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REVISTA FILOSOFIA DO DIREITO E INTERSUBJETIVIDADE ISSN 1984-

5650

v.3, n.1 - 2011 www.univali.br/direitofilosofia Página 1

EPISTEMOLOGIA E DIREITO:

PARA A ANÁLISE DO MÉTODO DE PESQUISA NAS CIÊNCIAS HISTÓRICO-

HERMENÊUTICAS

Alvaro Luis de Araujo Ciarlini∗

O presente ensaio tem por objetivo tratar o direito em uma

perspectiva epistemológica e, ao mesmo tempo, propor uma reflexão acerca das

ciências histórico-hermenêuticas.

Para a análise ora proposta, pode-se inicialmente afirmar que o

direito é um peculiar processo de adaptação social, em face da necessidade de

organização e solução dos diversos conflitos intersubjetivos no seio da sociedade.

Paralelamente, no entanto, interessa-nos abordar outro processo de adaptação

social, qual seja a ciência, em especial, a “ciência do direito”, que pretende produzir

e ordenar o conhecimento necessário à correta compreensão dos fenômenos

jurídicos e à aplicação dos respectivos preceitos normativos.

Assim, cumpre dar destaque ao direito enquanto limitador de

condutas e garantidor da observação de interesses dos atores sociais, segundo uma

ordem de valores determinada no âmbito do próprio grupo social, tendo por escopo

a ordenação, organização dos interesses e pacificação dos conflitos. Também

assim, assume destacada importância, para a análise ora procedida, a pretensão de

cientificidade do conhecimento jurídico.

Nessa órbita, o d ire i to deve ser ref let ido em uma

perspect iva ep is temológica. Para tanto , podemos observá- lo como

uma c iênc ia já const i tu ída, examinando os seus fundamentos

lóg icos , o va lor e o alcance de seus postu lados .

∗∗∗∗ Possu i g raduação em Di re i t o pe lo Cen t ro Un ivers i tá r io do D is t r i t o Federa l (1987) , m es t rado em F i loso f ia e Doutorado em D i re i t o , am bos pe la Un ivers idade de Bras í l ia . A tua lm ente é m ag is t r ado a t i vo - T r ibuna l de Jus t ica do D is t r i to Federa l e p ro fessor em curso de m es t rado, pós -graduação la to sensu e graduação em Di re i to . Tem exper iênc ia na área de D i re i t o , com ênfase em Di re i t o P rocessua l C iv i l , Adm in is t r a t i vo e Cons t i t uc iona l , a tuando pr inc ipa lm en te nos segu in tes tem as : d i r e i t o cons t i t uc iona l , d i r e i t os soc ia is , ações co le t i vas e r em édios ju r íd icos cons t i t uc iona is . a lvaro .c ia r l i n i@uo l .com .br .

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Como tóp ico pre l im inar , por tanto, most ra-se

conveniente rea lçar o prob lema do método c ient í f ico e as

repercussões geradas pe la d ivers idade de emprego desse e lemento

no labor humano cient í f ico .

O vocábulo método , no âmbi to et imológico, d ispensa

maiores comentár ios, s ign i f icando, em verdade, o caminho (hodós )

pe lo qua l pretende-se chegar a um f im (metá ) . Usualmente, o

método c ient í f ico é informado por um con junto de proced imentos

hab i tua is que podem vi r a ser poster iormente just i f icados e

exp l icados. Método é a inda um programa previamente regu lado,

rea l izado por meio de uma sér ie de operações que pressupõem uma

s is temat ização cr í t ica , teór ica e ref lexiva: a teor ia do método ou

metodolog ia .

F ixado ta l ponto de par t ida, devemos ava l ia r em que

consis tem os métodos e as metodo logias nas chamadas c iênc ias

humanas e nas ciências históricas e sociais, sem o lv idar , nesse part icu lar ,

da prob lemat ização a lus iva ao uso, por estas, das est ruturas

conce i tua is, bem como dos modelos e técn icas propostos pe las

c iênc ias natura is a f im de garant i r a sua respe i tab i l idade c ient í f ica ,

nut r indo ass im a crença na neutra l idade dessas c iênc ias.

