre-

anas o sindicalismo rural foi o protagonista central das lutas de resistência pela terra/território entre as décadas de 1970-1990.

Devemos chamar atenção, todavia, para o fato de que também nesses conflitos reportados neste Relatório aparecem indícios de busca de su-peração dessas ausências. Eles aparecem com mais nitidez nos conflitos de Charco (Maranhão) onde a luta quilombola procura desobstruir os caminhos interditados, participando de novas iniciativas como a da formação do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM). Aparecem também nos casos da Comunidade Vitória (Tocantins), via Articulação Camponesa, e o Assentamento Flor do Amazonas (Rondônia) onde se constrói uma arti-culação com diversas organizações e movimentos sociais urbanos.

Em suma, como bem intuiu o IV Congres-so Nacional da CPT, realizado em julho de 2015 em Porto Velho, Rondônia, “Faz escuro, mas eu canto”. Oxalá que no “fogo de monturo” espraia-do em múltiplos conflitos por terra/território em “Nuestra Amazonía”, a ousadia e imaginação cria-tiva dessas comunidades em luta sejam capazes de fazer “cantar no escuro” e nesse canto de rebeldia reavivar as chamas da esperança. Por isso e muito mais, vale a pena uma leitura atenta de mais esta importante contribuição da CPT, tanto para os que permanecem em luta pela Reforma Agrária quanto para os estudiosos do tema. Desejamos uma boa leitura!

Elder Andrade de PaulaRio Branco, novembro de 2015

1 Destacamos entre essas representações especialmente o Sindicalismo Rural e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).

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A Amazônia é o maior bioma do Brasil. Ge-ograficamente é formada pelos estados da região Norte: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia e Tocantins. Mas o bioma avança para os estados do Mato Grosso e Maranhão. Por este mo-tivo e para fins administrativos e de planejamento econômico, a Lei N.º 1.806 de 1953, incorporou parte dos territórios do Maranhão e do Mato Gros-so à Amazônia, criando assim o que se chamou de Amazônia Legal. Este território tem uma área de cerca de 5.217.423 km², 61% do território brasilei-ro.

O processo do chamado desenvolvimen-to da Amazônia é um exemplo mais que claro de como ele se deu como reprodução do sistema colo-nialista que presidiu a formação do Brasil, a partir da invasão portuguesa em 1500.

Essa reprodução ficou escancarada, em 1970, quando o presidente Médici, ao lançar a aber-tura e construção da Transmazônica, afirmou que a estrada tinha como objetivo “o de levar homens sem terra, para uma terra sem homens”. As popu-lações locais, indígenas, posseiros, ribeirinhos, se-ringueiros e toda uma infinidade de comunidades pré-existentes, não existiam, não contavam para nada. E desde esse período até os dias de hoje ain-da são consideradas um entrave e empecilho ao dito desenvolvimento e progresso.

Neste mesmo ano, em 9 de julho de 1970, pelo Decreto nº 1.110, o governo militar promoveu a fusão do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) com o Instituto Nacional de Desenvolvi-mento Agrário (INDA), criando o Instituto Nacio-nal de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O governo tornava explícito que seu projeto para o Brasil e, sobretudo para a Amazônia, não era a reforma agrária, mas a ‘colonização’, que ficou es-tampada no nome do novo instituto.

Amazônia, conflitos tiram o brilho do verde

Milhares de famílias sem terra foram alicia-das e estimuladas a irem para a Amazônia, esva-ziando desta forma áreas onde a pressão por refor-ma agrária era maior, o Nordeste e o Centro-Sul.

Mas a transferência de famílias sem terra para a Amazônia era um pequeno detalhe do pro-jeto colonial de ocupação da Amazônia. A gran-de ocupação seria feita pelo capital. Para isso foi criada a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que oferecia fartos e genero-sos incentivos fiscais para as empresas que se dis-pusessem a investir na Amazônia. Elas poderiam reter 50% do imposto de renda devido, desde que o investissem na região. Com isso, uma corrida gi-gantesca se deu atrás destes incentivos, sobretudo para o Norte de Mato Grosso, Norte de Goiás, hoje Tocantins, e Sul do Pará. Assim se formaram imen-sas fazendas, de centenas de milhares de hectares de terra. Era o carro forte da nova colonização da Amazônia.

As populações locais pré-existentes passa-ram a sofrer as mais diversas formas de pressão para abrir caminho para o ‘desenvolvimento e o progresso’ que chegava do Sul e do Sudeste para ‘redimir’ a Amazônia do ‘atraso’ em que vivia.

Estava instaurado um novo período colo-nial no Brasil, a Amazônia se tornava a mais nova colônia do Brasil.

Esta política colonialista foi se solidifican-do em diversas frentes de expansão do capital. Em seu horizonte não estava o ‘desenvolvimento’ local, mas sim a extração das quase inesgotáveis riquezas que a natureza proporcionava - uma das caracterís-ticas mais marcantes do sistema colonial.

Assim foi apoiada e incentivada a explora-ção madeireira, inclusive com a criação dos proje-tos de manejo florestal; a mineração que avançou a passos largos sobre territórios de comunidades tra-

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dicionais; a construção de hidrelétricas para forne-cer energia para a exploração mineral eletrointen-siva e para o abastecimento do Centro-Sul do país. Para garantir tudo isso, a abertura e o asfaltamento de rodovias, a criação de hidrovias, etc.

Esta política é a fonte clara de onde surgi-ram os incontáveis conflitos por terra que levaram os bispos e prelados da Amazônia, em histórico encontro há 40 anos, em Goiânia, Goiás, a propo-rem a criação de uma pastoral que acompanhasse homens e mulheres de comunidades inteiras que sofriam as mais variadas formas de agressão aos seus direitos e dignidade. Era criada a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Desde o início, diante da violência presente, a CPT se propôs a registrar fatos e números da mesma para que se tornassem instrumento de ação e resistência para as próprias comunidades. A partir de 1985, o relatório anual Conflitos no Campo Brasil passou a ser divulga-do para que a sociedade brasileira pudesse tomar consciência do que acontecia em todo o Brasil, mas de modo particular na Amazônia.

Os conflitos e a violência contra os traba-lhadores e trabalhadoras do campo que aconte-ciam e ainda acontecem em todo o Brasil se con-centram de forma expressiva na Amazônia, para onde avança o capital, tanto nacional quanto in-ternacional.

O professor da Universidade Federal Flu-minense (UFF), Carlos Walter Porto-Gonçalves, analisando os dados dos registros feitos pela CPT no período de 25 anos da publicação de Conflitos no Campo Brasil, constatou o seguinte:

De 1985 a 2009, a Amazônia concentrou 63% do total dos assassinatos no campo; 39% das famílias expulsas pelo poder privado; 52% do total dos camponeses presos no país.

E o acento dado à ‘Colonização’ em detri-mento da reforma agrária fica claro na compara-ção feita entre as ações de ocupação de terra pelos

movimentos sociais e os assentamentos feitos pelo INCRA.

De 1987 a 2009, na Amazônia se deram 15% das ocupações de terra, enquanto 47 % ocorreram no Centro-Sul, e 38% no Nordeste. Porto-Gonçal-ves cita:

“O que soa mais contraditório, porém, é que mesmo a Amazônia apresentando o menor índice de ocupações de terra, nela é que o governo assentou 70% das famílias, no período de 2003 a 2006, como analisaram o professor Paulo Ro-berto Alentejano e Tiago Lucas Alves da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Segundo os autores, isso “configura um descompasso en-tre as ações dos movimentos sociais na luta pela terra e a política levada a cabo pelo governo”[...]“Evidencia-se, assim, que a política agrária do governo Lula não só protege o latifúndio/agronegócio onde este se encontra mais cristaliza-do, o Centro-Sul, mas também apoia sua expansão em direção à Amazônia”. [...]“Apoia através da criação de assen-tamentos fantasmas, legalização da gri-lagem etc”.

Dados dos últimos anos publicados em Conflitos no Campo Brasil reafirmam a concentra-ção da violência na Amazônia.

Na Amazônia, em 2013, foram registrados:• 20 dos 34 assassinatos de trabalhadores e

trabalhadoras do campo;• 174 das 241 pessoas ameaçadas de morte; • 63 dos 143 povos do campo presos; • 129 das 243 pessoas agredidas;• 88 das 141 ocorrências de trabalho escravo. E na Amazônia, em 2013, cerca 5.530.036

hectares do total de 6.228.267 hectares de terra es-tavam envolvidos em conflitos por terra.

2 Alentejano, Paulo; Alves da Silva, Tiago Lucas – Ocupações, acampamentos e assentamentos: o descompasso entre a luta pela terra e a política agrária do governo Lula – in Conflitos no Campo Brasil 2008, pg 128-134,2009 - CPT.

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No ano de 2014 os números mostram situa-ção semelhante. Na Amazônia, se computaram:

• 24 dos 36 dos assassinatos registrados no campo brasileiro;

• 38 das 56 tentativas de assassinato;• 150 das 182 pessoas ameaçadas de morte;• 71 das 131 ocorrências de trabalho escra-

vo;• 7.178.743 hectares do total de 8.134.241

hectares de terra envolvidos em disputa. Em 2015 estes não só se confirmam, mas

adquirem uma dimensão, pode-se dizer, espan-tosa.

• Dos 51 assassinatos registrados no Bra-sil, 48 foram na Amazônia, sendo 21 em Rondônia, 19 no Pará, 6 no Maranhão, 1 no Amazonas, e 1 em Mato Grosso.

Na Amazônia ocorreram também:• 30 das 59 tentativas de assassinato;• 93 das 144 pessoas que receberam amea-

ças de morte; • 66 dos 80 camponeses presos;• E dos 21.374.544 hectares em conflito,

20.000.853 estão na Amazônia.Dada importância que a Amazônia tem

adquirido cada vez mais no cenário nacional e in-ternacional e pelo fato de lá se concentrar grande parte dos conflitos e da violência contra os ho-mens e mulheres do campo, a CPT decidiu, em 2009, criar uma Articulação das CPT’s que atuam nos nove estados da Amazônia, para, juntas, so-

marem forças, para realizarem uma leitura mais adequada da realidade da região, buscando cami-nhos e instrumentos novos para enfrentar os de-safios apresentados.

Esta publicação quer ser uma amostra dos conflitos e suas causas que diariamente se vivem na Amazônia. Em cada estado foi escolhido um con-flito que, de certa forma, representa, ainda hoje o mundo dos conflitos e da violência em que estão inseridas as comunidades do campo.

São conflitos que envolvem os quilombolas, no Maranhão; conflitos em que a Justiça é manipu-lada ao prazer de empresas para expulsão de famílias de posseiros, no Amapá; conflitos em que se per-petuam formas arcaicas de exploração do trabalho, no Amazonas; conflitos provocados no processo da extração da madeira, em Roraima; conflitos provo-cados pela regularização de terras pelo Programa Terra Legal, no Tocantins; conflitos provocados por verdadeira quadrilha de negociação de terras, no Mato Grosso; conflitos gerados pela corrupção de funcionários de órgãos públicos, no Pará; conflitos nascidos da falta de empenho em recuperar terras públicas, em Rondônia; e conflitos inseridos em áre-as de planos de manejo florestal, no Acre.

A Comissão Pastoral da Terra na Amazônia quer que esta publicação seja um Relatório-De-núncia para que as diferentes situações de conflito provoquem nas autoridades competentes medidas firmes e eficazes para sanar os males que estão à raiz dos mesmos.

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12 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016

As terras do Amapá são a bola da vez do ex-pansionismo ilegal, devastador e violento do cha-mado agronegócio. Aconteceu e está acontecendo no resto do país, e o Amapá não podia ficar fora. A fome e a ganância do capital agrário e minerário são insaciáveis.

A Comissão Pastoral da Terra no Amapá (CPT-AP) vem denunciando o aumento de confli-tos por terra no estado desde 1995 (expansão da monocultura do eucalipto), com um forte recru-descimento a partir de 2004 (expansão do agrone-gócio de grãos) e em 2006 (expansão da mineração e do desmatamento).

O aumento da violência atual é causado, também, pela supervalorização econômica das terras agricultáveis do Amapá. Só como exemplo: em 1995 a empresa Chamflora adquiriu 273.000 hectares de terras pagando um valor médio de 100 reais por hectare. Não era bom negócio vender. Hoje as terras estão sendo vendidas por 3.000 ou 4.000 reais o hectare e até mais. Os herdeiros dos

Amapá

Boa Vista da Pedreira, justiça manipulada

antigos “proprietários” estão querendo fazer uma “negociação” vendendo as terras para os atores do agronegócio.

Esta é uma das causas que torna mais difí-cil, por exemplo, o reconhecimento e a criação de Territórios Quilombolas: muitos filhos de quilom-bolas que já têm uma vida feita na cidade e não pretendem voltar para o interior, não querem que os pais aceitem o Território, pois neste caso as ter-ras não poderão mais ser vendidas, como gosta-riam de fazer seus herdeiros.

De lá para cá os conflitos por terra e a de-vastação ambiental aumentaram em proporção ge-ométrica e não há sinal de que possam diminuir. Pelo contrário, a cegueira, a incompetência e/ou a conivência dos órgãos públicos, em nome de um pretenso desenvolvimento do estado, continuam favorecendo esta situação de grave ilegalidade.

O Amapá tem uma realidade fundiária muito diferente dos demais estados da Amazônia Legal: no Amapá não existem terras “devolutas”.

A floresta Amazônica no Amapá derrubada. Imagem de uma área de manejo florestal

Foto

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13 | Relatório Denúncia da Amazônia | 2016

No estado todas as terras já foram descriminadas e estão matriculadas em nome de particulares, pes-soas físicas ou jurídicas, ou em nome do poder pú-blico municipal, estadual ou federal.

As terras registradas em nome de pessoas físicas ou jurídicas somam cerca de dois milhões de hectares (1.967.516,92). Os mais de 12 milhões de hectares restantes (12.313,941,02) são matri-culados em nome do poder público, sobretudo da União (Ibama, Funai, Incra, Exército).

A ocupação de terras públicas, jurídica e geograficamente definidas, é crime que deve ser punido, conforme o art. 20 da lei n. 4947. Pelo art. 5 da lei 11.952, a ocupação das terras públicas é permitida só para quem delas precisar para seu sustento e o de sua família. Terra pública é terra de trabalho e não terra de negócio. Só pode ser posseiro quem não tem nenhum outro imóvel ru-ral em todo o território nacional. Quem já é dono ou posseiro de um terreno no Brasil, seja lá onde for, vira criminoso ao ocupar terra pública e deve ser punido, como manda a lei. Um posseiro não pode vender sua posse. A compra e venda de terra pública é proibida terminantemente por lei. É cri-me: o vendedor e o comprador devem ser punidos conforme a lei.

Por lei, o agronegócio extensivo e intensivo, como se entende normalmente, é proibido em ter-ras públicas.

No entanto, no Amapá o agronegócio está baseado na ocupação ilegal de terras públicas e/ou na compra ilegal de posses, muitas vezes por meio de pressões e ameaças. Sem esta grilagem não ha-veria agronegócio extensivo no estado. Isso acon-tece porque as autoridades fecham os olhos diante das irregularidades por identificarem no agrone-gócio um fator de progresso para o Estado, pela omissão e conivência dos órgãos fundiários e pelo desconhecimento da legislação agrária por parte dos operadores de Justiça.

Durante décadas a CPT denuncia estes crimes ao Ministério Público Federal (MPF) e/ou estadual e à Polícia Civil e/ou Federal. Não há informações de que tenha sido ajuizada uma

ação criminal sequer por ocupação ilegal de ter-ras públicas. Também a Advocacia Geral da União (AGU), responsável por defender o patrimônio público, dificilmente aciona criminalmente os ocupantes ilegais dessas terras. Quase sempre estes órgãos limitam-se a ações civis possessórias que se prolongam por tempos intermináveis.

Um caso emblemático

O caso da localidade de Boa Vista da Pe-dreira, na rodovia AP-070, distante 50 km de Ma-capá, é um exemplo do avanço do agronegócio na região e de como são tratadas as comunidades pe-las diferentes esferas do poder público, de modo particular pelo Judiciário.

Em oficio dirigido ao presidente do Tribunal de Justiça do Amapá (TJ-AP), padre Sisto Magro, da CPT Amapá, faz uma síntese do que tem ocorrido no estado, pedindo providências. Vejamos:

Em abril de 2013 a empresa Agrocerrado se instalou na localidade do Curicaca, município de Itaubal do Piririm, e começou a pretender vá-rias áreas na AP-070, entrando em conflito com os posseiros residentes no local. Essas áreas totalizam 4.000 hectares que foram divididos em lotes de cer-ca de 700 hectares, cada um em nome de pessoas ligadas ao senhor Gilberto Laurindo e que nem moram na região.

Em nome de Henry Gabriel Fróes Laurindo esta a fazenda São Gabriel; no de Anibal Manoel Laurindo, a fazenda Iguaçu; no de Gregório Bala-rotti Laurindo, a fazenda Laurindo; no de Larissa Viana Laurindo, a fazenda Paraíso; no de Gilberto Laurindo, a fazenda Campo limpo; no de Eliane Bernardes dos Santos (esposa de Gilberto), a fa-zenda Maravilha; e no de Gabriela Balarotti Lau-rindo, a Fazenda Água Limpa.

Entre abril e agosto, os moradores que já ocupavam há tempos essas terras tiveram suas ca-sas queimadas mais de uma vez. Foram registrados Boletins de Ocorrência sobre estes fatos que não mereceram a mínima consideração das autorida-des policiais.

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Ao mesmo tempo, a Agrocerrado moveu ação judicial de reintegração de posse na comarca de Ferreira Gomes, contra os antigos moradores, já que Curicaca pertence ao município de Itaubal do Piririm e por isso a comarca competente é a de Ferreira Gomes. Na petição inicial se diz que as pessoas invadiram a fazenda São Gabriel cuja lo-calização é ao lado direito da AP-070, à altura do km 64.

A empresa conseguiu que o juiz de Ferreira Gomes, Dr. Kopes, fosse pessoalmente fazer ins-peção do local e o acompanhou nesta atividade. O juiz constatou que as construções eram novas (as antigas tinham sido queimadas!). E foi conduzido dentro e fora dos limites da São Gabriel nos quilô-metros 64, 65, 66 ,67, 68 e 71, inclusive chegando a atravessar a AP-070. E em base a esta inspeção deferiu liminar de reintegração de posse, contra 15 famílias, que lá tinham suas posses.

Em outubro, a liminar foi cumprida. Trato-res destruíram as casas e devastaram as roças. Uma empresa de se segurança foi contratada para a vi-gilância da área tendo como sócio-representante o senhor Celso Carlos dos Santos Júnior. Alguns dos funcionários dessa empresa são conhecidos por sua violência fora do comum.

Os posseiros expulsos recorreram a diver-sas instâncias. O Ministério Público Federal aca-bou determinando que o Ministério do Desen-volvimento Agrário (MDA) realizasse inspeção na área. O relatório do agrimensor, Wilson Mota Figueiredo, constatou que na área da São Gabriel, objeto da ação judicial, só havia efetivamente dois moradores. Os demais se localizavam fora da São Gabriel.

Assim, de posse dessa informação do MDA, o juiz emitiu sentença de reintegração dos agricul-tores expulsos, às velhas posses deles e o senhor Celso Carlos à Fazenda São Gabriel.

A empresa não se deu por vencida e, em setembro de 2014, entrou com ação de interdito proibitório contra os mesmos agricultores afir-mando que eles, quando houve reintegração em favor do Celso Carlos na fazenda São Gabriel,

teriam saído da São Gabriel e invadido as áreas próximas de propriedade de outros parentes do dono da São Gabriel.

O juiz, doutor Kopes, que conhecia bem a questão indeferiu a liminar. Assim, em dezembro de 2014, finalmente os moradores foram reintegra-dos às suas antigas posses.

Aproveitando-se das férias do doutor Kopes, em janeiro de 2015, quando foi substituí-do pelo doutor Heraldo Nascimento, cuja simpatia pelo agronegócio é conhecida por todos, a empresa voltou a atacar pedindo a conversão do interdito proibitório em reintegração de posse. O juiz He-raldo, imediatamente, em 19 de janeiro de 2015, acatou a petição e marcou audiência de justificação para o dia 6 do mês seguinte.

Já no dia seguinte, porém, a empresa peti-ciona para que a audiência seja convertida em ins-peção judicial no local de conflito com a máxima urgência por ter invasores recentes e pela época do plantio estar próxima.

Com incrível rapidez, já no dia 2, a petição foi deferida e foi marcada a data de 26 de janeiro para inspeção judicial. Logo, em 2 de fevereiro, o Diário de Justiça do Estado (DJE) publicou o rela-tório da vistoria.

O Padre Sisto esteve presente no ato da ins-peção. E no ofício que enviou ao presidente do Tri-bunal de Justiça do estado, ele destaca o que viu:

“Pude notar bastante proximidade entre o juiz Heraldo, o senhor Celso Carlos quali-ficado como posseiro da área, mas que eu nunca tinha visto naqueles lugares até en-tão, os advogados da parte autora e o se-nhor Gilberto Laurindo que ainda disse que a própria CPT já 10 anos atrás tinha tomado consciência da presença dele no lo-cal. Na verdade ele se esqueceu de dizer que a CPT tinha mencionado já 10 anos atrás a presença dele como invasor de terras públi-cas naquela área. Mas no relatório do juiz Heraldo só entrou a primeira parte”.

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Depois ele analisa parte por parte do rela-tório:

Relatório: “A referida Maria Saraca mostrou um local onde supostamente seria sua casa derruba-da; todavia perguntada pelo juiz se teria algum docu-mento de energia ou mesmo se no local haveria poço, a mesma respondeu negativamente. A referida senho-ra mostrou que na parte de trás seria uma plantação de coqueiros, contudo foram avistados cerca de cinco pés. Segundo Maria Saraca, foi reintegrada nessa área e a mesma teria 100 hectares. No local foi observado algumas tábuas e restos de telha brasilit”.

Padre Sisto: “Justamente eram os restos da casa da dona Maria para a qual não era conve-niente ter poço em área arenosa, ainda mais que atrás da casa dos filhos dela do outro lado da es-trada tem uma lagoa natural onde a água é mais limpa e garantida. E para dizer que ela tinha uma casa era preciso ter talão de energia? Os cinco pés de coqueiro foram os que sobraram da destruição da empresa que fazia questão a cada reintegração de destruir tudo para não deixar nada visível. De

qualquer maneira, a casa ainda em pé da dona Ma-ria Saraca da qual eu bati foto antes da destruição está anexada ao processo”.

Relatório: Área ocupada por Mirian: “A se-nhora Mirian não estava”.

Padre Sisto: “Ela estava sim. Eu estava per-to dela. Lembro-me de ter apresentado a mesma ao secretário do doutor Heraldo que estava ocupa-do em bater foto da casa da Mirian com um sim-ples celular. Ela chegou quase na mesma hora do juiz em companhia do advogado dela, Marinilson Amoras Furtado”.

Relatório: “No local encontramos uma casa que foi construída há pouco tempo sem nenhum mo-rador e outra em fase de início de construção. Não há poço nem sinais de plantações antigas”,

Padre Sisto: “Se o pessoal foi reintegrado no mês de dezembro de 2014 que tipo de constru-ção antiga ou plantação antiga o dr. Heraldo espe-rava encontrar em janeiro de 2015? E o velho poço, embora entupido pela empresa Agrocerrado, está lá sim. Como também bem próximo ao lugar onde

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Comunidade Boa Vista da Pedreira tendo que recosntruir casas após conflitos

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foi erguida a casa nova se encontram restos de te-lha brasilit e restos de madeira sinais da casa des-truída pela Agrocerrado em outubro de 2013 e um cajueiro de grande porte que nem o ‘correntão’ da empresa conseguiu derrubar e ainda hoje está lá”.

Relatório: Área ocupada por Sueli: “Nesta área há uma edificação nova de dois pavimentos e foram avistados alguns animais domésticos. Não há indicativo de que resida alguém na casa que por si-nal é bem grande”.

Padre Sisto: “Como é que pode residir al-guém numa casa que ainda não está terminada? Como falado pelo próprio juiz Heraldo a casa é bem grande e mesmo sendo de madeira, de de-zembro de 2014 a janeiro de 2015 a casa ainda não pôde ser terminada. E ainda assim tem gente que já fica lá com medo de roubarem as galinhas: é o Alan com a esposa e às vezes o Benedito com a família”.

Relatório: Área ocupada por Raimunda Morais. “Nesta área há uma edificação nova, sem moradores, ainda em fase de construção. Não há plantações. A dona Raimunda mostrou uma edifi-cação antiga, cerca de 3 km de distância como sendo sua antiga morada. No entanto tal fato foi contesta-do por Gilberto Laurindo que acompanhava a ins-peção, dizendo esse senhor que a referida edificação era da antiga dona de quem comprou a área”.

Padre Sisto: “Vale o mesmo que os outros; se a dona Raimunda foi reintegrada em dezembro como é que a atual edificação pode ser velha em ja-neiro? No entanto tem a edificação velha dela 3 km mais abaixo como o próprio juiz relata, casa que abrigava ela e os filhos. Casa velha, de alvenaria e madeira que não pôde ser destruída completamen-te pela empresa. Por isso, desde a primeira inspe-ção judicial realizada com o juiz Kopes, o Gilberto Laurindo afirma ter comprado de outra senhora. Afirmação totalmente falsa, pois o mesmo Laurin-do não apresenta sequer recibo de compra e venda da casa, recibo que por si só ainda seria insuficien-te, pois teria que ter título definitivo da área ma-triculado em cartório para alegar compra legal do terreno e indenização da benfeitoria”.

Relatório: “Pelo que se observou à exceção

de Maria Saraca todos os outros ocupantes das ter-ras são parentes de dona Raimunda Morais, sendo Sueli sua nora, Otávio seu sobrinho, Miriam tam-bém tem parentesco e quem está à frente das con-versações é o senhor Rubens, que por várias vezes foi repreendido pelo Juiz”.

Padre Sisto: “Isso é verdade em partes: do lado direito da AP-070 encontramos sim só pes-soas ligadas à dona Raimunda. De outro lado, a velha casa é mesmo bastante antiga e os filhos da mesma Raimunda uma vez adultos tem sim o di-reito a requerer terra pública nas proximidades da mãe. Inclusive cabe dizer que nem todos os filhos, sobrinhos, e netos dela, presentes na área, têm requerimento de terra pública. Muitos moram e trabalham junto com os parentes que têm reque-rimento. No entanto, do lado esquerdo da AP-070 não há parentes dos Morais. A Miriam não tem parentesco algum com a família Morais, como é afirmado no relatório. Ou a Maria Lúcia, Maria Saraca ou algum outro ocupante do lado esquer-do da AP 070”.

É de se estranhar que no relatório final o doutor Heraldo tenha feito essa consideração de parentesco dos Morais como a sugerir que lá todo mundo é testa de ferro da dona Raimunda e não te-nha notado que a área pretendida por Celso Carlos é declaradamente de mais de 4000 hectares divi-didos entre vários membros de uma única famí-lia: justamente a família Laurindo, cujo expoente maior, Gilberto, estava presente durante inspeção e tudo o que ele falou foi colocado à risca no rela-tório final.