Com efe i to , a pre tensão de c ient i f ic idade das ciências

humanas e das ciências históricas e sociais deve-se em grande medida às

inf luênc ias de um caráter empir is ta e determin is ta das c iênc ias

natura is , o que gerou o emprego, por ana logia – inc lusive no que se

reporta à u t i l ização de modelos h ipoté t icos/ indut ivos exper imenta is

– de le is causa is necessár ias e un iversa is que permi t issem o estudo

das re lações humanas in ter ind iv idua is e co let ivas.

Não é prec iso mui to esforço para compreender que as

c iênc ias soc ia is e h is tór icas não podem ser ava l iadas em uma

perspect iva experimenta l , tampouco podemos de ixar em ob l ív io a

imensa d i f icu ldade em proceder-se ao levantamento, à aná l ise e à

s ín tese dos inf indáve is prob lemas est r i tamente humanos,

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decorrentes da imensa mobi l idade, d ivers idade e indeterminação

dos eventos causadores dos fenômenos soc ia is .

Em boa verdade, pre tendem os c ient istas soc ia is

preservar a pretensão de c ient i f ic idade de seu t raba lho inte lectua l .

Para tanto, t ra taram de redef in i r seus conce i tos a f im de demonst rar

que os fenômenos humanos detêm sent ido e s ign i f icação própr ios,

sendo regidos por le is pecu l ia res que podem e devem ser t ratadas

c ient i f icamente. Deve ser cons iderada, no entanto , a carênc ia de

r igor , lógico ou c ient í f ico , na ut i l ização dos termos método e

metodolog ia no âmbito das c iênc ias soc ia is ou humanas, uma vez

que estas não a tua l izaram o sent ido e o a lcance1 de seu uso.

O prob lema ass im de l ineado permi te cons iderar que os

c ient is tas soc ia is pretenderam se l ivrar dos obstácu los

ep istemológicos s in te t icamente ret ra tados ac ima, sem, contudo,

abandonar os conce i tos e o modo de operar das c iências natura is .

Desta fe i ta , cumpre ass ina lar que a ap l icação dos

cr i té r ios da ep is temologia ao d i re i to deve ser v is ta com redobrada

acu idade, po is a inda não nos fo i possíve l determinar o lugar dessa

c iênc ia jovem no ro l das c iênc ias nomológ icas e a rea l função da

fenomenologia hermenêut ica para a consecução de seus postu lados.

Na esfera conce i tua l , exsurge a inda out ra d i f icu ldade,

dada a ambigü idade do vocábulo epis temolog ia , que ora é t ra tado

como teor ia da c iênc ia , com inc idência, sobretudo, nos países de

l íngua a lemã2, o ra como f i losof ia da c iênc ia - in f luênc ia

anglofôn ica3; ou mesmo, cons iderada a der ivação f rancesa: f i losof ia

1 Para o sociólogo Boaventura de Souza Santos, na obra Pela mão de Alice, O social e o político na pós-modernidade, São Paulo: Cortez, 4a edição, 1997, p. 133: “o trabalho dos cientistas dirige-se à resolução dos problemas e à eliminação de incongruências segundo os esquemas conceptuais, teóricos e metodológicos universalmente aceitos. Estes, aliás, presidem tanto à definição dos problemas como à organização das estratégias de resolução. Os problemas científicos se transformam em puzzles, enigmas com um número limitado de peças que o cientista – qual jogador de xadrez – vai pacientemente movendo até encontrar a solução final.” 2 W issenscha f ts theor ie ou W issenscha f ts lehre . 3 Ph i losophy o f sc ience .

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das c iênc ias4. O termo epistemology remete-nos à teor ia do

conhecimento5.

O foco cent ra l da presente abordagem refere-se à

teor ia da c iênc ia , po is os problemas susc i tados pe lo d i re i to

reportam-se especi f icamente à demarcação de um campo de

invest igação d i re tamente conectado ao t raba lho c ient í f ico, em que

pese o cé lebre pos ic ionamento de Jürgen Habermas6 no sent ido de

que a ep istemologia deve re iv ind icar sua ant iga condição de teor ia

do conhecimento, assegurando ass im a poss ib i l idade de

prob lemat izar a va l idade ou os l im i tes do própr io conhecimento

produzido pe las c iênc ias.