No relatório aparece que várias vezes um membro da família Morais, Rubens, foi repreendi-do pelo juiz por ter manifestado descontentamento com a condução da inspeção. É de se estranhar a posição do Rubens visto o relatório final da inspe-ção? É que desde cedo apareceu claro como teriam se encaminhado as coisas. E ainda Celso Carlos achou de “tirar uma onda” com a minha cara ba-tendo no meu ombro e dizendo: “Eh padre, sinto muito”.

Depois de tudo isso, a empresa, vendo que

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o juiz titular, Dr. Kopes, estava retomando seu pos-to na comarca, após o recesso, apresentou docu-mentação mostrando que a área em litígio estava no município de Macapá e solicitou a transferência do processo para a capital. Pedido imediatamente acolhido. O processo então passou para a quarta vara cível de Macapá. Pelo menos a área ocupada por dona Maria Saraca está município de Itaubal.

Chegado o processo à quarta vara cível, foi julgado pela juíza substituta, Fabiana da Silva Oliveira. Baseando-se nas informações oferecidas pelo laudo do juiz Heraldo nos autos do processo 0000079-95.2014.8.03.0001 e mostrando total des-conhecimento da realidade dos fatos, em 27/5/2015 deferiu liminar de reintegração de posse em favor de Celso Carlos. “(Celso Carlos) onde desenvolve um projeto de agronegócio, com plantio mecanizado de soja e milho, supostamente invadidas pelos réus no dia 2/12/2014.......Pois bem. Quanto à prova da posse dos imóveis, bem como do esbulho possessó-rio, tenho que está devidamente comprovada nos autos, sobretudo porque no dia 26/1/2015, o Juiz da

Comarca de Ferreira Gomes, em inspeção judicial, constatou a seguinte situação: “(...) 1. ÁREA OCU-PADA POR MARIA SARACA:........”

A juíza, porém, não prestou a devida atenção ao relatório enviado pelo fórum de Ferreira Gomes e anexado ao mesmo processo em data 4/2/2015, pois nele consta que “em 9.12.2014 o autor Celso Carlos foi reintegrado na Fazenda São Gabriel e os assentados Miriam Castro da Conceição, Otávio Ro-sário Lima Pereira, Raimunda Lima Morais e Maria Saraca dos Santos Souza retornaram para as áreas por eles reivindicadas de onde teriam sido retirados indevidamente quando do cumprimento da liminar da Fazenda denominada São Gabriel”. Isso a teria ajudado a tomar uma decisão mais correta.

No ofício enviado pela CPT, Padre Sisto assim conclui: “teremos mais casas derrubadas, roças destruídas, vigilantes violentos e armados andando nas suas motos, matas derrubadas, iga-rapés aterrados. É o que mais me inquieta graças a decisões judiciais equivocadas ou a atitudes no mí-nimo suspeitas de um juiz. Inquieta-me também o

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4.

Após luta judicial, trabalhadores da comunidade Boa Vista da Pedreira são despejados

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fato que essas pessoas do Sul tenham tanta influ-ência com o judiciário: passam com o processo de uma comarca para outra com a maior facilidade; trocam uma ação de interdito para reintegração de um dia para outro, deferem liminares sem ao menos ouvir a outra parte, levam juízes para fazer inspeções judiciais quando querem. Para a senhora saber, faz um ano que tento convencer o juiz Kopes de Ferreira Gomes sobre a importância de realizar uma visita a um local de conflito a 20 minutos de distância do fórum de Ferreira Gomes e ainda não consegui e não vou conseguir mesmo, pois o dou-tor Kopes já abriu espaço para as alegações finais desconsiderando o pedido da CPT de vistoria ao local. Vale ressaltar que a CPT faz parte do comitê de acompanhamento do TJAP de conflitos fundi-ários rurais e urbanos. No entanto o juiz Kopes se deslocou até a localidade da Boa Vista da Pedreira município de Itaubal, em 2013, a pedido da em-presa Agrocerrado onde realizou a inspeção con-duzida por pessoas da mesma empresa que depois resultou na liminar de despejo”.

O caso acima relatado, por mais absurdo que pareça ser, é possível por conta das deficiências ou irregularidades administrativas e processuais.

A “grilagem cartorial”

Na origem de tudo está o sistema cartorial brasileiro que privatizou o serviço de registros públicos, entregando-o nas mãos de pessoas, al-gumas inescrupulosas. Foi assim que, em muitos casos, simples atos de registro de compra e venda meramente declaratórios, ou concessões de terras públicas nunca legalizadas, se transformaram em matrículas de fé pública, base atual de muitas or-dens judiciais de despejo de posseiros.

Provocada pelas denúncias oferecidas pela Comissão Pastoral da Terra, a Corregedoria do TJ--AP, por exemplo, comprovou e declarou a nulida-de de pleno direito de muitas matrículas de imó-veis nos cartórios de registro de imóveis de Amapá, Calçoene, Tartarugalzinho e Ferreira Gomes. A matrícula do imóvel citado no exemplo, também,

foi declarada nula. Estas matrículas nulas, porém, só podem ser canceladas através de uma ação judi-cial direta que, até agora, ninguém quis promover, nem a própria Corregedoria. É assim que alguns juízes, mesmo tendo sido informados da nulidade, consideram ainda válidas essas matrículas que não foram formalmente canceladas e mandam despe-jar muitas famílias de agricultores e posseiros le-gítimos, que há décadas vivem e trabalham nestas mesmas terras.

Outras ilegalidades encontradas nos cartó-rios de imóveis produzem o que a CPT chama de “grilagem cartorial”, quando vários registros carto-riais, num passe de mágica, acabam aumentando e multiplicando a área dos imóveis e até mudam sua localização geográfica.

O desconhecimento da legislação agrária, am-biental e minerária

É evidente que, por trás destas situações, está o despreparo de muitos atores jurídicos: ad-vogados, promotores, juízes e até desembargado-res, que nunca aprofundaram a muito complexa legislação fundiária, minerária e ambiental. O desconhecimento desta legislação, sobretudo na Amazônia, é a razão de muitas ilegalidades que es-tão sendo cometidas, muitas vezes, com o ampa-ro do próprio Judiciário. Os dados comprovados pela Pastoral de Terra mostram que as vítimas de despejo judicial são muito mais do que as vítimas de expulsão por parte de capangas ou seguranças a mando de fazendeiros.

A caneta do juiz, em certos casos, está subs-tituindo, com mais eficácia, o revólver do capanga a serviço do capital agrário e minerário. O que cha-ma ainda mais atenção é a defesa que, em geral, o Judiciário oferece ao grileiro capitalista ao crimina-lizar, sem dó nem piedade, o movimento popular quando são ocupadas terras ainda públicas ou que foram apossadas ilegalmente pelo agronegócio.

Conclui-se que não se trata apenas de im-punidade, mas de verdadeira legitimação do crime agrário e minerário.

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O cadastro rural

Há mais um fator que favorece a criminali-dade agrária. Apesar dos esforços do poder públi-co, apesar de tudo o que é disposto em lei, ainda não existe um “cadastro rural” único e confiável.

Parece impossível juntar num único cadas-tro que nos permita saber, através do CPF ou do CNPJ, a nome de quem é registrado o imóvel rural. No Amapá há muita discrepância, por exemplo, quando se confrontam os dados do Sistema Nacio-nal de Cadastro Rural (SNCR) do INCRA, com os do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) da Receita Federal, com os do IBGE, com os do IBAMA e os do Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do Amapá (IMAP) e com a relação de imóveis registrados nos vários cartórios.

Números e áreas dos imóveis registrados:

ORGÃO PÚBLICO NÚMERO ÁREA (ha.)

INCRA 10.127 3.792.853,10

ITR 4.925 2.762.663,30IBGE 3.560 1.375.424,00

É difícil confiar na seriedade de dados tão diferentes! Outra informação cadastral que confir-ma o aumento da concentração fundiária e da gri-lagem em curso no Amapá vem do confronto entre o Censo agropecuário do IBGE de 1995-96 com os do Censo de 2006.

Tabela 05: comparação censo agropecuário de 1995-96 e 2006ANO DO CENSO

NÚMERO DE ESTABELE-CIMENTOS

ÁREA DOS ESTABELE-CIMENTOS

1995-96 3.349 700.047

2006 3.560 1.375.424

Em 10 anos o número dos estabelecimen-

tos aumentou só 6,3%; a área ocupada, porém, aumentou em 96,5%: quase dobrou! Devido ao pequeno tamanho do estado do Amapá, a elabo-ração de um cadastro único estadual dos imóveis rurais seria uma tarefa bastante simples e permi-tiria, com facilidade, comprovar a legalidade das posses em terras públicas e combater a grilagem criminosa.

É de se perguntar por que uma solução tão simples e tão eficaz para acabar com os grileiros não está sendo encaminhada e cobrada pelo Mi-nistério Público, pelo menos do Amapá, onde to-das as terras públicas são regularmente registradas nos cartórios.

Isso vale não só para as autoridades do Exe-cutivo, responsáveis pela regularização fundiária, mas, também, para o Ministério Público Estadual e/ou Federal e para a Advocacia da União e/ou do Estado que, diante das inúmeras denúncias, não promovem as devidas ações criminais, únicas ca-pazes de deter os grileiros.

As limitações dos órgãos fundiários

Precisamos, agora, considerar outro fator que impede um combate eficaz da ocupação ile-gal das terras públicas. Além dos ínfimos recur-sos destinados pelo orçamento federal e estadual aos órgãos fundiários, é preciso considerar que a direção destes órgãos é indicada a partir dos in-teresses políticos de quem detém o poder naquele momento. A competência efetiva e a carreira no serviço não são quase nunca levadas em conside-ração, sobretudo, no Amapá. Estas pessoas não têm, como prioridade, alcançar os objetivos ine-rentes ao exercício efetivo de seu cargo, mas sa-tisfazer os interesses das pessoas e ou do partido que as indicou.

Além de serem conduzidas por interesses partidários, estas instâncias são, quase sempre, “institutos”; é o que significa a letra “I” de instân-cias como INCRA, IBAMA, IBGE, INSS, IMAP, IEF, ICMBio, etc.

Instituto é “autarquia”, quer dizer que se

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governa por si mesmo. Nenhum instituto tem um instrumento através do qual a sociedade possa exercer o controle, deliberar sobre suas decisões e fiscalizar sua atuação.

Aí a grilagem imperou no Estado e, em vá-rios casos, com o favorecimento dos próprios insti-tutos que perseguiram interesses eleitoreiros e dei-xaram de levar a sério o bem comum da sociedade e a defesa do patrimônio público. Típica foi a emis-são de quase uma centena de títulos definitivos, concedidos a toque de caixa pelo IMAP, sobre ter-ras que pertenciam à União. Apesar da ilegalidade cometida e já reconhecida pelo Ministério Público, vários destes títulos foram aceitos pelos cartórios e transformados em matrículas, consumando, as-sim, o fato.

O licenciamento ambiental

Há mais um crime de responsabilidade que vem sendo cometido nas terras do Amapá. Crime que se dá através de licenciamentos am-bientais concedidos, ilegal ou pelo menos, irregu-larmente.

Terrenos hoje ocupados pelo agronegócio estão sendo licenciados com a maior facilidade. Os exemplos podem se multiplicar: o programa “Terra Legal” já forneceu, irregularmente, dezenas de “cartas de anuência”, confirmando a existência de um processo de regularização em curso. Esta prática, já condenada pela secretaria nacional em Brasília, serviu como justificativa para que o IMAP concedesse o licenciamento ambiental, autorizan-do o plantio em terras griladas.

Outra artimanha consiste em conceder o li-cenciamento ambiental para um terreno pequeno e efetivamente titulado. A placa colocada pelos fa-zendeiros, porém, não especifica nunca o tamanho e a localização da área licenciada. Esta placa é colo-cada no lugar que o fazendeiro quer e, assim, serve de “prova” que o trabalho que está sendo feito no terreno que possui a relativa licença.

Apesar de a legislação exigir o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para plantio em áreas

superiores a 500 hectares, (muitos empreendimen-tos, no Amapá, vão, atualmente, além disso) até hoje, nunca foi exigido um EIA para licenciar tra-balhos de agropecuária.

Em vários casos é concedida ao agronegó-cio uma Licença Ambiental Única (LAU) que é um instrumento pensado para facilitar a vida dos pe-quenos agricultores. Quem vai responder por mais este crime de responsabilidade ou de improbidade administrativa?

O Termo de Ajuste de Conduta Ambiental (TACA) é outro mecanismo que, no Amapá, acaba favorecendo os desmandos e legitimando a devas-tação e a grilagem.

Pela legislação estadual, o TACA é aplicado para substituir parte de uma multa que foi aplicada por causa de algum dano ambiental provocado ou de irregularidades ambientais cometidas. Compro-metendo-se a algum tipo de reparação pelo dano causado, o criminoso pode, através do TACA, re-duzir a multa que lhe foi aplicada.

O programa Terra Legal

O programa Terra Legal foi, desde sua ori-gem, denunciado como um programa que iria fa-vorecer a grilagem. E é o que está acontecendo. E não só no Amapá!

Para dar início a um processo, basta inserir no sistema do Terra Legal os dados georreferência-dos do imóvel cobiçado. Isso é feito diretamente pelo requerente que não precisa de nenhuma au-torização para fazê-lo. Fácil demais para quem tem recursos para pagar o georreferenciamento.

O pequeno posseiro legítimo que não tem os recursos necessários, quando entra com seu pedido junto ao Terra Legal, encontra o imóvel já “ocupado”. Até tudo ser esclarecido demora uma eternidade. Enquanto isso, o primeiro obtém uma licença, começa os trabalhos e cria o fato consuma-do, expulsando o posseiro.

Aí entra em vigor a lei mais importante que reina nas terras do Estado: a lei do “já que”. Já que foi feito, deixa feito; já que pagou imposto...

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já que recebeu o financiamento... já que foi feito o plantio... já que houve devastação... e assim por diante.

A ilegalidade vira fato consumado e acaba sendo reconhecida na prática e, como o verdadei-ro posseiro nem sempre tem condições de brigar na justiça, acaba perdendo sua terra em favor do grileiro.

A respeito do Terra Legal, no Amapá, pre-cisam ser feitas outras considerações: trata-se de um programa que deveria ser conduzido com a máxima transparência. Não é o que está aconte-cendo.

A informação oficial que foi comunicada, em setembro de 2014, na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), pelo atual coordenador do programa, dizia que estavam em curso 2.036 pro-cessos de regularização. Na internet, no site do programa, aparece só um total de 407 processos. Diante da incongruência, a CPT, pela Lei de Aces-so à Informação, solicitou a relação completa dos processos em andamento. Precisou de uma ordem judicial para que a resposta fosse dada. O Minis-tério do Desenvolvimento Agrário (MDA), então encaminhou uma lista com 1.774 processos.

Tabela 06: Dados apresentados na palestra na UNIFAP

Gleba (município) Nº de Parcela demarcadas

Matapi (Porto Grande – Pedra Branca – serra do navio

1.075

Matapi II (Macapá – Santana)

682

Mazagão 396Macacoari (Itaubal) 141Rio Pedreira (Macapá) 10Tartarugal Grande (Ferreira Gomes – Tartarugalzinho)

02

Total 2.306

Tabela 07: Confronto entre a lista oferecida pelo MDA com a da internet

Município Nº Processo - MDA

Nº Processos no site

Amapá 3Calçoene 1Cutias 37Ferreira Gomes 11Itaubal 7Macapá 230Mazagão 290Pedra Branca 128 48Porto Grande 823 287Santana 237Serra do Navio - 72Tartarugalzinho 7

1.774 407

Como confiar em dados tão diferentes for-necidos pelo mesmo órgão público? E tem mais, pela relação que o MDA encaminhou à Justiça Fe-deral constam somente 97 pessoas, também na re-lação do ITR de 2003: isso demonstra que em 2004 a maioria sequer tinha uma posse e, por isso, os processos deveriam ser indeferidos.

Aparecem na relação do MDA 105 pessoas que têm mais de um processo, algumas até quatro. Como isso acontece se só é possível possuir apenas um imóvel?

Uma parcela significativa de processos que estão em andamento e que são objeto de conflito ou de denúncia sequer aparecem na relação enca-minhada pelo MDA. Por que?

Além disso, nesta mesma relação constam:• Empresários do setor madeireiro; • Pessoas da mesma família e que nunca

foram agricultores, num clássico uso de testas-de-ferro;

• Advogados e outros profissionais liberais;• Pessoas que nunca moraram na área e que

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ofereceram seu nome, para depois vende-rem o lote;

• Pessoas com sobrenomes típicos do sul do país e que compraram posses que não po-diam ser vendidas;

• O mapa dos imóveis em processo que consta – ou, pelo menos, constava – no site mostra a demarcação feita em áre-as nunca habitadas e que fazem parte de Unidades de Conservação, como a Flores-ta Estadual do Amapá.

Faltam respostas às perguntas que a CPT encaminhou ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao MPF: Quanto a firma recebeu para de-marcar lotes em áreas desabitadas? Quem creden-ciou suas atividades? Quem assinou e reconheceu o trabalho feito?

O financiamento público

Outra mazela legitimadora da grilagem é o financiamento que o agronegócio recebe dos ban-cos públicos, através dos programas governativos.

É incompreensível que bancos públicos usem dois pesos e duas medidas para financiar os trabalhos agropecuários. Quando o solicitante é um pequeno agricultor, ele precisa apresentar o título de domínio do imóvel, como garantia de se-gurança para o banco, em caso de não pagamento. Trata-se evidentemente de algo inconstitucional, uma vez que a nossa constituição (art. 5, XXVI) proíbe que alguém possa perder seu imóvel se este for o único que possui.

Mas quando o requerente é um fazendeiro,

ele não precisa apresentar título nenhum. Como ga-rantia pelo empréstimo ele oferece ao banco as má-quinas, as construções etc. E o banco aceita, mesmo sabendo que, depois de cinco anos, em caso de ina-dimplência, ele poderá ficar só com a sucata.

E “já que” houve o financiamento, “já que” precisa pagar, o fazendeiro é autorizado a colher o que plantou ilegalmente em terras griladas. Já que...

Diga-se o mesmo das declarações feitas junto à Receita Federal. Para a Receita não interessa saber se o declarante é posseiro legítimo, é proprietário ou é grileiro, quase sempre reincidente. A Receita só quer saber de receber o pagamento do ITR.

O comprovante do pagamento deste im-posto é usado depois pelo grileiro na Justiça para comprovar direitos sobre o imóvel. A lei considera tal atitude um crime punível com prisão ou multa (Lei n. 4947, art. 19).

Apesar desta lei, os juízes costumam legi-timar o grileiro, “já que” pagou o imposto. É por isso que a relação dos imóveis da Receita Federal nunca combina com a relação do Sistema Nacional de Cadastro Rural.

O sistema nacional, com efeito, rejeita au-tomaticamente o registro de terras públicas para quem já tem um imóvel cadastrado. A Receita, pelo contrário, aceita tantos imóveis quanto o declaran-te quiser, contanto que pague os impostos relativos mesmo quando são sonegados. E isso acontece em inúmeros casos.

O irônico é que o próprio documento dado pela receita reza que tal documento não serve como comprovante de propriedade. Mas os juízes, já que...

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Do estado do Acre nos chega o relato de um conflito atingindo há anos comunidades tra-dicionais de seringueiros, provocado desta vez por planos de manejo florestal, o mesmo que dizer extração legalizada e com selo verde da madeira. A “Carta do Acre” assinada em 07 de outubro de 2011 por diversos movimentos sociais, entre eles a Comissão Pastoral da Terra do Acre (CPT-AC), já apresentava de forma crítica a situação do estado que se apresenta como paradigma de sustentabili-dade para Amazônia:

“Estamos num estado que, nos anos de 1970-80,

Acre

A luta dos seringueiros do Riozinho e os Planos de Manejo Florestal

foi palco de lutas históricas contra a expansão predatória do capital e pela defesa dos territó-rios ocupados por povos indígenas e populações camponesas da floresta. Lutas que inspiraram muitas outras no Brasil e no mundo. Converti-do, porém, a partir do final da década de 1990, em laboratório do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] e do Banco Mundial para experimentos de mercantilização e privatização da natureza, o Acre é hoje um estado ‘intoxica-do’ pelo discurso verde e vitimado pela prática do capitalismo verde”I.

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As aberturas na mata dão origem às picadas e ramais, por onde passam os caminhões que serão carregados com madeiras

I Carta do Acre. http://cptrondonia.blogspot.com.br/2011/10/carta-do-acre.html Acessado em 03/06/2015.

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Um documento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), elaborado em agosto de 2012 por motivo da Cúpula dos Povos de 2012, confir-ma:

“O ‘esverdeamento da economia’ tem resultado na multiplicação dos conflitos territoriais, no aumento da degradação ambiental, da concen-tração de rendas e na reprodução ampliada da pobreza. Observadas de perto as coisas, ver-se-á que o verde das propagandas é insuficiente para ocultar o cinza da realidade”II.

A propagada de sustentabilidade do Acre é desmentida por autores como o professor Elder Andrade de PaulaIII. Ao mesmo tempo, a CPT do Acre confirma o avanço da pressão da fronteira agrícola, o aumento de acampamentos de sem terra e de conflitos agrários, especialmente nos municípios mais próximos a Rondônia. E a pre-visão de construção da Ferrovia Transoceânica, atravessando o estado em direção ao Peru e ao oceano Pacífico, somente deve acentuar os con-flitos na região.

Os seringueiros da região do Riozinho do Rola

O Riozinho do Rola deságua no Rio Acre, que nasce no Peru e corta a capital Rio Branco. O trajeto entre a capital acreana até a boca do Rio-zinho é de cerca de 10 quilômetros, uma hora de barco. Na região do Riozinho havia vários serin-gais: Seringal Barro Alto, União, São Bernardo, Ca-choeira, Macapá, Belo Horizonte, São Francisco do Espalha, Humaitá e outros.

O seringalista – proprietário de seringal – Benedito Tavares era dono dos seringais União, São Bernardo, Macapá, Belo Horizonte e São Francisco de Espalha. Em vários deles havia gerentes em con-cessão do seringal, que colocavam homens para ti-rar a seringa em troca de mercadorias. A maioria

dos trabalhadores recrutados para trabalhar na borracha vinha do nordeste. Alguns seringalistas do Riozinho eram proprietários da área com títu-lo definitivo. Um exemplo é a família dos Rola – seringalistas proprietários de áreas no Riozinho, que depois foram vendendo para outros. Nos anos 1980 e 90, o sistema de seringal faliu. O seringal Barro Alto, do seu Severino, parou as atividades há cerca de 25 anos. Contudo, os seringalistas foram vendendo essas áreas. Quem mais comprava essas terras eram pessoas de fora do estado, os “paulis-tas”, para derrubar as matas e transforma-las em fazendas para criação de gado.

São Bernardo e União foram vendidos e chegaram a ser derrubados O seringal União teve cerca de 60% de sua área desmatada. Serin-gal que nos anos 80 foi transformado na fazen-da União e fazenda São José. Porém, o governo, através do Instituto Brasileiro de Desenvolvi-mento Florestal (IBDF), impediu continuar as derrubadas. Com isso, o fazendeiro foi obrigado a deixar a floresta crescer novamente em uma parte da área, onde hoje existe um Plano de Ma-nejo de madeira.

Já o seringal Barro Alto foi ocupado por sem terra há aproximadamente 15 anos. E em 2008, nes-te local, foi criado o Projeto de Assentamento Barro Alto. Várias famílias de sem terra e seringueiros que residiam no local foram assentados.

Tentativa de criação da reserva

No ano 2001 houve uma tentativa de criar uma Reserva Extrativista no Riozinho. Levan-tamento realizado na região contabilizou 1.420 famílias de seringueiros. O processo foi iniciado no Ibama, Incra, Secretaria de Meio Ambiente de Rio Branco (Sema) e junto ao governo fede-ral. Porém, o processo ficou parado. Dizia-se que os proprietários iriam ser indenizados, porém na

II CIMI: “O Acre que os mercadores da natureza escondem”, p.05 . http://www.cimi.org.br/pub/Rio20/Dossie-ACRE.pdf: acessado em 03/06/2015.III PAULA, Elder Andrade de. (Des)Envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários do progresso aos mercadores da natureza. Rio

Branco: Edufac, 2013. p.416

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época já começaram os Planos de Manejo Flores-tal. Segundo os seringueiros, nem município, es-tado e nem governo federal os informaram sobre o porquê da não criação da reserva extrativista. Algumas pessoas da região apontam que, segun-do o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), seria difícil criar mais essa reserva, pois já haviam outras reservas fede-rais e o estado do Acre alegava que estaria mais monitorado pelo governo federal do que pelo próprio governo estadual. E o governo estadual ainda teria alegado que não havia recursos finan-ceiros para indenizar os proprietários.

No auge da exploração da seringa, o Acre chegou a responder por 1/3 do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. A maioria dos seringueiros era de origem nordestina. Os seringueiros eram obrigados a vender toda a seringa que produziam para o gerente do seringalista em troca de mer-cadoria. Todos os seringueiros tinha uma conta

corrente onde anotavam o saldo. Se o trabalhador devia, ele não podia sair do seringal até pagar tudo. Em lugares como o seringal União, se o trabalha-dor não vendesse o produto para o seringalista, ele apanhava. Nos anos 80 os regatões – vendedores que usam barcos para percorrer uma região – su-biam escondidos, trocando mercadorias por serin-ga. Escondidos, eles desciam o rio com os barcos carregados de seringa.

Nos anos 1980 e 90, quando os seringais faliram, os seringueiros ficaram abandonados. E quando os seringais foram vendidos, prin-cipalmente aos paulistas, alguns seringueiros receberam propostas de indenização. Depen-dendo da infraestrutura da colocação e a re-sistência do seringueiro para sair. Muitos não aceitaram. As famílias aumentaram e muitos dos filhos dos seringueiros ficaram morando na mesma área.

Hoje a principal fonte de renda é extrativis-

As madeireiras constroem estradas no meio das matas e fazem diversas clareiras onde juntam as toras das árvores

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ta: a castanha e a seringa. Alguns têm umas vaqui-nhas leiteiras e uns bezerros. Também se fabrica bastante farinha d’água e farinha branca. As roças, de aproximadamente um hectare, são feitas com pequenas derrubadas, onde deixa roça por dois ou três anos, depois abandona e a mata cresce de novo. Deixa formar ‘capoeira’ - o mato crescer - por quatro ou cinco anos e depois pode voltar a fazer o roçado de novo. Nas roças, as famílias plan-tam mandiocal, banana, feijão de arranque, feijão de praia, milho, arroz. Cria-se muito frango caipi-ra, pato, porco, ovelha e outros.

Do Seringal São Bernardo saíram umas 15 famílias. Muitas destas famílias agora se encontram sem teto, sem casa, sem trabalho, e em casas de pa-rentes em Rio Branco. Umas sete ou oito famílias compraram colocações dentro de uma reserva ex-trativista que foi demarcada, a Resex Chico Men-des, no Xapuri.

O seringueiro de abril até final de agosto tira a seringa. Em julho e agosto trabalha na roça de mato. Setembro e outubro plantando a roça. De

dezembro até março na colheita da castanha. A área de Riozinho é toda de castanhal. De lá saí pelo menos 70% da produção de castanha do município de Rio Branco. A falta de título da área impediu fa-zer um plano de manejo de óleo de copaíba e hoje é uma das árvores que está sendo toda derrubada pelos madeireiros.

A rotina no seringalO seringueiro costuma sair cedo de casa,

por volta de 4 horas da madrugada, com a poronga - espécie de lanterna usada na cabeça do seringuei-ro. Saindo cedo, com tempo frio, a seringa produz um pouco mais, pois com o frio escorre mais serin-ga. Com vento e tempo quente, seca o traço da se-ringueira rapidamente. Levantando cedo dá tempo para ir ao roçado pela tarde. Recolhe o cernambi, látex, conhecido por CBP. Para recolher, hoje se usa muito garrafas descartáveis cortadas ao meio ou ta-boca, para economizar a compra de utensílios de plástico. E vende-se o produto em sacos de 50 Kg.

O CBP custa cerca de R$ 5,20 kg - com sub-

Com o plano de manejo, segundo seringueiros, tiram-se até 33 tipos de madeira, como Jatobá, Gameleira e outras

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sídio estadual e federal. Sem subsídio, fica na faixa de R$ 2,00. O subsídio estadual sempre tem, mas o federal somente para certas quantidades de qui-los. O recurso somente alcança uma parte da pro-dução e costuma faltar no final da safra, porque já extrapolou a quantia do projeto. Cada seringueiro pode fornecer somente até 800 kg com subsídio. Se produzir mais, tem que vender sem subsídio. Há outras formas de tirar seringa que daria mais lu-cro. Como a Folha Defumada Líquida (FDL), por exemplo, porém na região do Riozinho ainda não se consegue produzir por dificuldades em encon-trar pontos de recolhimento.

O seringueiro saí para a colheita da casta-nha na mata de janeiro em diante. Antes de janei-ro é perigoso cair castanha na cabeça por conta do vento e chuva fortes. A lata bruta de castanha costuma pesar 12 kg. Na cooperativa, a castanha seca no galpão primeiro e ainda vai para secador

para deixar em grau de humidade máximo, de 12%, depois vai para água quente, quebra, e vai para estufa e seca para empacotar em sacolas, embalada a vácuo. Em 2015 a cooperativa pagava cerca de R$ 33,00 pela lata de castanha. Na mata se vendia por R$ 26. Outros atravessadores paga-vam a R$ 28,00.

Organização e entidades de apoio

Os seringueiros do Riozinho fazem parte da Organização dos Seringueiros (OSR). E na lo-calidade do Riozinho tem aproximadamente cinco associações de seringueiros e mais umas três as-sociações agrícolas no Barro Alto. Pois apesar de não criada a reserva, os seringueiros continuaram trabalhando na extração de seringa e da castanha por conta própria. As cooperativas de seringuei-ros passaram a comprar a seringa e a castanha dos

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Entre os problemas causados pelos planos de manejo estão o aterraramento dos igarapés. Na imagem, o Riozinho do Rola

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produtores da região. Na região há três usinas de castanha (Brasileia, Xapuri e Rio Branco) e uma de seringa. Em Xapuri, a fábrica de preservativos tam-bém compra a produção de seringa.

Conforme os seringueiros, a Comissão Pas-toral da Terra (CPT) tem contribuído neste proces-so organizacional. Ajudando as associações a fazer ofícios, encaminhar aos órgãos, a fazer reunião nas comunidades, a ir para Brasília, para o INCRA para reivindicar a desapropriação da área de serin-gal. Também tem denunciado os problemas com os planos de manejo, inclusive em Audiência Pú-blica no Senado.

Planos de manejo

Antes do ano 2000 já havia retirada de ma-deira pelos proprietários do seringal, pelo “madei-reiro Mota” e outras empresas. Onde o seringueiro não aceitava, não se tirava madeira. A estratégia do madeireiro então para liberar a retirada de madei-ra era chamar os seringueiros para “impicar”. Eles ganhavam R$ 15 reais para permitir a retirada de árvores e R$ 5 para “impicar”- procurar a árvore e fazer a “picada” (trilha) para o operador de mo-tosserra e trator chegar nela. Não existia plano de manejo na época, mas, segundo os trabalhadores, não causava tanta destruição como hoje.

Conforme os seringueiros, os planos de manejo começaram em 2000, mas aumentaram mesmo no ano de 2005. Com isso, tira-se todo tipo de madeira, até 33 qualidades, como Jato-bá, Jutaí, Copaíba, Garapeira, Violeta, Guaruba, Gameleira e outras. Os planos de manejo são executados por empresas madeireiras. Os mo-radores do Riozinho contam que as madeireiras constroem estradas no meio da mata e fazem di-versas clareiras onde juntam as toras das árvores de “skide” - tratores com cabos de aço para puxar as árvores para puxar a madeira. Das aberturas

nas florestas saem as “picadas” e ramais, por ali passam os caminhões que serão carregados com madeiras e levadas às serrarias da cidade. Nessas clareiras chegam a ter, por exemplo, 5000 m³ de madeira, sendo que cada árvore pode gerar duas ou três toras, de 14 ou até 20 m³.

Há várias madeireiras atuando na área, sen-do uma delas é a Laminados Triunfo Ltda., esta-belecida no Parque Industrial de Rio Branco. Ela se apresenta com imagem de sustentabilidade am-biental e social, porém os problemas denunciados no Seringal São BernardoIV, teriam levado a cance-lar o selo verde da empresa na lista certificadora da FSCV e do ImafloraVI.

Problemas provocados pelo manejo

Os problemas gerados pelos planos de manejo florestal, segundo os seringueiros, são afugentar a caça, a obstrução dos varadouros (ca-minhos de uso), das estradas (caminhos usados para extração da seringa) e dos “piques” (cami-nhos da castanha). Às vezes aterraram e barram os igarapés, até pondo fim as mata onde a água fica represada. Na localidade do Riozinho cerca de um hectare de floresta foi destruída por conta disso. Também a queda das árvores serradas têm destruído muitas seringueiras e castanheiras. Os seringueiros não são consultados e nem levados em conta na hora de se fazer os planos de ma-nejo florestal. “Quando percebe estão gritando na mata e perguntando, dizem que é plano de ma-nejo e que fulano mandou”. No Riozinho (Belo Horizonte, Macapá, São Bernardo), isso continua acontecendo. No ano de 2014 foi retirada muita madeira da área, e a única coisa que embarga o manejo é a época de chuvas.

Depois que começaram os problemas com os planos de manejo florestal, os morado-res começaram a realizar algumas reuniões para

IV http://www.altinomachado.com.br/2011/10/laminados-triunfo.html Acessado em 20/04/2015.V http://memberportal.fsc.org/ acessado em 20/04/2015. VI http://www.imaflora.org/empreendimentos-certificados.php

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debaterem a situação. As Associações dos serin-gueiros produziram ofícios para órgãos como o Ministério Público, IBAMA, e Instituto de Meio Ambiente do Acre (IMAC) denunciando o que estava acontecia na região por conta dos planos de manejo.

Os planos de manejo florestal são autoriza-dos por vários órgãos, como Secretaria de Flores-ta Municipal, e licenciados pelo IMAC, IBAMA, e outros. De acordo com os seringueiros, as ins-tituições marcavam reunião ou retornavam ofício simplesmente dizendo que era somente um ma-nejo madeireiro e que estava autorizado. Apesar de acontecer destruição da floresta, de igarapés e varadouros dos seringueiros, quebrando as serin-gueiras e castanheiras, continuava “legal”.

Segundo moradores da área, os seringuei-ros têm formado grupos e vão até a mata falar para os madeireiros parar, como nos tempos das derru-badas. Eles param um ou dois dias. “Depois vem a polícia buscar a gente, acusados de mandar parar planos de manejo florestal”, afirma um seringueiro, que conta ainda que por duas vezes a polícia foi até a casa dele. “Chega um delegado e diz que a gente está cometendo um crime, porque aquela área é de fulano e você está interferindo na vida dos outros, numa atividade legal dos proprietários”. A polícia não prendeu ninguém, porém leva para a delegacia na viatura, para tomar declaração. Quando chega à delegacia, a polícia liga para o proprietário para discutir o que deve ser feito.

Em alguns lugares os proprietários têm re-gistrado as ameaças contra os seringueiros, apesar deles não estarem na área. Na área, a polícia chegou a entrar em uma casa e prender espingarda de caça do seringueiro. Tentaram deter, porém ele voltou porque tinha autorização da arma para subsistên-cia. Não tinha ameaçado ninguém, nem estava em casa (estava no roçado).

No Seringal União 1, 2, 3, após ter ocor-rido problema na primeira etapa, as outras eta-pas do plano de manejo foram interrompidas. O plano de manejo parou em União. Em Cachoeira também não foi aprovado porque dava “trabalho”.

Não dizem que é por causa de ter sido executado de forma irregular, mas porque os seringueiros não deixaram ser executado. Segundo a lei, se havia se-ringueiros na área, não poderia nem ter executado plano de manejo. Porém, agora consideram apenas como posse não toda a área onde o seringueiro tra-balha, mas apenas a pequena área de pasto (três ou quatro hectares) e de roçado de perto da casa. O resto (castanhais, estradas de seringa, etc.) é con-siderado como área livre para manejo de madeira. Onde os planos de manejo têm sido aprovados, os seringueiros são impedidos der fazer o roçado tra-dicional (pequenas roças de subsistência).

Suspeita-se que a suspensão dos planos de manejo do Riozinho teve relação com as ameaças que agentes da CPT sofreram e as várias invasões na sede da Pastoral em 2014, que foram denuncia-das. A coordenadora regional da CPT chegou a ser processada por madeireiros por supostas calúnias. No Seringal de São Bernardo têm ocorrido perse-guições a muitos seringueiros, e eles têm sido acu-sados injustamente de derrubar castanheiras, ven-der madeira. Os seringueiros chegaram, inclusive, a serem intimados para depor.

Pedido de criação de Assentamento Extrativista

Em junho de 2013 houve o pedido de cria-ção de um Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) no Riozinho do Rola. Segundo os governos estadual e federal, é mais fácil de criar um PAE do que uma Resex e existem menos critérios. É menos rígido e mais fácil de gerenciar, mantendo a mata e o extrativismo. Em princípio, um território cole-tivo, pois cada um já sabe onde começa e termina a área ou cada colocação. Atualmente os represen-tantes das associações não sabem como está o pro-cedimento de criação do Projeto de Assentamento. O Riozinho contribuí, inclusive, para o abasteci-mento de água da cidade de Rio Branco. Na região, o assentamento extrativista, segundo os trabalha-dores, além de manter o trabalho e produção atual, pode ajudar a manter o clima e o meio ambiente e as reservas de água da cidade.

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Lábrea está situada no meio da floresta amazônica, na calha do Rio Purus, um dos gran-des afluentes da margem direita do Rio Amazonas. A quatro dias de barco (ou dez horas de voadeira) subindo o Purus vive a comunidade ribeirinha de Lusitânia, na foz do Rio Tumiã, dentro da Reserva Extrativista do Médio Purus. Está é uma das uni-dades de conservação do estado do Amazonas, que tem como objetivo garantir o território e a vida dos moradores tradicionais, mantendo de forma sus-tentável as florestas e a biodiversidade amazônica.

A criação da Reserva Extrativista (Resex)

A comunidade de Lusitânia, o fim de um império

Amazonas

foi fruto de mais de dez anos de luta das comunida-des ribeirinhas e ajudou os moradores do Purus a conseguir mais autonomia e segurança territorial, conseguindo ver seus direitos tradicionais de posse reconhecidos. Mesmo assim, alguns conflitos con-tinuam acontecendo. Sendo agente da Comissão Pastoral da Terra do regional Amazonas, Queops Silva de Melo descreveu, em setembro de 2014, as-sim o cenário das Resex de Lábrea:

“Dentro dos limites e no entorno destas áre-as, os processos conflituosos são intensos e os seus moradores não conseguem proteger-se

Rio Purus, na Resex Médio Purus, no Amazonas.

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das ameaças provocadas pela exploração ir-regular dos recursos naturais: madeira, des-matamento, grilagem de terras e garimpos. [...] Os problemas ambientais persistem, pois, desde as suas criações, promessas que foram feitas não são cumpridas pelos governantes, e as UC’s [Unidades de Conservação] envolvem, além de problemas ambientais, dificuldades de ordem econômica, social, e, principalmente, política, o que em geral ocasiona graves con-flitos”.I

Entre as causas dos conflitos, Queops apon-ta a não atenção às relações tradicionais das popu-lações com o meio ambiente e o fato destas reser-vas ambientais ainda não estarem com sua situação fundiária regularizada. Assim seus moradores em parte “convivem com os mesmos problemas fundi-ários de antes, que vão desde propriedades parti-culares, que são várias, a unidades de conservação federais criadas em terras do estado e vice versa. Isso vem impedindo a implantação dessas unida-des e, principalmente, dificultando as comunida-des a saírem das mãos do patrão”, diz.

Com a falta de regularização fundiária, per-manece em algumas comunidades o antigo domí-nio dos coroneis de barranco, persistindo formas semifeudais de exploração dos seringais, inclusive com flagrantes de situações análogas ao de trabalho escravo. Para José Maria Ferreiro de Oliveira, chefe de área do Instituto Chico Mendes de Conserva-ção da Biodiversidade (ICMBio), a persistência do coronelismo dominador e paternalista dentro da reserva, com áreas que ainda devem ser desapro-priadas, é uma das questões mais complicadas da atual gestão da Resex.II

Por outro lado, a criação das reservas está claro que ajuda a preservar as comunidades tradi-cionais das invasões provocadas pela expansão da fronteira agrícola de Rondônia e a pressão coloni-zadora da extração de madeira, desmatamento e

abertura de fazendas de agropecuária. Outras uni-dades, como a vizinha Resex do Ituxi, sofrem com a pressão dos madeireiros, pistoleiros e grileiros que chegam de Vista Alegre do Abunã, vila situada no município de Porto Velho, acirrando “os confli-tos pelo uso de recursos naturais entre moradores dessas unidades e pessoas vindas de fora que usam predatoriamente a pesca, a madeira e outros recur-sos naturais”.III

Por causa de conflitos deste tipo, em 2013 foi assassinado Francisco Dias dos Santos, um ri-beirinho da Resex do Médio Purus, por se opor à retirada de madeira da área. Outro ribeirinho foi espancado e assassinado no Rio Ituxi. Uma lide-rança do Ituxi teve que ser protegida durante anos por escolta armada do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos e hoje ainda continua recebendo graves ameaças e correndo perigo de morte pelo seu trabalho em defesa das comunidades tradicionais e do meio ambiente.

Um material criado conjuntamente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e CPT de Lábrea descreve a realidade social, política e econômica vivida pelos povos indígenas e ribeiri-nhos do Médio Purus, dentro do contexto maior da conjuntura nacional desenvolvimentista. Com financiamentos milionários ao agronegócio, hi-drelétricas e obras de infraestrutura:

“[O governo federal] Não demonstra ne-nhum interesse em proteger os direitos territoriais dos povos indígenas e outras populações tradicio-nais (quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricul-tores) que se opõem ao avanço do agronegócio sobre suas terras porque eles supostamente não geram por sua vez riqueza para a nação em geral. [...] E “tenta enfrentar e silenciar os movimentos daqueles que não ‘capitalizam’ a terra (mas sim-plesmente querem viver nela e auto sustentar-se dela) por meio de estratégias muito diversas”. [...] “Em decorrência da expansão do agronegócio,

I SILVA DE MELO, QUEOPS, “Amazônia. O Triste abandono das Unidades de Conservação no Amazonas”, Pastoral da Terra, julho a setembro de 2014.II Entrevista em 15 de junho de 2015.III SILVA DE MELO, QUEOPS, “Amazônia. O Triste abandono das Unidades de Conservação no Amazonas”, Pastoral da Terra, julho a setembro de 2014.

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apoiado pelo governo brasileiro, o município de Lábrea tem se tornado um dos locais onde há mais desmatamento e invasão desordenada de terras públicas por grileiros e fazendeiros. As comuni-dades ribeirinhas localizadas nesta região estão vivendo num clima de violência e ameaça, e, neste mesmo ano [2013], duas lideranças comunitárias foram assassinadas e outras três estão sob ameaça de morte”IV

Para os ribeirinhos e indígenas da floresta restam apenas propostas assistenciais, como o Bol-sa Família e Bolsa Verde. Também a ajuda para as famílias atingidas pelas alagações.

Histórico da Resex do Médio Purus A região do Rio Purus é habitada desde

tempos imemoriais por diversos povos indígenas – Apurinã, Banawá, Paumari, Zuruahá, Jarawara, Juma, Kaxinawá, Katurina Pano, Madiha Kulina, Jamamadi, Deni e outros.V

Na segunda metade do século XIX foi ocu-pada pela frente da borracha, para extração da seringa com mão de obra de origem nordestina. Segundo relatos, em 1869 chegou à região uma pri-meira leva de cearenses chefiada por João Gabriel de Carvalho e Melo. Entre os pioneiros também é citado o “Coronel Labre”, Antônio Rodrigues Pe-reira Labre que, em dezembro de 1871, conduziu uma numerosa leva de maranhenses, instalando-se às margens do rio Purus, na terra firme de Amacia-ri, que passou a denominar-se Lábrea.VI

Nos anos 1940, a eles se juntaram os “sol-dados da borracha”, recrutados principalmente do Nordeste, para fornecimento de borracha para os veículos das tropas aliadas na Segunda Guerra Mundial. Chegaram com a promessa que, ao fim da guerra, voltariam aos locais de origem, o que não aconteceu. A população ribeirinha que se for-

mou ali é fruto, principalmente, da miscigenação de indígenas com estes nordestinos. Somente nos últimos anos chegaram outras populações originá-rias do sul do Brasil.

Enquanto povos indígenas da região con-seguiam aos poucos ter seus territórios reconhe-cidos, os seringueiros e ribeirinhos continuavam submetidos a poderosos coroneis que se diziam donos da região. Neste contexto é que se cria a Re-serva Extrativista do Médio Purus.

A história da criação desta reserva está re-colhida num excelente Memorial realizado em 2011 pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus (ATAMP).VII

“Há 30 anos, o Médio Purus era uma região sem assistência dos governos e sem acesso às polí-ticas públicas mais básicas. As comunidades, dos mais diversos tamanhos, se espalhavam ao longo do rio Purus e de seus afluentes, dentro dos municípios de Pauini e Lábrea. [...] Indígenas e não indígenas alternavam uma convivência ora pacífica, ora con-flituosa. Desse contexto de comunidades isoladas e desassistidas, aproveitavam-se os poderosos. Parte dos produtos retirados da floresta deveria ser repas-sada aos patrões pelas famílias, em troca do direito de permanecer no local. Os valores variavam entre 30, 50 ou até 75% da produção”. (Memorial, p. 24)

Diante desta situação, a Prelazia de Lábrea, junto com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), incentivou a organização das comunidades, pro-vocadas por uma reunião realizada em Tefé, em 1997. No ano de 2000, em Pauini, as populações tradicionais se mobilizaram para a criação de uma Resex onde viviam. E esse movimento se espalhou.

Depois de anos de luta, finalmente foi cria-da a Reserva Extrativista do Médio Purus (Resex do Médio Purus) por decreto do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de 08 de maio de 2008,

IV CPT e CIMI de Lábrea. “Fortalecendo a organização das comunidades ribeirinhas e indígenas no Médio Purus”, 30/9/2013.V http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=470VI http://www.bv.am.gov.br/portal/conteudo/municipios/labrea.phpVII http://www.iieb.org.br/index.php/publicacoes/livros/memorial-da-luta-pela-reserva-extrativista-do-medio-purus-em/

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com área de 604.209,25 hectares, abrangendo áreas dos municípios de Lábrea, Pauini e Tapauá.

Segundo o decreto de criação, a Reserva Extrativista do Médio Purus tem por objetivo “pro-teger os meios de vida e garantir a utilização e a conservação dos recursos naturais renováveis tra-dicionalmente utilizados pelas comunidades. [...] E as principais atividades econômicas da Reserva Extrativista do Médio Purus estão relacionadas ao uso tradicional da castanha, copaíba, andiroba, se-ringa, açaí, urucurí, bacaba e da pesca sustentável de várias espécies”.VIII

Sob responsabilidade do ICMBio, em 04 de novembro de 2010 foi criado o Conselho Delibe-rativo da Reserva “com a finalidade de contribuir com ações voltadas à efetiva implantação e imple-mentação do Plano de Manejo dessa Unidade e ao cumprimento dos objetivos de sua criação”.IX

Conforme o Decreto de Criação, as institui-ções não governamentais que fazem parte Conselho Deliberativo da Resex são: O Sindicato dos Traba-lhadores Rurais de Lábrea – STTR-L; a Associação dos Produtores Agroextrativistas da Assembleia de Deus do Rio Ituxi – APAD R I T; Comissão Pastoral da Terra – CPT; a Associação dos Produtores Agro-extrativistas da Comunidade José Gonçalves – APA-CJG; o Conselho Nacional dos Povos Extrativistas – CNS; a Colônia de Pescadores de Lábrea; o Grupo de Trabalho Amazônico – GTA e a Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus – ATAMP. Por parte do governo, fazem parte do Con-selho Deliberativo da Resex: o Instituto Chico Men-des de Conservação da Biodiversidade – ICMBio; o Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recur-sos Naturais Renováveis – IBAMA; o Instituto Na-cional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA; a Universidade Federal do Amazonas – UFAM; o Banco do Brasil – BB; a Fundação Nacional do Índio – FUNAI; o Instituto de Desenvolvimento Agrope-

cuário e Florestal Sustentável do estado do Amazo-nas – IDAM; e a Prefeitura de Lábrea.

Entre os diversos projetos desenvolvidos na área, continuam os acordos de pesca para preserva-ção de lagos, firmados antes da criação da Reserva, e houve crédito do INCRA. Com bastante visibili-dade, um projeto de captação de água de chuva foi desenvolvido pelo governo do Amazonas. Houve construção de centros comunitários com apoio do IEB, e foi implantado com destaque um projeto de manejo de pirarucu implementado pela ATAMP e ICMBio. Uma cooperativa em Lábrea comercializa a castanha e está projetando trabalhar com peixe.

A Comunidade de Lusitânia: os últimos coroneis de barranco

Apesar de estar situada dentro da área Re-sex do Médio Purus, a comunidade de Lusitânia não aparece citada no decreto de criação da reser-va. Segundo depoimentos recolhidosX, os mora-dores de Lusitânia e comunidades vizinhas sempre foram orientados e impedidos de participar das reuniões de criação da Resex.

De acordo com diversos relatos, esta comu-nidade até recentemente estava submetida ao siste-

VIII http://casa-civil.jusbrasil.com.br/noticias/2236/criada-a-reserva-extrativista-do-medio-purusIX http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/imgs-unidades-coservacao/portarias/RESEX%20%20Medio%20Purus%20VIAM%20Port%20112%20

de%2004%2011%2010.pdf E http://www.jusbrasil.com.br/diarios/21770249/pg-97-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-05-11-2010, acessado em 24/04/2015.

X Conversa com José Maria Carneiro de Oliveira, presidente da ATAMP, dia 15/06/15.

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Castanha da Resex Médio Purus estocada em Luzitania

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ma de aviamento tradicional: cada ribeirinho que ia quebrar castanha recebia do patrão mercadorias para ele e para deixar com a família. Depois era obrigado a vender a castanha ao preço estipulado pelo patrão, bem abaixo do mercado. A castanha era medida numa caixa de madeira “condenada”. A cada três caixas era contada uma medida. Segundo os moradores da região, cada medida correspondia a cinco latas de castanha. Porém, conforme rela-tos, cada três caixas correspondiam em realidade a nove latas e não a cinco. O pessoal reclamava, po-rém o patrão dizia que se não quisessem quebrar com ele, poderiam buscar outro lugar. O resultado é que de mais de três meses de trabalho, não sobra-va muito mais que uns quinhentos reais para cada trabalhador. XI

Em 2014, com apoio do ICMBio, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) flagrou neste casta-nhal trabalho escravo. 21 pessoas foram liberta-das, entre elas crianças. Foi uma operação conjunta do MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal, realizada entre 16 a 28 de março.XII

Diz o relato da operação:“Exploração de 21 pessoas em condições

análogas à de escravos na produção de castanha--do-pará em Lábrea, no Amazonas. Entre os res-gatados estavam dois adolescentes e quatro crian-ças, incluindo dois meninos de 11 anos que, assim como os demais, carregavam sacos cheios de cas-tanhas em trilhas na mata e manuseavam facões longos, conhecidos como terçados, para abertura dos ouriços, os frutos da castanha”.

“O que mais nos chamou a atenção foi a questão das crianças. Vimos meninos carregando sacos de 25 kg dentro da floresta, andando até qua-tro quilômetros, descalças”, conta o auditor André Roston, coordenador do Grupo Especial de Fisca-lização Móvel do MTE. “Para ajudar, um policial

pegou o saco e começou a carregar, mas ele não aguentou chegar até o final. É um trabalho muito pesado e as crianças estavam submetidas ao siste-ma de exploração estabelecido”.

“Os facões, mais longos que o antebraço de alguns dos meninos, eram utilizados para abrir os duros frutos da castanheira e extrair as sementes. Nenhum dos trabalhadores utilizava proteção e, segundo a fiscalização, um dos garotos de 11 anos estava com o dedo indicador cortado, ferimento decorrente de acidente enquanto exercia a ativida-de. Tanto o “transporte, carga ou descarga manual de pesos”, acima de 20 kg para atividades raras ou acima de 11 kg para atividades frequentes, quanto a “utilização de instrumentos ou ferramentas per-furo-cortantes, sem proteção adequada capaz de controlar o risco” estão entre as piores formas de trabalho infantil, conforme estipulado pela lei nú-mero 6.481/2008, com base na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). À equipe de fiscalização, em depoimento, Oscar Ga-delha confirmou o uso de trabalho infantil e defen-deu que o emprego de crianças e adolescentes na atividade é “uma certa forma é até uma maneira de educar”. (Repórter Brasil)XIII

O responsável pela exploração dos traba-lhadores era um antigo seringalista da região: Os-car Gadelha. Ele é um dos últimos representantes ativos dos “poderosos” do sistema tradicional de aviamento, como é descrito no Memorial:

“Entre os ‘poderosos’, figura o patrão, sujeito de altas posições na sociedade, de grande influên-cia e poder político, capaz de controlar a produção e a circulação de produtos da floresta, até mesmo as peles de animais como onça, gato, caititu, quei-xada, lontra, veado, ariranha e jacaré. Ele, por se dizer dono dos castanhais e seringais, detentores de terras e rios, obrigava a população ribeirinha a pagar-lhe a renda”. “Nos barracões na beira dos rios, o poder do patrão ficava mais evidente. Os

XI Relatos recolhidos o dia 17/06/15.XII http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/ex-prefeito-de-labrea-e-responsabilizado-por-trabalho-escravo-infantil/XIII http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/ex-prefeito-de-labrea-e-responsabilizado-por-trabalho-escravo-infantil/

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barracões, habitualmente situados na foz de um afluente a ser explorado, eram entrepostos contro-lados e abastecidos por eles. Do barracão, os serin-gueiros retiravam as ferramentas de trabalho e as mercadorias de primeira necessidade para a sobre-vivência de suas famílias nas colocações. Como os preços das mercadorias eram sempre muito altos, a produção dos seringueiros era insuficiente para pagar a dívida contraída. Criava-se assim um re-gime de escravidão por dívida que ficou também conhecido como “sistema de aviamento”, que até hoje submete moradores da região”. (Memorial, pg. 24-25)

Oscar Gadelha é bem relacionado com as elites políticas do Amazonas. É sogro do ex-pre-feito de Lábrea, Gean Campos de Barros (PMDB), e ,segundo o povo, este último tem por compadre o atual ministro e ex-governador Eduardo Braga.