Ass im também, avu l ta de importânc ia , no âmbi to

epistemológ ico , a impossib i l idade de demarcação de um

conhecimento puramente teór ico. Parece-nos que o d i re i to não

comportar ia o estabe lec imento de uma metodologia de pesquisa

popper iana, po is nesse âmbi to são descar tados os cr i té r ios

indut iv is tas de demarcação. É necessár io sub l inhar a inda que para

Popper esses cr i té r ios não têm o condão de estabe lecer uma l inha

d iv isór ia ent re a metaf ís ica e a c iênc ia empír ica que adota como

cr i té r io de demarcação, a fa lseab i l idade de um s is tema c ient í f ico7.

Nesse d iapasão, é importante notar que a caracter ização da c iênc ia

e a d is t inção desta em re lação à pseudociênc ia, não decorre , para

Kar l Popper, da est ru tura de seus produtos acabados, mas de seus

métodos.

Não se pode cogi tar a inda, verb i grat ia , na metodo logia

dos programas de pesquisa de l ineada por Imre Lakatos8, po is não

se most ra v iáve l , no âmbi to do d ire i to, a const rução de teor ias 4 No p lu ra l : Ph i losoph ie des sc iences . 5 Theory o f know ledge 6 HABERMAS, Jürgen . Knowledge and hum an in te res ts . T rad . Je rem y J . Shap i ro . Bos ton : Beacon Press , 1972. 7 POPPER, Kar l . A lóg ica da Pesqu isa C ien t í f i ca . 8 ed . T rad . Leôn idas Hegenberg . São Pau lo : Cu l t r ix , 1999 , p . 27 e ss . 8 LAKATOS, Im re . O fa lseam en to e a m etodo log ia dos program as de pesqu isa c ien t í f i ca . I n : LAKATOS, Im re ; MUSGRAVE, A lan (o rg) . A c r í t i ca e o desenvo lv im en to do conhec im ento . T rad . Oc táv io Mendes Ca jado . São Pau lo : Cu l t r ix , 1979 , p . 109 e ss .

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c ient í f icas ou o estabe lec imento de seus cr i té r ios de va l idação e

just i f icação fundamentados no fa lseac ion ismo , ou mesmo o

estabe lec imento de programas que detêm força heur ís t ica9. Inviáve l

também a adoção dos cr i té r ios pragmát icos de Thomas Nik les10, po is

sob esse pr isma o método é ref lexo de uma rea l idade empír ica,

a tuando segundo a ordem de uma con junção da lógica e das regras

convenciona is, sem pressupor nada sobre o mundo11. F ina lmente, o

t raba lho c ient í f ico ju r íd ico também é cr i t icado enquanto ta l pe la

impossib i l idade de cont ro le dos resu l tados obt idos.

Parece-nos, por tanto, que o d i re i to não pode ocupar um

lugar na c iênc ia h is tor icamente considerada, devendo s i tuar-se na

pos ição in termediár ia ent re esta e a hermenêut ica , com a

necessár ia inserção, nesse âmbi to, da ref lexão d ia lé t ica12. O que

vem a lume nesse par t icu lar é o prob lema metodológico das

c iênc ias13 e a necess idade de cr iação de uma meta- l inguagem que

9 I dem , ib idem , p . 217 . 10 N IKLES, Thom as . Methodo log y, heu r is t ic s and r ac iona l i t y . In : J . C . P i t t and M. Pera (ed . ) . Ra t iona l Changes in Sc ience. Dordrech t : Re ide l , 1987 , p . 103 -132 . 11 I dem , p . 105. 12 STEIN , Ern i l do . D ia lé t ica e he rm enêut ica : Um a cont rovérs ia sobre m étodo em f i l oso f ia . I n : HABERMAS, Jürgen. D ia lé t i ca e Herm enêut ica – Para a Cr í t i ca da Herm enêu t ica de Gadam er . T rad. A lvaro Va l ls . Por to A legre : L&PM, 1987 , p . 98 e ss . 13 “Com herm enêut ica e com d ia lé t ica não nos to rnam os m ais i n fo rm ados , m as com e les a f i rm am os o bas t idor de leg i t im idade que recupera a un idade do m odo descon t ínuo de pôr p rob lem as próp r ios dos m étodos c ien t í f i cos . Poder íam os d ize r que a ques tão do m étodo que expusem os a par t i r da cont rovérs ia e da pre tensão de un iversa l idade de do is m étodos cons t i t u i um es forço de pro teger não apenas o ob j e to das c iênc ia hum anas , m as os própr ios proced im en tos c ien t í f i cos , cont ra a am eaça da se lvagem atom ização dos p rocessos tecnocrá t i cos no conhec im ento . É ass im que herm enêu t ica e d ia lé t ica não podem ser encur tadas a t r avés de sua redução à s im p les teo r ia das c iênc ias . He rm enêu t ica e d ia lé t ica r epresentam , de m ane i ra ún ica e pr i v i l eg iada, o t r ave j am en to de um t ipo de fo rm a de v ida do pensam ento que não desco la do m undo e da p ráx is v i v ida e , por isso , represen ta um a fo rm a de v ida que poder íam os carac ter i za r com o precedendo a toda c iênc ia e t r aba lho c ien t í f i co . É c la ro que es tes m étodos de ixaram suas m arcas no debate ep is tem o lóg ico , sobre tudo no cam po das c iênc ias hum anas ; m as seu a lcance u l t r apassa os acanhados hor i zon tes da ques tão ep is temo lóg ica . D ia lé t ica e herm enêut ica são a a f i rm ação ex t rem a do s ign i f icado p rá t i co da razão hum ana no seu sent ido m ais f o r te . Não s im p lesm en te porque esses do is m é todos têm a práx is com o ob je to , m as porque não há práx is no seu sent ido p leno sem que pressuponha os hor i zon tes do pensam en to d ia lé t ico e herm enêut ico . F i l t r a - se , por tan to , na cont rovérs ia en t re d ia lé t ica e herm enêu t ica , a a f i rm ação do sen t ido é t ico-po l í t i co do pensam ento . É, sem dúv ida , esse sent ido p rá t ico , com sua fo rça