Os antigos da região relatam que Oscar Ga-delha é filho de uma indígena e de Leopoldo Ga-delha, o seringalista que construiu o barracão em Lusitânia, na boca do Rio Itumã. De acordo com relatos indígenas, o pai de Oscar teria protagoniza-do um massacre de Apurinã na região, da qual es-caparam apenas alguns indivíduos. Anos mais tar-de, o filho, Oscar, acompanhado por um policial, teria intimidado e ameaçado os indígenas para não tirarem castanhas do antigo castanhal, que na rea-lidade é Terra Indígena (TI). Porém, na época da demarcação da terra, a FUNAI seguiu orientações para demarcar apenas as terras situadas acima do castanhal, na atual T.I.Tumiã.XIV

Mesmo assim, parte dos títulos de terra da família Gadelha ficaram dentro da Terra Indí-gena. De Oscar nos contaram histórias que lem-bram as violências da época antiga do seringal. Segundo contou um antigo trabalhador da área, uma vez entrou um castanheiro para tirar casta-nha por conta própria. O seringalista teria ofere-cido a um trabalhador uma caixa de cartuxos para

matar aquele intruso que entrara no seu castanhal sem autorização. Outra vez teria encontrado um castanheiro que vendera castanha para outro comprador. Para dar um castigo exemplar, teria batido nele e no filho e tomado a espingarda de-les. Outro que vendia castanha para um terceiro foi humilhado e espancado com um fio elétrico diante de todo o mundo.XV

O autor deste texto, junto com integrantes da CPT de Lábrea, esteve em Lusitânia onde se en-contraram com o seringalista. Apesar de morar ha-bitualmente em Lábrea, Oscar foi encontrado em Lusitânia, sentado na área do antigo casarão de sua família, situado em terra firme onde a alagação não alcança as casas, e onde a escola municipal tem o nome de seu pai, Leopoldo Gadelha. Mesmo sen-do poucas as famílias que ali vivem, a comunidade está equipada com dois telefones públicos via sa-télite, alimentados por painéis solares, em frente à casa do seringalista.

Ele acabava de chegar do mato com mais dois trabalhadores, cansado, carregando castanhas quebradas naquela manhã, em castanheiras próxi-mas de sua casa. No barracão dele se encontrava mais de trezentos e cinquenta sacos de castanha, cada um de quatro latas. Conforme trabalhadores, 1.500 sacas já tinham sido tiradas de barco e leva-das para o Acre.XVI

Ele falou com ressentimento sobre o ICM-Bio, sobre a ação do Ministério do Trabalho e Po-lícia Federal em 2014 que constatou a exploração de trabalho escravo, inclusive de algumas crian-ças. De acordo com Oscar, as crianças, naque-le dia, tinham ido ao local apenas ‘brincar’ junto com seus pais. Disse que, simplesmente, ele estava trabalhando no sistema de sempre e que se sentiu muito constrangido e humilhado de ser tratado de escravagista, mais ainda por ter sido acusado de ter submetido crianças ao trabalho escravo.

Declarou ter pagado tudo o que lhe foi exi-

XIX Relatos recolhidos pelo CIMI de Lábrea.XV Relato ouvido o dia 18/6/15.XVI Dia 17/06/15.

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gido na operação e que não queria trabalhar mais com o sistema antigo, mas de acordo com as leis trabalhistas, como havia sido orientado. Por isso, em 2015 trabalhou no castanhal apenas com pes-soas contratadas com carteira assinada.

O seringalista foi informado de que alguns castanheiros disseram ter ficado satisfeitos com a mudança de sistema. Porém existiam reclamações, pois alguns que coletavam castanhas há mais de vinte anos tinham sido excluídos do trabalho. Os-car afirmou então que esses foram excluídos por-que já eram aposentados (na realidade, apenas al-guns eram aposentados). Reclamou das críticas de alguns moradores da comunidade de Arudá. Ele ainda mostrou equipamentos de segurança com-prados para os trabalhadores em 2015: botas, ócu-los de proteção, capacetes e terçados para cortar as castanhas.

Segundo Oscar, a área tem título de pro-priedade e ele já teria apresentado os documentos ao ICMBio. Afirmou ainda que o local tem mais valor sentimental do que econômico para ele e sua família, fazendo questão de mostrar o quarto da

casa onde nasceu. Ele confirmou que o ano de 2015 foi de abundante produção e não tinha conseguido tirar todas as castanhas da mata, faltando dois “pi-ques” para retirar.

Constatamos que após a fiscalização do Mi-nistério do Trabalho, Oscar passou a comprar a co-mida para os castanheiros por conta dele e organi-zou duas equipes, de sete e 12 trabalhadores, sendo que um dos trabalhadores da equipe se dedicava a pescar e caçar para os restantes. Fez um alojamento para o pessoal nas proximidades do local de traba-lho e contratou cada trabalhador com carteira assi-nada por um salário mínimo mensal. Ao final dos três meses, pagou a rescisão de contrato, o propor-cional das férias e décimo terceiro. Ainda tinham direito a receber o FGTS. Ao total, quem trabalhou três meses, teria recebido uns três mil reais.XVII

Segundo um dos entrevistados, da comuni-dade de Santa Cruz, que é identificado como gerente do seringalista, a situação era melhor antes da fis-

XVII Relatos recolhidos o dia 17/06/15.

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Castanhas colhidas na Resex do Médio Purus, no Amazonas

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calização trabalhista, pois o pessoal era mais livre para ir e trabalhar quando quisesse. Por outro lado, também há indícios de represálias após a operação do MTE. Um dos trabalhadores resgatados foi es-pancado por suas denúncias aos fiscais do trabalho, e, posteriormente, ele e sua família foram impedidos de continuar trabalhando no castanhal. XVIII

Por que a situação de Lusitânia não se resolve?

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é o organismo do Mi-nistério de Meio Ambiente responsável pelas uni-dades de conservação no Brasil. A ele cabe “ad-ministrar a Reserva Extrativista do Médio Purus, adotando as medidas necessárias para sua implan-tação e controle, providenciando, no caso de terras da União, o contrato de cessão de uso gratuito com a população tradicional extrativista, para efeito de sua celebração pela Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, e acompanhar o cumprimento das condi-ções nele estipuladas, na forma da lei”.XIX

Segundo o Decreto de Criação da reserva, também cabe ao ICBMBio a desapropriação por “interesse social” dos legítimos proprietários pri-vados identificados dentro da reserva.

“Art. 5º - Ficam declarados de interesse so-cial, para fins de desapropriação, na forma da Lei no 4.132, de 10 de setembro de 1962, os imóveis rurais de legítimo domínio privado e suas benfei-torias que vierem a ser identificadas nos limites da Reserva Extrativista do Médio Purus.

§ 1º O Instituto Chico Mendes fica autori-zado a promover e executar as desapropriações de que trata o caput deste artigo, podendo, para efeito de imissão de posse, alegar a urgência a que se refe-re o art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941”. (Decreto de 08 de Maio de 2008).XX

Segundo o atual gestor da Resex do Médio Purus, José Maria Ferreiro de Oliveira, as expro-priações costumam acontecer por interesse dos proprietários localizados dentro da reserva, e não ao contrário. No caso dos títulos de Oscar Gadelha, parece que ele não tem interesse.

Conforme o presidente da ATAMP, o ICM-Bio já pediu por três vezes a documentação da ter-ra de Oscar Gadelha e ele nunca a entregou, apesar de ele ter afirmado ter entregue os títulos, depois de intimado. O gestor mostrou um mapa do ICM-Bio, em que as áreas tituladas que pertenceriam a Gadelha estariam situadas muito acima, longe do castanhal e das comunidades de Lusitânia, Santa Cruz, Independência e Arudá. O castanhal e estas comunidades não formam parte da área de terra titulada. Segundo o presidente da ATAMP, o cas-tanhal de Lusitânia é o melhor da Reserva Extrati-vista do Médio Purus. A regularização da área fica longe de estar esclarecida.XXI

Quando aconteceu o flagrante de trabalho escravo, a ATAMP e a CPT encaminharam um re-querimento para o ICMBio desapropriar imediata-mente Oscar Gadelha. O documento foi entregue pessoalmente ao presidente da autarquia, segundo o gestor da Resex. Inicialmente, houve demonstra-ção de interesse, porém o assunto não avançou em Brasília.

O assunto foi tratado também em reunião da Comissão Nacional de Prevenção da Violência no Campo, em Manaus, em agosto de 2014.XXII Porém não se conhece nenhum resultado das providên-cias do Ouvidor Agrário Nacional, que se compro-meteu a procurar informações e pedir agilidade na desapropriação. A regularização da área de Lusitâ-nia colocaria fim a este conflito.XXII

XVIII Relatado por José Maria Ferreiro de Oliveira, chefe da Resex do Meio Purus do ICMBIO.XIX http://casa-civil.jusbrasil.com.br/noticias/2236/criada-a-reserva-extrativista-do-medio-purusXX http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Dnn/Dnn11577.htmXXI Entrevista com José Maria Carneiro de Oliveira em Lábrea, 15 de junho de 2015.XXII Ata da 693ª reunião da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, em Manaus, na sede do Incra, no dia 21 de agosto de 2014, às 15 horas.

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A difícil autonomia dos povos tradicionais

Após oito anos de criação da Resex do Mé-dio Purus houve muitos avanços. Porém, de acor-do com os agentes da CPT de Lábrea, continuam muitos dos desafios registrados no início do Pla-no Gestor da Unidade de Conservação: invasão de madeireiros e pescadores, más condições de mora-dia, saúde e educação, problemas na comercializa-ção dos produtos agrícolas das culturas de várzea, da pesca e dos produtos de extrativismo, como a castanha e a seringa. E permanecem os conflitos territoriais.

Estes conflitos preocupam, especialmente, por permitir a atuação dos remanescentes do co-ronelismo, com exploração inclusive de trabalho escravo, dando a impressão de que tudo continua igual ao passado.

A causa principal do conflito é que a desa-propriação da área por interesse social, contempla-da no decreto da criação da Reserva, não ter sido implementada. Mesmo tendo sido encaminhado oficialmente um pedido neste sentido, passado mais de ano, não se tem notícia dos procedimen-tos adotados e sequer se averiguou se o castanhal situa-se efetivamente dentro das áreas tituladas da

família de Oscar Gadelha. O suposto proprietário sequer deixou realizar um mapeamento das casta-nheiras existentes no local e continua ocupando e usufruindo para seu próprio benefício do produto extrativista do melhor castanhal da Resex.XXIII

A fiscalização do Ministério do Trabalho pode até ter fortalecido a posse e o monopólio do castanhal por parte de Gadelha, uma vez que foi tratado como proprietário. A reivindicação do castanhal como área tradicional da Terra Indígena Tumiã, sobreposta à Resex atual, também está pa-rada na FUNAI.XXIV

Os ribeirinhos do Médio Purus foram con-templados com crédito do INCRA, bolsa verde, ajuda para os alagados e está para ser implementa-do o Programa de Habitação Rural. Toda essa as-sistência, porém, pode provocar dependência das comunidades das ações do governo e da própria associação e não promover sua efetiva autonomia.

O plano de manejo do pirarucu, após su-cesso na produção, esbarrou em problemas na co-mercialização gerando insegurança para a conti-nuidade do plano. Isto tem fragilizado a associação e seus dirigentes, causando muito desconforto na relação com parceiros e entre os próprios ribeiri-nhos.XXV

XXIII Ao preço de mercado de $R 25,00 a lata, 1.850 sacas de castanha de 04 latas cada uma, podem oferecer um valor bruto de venda de $R 185.000,00, com despesas trabalhistas aproximadas de $R 57.000,00,representa um bom lucro.

XXIV IInformação de Hoadson Leonardo Silva e Ione Azevedo de Lima, do CIMI da Prelazia de Lábrea.XXV Cartas da CPT Lábrea ao ICMBIO e a ATAMP, de 09 e de 07 de abril de 2015.

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A superfície do estado do Maranhão – 333.366 quilômetros quadrados – corresponde a 3,9% do território brasileiro e 21,3% da região Nordeste. O estado situa-se na faixa de transição entre as regiões Norte e Nordeste, no oeste dessa última.

A empresa colonizadora se instalou tar-diamente no Maranhão. Apesar da presença de africanos escravizados desde cedo, foi somente a partir do final do século XVIII, com a criação da Companhia de Comércio do Grão Pará – Mara-nhão, que o tráfico para a província foi intensifi-cado. Até 1755, calcula-se que entraram três mil escravos no Maranhão. No período de existência da companhia, entre 1755 e 1777, este número saltou para 12 mil. O tráfico crescente de africa-nos alcançou seu apogeu entre 1812 e 1820, che-gando a 41 mil pessoas, de modo que, no limiar da Independência, a população escravizada gira-va em torno de 55% da população total, sendo a mais alta de todo o Império1.

Ela concentrava-se nas fazendas situadas na baixada ocidental e nos vales dos Rios Itapecuru, Mearim e Pindaré. Esses locais tinham uma grande quantidade de matas, rios e riachos. A ocupação dos vales se, por um lado, facilitou a comunicação com a capital da província, por outro criou condi-ções para o surgimento de quilombos em cabecei-ras de rios e locais mais distantes, nas florestas. De tal modo que eles se tornaram um efeito endêmico da sociedade escravista, mesmo que não seja possí-vel precisar o número de quilombos que existiram desde esse período até a Abolição, afirma-se que

Conflito no quilombo Charco, uma novela em muitos capítulos

Maranhão

no Maranhão havia poucas fazendas escravistas sem quilombos à sua volta.

Na segunda metade do século XIX, o re-crutamento forçado de homens para a guerra contra o Paraguai reduziu o nível de repressão pelas forças oficiais e a decadência das fazendas da região tornou ainda mais difícil a repressão à fuga de negros e negras das fazendas para os qui-lombos. De tal modo que no momento da aboli-ção, no interior da província já havia se formado um campesinato livre, porém sem o domínio das terras ocupadas.

As terras ocupadas por comunidades qui-lombolas têm origens diversas: ‘pagamento’ por serviços domésticos e militares, terras abandona-das pelos senhores após a crise econômica, terras pertencentes às ordens religiosas, sobras de terras, lugares de refúgio, etc. Todas, entretanto, com algo em comum – o fato de serem espaços de liberdade e de confrontação ao regime escravocrata.

O fim legal da escravidão em 1888 cons-tituiu-se apenas num ato jurídico formal sem ja-mais ter alcançado o mundo real dos homens e das

1 http://professoralbertochaves.blogspot.com.br/2014/10/historia-do-maranhao-1.html

Flaviano Pinto, líder da comunidade do Charco,

foi morto em 2010.

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mulheres escravizados por não assegurar qualquer direito. Não garantia direitos sobre as terras ocupa-das, nem a qualquer forma de indenização.

Passados 80 anos do fim legal da escravi-dão, os/as camponeses maranhenses que ocupa-vam terras até então consideradas abandonadas pelos antigos sesmeiros ou mesmo terras públicas assistiram à chegada de empresários que se apre-sentaram como proprietários portando registros cartoriais fraudulentos, baseados na lei n°2.979 de 1969, assinada pelo então governador José Sarney.

Assim que o Maranhão, de forma tardia, experimentou sua modernização conservadora na qual o domínio sobre a terra garantiu o controle e imobilização da força de trabalho. Os anos que se seguiram foram marcados pela violência praticada por agentes públicos e milícias privadas como ins-trumento de mediação e controle – a única lingua-gem conhecida – do campesinato maranhense. O progresso do Maranhão foi modelado pela violência.

As décadas que se seguiram viram o avan-ço das pastagens para criação de gado de corte, da soja, e mais recentemente do eucalipto sobre as terras antes devolutas. É comum ouvir dos campo-neses que em suas casas e comunidades chegavam “gente do Sul” com um papel nas mãos dizendo que as terras por eles ocupadas agora lhes perten-ciam e que deveriam ser desocupadas. A resistên-

cia a essas ordens costumavam custar muito caro, como com a própria vida. Entre 1985 – ano do iní-cio da publicação da Comissão Pastoral da Terra sobre conflitos no campo – e 2014 foram registra-dos 143 assassinatos de camponeses e povos tra-dicionais no estado do Maranhão. Desses, apenas dois executores foram condenados, mas nenhum mandante foi a julgamento.

O Avanço das commodities

A Soja - A produção de soja está avançando para novas áreas do estado do Maranhão e deve se expandir por meio de uma combinação de expan-são de fronteira em regiões onde ainda há terras disponíveis, ocupação de terras de pastagens e pela substituição de lavouras onde não há terras dispo-níveis para serem incorporadas. Abaixo o quadro da expansão da soja no estado:

2010 2011 2012

Área plantada (ha)

495.756 531.100 556.178

Produção (ton)

1.322.363 1.561.578 1.640.183

Pecuária de corte - As projeções de carnes para o Brasil mostram que esse setor deve apre-sentar intenso crescimento nos próximos anos. O Maranhão, em 2012, alcançou a 12ª posição entre os estados com maior número de cabeças de gado bovino, e a 4ª em número de búfalos.

Em 2013 o Maranhão foi incluído na zona livre de Aftosa por conta da vacinação, o que causou grande euforia. Nas palavras de Cláudio Azevedo, secretário Estadual de Agricultura e Pecuária:

• De imediato, já há interesse de grandes frigorífi-cos e indústrias de laticínios em investirem no es-tado. Ele citou o grupo JBS (frigorífico), que está se instalando em Açailândia, e o laticínio Betânia, que já adquire leite no Médio Mearim e planeja instalar uma indústria na região. “O Maranhão vai despontar na atração de novos investimentos na agroindústria”.

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A tradição e musicalidade dos quilombolas do Moquibom, do Maranhão

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• Abertura do mercado maranhense de abate e de carne para o país, perspectiva de que o rebanho dobre em cinco anos e chegue a 15 milhões de cabeças, atração de frigoríficos e gado mais valo-rizado.

Celulose e Papel

Os produtos florestais, no Brasil, repre-sentam a quarta posição na classificação do valor das exportações do agronegócio nacional, abaixo do complexo de soja, carnes e sucroalcooleiro. No Maranhão há um crescimento constante do plantio de eucaliptos tanto para a produção de carvão para o ferro-gusa quanto para a alimentação de indús-tria da Suzano que se implanta em Imperatriz para a produção de papel e celulose.

Recentemen-te o governo federal publicou o Decreto 8.447, de 06 de maio de 2015, que dispõe sobre o Plano de De-senvolvimento Agro-pecuário do Matopi-ba e a criação de seu Comitê Gestor. O Maranhão, junto com Tocantins, Piauí e Bahia são parte deste plano “que tem por finalidade promover e coordenar políticas públicas voltadas ao desenvolvimento eco-nômico sustentável fundado nas atividades agrí-colas e pecuárias que resultem na melhoria da qualidade de vida da população”. O Matopiba vem solidificar o avanço do agronegócio sobre as áreas do Cerrado já em grande parte devastado. Lem-

Comunidades certificadas pela FCP3

Processos abertos no INCRA

Territórios titulados

Área titulada Famílias beneficiadas

MA 369 337 38 30.547,4286 2468AP 33 23 0 14.426,43 153PA 161 55 52 606.109,9952 5763TO 27 33 00 00 00MT 66 69 01 11.722,4613 418RO 07 6 01 5.627,3058 12AM 7 4 00 00 00AC 00 00 00 00 00RR 00 00 00 00 00Total Amazônia

670 527 92 668.433,62 8.814

BR 2.474 1.290

brando que o Maranhão possui área de transição entre os biomas Cerrado e Amazônia.

A luta das comunidades quilombolas

Em toda a Amazônia Legal assistimos a uma inércia do poder público no cumprimento do mandado constitucional, Art. 68, ADCT: “Aos re-manescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a pro-priedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

O quadro seguinte destaca os dados do reconhecimento dos territórios quilombolas na Amazônia, conforme informações do INCRA2.

Por este quadro, o Maranhão ocupa o pri-meiro lugar na Amazônia em número de comuni-

dades certificadas pela Fundação Palmares (369), mas destas, 337 tem processos de reconhecimento abertos no INCRA, e somente 38 já têm seus ter-ritórios devidamente titulados, beneficiando 2.468 famílias.

2 http://www.incra.gov.br/tree/info/file/6849 . Acesso em 26 de setembro de 2015.3 http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/crqs/quadro-geral-por-estado-ate-23-02-2015.pdf. Acesso 26 de setembro de 2015

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Apesar de ser um grande avanço, após mais de 350 anos de opressão histórica contra a popu-lação negra, rural e urbana, o século XXI assiste a reedição de medidas sociopolíticas que patroci-nam a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição, através de supressão física e opressão cultural.

As violências perpetradas pelo Estado bra-sileiro contra as comunidades quilombolas assu-mem, na atual conjuntura, uma face verdadeira-mente hedionda. Trata-se não só de assassinatos, ameaças de morte, expulsões, mas também de des-pejos violentos determinados pelo poder Judiciá-rio e de ataques aos direitos adquiridos pelos qui-lombolas no âmbito do Congresso Nacional.

Entre os ataques a esses direitos se desta-cam:

• A Ação Direta de Inconstitucionali-dade (ADI) 3239/2004, proposta pelo DEM (antigo PFL), contra o Decreto 4887/2003;

• A PEC nº 161, de 2007,4 apensada à PEC 2155, já aprovada na CCJ da Câmara;

• E o cada vez mais escasso orçamento pú-blico destinado à titulação de terras de quilombo;

• Em maio de 2013 deputados ruralistas apresentaram pedido de abertura de CPI na Câmara dos Deputados para investi-gar a atuação da FUNAI e do INCRA na demarcação de Terras Indígenas e qui-lombolas;

4 PEC 161/2007 do deputado Celso Maldaner (PMDB/SC). Estabelece que a criação de espaços territoriais a serem especialmente protegidos, a demarcação de Terras Indígenas e o reconhecimento das áreas remanescentes das comunidades dos quilombos deverão ser feitos por lei.

5 A PEC 215 inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a demarcação de terras indígenas e a ratificação das demarcações já homologa-das, que atualmente são atribuições da União e também titulação de terras de quilombo.

Foto: Cristiane Passos/Arquivo CPT Entre os dias 4 e 7 de outubro, povos e comunidades tra-dicionais se mobilizaram em Brasília contra a ofensiva do Judiciário e Legislativo

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• Em abril de 2015, novo Requerimento foi apresentado à Mesa Diretora da Câ-mara Federal com pedido de CPI sobre o mesmo objeto da de 2013.

De Collor de Melo, passando por FHC, Lula da Silva até o atual governo de Dilma Rousseff, a política de Estado obedeceu cegamente às ordens advindas dos setores ultraconservadores do agrone-gócio. A fim de garantir a governabilidade, os su-cessivos governos Lula da Silva e agora Dilma Rou-sseff patrocinaram inúmeras violações aos direitos humanos das comunidades quilombolas brasileiras.

Nesse cenário o INCRA vem respondendo às pressões políticas instituindo rotinas administra-tivas execessivas que tem o objetivo de protelação dos processos uma vez que são ritos não exigidos na Instrução Normativa Nº 57/2009. Desde o início do ano, por determinação da presidencia do INCRA, os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimita-ção (RTIDs) devem ser avalizados pela Presidência e Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundi-ária/DF como pré-requisito para a sua publicação. Também as superintendências regionais estão sendo obrigadas a informarem as “áreas efetivamente ocu-padas” pelas comunidades com processos abertos nas referidas superintendências. Qual o objetivo?

O conflito no quilombo Charco

O território quilombola Charco-Juçaral, formado por 137 famílias, está localizado no mu-nicípio São Vicente Ferrer, às margens da rodovia estadual MA-014, Maranhão. As famílias das duas comunidades são descendentes de negros e negras escravizados nas fazendas do município, no perío-do da escravidão, e ocupam as terras há pelo me-nos sete gerações.

Mas elas nunca tiveram o domínio das ter-ras que ocupavam. Eram obrigadas a pagar a quem se apresentava como proprietário das terras. O pa-gamento devia ser feito em dinheiro ou em produ-tos. Suas casas, construídas de taipa e cobertas de palha de babaçu, expressavam sua vulnerabilidade

e insegurança, como se pudessem a qualquer mo-mento delas serem despejados, expulsos da terra.

A partir do início da década de 1980, o pro-prietário das terras, Gentil Gomes, deu início à expulsão das famílias quando decidiu transformar toda a área em pastagem para gado. Nos anos 2000, passou a não mais aforar o mato para as famílias fazerem suas roças, pois grande parte da área já ha-via sido transformada em pastagem.

As consequências dessa proibição foram drásticas para as famílias quilombolas que viram suas filhas mais jovens partirem para a capital do estado para serem empregadas em casas de famílias e os filhos irem para lavouras de cana--de-açúcar, sobretudo, no interior dos estados de São Paulo e Goiás. Por outro lado, essa situação foi determinante para a insurgência política das comunidades.

Em 2005, a comunidade recorreu aos órgãos fundiários solicitando que o imóvel fosse vistoriado para fins de desapropriação e reforma agrária e que as famílias fossem assentadas. O INCRA então orde-nou a realização de vistoria, com a finalidade de de-sapropriação por interesse social para fins de refor-ma agrária, na área pretendida (“fazenda Juçaral”), designando o perito agrário Celso Orlando Aranha Pinheiro para presidir os trabalhos, em agosto de 2006. Contudo, as expectativas dos moradores da área foram frustradas de forma ilegítima pela equi-pe do INCRA, que concluiu incorretamente pela impossibilidade de desapropriação, ao asseverar:

“A desapropriação do imóvel torna-se in-viável. [...] O imóvel foi fracionado em campo e vendido a proprietários diversos. Três dessas áreas pertencem aos filhos e netos do proprietário, que nelas já foram implantados muitas benfeitorias a mais de 5 (cinco) anos principalmente pastagens, cercas, currais, açudes etc. E ali criam gado bovi-nos [sic], e os outros proprietários [sic], edifica-ram[sic], casas, cercas e diversas culturas, perma-nentes e temporárias.”

A conclusão do INCRA, no entanto, aco-bertara uma ilegalidade: o proprietário da fazen-da Juçaral, Gentil Gomes, repartira o imóvel entre

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Nasilde Gomes Matos, Hugo Flávio Barros Matos e ele próprio, no período de seis meses, no qual não seria considerada a alteração no estado do bem, por força do art.2º, §4º, da Lei nº 8.629/93.

Com efeito, o proprietário fora notificado da vistoria em 28 de agosto de 2006. A vistoria foi realizada de 30/08 a 07/09/2006. Conforme o art. 2º, §4º, da Lei nº 8.629/93, fica vedada a modifica-ção do estado do imóvel pelo período de seis me-ses, a contar da notificação da realização da visto-ria. A divisão da área, porém, foi levada ao cartório da Comarca de São Vicente Ferrer, com base em doação, em novembro de 2006, fragmentando-a, e assim permitindo a conclusão indevida do INCRA, que desconsiderou a redação do dispositivo legal.

Segundo certidão do Cartório de São Vi-cente Ferrer, o imóvel denominado “Juçaral”, então pertencente a Gentil Gomes, com área aproximada de 1.300 hectares (de acordo com título concedi-do pelo estado do Maranhão), foi transmitido a Nasilde Gomes Matos (em 30/11/2006, median-te doação), Manoel de Jesus Martins Gomes (em 30/11/2006), Hugo Flávio Barros Gomes (em 30/11/2006); e remanescendo a área não dividida a Gentil Gomes. As alterações no imóvel foram leva-das a registro cartorial no dia1º/12/2006.

O conflito envolvendo os grileiros de terra Antônio Gomes e Manoel de Jesus Martins Gomes, de um lado, e os trabalhadores rurais quilombolas do Charco, foram evidenciados a partir de 2009, quando as lideranças encaminharam uma série de denúncias ao Ministério Público Federal (MPF): “A área ocupada há muitos anos por diversas famílias, no município de São Vicente Ferrer, estaria em situ-ação de conflito possessório entre os seus integran-tes e fazendeiros locais, tendo havido o despejo de algumas famílias, ordenado pela Justiça Estadual.6

Afirmando ainda que o INCRA não adotara me-didas satisfatórias para solucionar o conflito, bem como não instaurou procedimento administrativo para investigar e apurar o desvio de conduta do ser-vidor encarregado de realizar a vistoria do imóvel”.

Ainda em 2009, a Fundação Cultural Pal-mares certificou que a Comunidade de Charco se auto define como de remanescentes de quilombo na forma do art. 68 do ADCT da CF/88. E no mes-mo ano foi aberto o procedimento administrativo nº 54230004050/2009-28 visando à regularização fundiária quilombola.

A inércia do INCRA foi decisiva para o acir-ramento do conflito. Em 30 de outubro de 2010, às vésperas do segundo turno das eleições, Flaviano Pinto Neto, líder da comunidade e presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Povoado do Charco, foi morto com sete tiros na cabeça. O fato teve repercussão internacional, com exigências de investigação por organismos como a Anistia Internacional.

Ao término do inquérito, após as remessas de praxe, o Ministério Público do Estado do Ma-ranhão denunciou quatro pessoas: Manoel Gomes (um dos maiores empresários da região da Baixada Maranhense), seu irmão, Antônio Gomes (vice--prefeito de Olinda Nova), Josué Saboia (ex-poli-cial militar e pistoleiro) e Irismar Pereira, conheci-do pela prática de pistolagem.

Após o assassinato de Flaviano Pinto Neto o INCRA acelerou procedimento administrativo que resultou no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território quilombola, mas novamente o processo foi engavetado. Vale ressal-tar que a luta das comunidades do território do quilombo Charco foi importantíssima no processo de mobilização e articulação de comunidades qui-

6 Destaca-se do depoimento deles o seguinte: “existe uma área de 1.342 hectares ocupada por 96 famílias que ali residem há muitas gerações; há uma liminar expedida em fevereiro de 2009 por Denise Pedrosa Torres, Juíza de Direito da Comarca de São Vicente Férrer/MA, para que os lavradores se retirassem da referida área; a liminar foi suspensa por quatro vezes; na última suspensão, a Juíza de Direito deu um prazo de 10 dias, a contar de 26 de agosto de 2009, para que a área de 1.342 hectares, objeto de litígio entre os remanescentes de quilombos e Hugo Flávio Barros Gomes, seja comprovada como pertencente à comunidade quilombola; os declarantes procuraram o INCRA várias vezes, e o INCRA não tomou medidas para solucionar o problema; uma das justifi-cativas para a não realização dos estudos pelo INCRA é a falta de antropólogo nos quadros do instituto.”

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lombolas do Maranhão, em especial das filiadas ao Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUI-BOM) e, desde 2013, na construção da Articulação Nacional de Quilombos, com apoio da CPT.

O Relatório Técnico de Identificação e De-limitação (RTID) do território foi concluído em maio de 2012. Dentre suas conclusões destacamos:

1) Acerca das áreas e usos:Áreas de pastagem plantada 355,2304Áreas de pastagem 171,3701Áreas de capoeira mista com babaçu 288,33Áreas de mata com babaçu 315,5174Áreas inundadas parte do ano 38,3403Áreas com solo exposto 43,2306Áreas de preservação permanente 50,457Áreas de roça 75,9739Áreas inaproveitáveis 9,3042

2) Sobre as condições socioeconômicas:3) “O diagnostico evidência uma realida-

de bastante difícil, em decorrência do fator terra que a população quilombola não possui. A falta de produção agrícola e de excedente como fonte de renda, as irregularidades das chuvas, a deficiência educacional, o pouco estímulo às atividades de ge-ração de emprego e renda sinaliza um forte grau de pobreza; a falta de oportunidades para jovens e adultos”.

Mas o relatório não foi pubiclado. Diante da paralisação do procedimento, as comunida-des decidiram retomar o território em setembro de 2012, passando a ter o controle sobre a área reivindicada como território quilombola. A reto-mada foi necessária para que os fazendeiros não destruíssem todos os recursos naturais indispen-sáveis para a reprodução física e cultural das co-munidades.

Diante deste fato, o INCRA publicou o RTID no Diário Oficial da União no dia 27 de se-

tembro de 2012. A Portaria de reconhecimento do território quilombola Charco, porém, só foi pu-blicada em 20 de março de 2014. Finalmente no dia 23 de junho de 2015, a presidenta Dilma Rou-sseff assinou Decreto que declara de interesse so-cial, para fins de desapropriação, os imóveis rurais incidentes sobre o território quilombola Charco, localizado no município de São Vicente Ferrer, es-tado do Maranhão. Esse é o padrão adotado pelo INCRA: muitos processos abertos e pouquíssimos concluídos. Enquanto isso comunidades e lideran-ças ficam cada vez mais vulneráveis.

Sobre o assassinato de Flaviano Já se passaram mais de cinco anos do assas-

sinato de Flaviano Pinto Neto e os acusados por sua morte continuam sem serem julgados. Fugin-do ao padrão, em março de 2011, o inquérito po-licial foi concluído e foram indiciados Manoel de Gentil, Antônio de Gentil, Josué Saboia e Irismar Pereira. Depois de remetido ao Judiciário, o Minis-tério Público Estadual, em 1º de abril daquele ano, apresentou denúncia contra os acusados.

Em outubro de 2012, o juiz da comarca de São João Batista julgou-se incompetente para julgar a ação e remeteu o processo criminal para a Justi-ça Federal porque, segundo ele, o crime acontece-ra numa disputa por terra envolvendo comunidade quilombola. Em função dessa decisão o processo permaneceu parado por dois anos, voltando a tra-mitar somente em setembro de 2014. O juízo da Co-marca, em 14 de novembro de 2014, sentenciou que os denunciados pelo Ministério Público Estadual, Manoel de Jesus Martins Gomes, Antônio Martins Gomes (mandantes) e Josué Saboia (intermediário) fossem levados a Júri Popular para serem julgados.

Essa decisão, entretanto, foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Maranhão no dia 28 de se-tembro de 2015.

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Mato Grosso está localizado a Oeste da re-gião Centro-Oeste. Limita-se com os estados do Amazonas e Pará, ao Norte; Tocantins e Goiás, ao Leste; Mato Grosso do Sul, ao Sul; Rondônia e Bo-lívia, a Oeste. Sua capital é Cuiabá e sua economia se baseia no agronegócio.

Mato Grosso já foi território espanhol pelo Tratado de Tordesilhas (7 de junho de 1494). Os jesuítas, a serviço dos espanhóis, criaram os pri-meiros núcleos habitacionais, de onde foram ex-pulsos pelos bandeirantes paulistas em 1680. Em 1718, a descoberta do ouro acelerou o povoamen-to. Em 1748, para garantir a nova fronteira, Portu-gal criou a capitania de Mato Grosso e lá construiu um eficiente sistema de defesa. Com os Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), Espanha e Portugal estabeleceram as novas fronteiras.

Assentamento na mira de quadrilha especializada em grilagem de terras

Mato Grosso

A produção de ouro começou a cair no iní-cio do século 19, levando a um processo de estag-nação do estado. No final do século XIX, início do século XX, se dá início a um movimento separatis-ta, sufocado com intervenção do governo federal. A economia do estado começou a melhorar quan-do foram implantadas estradas de ferro e telégra-fos. A partir daí, o estado retomou o desenvolvi-mento com a chegada de seringueiros, pessoas que cultivavam erva-mate e criadores de gado.

Os atuais estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul formavam uma única unidade fe-derativa. O governo militar decretou a divisão do estado em 1977, com a justificativa de promover o desenvolvimento econômico da região.

A economia do estadual está vinculada à agropecuária. O Mato Grosso é o maior produtor

Foto: CPT Mato Grosso

Moradores do Projeto de Assentamento Bridão Brasileiro ocupam a sede INCRA em Confresa.

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nacional de algodão. Mas o que domina a econo-mia do estado é a pecuária e o cultivo da soja, res-ponsáveis pelo desmatamento. O estado produz 30% da soja brasileira. Cresce também a área para a produção de cana de açúcar. Com isso, somente entre 2001 e 2004, conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), foram desmatados 38 mil quilômetros quadrados de floresta Amazô-nica

Segundo o Sistema de Estatísticas de Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro (AgroStat) do Ministério de Agricultura, Pecuá-ria e Abastecimento (MAPA), Mato Grosso foi o segundo maior estado exportador de produtos do agronegócio em junho de 2015, perdendo apenas para São Paulo. As vendas externas do estado so-maram US$ 1,48 bilhão no mês.

A ocupação do campo pelo agronegócio está na raiz dos conflitos que são registrados e di-vulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em seu relatório anual Conflitos no Campo Bra-sil. Um dos casos recentes de conflito e violência é o do Projeto de Assentamento Bridão Brasileiro. Confira abaixo:

Bridão Brasileiro

O Projeto de Assentamento Bridão brasi-leiro está localizado nos municípios de Confresa e Vila Rica, na região Norte Araguaia, em Mato Grosso. Tem uma área de 19.972 hectares de flo-resta Amazônica e Cerrado.

Bridão Brasileiro era e continua sendo uma terra fértil, onde tudo que se planta produz. Área farta de recursos hídricos, cortado pelo Rio Pre-to, que divide os dois munícipios de Confresa e Vila Rica. Em Confresa estão se instalando muitos órgãos públicos e grandes investimentos do setor privado, tornando-se assim um grande polo de desenvolvimento da região. Isso tem atraído um grande número de migrantes em busca de terra e de oportunidades de trabalho.

Para Confresa, migraram maranhenses, pa-raenses, goianos e mineiros e muitos trabalhadores

que foram contratados para trabalhar na Destilaria Gameleira, uma usina de cana-de-açúcar flagrada diversas vezes com casos de exploração de traba-lho escravo. Após a desativação da Destilaria, estes trabalhadores se juntaram aos demais migrantes e buscaram terra para trabalhar e produzir para ali-mentar suas famílias. Desta forma, foram criados no município 15 assentamentos com mais de cinco mil famílias assentadas.

Bridão Brasileiro era uma fazenda impro-dutiva, que tinha como “proprietário” Osvaldo Munhoz. Em 1995, 170 famílias sem terra ocupa-ram esta área tornando-a produtiva com uma pro-dução bem diversificada: arroz, milho, mandioca, batata, cará, além de diversas fruteiras e criação de pequenos animais. E em 2000, foi criada a Asso-ciação de Pequenos Produtores Rurais da Gleba Bridão Brasileiro para os ocupantes melhor se or-ganizarem e resolverem problemas comuns.

Depois de alguns anos de tranquilidade, em 1999, Osvaldo Munhoz entrou na Justiça com uma ação de reintegração de posse contra os que ocupa-vam a área. Ele teve ganho de causa, mas o manda-do de reintegração de posse foi suspenso, pois ele concordou que a área poderia ser desapropriada para fins da reforma agrária.

Mas como o processo de desapropriação não teve encaminhamento, ele voltou a acionar a Justiça, que, no início de 2002, emitiu novo man-dado de reintegração de posse, dando prazo para a retirada dos ocupantes. Soube-se posteriormente que área já tinha sido vendida a terceiros por pre-ços irrisórios, mas que a ação judicial continuava em seu nome.

A decisão judicial ressaltava: “Em não sen-do cumprida a determinação nesse prazo proceda--se à desocupação forçada sem destruir eventuais plantações e barracos, com cautela e ponderação devendo ser acompanhada pelo oficial de Justiça devendo o comandante da operação relatar cir-cunstanciadamente o ocorrido”.

As orientações inseridas no mandado de reintegração de posse sobre a forma de sua execu-ção foram totalmente ignoradas. “Não deixaram as

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pessoas tirar seus pertences pessoais e nada de suas plantações. Espancaram pessoas, derrubaram qua-se todas as casas”, conta Joel Francisco da Silva, 64 anos, que tem seu nome na relação de beneficiários da reforma agrária, juntamente com seu filho, Ge-nivaldo da Silva, presidente da associação na época do despejo.

A área era ocupada por 170 famílias, mas o oficial de Justiça, Vanderlei Matte, assentou em sua certidão que existiam somente 12 casas. Todavia, segundo Joel Francisco, havia ao todo pelo menos 60 barracos.

Por causa da violência sofrida, a saúde de seu Valdomiro e Zezinho, dois posseiros espanca-dos, nunca mais foi a mesma. Ficaram as sequelas das pancadas que eles receberam na cabeça, dadas pela polícia, conforme relatou dona Aparecida, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Tra-balhadoras Rurais de Confresa.

Essas famílias despejadas acamparam às margens da BR-158, onde permaneceram aproxi-madamente um ano. Após esse período decidiram acampar na beira da cerca da fazenda. Nesta oca-sião o INCRA prometeu desapropriar a fazenda o

mais rápido possível. Até criou uma vila onde essas pessoas poderiam residir, mas não poderiam voltar aos lotes que ocupavam antes de terem sido despe-jadas. Isso em cumprimento ao que determina a lei nº 8.629/93, que em seu art. 2º, §6º, incorporou o estabelecido pela Medida Provisória nº 2.183/01, impede que imóveis rurais esbulhados sejam ob-jeto de vistoria, avaliação ou desapropriação para fins de reforma agrária, nos dois anos seguintes à desocupação (ou em quatro anos, em caso de rein-cidência).

O imóvel rural de domínio públi-co ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será visto-riado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua deso-cupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade ci-

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vil e administrativa de quem con-corra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o des-cumprimento dessas vedações.

Em dezembro de 2006 o imóvel denomina-do fazenda Bridão Brasileiro, com área registrada de 19.720,0000 ha (dezenove mil setecentos e vin-te hectares) e área encontrada de 18.656,5771 ha (dezoito mil, seiscentos e cinquenta e seis hectares e cinquenta e sete ares e setenta e um hectares), lo-calizado nos municípios de Confresa e Vila Rica, no Mato Grosso, foi desapropriado para fins de re-forma agrária, pelo Decreto de 13 de Dezembro de 2006, que foi publicado no Diário Oficial da União, de 14/12/2006. O INCRA foi imitido na posse do mesmo em 31 de maio de 2007.

Mas enquanto as famílias despejadas que pertenciam à Associação Bridão Brasileiro aguardavam no acampamento a desapropriação prometida pelo INCRA, um grupo de famílias de Confresa e de municípios vizinhos, formada por comerciantes, políticos locais e oportunistas, ocupou a área. Alguns ocupavam até mais de três lotes. Isso gerou insatisfação e revolta das famí-lias acampadas e uma disputa pela área. Depois de ser imitido na posse da área da fazenda, 2007, o INCRA começou a regularização dos lotes sem averiguar se as famílias se enquadravam nos cri-térios para inclusão na Relação de Beneficiários (RB). A RB original foi elaborada por alguns fun-cionários do INCRA, mas na hora de assentar as famílias foram outros os que conduziram o pro-cesso e modificaram a RB, acrescentando pessoas da segunda ocupação e deixando fora pessoas da primeira, causando assim conflitos e acirrando uma interminável disputa interna.

Ameaças e pistolagem

Por trás de todo este e muitos outros con-flitos por terra na região do Araguaia se escondia

uma quadrilha especializada em grilagem de ter-ras. Esta quadrilha desmontada em 2009 pela Polí-cia Federal tinha como grande líder e mentor Gil-berto Luiz de Rezende, o Gilbertão. De acordo com o inquérito da PF, Gilbertão estimulava a invasão de terras da União, inclusive em reservas indígenas e privadas, por posseiros para depois expulsar os ocupantes, comprando a posse ou fazendo uso de violência física e moral.

Em seguida ele providenciava a emissão de títulos de domínio falsos para a comercialização dos lotes a médios e grandes fazendeiros e a gru-pos empresariais. É justamente na expulsão desses posseiros, muitas vezes enganados pelo próprio lí-der da quadrilha, que os policiais militares atuam. A PF identificou a participação de seis policiais militares no esquema. Muitas vezes, coronéis utili-zavam da estrutura da instituição para agir contra o patrimônio. Então, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) acusaram Gilbertão de comandar a invasão e grilagem da fazenda Bridão Brasileiro. A forma truculenta do despejo lá realizado pela po-lícia, ignorando a determinação judicial, teria sido realmente comandada por Gilbertão, conforme es-creveu Alline Marques, em 05/07/2009, em Olhar Direto1.

O presidente da Associação do Bridão, no inquérito da PF em 2009, além de denunciar os abusos da polícia militar, denunciou também que jagunços chefiados por Gilbertão participaram da ação de despejo das famílias. Ele também se-ria o responsável pela ocupação da área, enquanto as famílias despejadas aguardavam a decisão do INCRA. Anos antes, em 2005, a Comissão Parla-mentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra, havia realizado uma audiência pública em Confresa. Na ocasião, a presidente do Sindicato dos Trabalhado-res Rurais, Aparecida Barbosa da Silva, relatou que “Gilbertão” estava por trás dos conflitos agrários mais violentos da área, com fortes suspeitas de en-volvimento em homicídios.

1 http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=35122, acessado em 15/02/2016.

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Conforme relatório da CPMI da Terra, em 2004 foi morto um funcionário da empre-sa Arroz Tio Jorge e ocasionou a prisão de sete trabalhadores. Segundo as famílias do assenta-mento, o que possivelmente pode ter ocorrido foi que um grupo querendo tirar proveito da si-tuação matou um dos funcionários da empresa para incriminar as famílias do assentamento. A questão é que os sete agricultores foram soltos por ausência de provas.

Situação atual das famílias

Famílias da primeira ocupação, cansadas de esperar pela regularização, foram para as periferias de Confresa e arredores. Outros foram trabalhar como peões de fazenda, ou nos mercados locais e em trabalhos informais.

Em 2014, sete anos após o INCRA ter sido imitido na posse do Bridão, os moradores do Pro-jeto de Assentamento Bridão Brasileiro, junto com as famílias que ainda não tinham sido assentadas, ocuparam a sede INCRA em Confresa. Pressiona-do, o executor do INCRA, em reunião, se compro-meteu a notificar as pessoas que ocupavam lotes de forma irregular, a promover a regularização dos assentados que estavam em situação irregular e a analisar a situação das famílias relacionadas na Re-lação de Beneficiários e que ainda não foram as-sentadas.

Descaso do Estado

Se o INCRA tivesse cumprido seu papel, a situação seria bem diferente. Mesmo com algumas famílias assentadas, não foi feita a infraestrutura ne-cessária para uma vida digna no campo. A situação das pontes é precária, a escola funciona em barracos improvisados... Um trator da prefeitura no assenta-mento beneficiava apenas pequenos grupos.

Entidades de apoioA luta do Bridão Brasileiro foi acompa-

nhada de forma firme e lúcida pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da Confre-sa, cuja presidente era dona Aparecida Barboza da Silva. Ela relata:

“Sempre militei no STTR [Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais]. A Minha indignação é que fez com que eu lutasse para a re-tomada do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Confresa. Criamos um grupo de trabalhadores, voltado para cumprir verdadeiramente nossa mis-são. Concorremos e ganhamos em 2003. Sempre lutamos pela posse da terra. Não conto as audiên-cias em Brasília e em Cuiabá e o INCRA patinando e nunca que foi resolvido [...]”.

Aparecida continua: “Tinha sempre uns candidatos ao STTR que eram financiados pelos fazendeiros e eu sempre ganhava e, às vezes, ti-nha uma perseguição contra mim. Os fazendeiros sempre me odiaram porque conseguimos fazer um trabalho forte em relação ao trabalho escravo. Fui ameaçada inúmeras vezes, perdi até as contas das ameaças que recebi. Era perseguida de inúmeras formas. Por carros, telefonemas e bilhetes. Porque sempre cumpri um papel em defesa dos trabalha-dores. Comecei essa luta aos 16 anos”.

E ao lado do sindicato, a CPT acompanhou todo o conflito, como destaca dona Aparecida:

“Desde o ano de 1980 sempre trabalhei jun-to à CPT, que acompanhou desde o início a luta da comunidade e as manifestações e reivindicações por direitos. São sete anos desde a desapropriação da fazenda e, até agora, nada foi feito para regulari-zação das famílias. Infelizmente, a reforma agrária no país não é prioridade”. Atualmente a CPT têm contribuído no encaminhamento de denúncias so-bre a situação das famílias, cobranças no INCRA e pedido de intervenção do MPF no caso, para que a situação seja solucionada.

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Cenário descrito pela equipe da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da BR-163 e redigido em agosto de 2014 destaca que “o processo de ocupa-ção desta região (Oeste do Pará) não foge do con-texto histórico geral do processo de ocupação da região amazônica. No início dos anos 1970 esse processo foi intensificado com os grandes projetos de abertura das rodovias, BR-230 (Transamazôni-ca) e BR-163 (Cuiabá-Santarém). Esse fator pro-porcionou a vinda de uma grande quantidade de imigrantes de diversas partes do Brasil para povoar essa região”.

“Entretanto, na atualidade, vivemos outro tipo de ocupação, proporcionado pelos mega pro-jetos gananciosos do grande capital internacional auxiliado pelo Estado brasileiro. Em nível de re-gião amazônica, já são vários projetos em execução em diversas partes do bioma. As usinas hidrelétri-cas do Rio Madeira e a usina de Belo Monte são a face real deste desenvolvimento que não é para as populações tradicionais e não considera a existên-cia destas populações, como sujeitos de direitos. [...] O grande problema para a agricultura fami-liar nesta região é o avanço do agronegócio com a monocultura da soja, do milho e da pecuária extensiva, usando a BR-163 como corredor de ex-portação. Este modelo desenvolvimentista agroex-portador imposto na Amazônia expropria e expul-sa os agricultores de suas terras, obrigando estes a se mudarem para as periferias das cidades ou vilas rurais, tornando a zona rural um espaço vazio de pessoas, porém, ocupado por grandes plantações de soja, milho ou pastagens para o gado. Apesar da acumulação de terras e do processo de exclusão dos pequenos agricultores do acesso a políticas pú-blicas, eles não desapareceram e vêm contribuindo

Conflito gerado por desmandos de funcionários do INCRA

Pará

Foto: Articulação das CPT’s da Amazônia

Associação da Comunidade Menino Jesus, em Trairão

de forma expressiva com a produção de alimentos para o mercado local e regional. A luta dos traba-lhadores e trabalhadoras contra a expropriação e pela permanência na terra em condições dignas, é o que fundamenta o trabalho da CPT nesta região”.

“No entanto, a realidade aqui tende a pio-rar. Após sete anos que o Ministério Público Fe-deral (MPF) embargou mais de cem projetos de assentamentos na Amazônia, deixando milhares de famílias sem-terra desabrigadas, sobrevivendo

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nas periferias das cidades em situação de miséria e de vulnerabilidade ao trabalho escravo. Estas áre-as onde seriam assentadas as famílias, hoje estão todas ocupadas por grileiros, madeireiros e pecua-ristas. As famílias continuam na relação de benefi-ciárias da reforma agrária (RB), porém não sabem onde fica sua terra e o INCRA não tem um plano definido para resolver esta situação”.

“A concentração de renda provocada pelas políticas de incentivo por si só já são danosas para esta região, visto que beneficiam somente os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros, porém o problema maior está relacionado à questão das lutas dos trabalhadores rurais pela posse e perma-nência na terra. Neste contexto, a região do Tapajós também é alvo da cobiça e da ganância do capital. Hoje já são projetadas mais de 10 barragens para o chamado complexo do Tapajós, acompanhadas de hidrovias e portos para exportação de commoditties agrícolas, ferrovias e um entroncamento rodoviário. Aumenta, assim, a pressão sobre a floresta e as po-pulações que habitam esta região há séculos”.

“O capital internacional tem avançado nos últimos anos e, de forma autoritária, o governo bra-sileiro tem intensificado o processo de destruição dessa região, principalmente com relação ao meio ambiente, uma vez que essa região é considerada

uma das mais preservadas, com grande potencial de florestas, sendo uma das últimas fronteiras de floresta primária do estado do Pará, tendo como seu maior ecossistema as florestas de terra firme, que se distribuem ao longo das bacias dos Rios Ta-pajós e Xingu (Riozinho do Anfrízio)”.

“Outra pressão sobre a região é o asfaltamen-to da BR-163 que servirá para escoamento de pro-dutos agropecuários do Mato Grosso para o porto de Santarém e as hidrelétricas e hidrovias, ligando o Rio Tapajós – Rio Teles Pires – Rio Juruena. (Pos-teriormente surgiu a proposta de construção de um porto graneleiro em Itaituba). Em relação ao com-plexo hidrelétrico do Tapajós, o governo prioriza a construção da barragem de São Luiz do Tapajós com potência de 8.133 MW que irá inundar 784,82 km², onde os estudos já foram concluídos e apresentados. Além dos impactos diretos sobre as populações e unidades de conservação, os estudos realizados pela ANEEL ainda demonstram que é prevista a chegada de 130 mil migrantes em busca de “oportunidades” de trabalho. [...] Diante dessa realidade, a popula-ção urbana e rural que habita nesses municípios não dispõe de serviços públicos eficientes de atenção à saúde e educação ou de apoio à agricultura familiar e/ou de valorização das culturas das comunidades tradicionais. Com infraestrutura precária, as pou-cas estradas existentes são intrafegáveis durante o inverno, deixando comunidades isoladas. Para so-breviver, muitos camponeses reproduzem a prática da aliança com madeireiros e fazendeiros, comum na região Amazônica, em função da ausência do Es-tado. São estes que abrem estradas e que, por terem veículos, criam também dependência no transporte da produção e das pessoas”1.

Conflito dos posseiros da Vicinal 30 do Projeto de Assentamento Ipiranga

O Projeto de Assentamento (PA) Ipiranga foi criado em 1982 pelo Instituto Nacional de Co-

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Cerca em construção no Projeto de Assentamento Ipiranga, em Trairão

I Projeto CPT BR163 aprovado por Misereor em 2015.

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lonização e Reforma Agrária (INCRA) com 326 lotes rurais para assentamento de agricultores fa-miliares, distribuídos nas vicinais 20, 25 e 30, em área dos municípios de Trairão e Itaituba, no Pará.

Mas o assentamento enfrentou problemas desde o início. Em 2004 chegaram madeireiros e grileiros à região, tentando expulsar os posseiros. Houve inclusive ameaças de morte. Assim, em 14 de dezembro de 2004, Vanderlei de Oliveira, An-dré da Silva Soares e Jairo Osório Ronaldo dos Santos denunciaram à Superintendência Estadual do INCRA em Belém que Erasmo Ribeiro Alves, conhecido com Amaral, vinha há algum tempo “causando terror psicológico junto aos agriculto-res do assentamento”. A denúncia pedia também uma auditoria na superintendência do INCRA em Itaituba.2

Os conflitos, porém, se avolumaram, so-bretudo a partir da segunda metade da década de 2000. Mas tiveram sua origem à época da criação do assentamento. Um antigo servidor do INCRA colocou como beneficiários da reforma agrária pa-rentes e vizinhos de sua cidade de origem no Para-ná, que na realidade nunca foram morar na região. Em nome deles foram titulados diversos lotes.

Em uma ação, o INCRA constatou a existên-cia de 44 lotes desocupados na localidade Vicinal 30, entre os anos 2000 e 2007. Os posseiros relatam que o INCRA de Rurópolis realizou reunião no lo-cal e incentivou a ocupação dos lotes abandonados por pequenos agricultores, dizendo que a terra era do INCRA e está era para o trabalhador rural morar. Em 2009, Franklin Batista, chefe do órgão em Ruró-polis, durante reunião na área, dizia: “Vocês que es-tão ocupando os lotes são os verdadeiros donos dos lotes”. Famílias de agricultores passaram a ocupar as unidades familiares de 100 hectares na Vicinal 30 e desempenhando suas atividades de agricultura familiar. Elas receberam documentação fornecida pelo INCRA onde constava protocolo de ocupação

e memorial descritivo da área. Porém, o órgão não os regularizou como assentados.

Em 2010, um paranaense, Ivo Eduardo Welter, passou a reivindicar diversos lotes da Vi-cinal 30, dizendo-se representante de parentes e vizinhos que constavam na lista de assentados nos lotes em que nunca tinham morado lá e ocupado efetivamente. Segundo levantamentos posteriores, alguns dos beneficiários eram dentistas, atletas, e outros. Pessoas sem perfil para reforma agrária, que moravam no Paraná e não trabalhavam nem ocupavam a terra do assentamento.

O fazendeiro que reivindicava as terras morava em Itaituba, onde seus filhos tinham uma firma de comercialização de madeira. Como pro-curador de pessoas que constam na lista oficial de assentados, entrou na Justiça com ações de rein-tegração de posse contra vários dos posseiros que moravam e trabalhavam no local. A justiça deu a ele ganho de causa e, em 2011, foram despejadas diversas famílias. Outras já tinham sido expulsas pela polícia ou pelo próprio fazendeiro, antes mes-mo de conseguir ordens na Justiça. O próprio fa-zendeiro reconheceu ter derrubado algumas casas, que dizia ser de parentes, sem ordem da Justiça. Segundo os posseiros, o fazendeiro aproveitava os momentos que os donos tinham saído, chegando armado. Com trator, passava enleirando as roças e plantando capim. Assim formou uma fazenda, concentrando diversos lotes de reforma agrária.

Após denúncias, com Ivo E. Welter, em 21/02/2011, foram apreendidas diversas armas. Ele ficou preso algumas semanas, respondeu a proces-so e foi condenado em 28 de maio de 2013 a dois anos de prisão e multa, trocados por penas alterna-tivas por ser réu primário3. Porém manteve a ocu-pação das terras e dos lotes tomados por ele. Nestes lotes foram colocadas numerosas placas indicando existir um plano de manejo florestal. Na realida-de, após denúncias dos posseiros, foi comprovado

II Denúncia dirigida ao “Presidente do INCRA/Estado do Pará” 14/12/2004 por Vanderlei de Oliveira e outros. III Processo de nº 0000871-69-2011-814-0024.

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pelo INCRA que não eram planos de manejo lega-lizados. O IBAMA chegou a apreender na fazenda uma serraria de pequeno porte e um trator de es-teira, que continuou sendo usando na fazenda.

A Comissão em Defesa da Vida de Trairão, em 12 de março de 2012, enviou ofício ao Procu-rador da República Claudio Henrique Machado Dias relatando as dificuldades e a impotência dos posseiros: “O projeto Ipiranga tornou-se um dos maiores conflitos e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadores Rurais de Trairão não sabe mais a quem recorrer, pois o mesmo já esteve acom-panhando o INCRA em duas reuniões apoiando a fixação dos agricultores naquela área nos anos 2009 a 2011. Os agricultores que tiveram o apoio do INCRA para se instalar naquela área estão sen-do ameaçados diariamente por pessoas que dizem donos, que apresentam documentos do INCRA com grandes quantidades de terras. [...] Senhor Procurador da República, acreditamos no seu bom desempenho que interceda por estes agricultores diante do INCRA para que os agricultores não pa-guem os descasos do INCRA com a vida”4.

Em outubro de 2012, o INCRA fez vistoria5 nas parcelas 46, 47, 48 e 49 do PA Ipiranga e cons-

tatou que as mesmas estavam abandonadas pelos beneficiários titulares. O relatório fez constar que estes (os beneficiários) tinham residência no Para-ná e que desde os anos 2008 e 2009 a terra estava ocupada por outras pessoas. Com isso, o INCRA entendeu que as pessoas despejadas tinham direito a voltar à terra. Porém, posteriores vistorias (contesta-das pelos posseiros como inverídicas) relatam a pre-sença de moradores inexistentes e ignoram alguns dos mais antigos posseiros. Servidores do INCRA foram denunciados por atuar de má fé e rejeitados pelos posseiros, pedindo novas vistorias. Desta for-ma, houve novo despejo das famílias em nova ação de reintegração de posse. Neste despejo três agricul-tores foram presos e acusados de opor resistência ao mandado judicial: Edgar da Silva Moreira, Erandir Abreu de Souza, e Evangelista Rodrigues Cordeiro da Silva. O presidente da Associação Arco Iris preso por defender os trabalhadores.

A Associação Arco Iris, formada por famí-lias do assentamento, enviou, no dia 5 de novem-bro de 2012, ofício ao Superintendente do INCRA em Santarém, em que denuncia: “No PA Ipiranga

IV Comissão em Defesa da Vida ao Procurador da República Claudio Henrique Machado Dias, em 12/3/12.V “Relatorio de vistorias em parcelas do PA Ipiranga (Município de Itaituba-PA) de Edson Valério Nunes, Edioni Gomes da Costa, Luiz Fernando de Araújo

e Thiago Braga Duarte.

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Superintendência do Incra em Santarém, no Pará

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encontra-se a maior concentração de módulos de cem hectares em posse de pecuaristas e madeirei-ros, inscritos em nome de laranjas”. O ofício elenca as irregularidades existentes: extração ilegal de ma-deira e palmito, projetos de manejo florestal para esquentamento de guias para transporte de madei-ra, presença de homens armados para dar suporte aos supostos “donos” dos lotes, desmatamento ile-gal para formação de pastagens em áreas de mane-jo e comercialização de lotes. O ofício afirma ainda que “As famílias de agricultores perderam as contas das perdas causadas pela ausência do INCRA”. E conclui: “Está demanda vem se arrastando há dez anos e resistimos, pois precisamos da terra para trabalhar e produzir agricultura familiar.”6

Os problemas da região não somente acon-tecem no PA Ipiranga. Não muito longe de lá, no PA Areia, de Trairão, existe atuação intensiva de madeireiros, acobertados por pistoleiros. Quatro posseiros foram ameaçados de morte. Segundo técnicos o INCRA, uma terceira parte do assenta-mento está nas mãos de fazendeiros, que continu-

am concentrando lotes e dificultando a regulariza-ção dos posseiros do assentamento que tem perfil para serem assentados.

Os posseiros da Vicinal 30 e as entidades de apoio

Segundo moradores, na Vicinal 30 do PA Ipiranga a maioria das famílias são migrantes che-gados do Maranhão e do Mato Grosso. Um deles conta que morava na cidade de Trairão há uns 15 anos e faz uns 10 que foi ao Vicinal 30, dentro do município, em busca de terra para viver. Antes não tinha estrada na Vicinal e o local começou a se de-senvolver apenas de 2002 para cá. Na área não ti-nha moradores.

Os posseiros criaram a Associação de Mo-radores Arco Iris em 2007, conseguindo registra-la oficialmente em 2010, sendo Evangelista Rodri-gues Cordeiro da Silva o presidente desde 2009. Atualmente a Associação Arco Iris conta com 35 associados da Vicinal 30. Apenas três estão assen-tados oficialmente, os demais são posseiros. As

VI Ofício GSI/n. 020/2012 de 05 de Novembro de 2012, assinado por Evangelista R.C. da Silva da Associação dos Moradores Arco Iris CNPJ 12.428.358/0001-07, dirigido ao Eng. Marcos Alexandre Kowarik, superintendente do Incra de Santarém.

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Porto de Soja em Itaituba, no Pará

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famílias de sete lotes que foram despejadas estão morando na rua, no Trairão, trabalhando como podem, em serrarias e outros lugares. Continuam participando das reuniões da Associação, esperan-do a realização de uma vistoria nestes lotes.

Na época de maior conflito, as famílias ti-veram apoio da Comissão Verbita de Justiça e Paz, Paróquia São José Operário de Trairão, e da Co-missão Pastoral da Terra. Também foram apoiadas pelos sindicatos, com os quais continua boa rela-ção, apesar das reclamações de que, hoje, os mes-mos não se envolvem muito na busca por resolu-ções dos conflitos. Também contam com ajuda de outras associações em Trairão, como a Associação do Assentamento Menino Jesus. Segundo a comu-nidade, a CPT tem ajudado a reunir as diversas associações em espaços de formação, análise de conjuntura, e reivindicações, como o programa Luz para Todos para os assentados, e ao apoiar o povo para que consigam pequenos projetos socio-ambientais.

O grupo foi defendido juridicamente pelo Padre José Boing, da Associação de Justiça e Paz e advogado da CPT. Hoje tem o apoio jurídico da organização Terra de Direitos, através do advoga-do Pedro Sergio Vieira, após, em 2012, a organi-zação estabelecer escritório em Santarém. Terra de Direitos junto com a CPT também acompanha a inclusão de ameaçados – um deles do conflito do PA Ipiranga – no Programa de Proteção aos Defen-sores dos Direitos Humanos.

Atuação do poder público no conflito

Segundo as famílias de posseiros, o parana-ense Ivo Eduardo mostrava “ódio aos agricultores remanescentes de comunidades tradicionais, de pele morena, nortistas e nordestinos”, e acreditam que ainda hoje ele conta com apoio no INCRA, na

justiça de Itaituba, de madeireiros e polícia7. Em geral, para os posseiros a maioria de instituições públicas está contra eles e o fazendeiro conta com apoio das autoridades locais.

Os posseiros citam dificuldades na Delega-cia de Polícia Civil de Trairão, onde foram registra-das muitas ocorrências sem que fossem tomadas providências. A partir de 30/04/2012, “a autorida-de policial civil desta cidade se recusava em fazer boletins de ocorrência relativos a situações confli-tuosas nesta área do PA Ipiranga”.8 Após interven-ção da advogada da Terra de Direitos, ao falar so-bre entrar com representação judicial, a delegacia voltou a receber denúncias. Também por pressão do Programa de Proteção aos Defensores dos Di-reitos Humanos, houve diversas trocas de delegado local em Trairão. Um capitão da PM da região foi denunciado como dono de diversos lotes dentro do assentamento.

Na Justiça Estadual de Itaituba, os possei-ros, como é habitual nas liminares de reintegra-ção de posse, foram despejados sem poder se de-fender das acusações, pois “nunca souberam que havia uma ação contra eles antes de 1º de Agosto de 2011”9.Sofreram duas reintegrações de posse. Em 2011 e em 2012 nos mesmos lotes (46, 47, 48, 49. Gleba 01G). O INCRA mandou voltar para as casas, porém foram expulsos novamente e tiveram as casas derrubadas com moto serra. No final de 2014 houve um terceiro processo de reintegração de posse no Lote 42 da Gleba 01H de um posseiro da Associação Arco Iris. Porém, a juíza, depois de ouvir o posseiro, não deferiu o pedido de reinte-gração.

Acusado de pistolagem, o fazendeiro che-gou a ficar preso por uns trinta dias por porte ilegal de arma de fogo e, posteriormente, foi condenado. Alguns posseiros reclamam que foram chamados para uma nova audiência como testemunhas, po-

VII Relatório de 29/1/2012, protocolado no INCRA VIII Relatório dos Moradores dp PA Ypiranga de 29 de maio de 2012. Comissão Em Defesa da Vida.IX Dr. José Boeing, svd OAB/PA 10.427. 01/02/2012.

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rém a mesma já foi remarcada por três vezes, e por três vezes eles foram a Itaituba e a audiência não aconteceu. Somente os réus haviam sido avisados.

Enquanto isso, no INCRA, o processo segue um complicado itinerário, com vistorias e contra vistorias. A primeira vistoria foi contestada pelos posseiros como irregular e parcial, ignorando mo-radores do local e a associação que os representa. A partir de uma audiência com o MPF, conseguiram que fosse ordenada uma segunda vistoria do IN-CRA, após pedir a troca de um servidor do INCRA Santarém, acusado de realizar a vistoria “come-tendo várias irregularidades e agindo proposital-mente em favor dos fazendeiros e madeireiros que promovem conflitos no assentamento10”. Foi-nos relatado que na vistoria do INCRA de 2013, ape-sar dos técnicos irem até a casa do presidente da associação de posseiros, seu nome constou como “desconhecido” na relação de posseiros. Os nomes de pessoas que há cerca de 12 anos moram na área também não apareceram. Apareceram nomes de pessoas do Paraná que jamais moraram lá. Poste-riormente, o MPF pediu uma nova vistoria, que estava por acontecer.

Em 30 de abril de 2014 há uma recomen-dação da Procuradoria especializada do INCRA pedindo a retomada administrativa dos “lotes ir-regulares”: 39, 40, 47, 48, 49 e 50 do Projeto de As-sentamento Ipiranga.

Assim, desde 2011 os posseiros vêm enfren-tando uma dura batalha para conseguir apoio das instituições para sua causa. Após terem sido incen-tivados por servidores do INCRA para ocupar os lotes abandonados do PA Ipiranga, em realidade não foram regularizados como assentados. Hoje a maioria foi cadastrada – somente as sete famílias que foram despejadas ainda não constam no ca-dastro de demandantes de reforma agrária.

Segundo técnicos do INCRA de Santarém, a promotoria especializada da autarquia já tem se

manifestado também, declarando que as procu-rações apresentadas pelo Ivo Eduardo Welter não tem validade para efeito de ocupação dos lotes, pois os assentados tem que explorar a terra de for-ma direta. Porém, ele parece ter sólidos defensores dentro do órgão.

O conflito da Vicinal 30 do Projeto de As-sentamento Ipiranga tem sido tratado em diver-sas audiências públicas da Comissão Nacional de Combate à Violência Agrária, presidida pelo Ouvi-dor Agrário Nacional. Para os posseiros, fica claro que o INCRA é o principal responsável pelos pro-blemas que estão acontecendo, e tanto eles como os seus apoiadores sempre têm reclamado da au-tarquia.

Em abril de 2012 eles concordaram com o INCRA para que os processos fossem transferi-dos da Justiça Estadual para a Justiça Federal. E que fosse feita nova vistoria da área, excluindo do cadastro dos beneficiários da reforma agrária, os “laranjas”11. Na redação destas linhas, eles aguarda-vam uma terceira vistoria. Também aguardavam a chegada de assistência técnica, de uma empresa de Santarém, fato que também deve gerar uma docu-mentação sobre a ocupação atual dos lotes.

As denúncias apresentadas ao Ministério Público Federal têm ajudado a rever a atuação do INCRA que, apesar de tudo, ainda é considerado um dos maiores aliados dos pequenos agriculto-res. Mesmo assim, diversas pessoas concordam que o que prejudica o trabalho do MPF é a troca com frequência dos procuradores, que têm grande rota-tividade. Existem ações em Itaituba sobre as irregu-laridades denunciadas no INCRA, que não parecem avançar, pois elas dependem dos procuradores.

Junto com outras lideranças de Trairão e da região de Santarém, o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, havia incluído uma liderança do Ipiranga na lista

X Oficio n 009/2014 ao INCRA, de 28 de Março de 2014 e Ofício N. 11/2014 da CPT ao INCRA e MPF . XI Hugo Alan Moda Lima, superintendente regional interino, memória de reunião no Gabinete do Incra da SR-30 03 abril de 2012, CPT Santarém.

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de proteção a ameaçados de morte. Porém, atual-mente o governo do Pará não renovou convênio com o programa federal, que por isso continua funcionando com muitas limitações e sendo con-siderado de pouca efetividade para proteção dos ameaçados.

Intervenção pública a favor dos posseiros dura-mente conquistada

O conflito da Vicinal 30 do Projeto de As-sentamento Ipiranga ocupa duas grandes pastas de documentos nos arquivos da Comissão Pasto-ral da Terra, o que representa mais um conflito originado pelo próprio INCRA, primeiro por ter assentado oficialmente agricultores que jamais chegaram a ocupar seus lotes e, segundo, sem a sua destituição após constatar a irregularidade. Por outro lado, os posseiros instalados oficiosa-mente pelo próprio INCRA, inclusive com do-cumento de ocupação, não foram regularizados. Estas irregularidades permitiram que a Justiça desse ouvidos ao grileiro que se apresentou como procurador de um grupo de assentados, sem que em realidade o INCRA fosse chamado para escla-recer a situação na Justiça.

Ainda, quando o mesmo foi chamado, às vezes seus servidores confirmaram a situação de-

nunciada pelos posseiros, outras vezes, a julgar pe-las denúncias dos posseiros, as vistorias requeridas foram realizadas de forma irregular, apoiando a grilagem e concentração de terras, situação que o MPF ainda não apurou em profundidade como é necessário.

Apesar de tudo, a violência na área parece ter reduzido depois que o conflito chegou ao conheci-mento público. Além do sindicato, o grupo de traba-lhadores ficou mais articulado, contando com apoio da CPT e de outras entidades e com assistência ju-rídica. A situação também melhorou após a prisão e condenação do fazendeiro, acusado de atuar de forma violenta na região. Não se tem notícia, hoje, da presença de jagunços armados. Mesmo assim, o povo continua em alerta. Contribuiu também para isso o fato de as tentativas de despejar mais possei-ros pela Justiça não terem tido sucesso.

Contudo, a situação está longe de ser re-solvida. As sete famílias despejadas, em ações mo-vidas por procuração irregular de assentados que nunca viveram na área, continuam sem a posse da terra. Os lotes grilados continuam em poder do fa-zendeiro e as sete famílias, sem terra. Também se falou em emancipar o assentamento, desta forma deixando como está a concentração de lotes e as irregularidades denunciadas.

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Um cenário descrito, em 2014, pela Comis-são Pastoral da Terra (CPT) de Rondônia apresenta assim a realidade do estado: A partir da colonização iniciada nos anos 70, a maioria dos habitantes de Rondônia são migrantes procedentes de outras regi-ões brasileiras. A economia está baseada no predo-mínio da pecuária. Mas o agronegócio avança para terras que antes não interessavam, sobretudo, no Cone Sul do estado. Expande-se o modelo agríco-la e técnico voltado para a exportação, socialmente excludente e não sustentável para o meio ambiente.

A ocupação desordenada da terra duran-te décadas provocou inúmeros conflitos agrários, muitos dos quais continuam. Outros estão relacio-nados com o programa de regularização fundiária Terra Legal.

Posseiros e grupos de sem terra estão en-frentando uma nova onda de violência com o sur-gimento de novos conflitos agrários. A maioria das mortes por assassinato e atos violentos continua na impunidade. A repressão policial parece ser a úni-ca medida adotada para acabar com os conflitos agrários.

Com Justiça morosa e parcial, os processos judiciais de retomada da propriedade pública da terra se alastram sem serem resolvidos. Porém há grande celeridade nas decisões de reintegração de posse contra camponeses, assim como muita efi-cácia na prisão de lideranças. Camponeses e mo-vimentos sociais são perseguidos por pistoleiros, policiais e Justiça, enquanto continua a impunida-de dos abusos e da violência contra os pequenos agricultores. A mídia mascara a violência contra o povo.

Rondônia

A difícil retomada das terras públicas na Amazônia: O conflito dos assentamentos do Flor do Amazonas em Candeias do Jamari

A reforma agrária está paralisada, famí-lias ficam acampadas por anos a fio e se multi-plicam os despejos de posseiros e a expulsão de camponeses. Este quadro aumenta ainda mais a profunda desigualdade social e da distribuição da terra, avançando a fronteira agrícola para os esta-dos vizinhos e interior das reservas florestais. O desmatamento, depois de alguns anos de redução, voltou a crescer em 2013, alcançando mais 933 km² em Rondônia.

População originária das comunidades tradicionais – indígenas, quilombolas e ribeiri-nhos – sobrevivem nas cidades, ou isoladas nas margens dos rios (Madeira, Guaporé, Mamoré, Machado e afluentes). Como sempre esses são os primeiros e mais atingidos pelos grandes projetos e empreendimentos, como o das usinas hidrelé-tricas no Rio Madeira, Jirau e Santo Antônio. O mesmo deve acontecer nos novos projetos, como

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as usinas de Tabajara, no Rio Machado, e os por-tos graneleiros.

Muitos desempregados das usinas agora tentam um pedaço de terra em novas ocupações. Assim aumentaram os acampamentos de sem-ter-ra, em grupos independentes. Os movimentos so-ciais organizados, Fetagro, Via Campesina – Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) – e Liga dos Camponeses Pobres (LCP), bastante desmobilizados, atuam com diferentes estratégias políticas. Enquanto isso, alguns conflitos se eter-nizam, inclusive dentro de áreas de assentamento, como no Flor do Amazonas.

Histórico do(s) assentamento(s) do Flor do Amazonas

Não é fácil destrinchar no emaranhado de informações do que aconteceu no imóvel que deu origem aos atuais projetos de assentamento deno-minados Flor do Amazonas 1, 2, 3 e 4. Os conflitos do Flor do Amazonas, no município de Candeias do Jamari, em Rondônia, parecem ser um bom exemplo da confusão fundiária reinante em nossa Amazônia. Aqui se trata de uma área de 33.000 mil hectares em disputa há mais de 15 anos.

Originalmente, em 1976, a empresa Agro-pecuária Industrial e Colonizadora Rio Candeias (AGRINCO) tentou se apossar de antigos seringais com área equivalente a 133.608,7 hectares. A em-presa era parte do grupo empresarial gaúcho De Zorzi, que teve pretensões semelhantes sobre uma área de 100.000 mil hectares na região central do estado, no município de Ji-Paraná.

Neste processo de ocupação, várias mortes foram registradas em decorrência desta disputa de áreas de terras. “O jornalista Montezuma Cruz relata denúncias feitas em 1980 pelo então Depu-tado Federal Jerônimo Santana (PMDB), na Câ-

mara Federal, afirmando ‘que o Grupo De Zorzi (um dos 200 maiores do País) vigia a gleba Urupá – mais de 100 mil hectares – com um sistema de jaguncismo e alertou a Funai para o extermínio de índios na área Urupá-Itapirema [...] matando os índios localizados no sul da área’, (Porantim, Manaus, 09.1981: 20)”. (Mauro Leonel. Etnodi-céiaUruéu-au-au, pag. 98).I

A empresa, porém, não tinha qualquer do-cumento legal sobre a área, que se situava no mu-nicípio de Porto Velho e, depois, com o desmem-bramento e criação de novos municípios passou a pertencer ao município de Candeias do Jamari. E então buscou formas para se regularizar. Ela que pretendia mais de 133.000 hectares, devido a mais que precária documentação legal dos seringais e ao conjunto de normas e legislação vigentes, se con-tentou em instruir um processo de regularização de 33.000 ha. A legislação determinava que áreas públicas, maiores do que 3.000 hectares, só pode-riam ser alienadas pelo poder público com apro-vação do Senado Federal, que só poderia aprovar tal transação se o processo viesse acompanhado de um projeto de exploração da área pretendida. Em 1983, por meio da Resolução nº 320, o Senado au-torizou o Poder Executivo a alienar para a Empresa os 33.000 hectares para implantação de um projeto de bovinocultura. A aprovação tinha Cláusulas re-solutivas vinculadas ao fiel cumprimento do cro-nograma físico financeiro da execução do projeto, determinando o prazo de um ano para início da implantação do mesmo. Se estas cláusulas não fos-sem cumpridas, ou se o projeto fosse paralisado, o Poder público deveria ser reintegrado na posse da área. Com esta aprovação, a AGRINCO implantou nesta área a Fazenda Urupá e a Madeireira Urupá.

Acontece que de fato a empresa implantou um forte esquema de extração de madeira e não implantou o projeto de bovinocultura. E mais ain-da, depois de ter explorado toda madeira existen-te, passou a comercializar parcelas da área. Tudo

I Documento interno cedido pelo Regional da CPT Rondônia.

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ao arrepio da lei e sem o conhecimento formal do INCRA. Com isso muitos compraram parcelas da área e se instalaram na mesma sem qualquer per-missão legal.

Em abril de 2000 a pedido do deputado Ser-gio Carvalho, de Rondônia, foi criada na Câmara Federal a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a ocupação de terras públicas na Amazônia. Os trabalhos dessa CPI foram fina-lizados em 29 de agosto de 2001. O relatório apon-ta muitos casos de irregularidades, entre os quais consta a ocupação irregular dos 33.000 hectares do processo da AGRINCO em Candeias do Jamari.

“Recomendamos, pois, que esta CPI determi-ne ao INCRA que proceda a um imediato le-vantamento documental da ocupação da área para dirimir as contradições relatadas acima. Que identifique quem são os ocupantes da área de 44.000 hectares ainda não regularizada e se certifique sobre a real extensão de área ocu-pada e explorada pela empresa Rio Candeias (seria superior aos 31.000 ha “oficialmente” sob sua posse?). Que identifique os licitantes inadimplentes e tome imediatamente as pro-vidências para reversão dessas terras ao patri-mônio da União. Que represente ao Ministério Público todos os crimes cometidos pelos atuais e ex-proprietários da Agropecuária e Coloni-zadora Rio Candeias. Que instaure imediata-mente inquérito administrativo para apurar os responsáveis pela omissão do INCRA quanto à ocupação e exploração ilegal perpetrada pela empresa. Que adote todas as providências para estancar o processo de transferência de posse a terceiros perpetrado pela Rio Candeias. (CPI da Grilagem de Terras na Amazônia, p. 477)II

O INCRA, provocado pelo relatório da CPI e pelo movimento social, iniciou, por meio da sua

procuradoria, uma longa batalha jurídica com ob-jetivo de retomar a área dos 33.000 ha por inadim-plência das cláusulas resolutivas. A Justiça garan-tiu ganho de causa ao INCRA em primeiro grau, estando o processo judicial em grau de recurso. No entanto, é importante destacar que, embora a Agropecuária perca a propriedade da área, ela será indenizada pelo INCRA, a discussão do valor tam-bém se encontra em litígio judicial.

Fontes dos assentados relataram o início da luta pelo assentamento num ato organizado pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), em 08 de abril de 2008 em um escrito denomina-do “Histórico do Pré-assentamento Flor do Ama-zonas”:

“Em 2001, O deputado Sérgio Carvalho, reu-niu um grupo de agricultores na linha 43, no município de Candeias do Jamari, e informou que as terras dentro da área de l43 mil hecta-res pleiteada em ação judicial pela madeireira Urupá seria destinada para a reforma agrária, inclusive os 33 mil hectares que foi conseguin-do junto ao SENADO FEDERAL, estabelecido na resolução de nº 320 que autorizava o IN-CRA a alienar 33 mil hectares, condicionado ao cumprimento da cláusula resolutiva esta-belecida no contrato que nunca fora cumprido pela mesma” (Histórico, 2008)

Porém, a luta pelo assentamento somen-te toma impulso depois que, em 2002, oitenta famílias do Movimento Camponês de Corum-biara (MCC) montam um acampamento dentro da área. Como a Agropecuária loteou e vendeu a área para vários fazendeiros, o conflito se acir-rou com terceiros que tinham documentos das terras loteadas de forma fraudulenta. Os campo-neses ocuparam a área e plantaram uma grande roça comunitária de mais de 20 alqueires. Porém,

II Relatório Final da CPI sobre a Grilagem de Terras na Amazônia, pp. 472-478. https://arisp.files.wordpress.com/2009/10/33421741-relatorio-final-cpi--terras-amazonas-grilagem.pdf

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em 02 de fevereiro de 2006, os acampados foram obrigados a recuar. Mas, em 12 de junho, interdi-taram a BR-364 por três dias.

Por sua vez, os fazendeiros da área se orga-nizaram numa associação conhecida pela sigla AS-PRURR, Associação de Produtores Rurais de Rio Preto e Região.

Problemas internos com a liderança do MCC, Adelino Ramos, conhecido como “Dinho”, e com o advogado do movimento “Águia Azul”, determinaram a saída dos acampados do movi-mento, em setembro de 2006. Segundo os assen-tados a intervenção jurídica do INCRA na reto-mada não foi fácil:

“Dia 23 de maio de 2007, foi uma comissão de pré-assentados juntamente com integrantes do Comitê Popular de Lutas em Defesa do Socia-lismo, junto ao INCRA, e em reunião com o superintendente o Sr. Olavo e a Procuradora Aparecida, solicitamos a intervenção da pro-curadoria do INCRA junto a Justiça Estadual da comarca de Porto Velho. (...) A pedido do Superintendente do INCRA, Olavo, foi enca-minhado pela Procuradoria da União um re-querimento pedindo a suspensão do cumpri-mento do mandado e o desaforamento do feito para a seção judiciária federal de Porto Velho. Algumas reintegrações foram suspensas, cau-sando indignação aos fazendeiros sócios da ASPRUR, que em seguida reuniram-se para fazer uma coleta de fundos para a organização de uma ação.“ (Histórico, 2008).

O Acampamento é atacado e queimado

“No dia 29 de junho de 2007, de acor-do com testemunhas, aproximadamente às 3h da madrugada, dois veículos, ambos de Porto Velho, com vários homens encapuzados e fortemente ar-mados, entraram na linha e foram de barraco em barraco, expulsando os acampados”. [...] “Após o sinistro ocorrido com os camponeses, a imprensa fez uma vasta cobertura, despertando depoimen-

tos de personalidades, tais quais o arcebispo Dom Moacir Grechi, que visitou a área no dia 7 de julho, fazendo uma celebração campal exortando a fir-meza nos propósitos dos pré-assentados e pedindo que às autoridades do estado elucidassem o crime ocorrido na referida área e que houvesse a punição dos culpados”. (Histórico, 2008).

Apressada pela situação de violência, a jus-tiça federal finalmente decide pela criação do as-sentamento:

“No dia 23 de agosto de 2007, foi julgado na 1ª vara da Justiça Federal do Estado de Rondônia, pelo Juiz substituto JOSE MAURO BARBOSA, decidiu a favor do INCRA contra a AGROPE-CUÁRIA INDUSTRIAL E COLONIZADORA RIO CANDEIAS, “para declarar a inexistência de qualquer direito da Requerida sobre a área de 33.000 hectares objeto da Resolução nº 320, de 23/08/1983, do Senado Federal” (...) “Con-siderando o pedido de antecipação da tutela feito pelo Autor, à conta dos informes de que a Ré tem alienado diversos lotes a terceiros na área sob comento, bem ainda da ocorrência de violentos conflitos pela posse das terras da região, o que reclama pronta atuação do Judi-ciário, sem mais delongas, a fim de se restabe-lecer a paz social DEFIRO a antecipação da tu-tela requerida pelo INCRA, determinando sua imediata imissão na pose do imóvel discutido nos autos”. (Histórico, 2008)

Casa queimada duas vezes no Flor do Amazonas, em Rondônia

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Em 10 de setembro de 2007, após o IN-CRA ter recebido a certidão de imissão de pos-se, o superintendente Carlino Lima solicita um prazo para a desocupação da área ocupada pelos fazendeiros. Mas esta desocupação não chegou a acontecer na maioria dos casos. Pelo contrário, a Justiça estadual concedeu novas reintegrações de posse (09 de outubro de 2007) contra famílias de assentados. A posse do INCRA somente foi regis-trada em cartório em 08/02/2008, após os campo-neses terem denunciado o fato ao MPF em 21 de dezembro de 2007.

Ao mesmo tempo, foi criada a Associação de Produtores Agroextrativistas Flor da Amazô-nia (ASPRAFAM), em 15 de janeiro de 2008. Para pressionar pela implantação do assentamento, ins-talaram um acampamento permanente no pátio do INCRA de Porto Velho.III

Finalmente o assentamento foi criado, po-rém o INCRA optou por dividir a área em quatro assentamentos diferentes, dividindo também os as-sentados em diferentes associações IV. Foram os Pro-jetos de Assentamento Flor do Amazonas I, II, III e IV. Em dezembro de 2008 as famílias começaram a receber os primeiros documentos de assentados.

Apesar disso, os problemas não acabaram: denúncias de irregularidades na topografia dos lotes provocou a parada dos trabalhos, de tal for-ma que a divisão e georeferenciamento de cada lote dos assentados não foi concluída até agora. Estradas muito mal conservadas dificultam o transporte dos alunos para as escolas e o escoa-mento dos produtos.

Mesmo após o assentamento das famílias, ainda numerosas fazendas continuam no local e continuam as ações de reintegração de posse con-tra os assentados, as ameaças e a violência. Muitos assentados atribuem ao conflito agrário na área a morte violenta, em 29 de dezembro de 2009, de

Gildézio Alves Borges, o “Neguinho”, atingido por dois tiros.

Começa também outro tipo de problema: contaminação por agrotóxicos, destruição am-biental e extração clandestina de madeira. Dra-máticas são as experiências daqueles que viram queimar, em poucas horas, em incêndios crimi-nosos, o fruto de seu trabalho, suas economias e seus sonhos. Em abril de 2012, doze famílias dentro do assentamento denunciaram que um fa-zendeiro teria comprado a área e passado a matar grandes quantidades de babaçu, com agrotóxico. (CPT Rondônia, 2012)V.

Outro camponês relata que teve parte de sua roça atingida pelo fogo em dezembro de 2012 e o restante do roçado, destruído na noite do dia 08 de abril de 2013, pelo gado da fazenda vizinha.

Em maio de 2013, Ronilson Nascimento Baptista, de 27 anos, filho de assentada no Flor do Amazonas foi assassinado com um tiro nas costas na noite do dia 29 de maio, na cidade do Candeias do Jamari. A morte foi relacionada com tráfico de madeira e com as constantes ameaças no assen-tamento às famílias ligadas à Associação Escola Família Agrícola (AEFACAJ), que tiveram roças destruídas pelo gado dos fazendeiros. Em 15/7/13, a Polícia Ambiental prendeu cinco suspeitos por transporte ilegal de madeira na Linha Triunfo, em Candeias do Jamari. A Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEDAM) confirmou desmatamento e extração clandestina de madeira. (CPT Rondônia, 2013)VI.

Continuam as reintegrações de posse e os despe-jos de assentados

Mesmo sendo a área desapropriada, conti-nuaram a emissão de mandados de reintegração de posse contra os assentados pelos fazendeiros, ocu-

III http://www.resistenciacamponesa.com/jornal-resistencia-camponesa/edicao-n-16/53-luta-pela-terraIV http://www.rondoniadinamica.com/arquivo/familias-do-flor-do-amazonas-conquistam-documento-da-terra,1381.shtmlV http://cptrondonia.blogspot.com.br/2012/04/agua-envenenada-por-agrotoxico-desagua.htmlVI http://cptrondonia.blogspot.com.br/2014/12/assentados-devem-participar-do-programa.html

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pantes ilegais da área. Por isso os assentados reali-zaram, em 08/12/2010, uma manifestação, apoia-da pela CPT, no Tribunal de Justiça de Rondônia, contra tais reintegrações de posse. Ainda hoje vá-rios processos continuam ameaçando famílias do Flor do Amazonas. Oito deles são acompanhados pela assessora jurídica da CPT.

No Judiciário em Rondônia, como em pra-ticamente todo o Brasil, ações de reintegração de posse impetradas por fazendeiros são rapidamente julgadas, e, estranhamente, os juízes locais não têm se importado em conceder despejo contra pessoas legalmente assentadas pelo INCRA, que possuem um Contrato de Concessão de Uso. Também não é raro ações contra áreas de assentamento serem jul-gadas por juízes estaduais, que, por continuarem sendo área pública federal, constitucionalmente deveriam ser julgadas pela Justiça Federal. No en-

tanto, esses casos se repetem, apesar das reiteradas denúncias públicas.

Em maio de 2015 a Comissão de Combate à Violência no Campo debateu a suspensão de várias reintegrações de posse contra assentados do Flor do AmazonasVII.

Após denúncias na ouvidoria de envolvi-mento de servidores do INCRA em irregularidades, um casal de lideranças sofreu ameaças e teve que se refugiar fora do assentamento. Sua casa foi queima-da duas vezes e o lote invadido por terceiros.

Famílias da cidade que voltaram para a roça

No Flor do Amazonas muitas famílias são pro-venientes do êxodo rural e sem perspectivas na cidade, tentaram voltar para roça. É o caso, por exemplo, de Amado Pedro da Silva, que chegou ao

VII http://www.incra.gov.br/noticias/comissao-de-combate-violencia-no-campo-realiza-rodada-de-negociacoes-em-porto-velhoro

Manifestação dos assentados do Flor do Amazonas no STJ de Porto Velho, Rondônia

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Flor do Amazonas em março de 2008. Nasceu em Mantena, no Espírito Santo, e com 14 anos foi mo-rar em Jaciara, Mato Grosso, onde trabalhava de meeiro. De Jaciara foi para a Linha 78 no projeto Riachuelo, próximo do local onde foi morto padre Ezequiel Ramin, entre Ji-Paraná e Cacoal. Foi de-pois para Ji-Paraná nos anos 70 e continuou tra-balhando em terras dos outros por uns dez anos. No Flor do Amazonas ficou acampado na Linha 13 por cerca de quatro anos, depois da época que o acampamento foi queimado.

Também o vizinho José Francisco Pereira, natural de Viana, no Maranhão, começou a prestar serviços no sindicato de trabalhadores rurais em 1988 e, em 1992, assumiu a secretaria do Sindicato de Bom Jardim do Maranhão, onde ficou até 2010, quando foi para Rondônia, trabalhando em um pouco de tudo. Em 2013, depois de muito procurar um pedaço de terra, entrou num lote no Flor do Amazonas.

Organizações representativas e entidades de apoio

As organizações e entidades que participaram da luta do Flor do Amazonas são:

• O Movimento Camponês de Corumbiara (MCC) foi um movimento de sem terra de Rondônia dissidente do MST. Foi lide-rado por um sobrevivente do Massacre de Corumbiara, Adelino Ramos, conhecido como Buritis ou Dinho. O movimento pra-ticamente desapareceu depois de sua mor-te, em maio de 2011.

• A Associação de Produtores Agroextrati-vistas Flor da Amazônia (ASPRAFAM), criada em 2007.

• Associação Escola Família Agrícola / AE-FACAJ - “Gildésio Alves Brandão” (AEFA-CAJ), que tinha como objetivo construir uma Escola Família Agrícola. Um local foi reservado para a mesma dentro do assen-tamento.

Outras organizações que têm dado suporte

à luta dos trabalhadores e trabalhadoras são o Co-mitê Popular de Lutas em Defesa do Socialismo, o Movimento Camponês Socialista, Movimento Es-tudantil Popular Revolucionário, Diretório Central dos Estudantes, SINDSPREV e a Comissão Pasto-ral da Terra (CPT).

Consta também a existência de quatro as-sociações reconhecidas pelo INCRA, uma em cada assentamento. E o sindicato de trabalhadores ru-rais de Candeias do Jamari.

Instituições envolvidas

A principal instituição envolvida no confli-to é o INCRA, responsável legal pelos Assentamen-tos. A Procuradoria do INCRA enfrentou a batalha pela retomada das terras, que teve que correr em diversas instâncias judiciais. Após denúncias de servidores da autarquia na Ouvidoria Agrária Na-cional, algumas lideranças acreditam existir amea-ças e retaliações contra os mesmos.

• Tem acompanhado o conflito há anos a Ouvidoria Agrária Nacional. Consta que os conflitos do Flor do Amazonas tem sido tratados em inúmeras audiências pú-blicas presididas pelo Ouvidor Agrário Nacional, desembargador Gercino José da Silva.

• Ministério Público Federal: A intervenção do MPF tem ajudado em diversas situa-ções, denunciando a passividade ou omis-são do INCRA. Ou então determinando a abertura de porteira que impedia o trânsi-to dos acampados. Por outro lado, alguns acampados reclamaram do tratamento recebido de representantes do MPF, logo após o acampamento terem sido atacados, “Quem quiser mordomias, vá para a cida-de!”, teriam dito.

• SEDAM e Polícia Florestal: Na época do acampamento são citadas diversas inter-venções repressivas e de criminalização da Polícia Florestal. Em fevereiro de 2008, um dos acampados foi preso por porte armas

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e por ter matado uma cotia, tendo ficado no presídio Urso Branco, apesar de tratar--se de réu primárioVIII. Posteriormente, as autoridades ambientais várias vezes têm combatido o desmatamento, queimadas e retirada clandestina de madeira.

• A Justiça Estadual e a Justiça Federal: Sen-do Flor do Amazonas uma área pública retomada, os processos deveriam correr na Justiça Federal e o INCRA ser parte do mesmo, por tratar-se de área sob sua posse. Não é o que está acontecendo. Mesmo após decisão da Justiça Federal sobre o domínio da área, reintegrações de posse a favor de terceiros foram decididas na Justiça Esta-dual, onde continuam alguns processos.

Assentados sendo despejados e perseguidos

Moradores do local entrevistados falam so-bre a situação, citam que continua o conflito entre fazendeiros - os que compraram irregularmente a terra da AGRINCO - e assentados. Cabe ao IN-CRA retirar os fazendeiros de dentro da área do assentamento. Muitos acham que isso nunca vai acontecer e acreditam que houve envolvimento de funcionários do órgão na venda de terras públicas. Outros acreditam que o INCRA não tem vontade ou capacidade para administrar o assentamento.

Persistem os processos judiciais de rein-tegração de posse - Os processos correm contra famílias assentadas pelo próprio INCRA, sem que

a autarquia faça a defesa das mesmas. Treze famí-lias de acampados continuam sem terem sido as-sentados dentro do lote 105 no Flor do Amazonas IV, com conflitos com os fazendeiros e represá-lias com queimadas intencionais. Posteriormen-te, tem sido anunciado um acordo mediado pelo INCRA.

Desvio de recursos para construir a Es-cola Família Agrícola - O Assentamento Flor do Amazonas, de Candeias do Jamari, desde a criação impulsionou o projeto de construção da Escola Família Agrícola (EFA) no local. Uma associação formada pelos moradores levava adiante o proje-to para o qual tinha sido reservada uma área do assentamento e já havia sido construído um bar-racão. O recurso, inicialmente prometido e anun-ciado em 2012 como compensação da Usina Santo Antônio, foi reduzido em 70% por parte do gover-no do estado. Posteriormente, a usina desviou a proposta para construção de uma Escola Familiar RuralIX. Ainda, em julho de 2015, sem consultar os moradores, o INCRA disponibilizou o local para instalação de um acampamento de famílias sem terra despejadas de Machadinho do Oeste. Isso motivou desencontros e tensões.

No Flor de Amazonas, a CPT e o Projeto Padre Ezequiel organizaram cursos de agroecolo-gia e alguns assentados tem participado. Ainda há falta de luz e de escolas em alguns setores. O Pro-grama Assentamentos Verdes começou a contem-plar o Flor do Amazonas somente após as reivindi-cações de alguns assentados.

VIII http://www.rondoniaovivo.com/noticias/prisao-de-agricultor-em-area-de-litigio-e-contestada-por-acampados-e-comite-popular/23989IX Http://www.newsrondonia.com.br/noticias/candeias+do+jamari+ganha+casa+familiar+rural+em+vez+das+efas/55684

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Situado no extremo Norte do país, o estado de Roraima faz fronteira com a Venezuela, Guia-na, Pará e Amazonas. Cortado ao sul pela linha do Equador, a maior parte do território fica no hemisfério Norte. Mais de 60% da área do esta-do é coberta pela floresta Amazônica. A extensão territorial é de 224.303,187 km², divididos em 15 municípios. 46% dos habitantes são indígenas. É o estado brasileiro menos populoso, com apenas 450.479 habitantes. Sua densidade demográfica é aproximadamente de 2 hab/km². A capital é Boa Vista, onde residem 65,3% da população do esta-do. Outras cidades populosas são os municípios de Rorainópolis, Alto Alegre, Caracaraí, Mucajaí e Bonfim.

O estado, durante muito tempo, fazia parte da província do Amazonas, com população peque-na e economia estagnada, baseada em fazendas de gado. No início da República, em 1904, a porção mais oriental de Roraima foi alvo de uma disputa fronteiriça com a Guiana. Essa parte do território foi dividida entre os dois países, ficando a maior parte para a Guiana. Somente em 1943, a área foi desmembrada do estado do Amazonas e trans-formada em território federal do Rio Branco. Em 1962, o território passou a se chamar Roraima.

A economia do estado, em 2014, estimada em R$ 6,9 bilhões, representa apenas 0,17% do to-tal nacional e é a menor entre os estados brasilei-ros. Ela se apoia no setor de serviços, responsável

Roraima

Madeireira no caminho de comunidade camponesa

“Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta, mata verde, céu azul, a mais imensa floresta... No lugar que havia mata, hoje há perseguição. Grileiro mata posseiro só pra lhe

roubar seu chão”. Vital Farias

por 87,4% de seu Produto Interno Bruto (PIB), a agropecuária é responsável por 4,3% e a indústria por 8,3%. Os principais produtos agrícolas são mandioca, arroz, milho, laranja e banana. A ma-deira responde por 74% das exportações do estado.

A agricultura familiar não foi a prioridade dos governos anteriores e muito menos do governo atual. Implantar em Roraima um eixo de produção agrícola visando incluir o estado no cenário na-cional do agronegócio faz parte da plataforma de trabalho da governadora de Roraima Maria Suely Campos (PP). Articulação neste sentido está sen-do feita com produtores de soja do Mato Grosso e Paraná.

Nas áreas degradadas pela agricultura co-

Foto: Imazon

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mercial, dia a dia estão aumentando as ocorrências de mortandade de aves e de pequenos animais de-vido à aplicação indevida de agrotóxicos. A des-truição da fauna pela caça e pesca é uma constante, pois ainda se pratica bastante a caça, por tradição ou lazer. Pouco a pouco a fauna da região vai se re-duzindo. Da mesma forma a pesca predatória, com uso de apetrechos inadequados, ou em época de defeso está reduzindo drasticamente o conjunto de espécies de peixes regionais, já bastante rarefeita.

Desmatamento

Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o desma-tamento ocorre com maior frequência nas áreas de serras e junto às matas ciliares dos rios e lagos da área de savana. No período de agosto de 2012 a ju-lho de 2013 o desmatamento em Roraima cresceu 49%, segundo dados do Projeto de Monitoramen-to da Floresta Amazônica por Satélites (PRODES) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Os números mostram que 185 quilôme-

tros quadrados, equivalente a 22 campos de fute-bol, foram desflorestados no estado.

Na Amazônia Legal, conforme Boletim do Desmatamento do Imazon de março de 2015, o desmatamento acumulado no período de agosto de 2014 a março de 2015 atingiu 1.761 quilômetros quadrados. Houve aumento de 214% do desmata-mento em relação ao período anterior (agosto de 2013 a março de 2014) quando atingiu 560 quilô-metros quadrados. Considerando o período entre agosto de 2014 a março de 2015, o Mato Grosso liderou o ranking com 36% do total desmatado no período. Em seguida aparece Pará (25%) e Rondô-nia (20%). Em termos relativos, houve aumento ex-pressivo de 640% no Mato Grosso e 227% no Pará. Já em termos absolutos, de acordo com o Imazon, o Mato Grosso liderou o ranking do desmatamen-to acumulado com 639 quilômetros quadrados, seguido pelo Pará (434 quilômetros quadrados) e Rondônia, com 347 quilômetros quadrados.

No fim do ano de 2014, a Polícia Federal cumpriu dezenas de mandados de busca e apreen-são e de condução coercitiva em Boa Vista, Rorai-

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Imagem mostra o incessante desmatamento na Amazônia Legal, assim como as queimadas.

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nópolis, Caracaraí e São João da Baliza. Também no Pará, Amazonas e Rio de Janeiro. As investi-gações da PF apontavam fraudes na concessão de autorização de desmatamento, de manejo florestal, ou de guia de transporte florestal, disponibilidade de créditos florestais fictícios, e que permitem o desmatamento e retirada ilegal de madeira, de áre-as não documentadas, de terras públicas ou de áre-as protegidas, além de transporte, processamento e comercialização destes produtos florestais pelas serrarias e madeireiras.

Órgãos agrários

O Ministério Público Federal em Roraima (MPF/RR), por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, expediu, em 25 de ou-tubro de 2012, enviou recomendação à Superin-tendência Regional do Instituto Nacional de Co-

lonização e Reforma Agrária (INCRA) para que fosse implementada a Ouvidoria Agrária Regional daquela autarquia, bem como que fosse nomeado servidor para desempenhar a atividade de ouvidor agrário regional.

De acordo com o MPF/RR, apesar da im-portância da prestação do serviço, a Superinten-dência Regional do INCRA em Roraima não conta com uma Ouvidoria Agrária Regional desde maio de 2010. Segundo informações do próprio INCRA, a Ouvidoria deixou de existir em razão do desinte-resse de servidores em assumir a função em virtu-de da inexistência de função gratificada.

Em maio de 2015 foi realizada uma reunião para discutir a implantação da Ouvidoria Agrária Estadual. O secretário adjunto da Segurança Pú-blica, Eduardo Castilho, esteve reunido com a Co-missão Nacional de Combate à Violência no Cam-po para discutir a implantação de uma Ouvidoria,

Foto: Joka Madruga

Segundo as famílias de Cujubim Beira Rio, a derrubada das Castanheiras pelos madereiros é uma forma de expulsa-las, pois a castanha é o meio de vida delas

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que tem como objetivo contribuir no processo de redução dos conflitos agrários no país.

“Os conflitos agrários têm ocorrido em todo país, porém, há uma incidência maior na re-gião Norte. A proposta é implantar até o próximo ano, uma delegacia especializada de combate à vio-lência no campo, mas enquanto isso, a Polícia Am-biental estará à frente deste trabalho em Roraima”, destacou Castilho. Para ele, com a implantação da Ouvidoria em Roraima o cidadão do campo terá mais um instrumento para ter seus direitos respei-tados. Durante a reunião ficou acordado que um delegado da Polícia Civil e um oficial da Polícia Militar seriam disponibilizados para desenvolver o trabalho junto à Ouvidoria Agrária.

Cujubim Beira Rio

Em uma região de floresta à beira do Rio Branco, no município de Caracaraí, mais precisa-mente entre os igarapés Samauma e Cota, está si-tuado Cujubim Beira Rio. Ali vive há muito tempo um grupo de pessoas, trabalhadores e trabalha-doras rurais de Cujubim, como são chamados por todos. Do tempo passado vêm às lembranças das pessoas mais velhas das trocas de nomes daqueles que se intitulavam donos das terras, sempre as-sociados a pessoas ou empresas de grande poder econômico. Só isso dá uma ideia da especulação existente, do mercado de terras e da sua concen-tração.

Cujubim Beira Rio, por falta de políticas públicas e regularização fundiária, vive constan-te situação de conflito. É uma área muito rica em madeira e castanha, considerada uma terra de “muita fartura” e “boa de morar”. Toda variedade de recursos naturais são cuidados pelos morado-res que mantém seus costumes e tem um modo de vida simples e de muito respeito à terra e na-tureza. Em visita às comunidades e em reunião com as famílias que vivem em Cujubim, foram ouvidos vários relatos das famílias e muitos gritos pedindo ajuda.

“Éramos 36 famílias, estávamos há mais

de 20 anos na ilha quando chegaram o INCRA e o IBDF [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal] e mandaram tirar a gente de lá. Na épo-ca [ano 2000], o prefeito Antônio Areis mandou o INCRA escolher uma terra para nós. Por isso, viemos para cá. O INCRA autorizou a gente vim para cá, a gente estava na ilha e estava tudo bem. Zezinho Bacabeira, do INCRA, veio aqui e disse que em um ano a gente teria o documento da área, mas até hoje nada”, relata seu Raimundo Paciência, morador da área há mais de 12 anos.

Ainda de acordo com seu Paciência, na re-gião há “inúmeros crimes ambientais. Se o IBAMA fizesse seu trabalho, tenho certeza que esse povo todo ia preso. Não podemos plantar, vimemos numa insegurança, somos constantemente expul-sos por eles”, denuncia. Por fim, o senhor relata que “antes de os madeireiros e fazendeiros chegarem, isso aqui era um paraíso. Tudo era bom, a gente tinha tudo e tudo era fácil. A terra sempre foi boa para plantar, tudo que se plantava dava. Aqui ti-nha muitas fruteiras e muita caça e com o plan-tio e cultivo nada nos faltava. Sempre vivemos em harmonia, tínhamos uma vida saudável e sempre com acordo entre os vizinhos. Tinha vizinhos, mas a maioria foi embora”.

A comunidade relata também que, atu-almente, a briga não é pela terra, e sim para não tirarem a madeira. Porque se tirarem toda a ma-deira, acabam com tudo e não tem mais sentido ter a terra. “Eles tinham raiva de mim porque eu segurava as pontas, ia para o embate, fui ameaça-do inúmeras vezes, perdi até as contas. Diziam que os problemas aqui são causados por você. Eles não querem terra para plantar não, só querem mesmo a madeira”, destaca Raimundo Silva, também mo-rador da área.

Situação de conflito, ameaças e violência

A ação dos fazendeiros – em sua maioria madeireiros – é a grande ameaça às famílias de trabalhadores rurais, ao meio ambiente e à própria existência do Cujubim Beira Rio. Na contramão do

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processo de convivência do grupo com o local, a ação de fazendeiros e madeireiros tem sido o gran-de conflito no Cujubim. A expropriação dos tra-balhadores e trabalhadoras realizada pela madei-reira Vale Verde tem sido o principal problema e uma grande ameaça à comunidade. A madeireira, gozando de grande poder econômico, usa sua in-fluência, se articula e expropria os trabalhadores rurais dos seus territórios.

O grupo que ainda resiste em Cujubim vive amedrontado, ameaçado, e apreensivo, podendo a qualquer hora ser surpreendido por capangas dos fazendeiros e madeireiros. Segundo depoimentos colhidos na comunidade, as famílias sempre vive-ram bem, com alegria, sossego. A madeireira tem tentado expulsar famílias das áreas que ocupam pelo menos desde 1992. Essa madeireira tem entrado com ações de reintegração de posse contra o grupo e tem mantido rigoroso controle sobre as mesmas.

Na entrada de Cujubim há uma pequena casa onde funciona a sede da madeireira. Quan-do os trabalhadores precisam ir à cidade têm que passar “pelas terras do fazendeiro”, e precisam pedir permissão e dizer a hora de voltar. Isso foi constatado também quando a equipe da Comissão Pastoral da Terra (CPT) esteve em uma reunião na localidade. Ao chegar, a equipe teve que assinar um livro colocando nome, o dia e a hora que entrou na área.

Por isso é muito comum encontrar famílias desagregadas. Na área rural ficam os homens e as mulheres vão para sede do município de Caraca-raí por uma série de fatores. O principal é o medo da violência e das constantes ameaças, e também porque o estado e o município não se fazem pre-sentes, não oferecem nada. Não tem escola, posto de saúde, estrada, energia elétrica, nada mesmo. As famílias camponesas vivem apenas com a espe-rança de um dia conseguirem a tão sonhada terra prometida.

“Tenho pena de ver meus filhos sem escola. Vim do Maranhão pensando que aqui tinha algu-ma coisa melhor para a gente e para os meninos. A vida lá era difícil, mas aqui também. Tem muita

diferença não. A terra é boa, mas não tem infraes-trutura nenhuma. Eu tinha muitos sonhos quando vim para cá. Queria que os meus filhos tivessem uma vida melhor que a minha, que estudassem e fossem alguém na vida”, conta Maria do Socorro Santos, morada da área.

Seu Paciência relata um pouco da situação de conflito vivenciada diariamente pelos trabalha-dores. “A perseguição por parte dos fazendeiros e madeireiros que insistem em dizer que são donos da terra e acabam com tudo que temos de mais precioso aqui. Mas todos nós temos o documento (termo de ocupação) que o INCRA emitiu”. Que ainda conta que ele e sua família já foram ameaça-dos de morte inúmeras vezes. “Vivemos em cons-tante ameaça e insegurança. Às vezes temos medo de passar por alguns locais e dormimos no meio do mato. Sempre diziam que tinha gente que ia morrer, e que eles só ficariam em paz depois que alguns morressem. Já fizemos de tudo, realizamos passeata, acampamentos, denunciamos, falamos até com o Bispo. Mas nada foi feito”, desabafa Rai-mundo Paciência.

O ouro de Cujubim: A madeira

“Os trabalhadores falam que quando chega-ram a Cujubim só tinha floresta e mata bruta. Tinha somente uma picada [pequeno caminho na mata] por onde nós passávamos com a castanha e o trans-porte era o burro. Era muito bom, tinha muitas cas-tanheiras e não tinha casas e havia muita caça. As ameaças e perseguições vêm de muitos cantos, não é só o ‘Suíço’, é também o ‘Sidnei’ misturado com o ‘Boboco’. Faz pena o que eles fazem aqui, entram com máquinas caminhões e máquinas pesadas para transportar a madeira. Então eles levam tudo, aca-bam do tudo”, prossegue Raimundo Paciência.

Segundo conta o trabalhador Ricardo Brito, “eles [madeireiros] estão passando corrente para derrubar as árvores, depois levam a madeira e a área fica pronta para plantar capim. Eles fazem isso à noite e durante o dia ficam parados, e a retirada da madeira é no final de semana”.

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A castanheira, fonte de renda das famílias de pequenos agricultores, por exemplo, é prote-gida por lei e a derrubada das árvores representa uma forma de expulsar os agricultores da região, pois a castanha é o meio de vida deles. Quando os agricultores da região foram apresentar denúncia sobre o caso, a Secretaria de Estado do Meio Am-biente e dos Recursos Hídricos (Semarh) alegou que não tinha viatura para ir ao local.

“Quando recebemos o documento da ter-ra dado pelo INCRA e Receita Federal, achávamos que a terra era nossa, daí chega o ‘Sidnei’ mostran-do para a gente um documento dizendo que a terra é dele, mandando os trabalhadores saírem da terra que a área é dele e se não saíssem ele iria chamar o ‘Meio Ambiente’ e não poderíamos mais cortar nenhuma árvore lá”, conta o trabalhador Raimun-do, que ainda lembra que no início das famílias na área “produzia-se muito. Tinha muita gente e a co-munidade estava empolgada e muito animada em trabalhar a terra e cultivar para a sua sobrevivência e também para a produção de venda”.

Segundo as famílias, o INCRA havia dividi-do a terra e dado um lote para cada família. Mas, a falta de infraestrutura - sem estradas, com acesso precário ao assentamento, sem escolas, posto médi-co, sem energia elétrica - torna a vida muito sofrida. E tem perda de alimentos por falta de escoamento da produção. “Mas o pior é mesmo o cerco dos fa-zendeiros. De repente apareceu o Suíço. E depois do aparecimento dele a vida em Cujubim virou um in-ferno, começou o desmatamento e o desequilíbrio ambiental, ameaças de morte e agressões verbais, processos judiciais, funcionários (capangas) das madeireiras armados intimidando os moradores”, denunciam os trabalhadores da comunidade.

A situação é ainda mais grave porque o IN-CRA e a Justiça do estado não têm interesse em so-

lucionar o problema. O conflito entre a madeireira Vale Verde e outras madeireiras pela extração de madeira ilegal só existe porque o estado não se faz presente. “Se tivesse regularizado a área não acon-tecia isso, estávamos em uma situação melhor. O tal de Suíço, um estrangeiro, é o maior detentor de terra. Mais de 40% das áreas do estado de Roraima são dele”, diz Ricardo Brito.

Organização de apoio

“A CPT sempre foi a entidade que esteve presente nos momentos mais tensos da comuni-dade. O padre Thiago me ajudou muito. Quando tinha audiência sempre ia com a gente. Uma vez a Vale Verde me denunciou e o juiz queria me levar algemado para o local, ele não deixou. Sempre me-diava a situação. A Vale Verde alegava que a área era para fazer o manejo e que o Paciência não dei-xava os trabalhadores tirar a madeira. Eles denun-ciavam qualquer coisa, denunciaram inúmeras ve-zes, e a CPT sempre ajudou a comunidade”, destaca o pequeno agricultor Raimundo.

_______________________________Fontes de Pesquisahttp://www.mundoeducacao.com/geografia/roraima.htm. Acessado em 07.06.2015http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015. Acessado em 07.06.2015http://www.vermelho.org.br/tvvermelho/noticia.php?id_se-cao=8&id_noticia=165761-acessado em 08.06.2015http://www.vermelho.org.br/noticia/165761-8 - acessado em 11.11.2015http://www.prrr.mpf.mp.br/noticias/mpf-rr-expede-reco-mendacao-ao-incra-para-implementacao-de-ouvidoria-a-graria/htpp//09-luta-trabalhadores-caracarai-direitos%20(1).pdf

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Em 08 de outubro de 2013, reportagem vei-culada pela imprensa tocantinense afirmava que 1,5 milhões de hectares de terras da União foram titulados irregularmente no estado do Tocantins1. Essa titulação está na base dos constantes conflitos por terra no estado.

A compra e venda de terras griladas tor-nou-se prática corriqueira no estado, envolvendo agentes públicos, funcionários do INCRA e donos de cartórios. Essa situação de prática de crime con-

Comunidade Vitória: Terra Legal alimenta conflito

Tocantins

tinuado foi objeto de operação da Polícia Federal deflagrada em 17 de fevereiro de 2005, denomina-da “Terra Nostra”, resultando na prisão de 16 pes-soas que integravam uma quadrilha de grilagem de terras, ameaças a posseiros e outros crimes. Os chefes desse grupo, segundo a PF, eram o seguran-ça Luiz Carlos Fagundes e o advogado Ronaldo Sousa Assis, dono de um hotel e principal agiota de Colinas do Tocantins.

O crime era finalizado no cartório. Na refe-

1 http://conexaoto.com.br/2013/10/08/1-5-milhao-de-hectares-foram-titulados-irregularmente-no-to-regularizacao-vai-comecar-por-areas-de-conflito

A comunidade Vitória foi formada a partir da ocupação de uma área da União que havia sido grilada

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rida operação foi presa também Lucinete de Souza da Silva Araújo, tabeliã do Cartório de Registro de Imóveis de Tupiratins, onde eram realizadas trans-ferências fraudulentas dos imóveis para fazendeiros.

Tocantins e as frentes de expansão do capital

O interesse do capital pelas terras no Tocan-tins se dá porque o estado é visto como uma das grandes oportunidades de crescimento econômico no país. Tocantins foi criado em 1988, após ser des-membrado do estado de Goiás. Compreende uma área de 277.720,569 km², com 139 municípios e uma população, segundo o Censo de 2010, de 1.383.445 habitantes. O estado faz parte da Amazônia Legal, apesar de apenas 9% de seu território fazer parte do bioma amazônico. O território tocantinense é co-berto, quase em sua totalidade, pelo Cerrado.

Segundo o governo do estado, Tocantins possui uma área total com potencial agropecuário de 13.825.070 hectares (50,25% do território do estado). Desse total, restam para serem ocupados aproximadamente 5.265.070 hectares, ou seja, 38% da área. A principal frente de expansão do capital no estado é a pecuária de gado bovino de corte, que ocupa aproximadamente 7,5 milhões de hectares, correspondendo a 54,24% da área com potencial agropecuário. Em 2014, conforme dados do Insti-tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rebanho bovino contava com mais de oito milhões de cabeças, correspondendo a 18% do total da re-gião Norte, atrás do Pará e de Rondônia.

“A exportação de carne de gado no Tocantins alcançou a marca dos US$ 215,6 milhões em 2014. O produto vem ganhando espaço no mercado inter-nacional e já representa 20% de tudo que é vendido no estado para fora do país”, conforme Secretaria de Agricultura e Pecuária de Tocantins (Seagro).

O clima tropical semiúmido, precipita-ção pluvial, luminosidade, ventos e água doce são apontados como responsáveis pelo fato de o To-

cantins ser considerado pelo agronegócio como o “novo polo agrícola do Brasil”.

Para o escoamento dessa produção, ainda na década de 1980, foi projetada a Ferrovia Norte--Sul com o objetivo, no discurso oficial, de promo-ver a integração e o desenvolvimento do Brasil. A previsão é que a ferrovia tenha 4 mil quilômetros e interligue nove estados da federação – até o mo-mento foram concluídos apenas 1.574 quilômetros, trecho que liga Anápolis (GO) a Açailândia (MA), onde se conecta com a Estrada de Ferro Carajás para ter acesso ao Porto do Itaqui, no Maranhão. Assim, a ferrovia visa reduzir custos do transporte para os mercados internacionais.

Ao longo da Ferrovia Norte-Sul estão sen-do construídos seis pátios multimodais: Gurupi, Porto Nacional, Guaraí, Colinas, Araguaína e Por-to Franco. O pátio de Colinas está localizado no município de Palmeirante, numa área de 40 km às margens da rodovia TO-135. O objetivo é operar no embarque de commodities agrícolas, fertili-zantes, combustíveis, cargas em geral. Esse pátio é apontado como fator de atração de novos empre-sários em busca de terras para o plantio de grãos por conta das condições agroambientais, sobretu-do pela proximidade com o terminal.

Segundo Aline Gonçalves Sêne,“a implan-tação do sistema de transporte provoca grandes mudanças culturais, socioeconômicas e a própria (re) configuração do espaço. No Brasil os meios de transportes foram instalados para iniciar a integra-ção do território nacional e mais tarde para aten-der as demandas da exportação do café, uma infra-estrutura para atender as elites do país na busca de dominar o espaço e realizar a integração econômi-ca. Dentro dessa lógica temos a construção da Fer-rovia Norte-Sul que tem como objetivo consolidar o crescimento através da ocupação social e econô-mica do cerrado e incentivar o agronegócio”2. As comunidades impactadas pelas obras não contam nesse processo.

2 http://laurocampos.org.br/portal/images/stories/documentos/Grandes_projetos_do_capitalismo.pdf

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É neste contexto que se enquadra o con-flito da comunidade Vitória, no município de Palmeirante, localizada na altura do km 41 da rodovia TO-335, que liga Colinas do Tocantins a Palmeirante. A grande valorização das terras, ide-ais para grandes plantações, e a proximidade do terminal seco da Ferrovia Norte-Sul, atiça a fome insaciável do agronegócio. Anúncios na internet destacam a localização de fazendas próximas ao pátio multimodal da ferrovia. A região ao redor da comunidade Vitória foi toda desmatada para ceder espaço às monoculturas.

A comunidade Vitória foi formada a partir

da ocupação de uma área da União, mas que havia sido grilada. À época da ocupação, o imóvel per-tencia a Lázaro Eduardo de Barros, dono de uma empresa de pesquisas eleitorais, e sua esposa El-ziran Assunção Alves Barros, funcionária pública na Câmara Municipal de Palmas. A área havia sido

comprada de José Santana Lima e sua esposa Nilci-nea da Costa Salgado.

Denominada fazenda Brejão, área de 822,9178 hectares, é um dos muitos casos de grila-gem “legalizada” nos cartórios do estado. Essa pro-priedade teve o seu tamanho reduzido várias vezes até chegar ao limite de 326,3595 hectares. Todavia, com o advento da lei 11.952/2009 – lei que criou o Programa Terra Legal–, Lázaro Eduardo de Barros e a esposa estavam impossibilitados legalmente de demandarem a regularização fundiária do imóvel, então fizeram uma transferência da cessão de di-reito a favor de Paulo César de Barros Júnior, so-

brinho de Lázaro que requereu a regularização da área pelo Programa Terra Legal, a partir de então, denominada Fazenda Santo Reis.

Essa transferência para cumprir um dos re-quisitos da lei 11.952/2009 – ocupação anterior a 1º de janeiro de 2004 – foi registrada em Cartório

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Tocantins, formado pelos biomas Amazônia e Cerrado, é considerado pelo agronegócio como o “novo polo agrícola do Brasil”

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com data de 10 de janeiro de 2003. Ocorre que em 2004, Lázaro Eduardo declarara ao Sistema Nacio-nal de Cadastro Rural (SNCR) ser possuidor desse mesmo imóvel, conforme Nota Técnica da Coor-denação do Programa Terra Legal do Tocantins. Em 21 de setembro 2012 o Programa Terra Legal emitiu o título a favor de Paulo César de Barros Junior, sob condição resolutiva. Fica claro que essa área não somente sofreu mudanças quanto aos “donos”, mas também quanto ao tamanho.

Governo e atuação no conflito

Os camponeses, em conversas com a Co-missão Pastoral da Terra (CPT), fizeram a se-guinte leitura do conflito na região: “Existe uma ‘panelinha’. E nessa ‘panelinha’ estão funcionários de cartórios, membros do Judiciário, INCRA, Polícia, Programa Terra Legal e outros. E é essa ‘panelinha’ a responsável pela grilagem de terras públicas”.

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da Uni-versidade de São Paulo (USP), explica a evolução do processo de grilagem. Se antes insetos eram ne-cessários para a prática do crime, hoje as figuras neste processo são outras. “A prática da grilagem foi se sofisticando. Agora, não é mais necessário envelhecer os documentos com a ajuda dos grilos. A estratégia passou a ser a de tentar regularizar as terras por meio de ‘laranjas’, via falsas procurações. Este foi o período denominado ‘grilagem legaliza-da’, durante os governos militares. Conseguia-se ‘comprar’ do governo militar ou dos estaduais uma área maior do que a Constituição permitia”3.

Ainda conforme o professor, “o INCRA, desde os governos militares, arrecadou e/ou discri-minou um total de 105,7 milhões de hectares. Até 2003 este órgão tinha destinado um total de 37,9 milhões e possuía ainda sem destinação 67,8 mi-lhões de hectares assim distribuídos (em milhões):

4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas; 9,2 em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins; 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão”4.

“O INCRA é muito culpado, muito culpa-do mesmo. Começa quando funcionários ignoram a existência de trabalhadores rurais sem terra e acampados às margens das estradas. Eles passam na estrada, olham um acampamento, e não querem nem saber”, denunciam lideranças da comunidade Vitória.

Nesse caso, o INCRA tem um papel funda-mental no conflito. Em setembro de 2009 houve uma reunião na Câmara Municipal de Colinas do Tocantins para tratar dos conflitos fundiários. Par-ticiparam Edvaldo Soares, da Divisão de Obtenção de Terras do INCRA – TO; Paulo César Barros – pai de Paulo César de Barros Junior, requerente da regularização que resultou em título expedido pelo Programa Terra Legal. Os latifundiários, na opor-tunidade, ofereceramao INCRA o lote 83/Fazenda Brejãopara desapropriação e criação de projeto de assentamento.

A proposta foi recusada pelo representante do INCRA por se tratar de um imóvel pertencente à União. No entanto, diante de todos, ele orientou o ofertante a fazer o pedido de regularização junto ao Programa Terra Legal, que estaria cadastran-do ocupantes de terras da União no município de Palmeirante no mês de novembro. Por ocasião do cadastro, em novembro do mesmo ano, passa a fi-gurar como posseiro nas terras da União Paulo Cé-sar de Barros Filho, o mesmo que posteriormente receberia o título.

Como parte do processo de regularização, o imóvel deve ser vistoriado para comprovar sua ocupação pelo requerente. Entretanto, segundo as ações movidas pelo Ministério Público Federal de Tocantins (MPF/TO), por ocasião da vistoria foi escrito mais um capítulo delituoso desse programa que, como afirma o professor Ariovaldo Umbelino

3 http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=4864 http://www.ecodebate.com.br/2008/07/28/a-grilagem-de-terras-publicas-na-amazonia-artigo-de-ariovaldo-umbelino-de-oliveira/

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visa apenas “justificar a legitimação da grilagem dos médios e grandes imóveis”.

No dia 27 de novembro de 2011, o enge-nheiro agrônomo Erivaldo Costa Arruda esteve no imóvel para fazer a vistoria, entretanto Paulo Cé-sar de Barros Junior não estava, como certamen-te nunca esteve. Diante da ausência, o engenheiro avisou que voltaria no dia seguinte, como de fato fez, quando encontrou Paulo.

Trajetória das famílias envolvidas

As famílias da comunidade Vitória são ori-ginárias de lugares diferentes, mas em comum têm

a experiência de perambulação de terra em terra imposta pelas cercas do latifúndio. Pessoas com histórico de despejos de outras ocupações. Mem-bros de várias famílias conheceram de perto o hor-ror da escravidão em fazendas do Tocantins e do Pará. A maioria das famílias é originária dos esta-dos do Piauí e Maranhão, de onde migraram nas décadas de 1970 e 1980 rumo a Goiás.

Zé Valdir, 56 anos, chegou à comunidade Vitória vindo de outra ocupação, no município de Brasilândia, TO. Lá, depois de três anos de ocupação, apareceu um “dono das terras” ame-açando expulsar as famílias que, com medo, procuraram a superintendência do INCRA/TO,

O Tocantins, formado por Amazônia e Cerrado, é considerado pelo agronegócio como o “novo polo agrícola do Brasil”

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que depois de negociações prometeu assentar as famílias em outra área. Diante desta promes-sa as famílias aceitaram a proposta. Entretanto, oito meses depois foram despejadas, sem que o INCRA encontrasse a terra que prometera para assentar as pessoas.

Em 2010, Zé Valdir e outras famílias ex-pulsas de outras comunidades foram orientadas a procurar uma terra para demandar ao INCRA o assentamento das mesmas. Em 26 de novembro do mesmo ano, 17 famílias ocuparam uma área próxima à sede da fazenda Santo Reis, mas no dia 8 de dezembro foram expulsas por Lázaro, que esta-va acompanhado por dois homens. Barracos ainda em construção foram derrubados e incendiados.

Dois dias depois o grupo resolveu reerguer o acampamento, desta vez às margens da rodovia TO-335. Na mesma noite, pistoleiros rondaram o acampamento e disparam tiros de arma de fogo no local. Os meses seguintes foram marcados por in-tensa perseguição aos acampados.

Em junho de 2011, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) encaminhou à Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República denúncia sobre as ameaças de morte contra os camponeses. No mês seguinte, as famílias bloquearam a TO-335 para reivindicar audiência com órgãos fundiários e MPF/TO. Em agosto, representantes da Ouvido-ria Agrária, Programa Terra Legal, INCRA e MPF se reuniram no acampamento Vitória com os/as camponeses. Nessa audiência ficou determina-do que os fazendeiros que ocupavam ilegalmente nove lotes de área pública deveriam desocupá-los.

Em abril de 2012, foi realizado o 3º Encon-tro de Camponeses, Indígenas e Quilombolas, no acampamento Vitória. Ao final do encontro, a ro-dovia TO-335 foi novamente bloqueada para rei-vindicar o cancelamento do título expedido pelo Terra Legal ao grileiro Paulo César de Barros Ju-nior. Já em Junho de 2012, aAnistia Internacional, em seu comunicado anual, denunciou que 40 fa-mílias do assentamento Santo Antônio Bom Sos-sego e do acampamento Vitória, no município de Palmeirante, foram atacadas por pistoleiros que

atiraram em direção ao acampamento e ameaça-ram matar os/as trabalhadores.

No ano seguinte, as famílias decidiram sair da beira da estrada e entrar na área da fazenda. Atualmente, 19 famílias ocupam e produzem na área, apesar de o fazendeiro continuar na sede da fazenda.

Mais recente, em outubro de 2015, foi re-alizada uma reunião na comunidade Vitória e, para surpresa de todos, estava presente o advogado Ronaldo de Sousa Assis, que se apresentou como comprador de lotes na região do conflito. Duran-te a reunião o advogado informou que dias antes esteve na área acompanhado do policial civil Sakai Simonsen de Oliveira, também acusado de compor o grupo desarticulado em 2005 pela PF. Na certi-dão cartorial apresentada pelo advogado consta que ele comprou 30 alqueires de terra de um pro-prietário com residência no estado do Paraná, cujo procurador é Paulo César Barros.

O Ministério Publico Federal do Tocan-tins, MPF/TO, entrou com ação na Justiça Federal buscando comprovar que área reivindicada pelos trabalhadores, na realidade é de domínio público e que o reconhecimento pelo Terra legal em nome Paulo César de Barros Júnior se deu por uma práti-ca delituosa de “estelionato em desfavor dos órgãos responsáveis pela regularização fundiária ao indu-zi-los ao erro, mediante fraude, a fim de obterem regularização fundiária da Fazendo Santo Reis, lo-calizada no loteamento Garças, lote 83-P, municí-pio de Palmeirante/TO”,

As provas apresentadas pelo MPF/TO fo-ram suficientes para o convencimento da Justiça Federal, que determinou o cancelamento do título por entender que o requerente é, na verdade, “la-ranja”. Apesar de a Justiça Federal ter determinado a suspensão e cancelamento do título concedido, até o presente momento não houve o cancelamen-to do título.

Organizações de apoio

Há um entendimento compartilhado pela

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maioria dos trabalhadores e trabalhadoras do campo de que a força da resistência é resultado da articulação das comunidades camponesas, qui-lombolas e indígenas. Nesse sentido, reconhecem a relevância do papel da Comissão Pastoral da Ter-ra no processo de acompanhamento, formação e assessoria. Zé Valdir expressou com clareza a di-ferença entre o tempo do acampamento em Bra-silândia, quando não tinha ninguém para ajudar/orientar na luta, e agora no acampamento/comu-nidade Vitória. “Agora eles sabem mexer com as leis. Tem acesso a informações importantes”.

A Articulação Camponesa – composta por posseiros, assentados, acampados, e comunidades tradicionais do Tocantins – está sendo fundamen-tal para a luta dessas comunidades pelo acesso e permanência na terra. Nos encontros da Articu-lação os/as participantes tomam conhecimento sobre as lutas dos quilombolas, indígenas e de outras comunidades. Mas do que isso é a certeza de que “um ajuda o outro”. Segundo trabalhado-res, a Articulação tirou os camponeses, indígenas, quilombolas do isolamento. Antes da Articulação os posseiros e demais comunidades estavam iso-lados, cada um cuidando de seus problemas. Essa articulação é muito percebida pelos camponeses de Vitória: “a realização dos encontros aqui foram fundamentais para o fortalecimento da nossa co-munidade”.

Impactos sociais, ambientais e culturais

Passados seis anos da Lei 11.952/2009, que criou o Programa Terra Legal, os resultados conti-nuam irrisórios diante do quadro que era preten-

dido. Na ocasião do lançamento, o governo pre-tendia acelerar regularização de 300 mil ocupações informais em terras públicas na Amazônia Legal. Segundo dados do MDA, foram georeferênciados 10.388.881 hectares e entregues 18.772 títulos so-bre uma área de 1.406.013 hectares.

O programa está longe de levar segurança aos pequenos posseiros da Amazônia. Mas uma coisa é certa: aqueceu o mercado de terras. Os cam-poneses da comunidade Vitória sabem bem disso. De acordo com uma liderança do acampamento, antes do programa “não se ouvia falar em despejo em terra da União, agora virou moda”.

A destinação de terras públicas ao agrone-gócio terá consequências gravíssimas, já sentidas pela comunidade Vitória e por outras comunida-des. O brejo que corta o território está secando em vários trechos devido à destruição do Cerrado. O volume de lenha “produzida” no estado na ordem de 903.224m é um indicador das proporções da destruição em curso.

O sentimento dos camponeses de que “des-pejo virou moda” é confirmado pela Comissão Pastoral da Terra. Nos últimos cinco anos, a CPT registrou 103 conflitos por terra no estado de To-cantins, sendo 32 apenas em 2014, o que equivale a 32% do total do quinquênio, ou seja, o avanço do agronegócio se dá destruindo os biomas Cer-rado e Amazônia, ambos presentes no Tocantins. Perguntada se há um “plano B” caso a comunidade Vitória seja despejada, uma liderança prontamente responde: Não. “Daqui só saímos mortos, chega de tanto sofrer de terra em terra. Essa Terra é nossa. Nós vamos resistir”, afirma acampado que prefere não se identificar.

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anosanos

um bioma mergulhado em conitos

AMAZÔNIA,Relatório Denúncia

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Apoio:

CARTA FRATERNASegunda Carta das Comunidades Extrativistas

Machadinho d' Oeste, Rondônia – Amazônia do Brasil19 de novembro de 2014

Por denunciar e sonhar com a oresta livre... Até a mata da várzea fumaceou

A canoa vazia no igapó cou... Tiro de espingarda nosso irmão matou

Violência e machado maldito que esquartejou... E o sonho da paz quase ndou

Dezesseis irmãos violentamente assassinados em dez anos... E o estado nada falou

E foi desta forma que nosso chão de oresta cou

Manchado com sangue do irmão seringueiro que por lá tombou

E agora tem mais oito companheiros que o crime também jurou

Sua vida e sua luta... Sua luta é a nossa luta. Nosso povo sempre o honrou

Mas, o Estado inerte. Não se manifestou

Haverá tempo de paz...

Como a natureza, a gente se refaz... E anima quem sempre amou.