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possa dar conta dessas novas def in ições própr ias ao d i re i to , bem

como uma meta-metodologia capaz de redef in i r a est ru tura

conce i tua l e o modus operandi dessa novidade c ient í f ica .

Diante dessas constatações, convém aval ia r o pro jeto

epistemológico habermasiano que, como se sabe, encont ra-se

centrado no tema do conhecimento e interesse e tem em mira a

superação da dia lét ica do esc larecimento, evidenciando o nexo ent re

teor ia e práx is , como já estava del ineado na introdução de seu l ivro

que leva o mesmo nome14.

O que pretende o filósofo, nesse plano, é balizar uma teoria

sistemática a partir da mediação já aludida precedentemente, na qual devem ser

estabelecidas algumas condições como regras de conduta teórica15, visando a

compreender o nexo entre os avanços da racionalidade técnica e a práxis social, ou

mundo vital. O exame em tela pretende ainda determinar como se dá a influência

exercida reciprocamente entre ambas; e mais, se é “possível submeter essa

influência ao controle de uma discussão racional pública, crítica e emancipadora”16.

Enfim, a análise da conexão entre conhecimento e interesse visa a amparar a

assertiva de que “[...] crítica do conhecimento só é possível como teoria da

sociedade.”17, relatando assim uma perspectiva teórica marxista.

Fixados tais parâmetros, a pesquisa de Habermas, nesse particular,

ocupa-se da argumentação acerca da dissolução da teoria do conhecimento em

favor de uma teoria da ciência18. Ocorre, em verdade, uma tentativa de percorrer os

caminhos da “esquecida experiência da reflexão”19, esses certamente situados no

pensamento filosófico alemão de Kant a Marx. O ponto de partida a ser seguido,

express iva m as rad ica l , que recupera , a t r avés de um a con t rovérs ia m etodo lóg ica , a verdade i ra grandeza e d ign idade da f i l oso f ia ” . C f . S te in ; Haberm as , 1987: 131-132 . 14 HABERMAS, ib idem , p . 13 . 15 S IEBNEICHELER, ib idem , p . 69 . 16 I dem , ib ídem , 71 . 17 HABERMAS, Jürgen . Conhec im ento e in te resse. T rad . José N . Heck . R io d e Jane i r o : Zahar , 1982 , p . 23 . 18 I dem , ib idem . 19 I dem , ib idem .

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para tanto, estriba-se no exame da relação existente entre os temas auto-reflexão

epistemológica e ciência empírico-analítica20.

Deve ser refletida, para a melhor compreensão das proposições de

Habermas, sua tese de que “[...] a ciência não foi, a rigor, pensada filosoficamente

depois de Kant [...]”21, para quem a ciência é apenas uma categoria do

conhecimento possível e não pode ser identificada com o saber absoluto, sob pena

de não permitir a sua própria compreensão.

Com efeito, a partir da concepção kantiana crítica, colhe-se a noção

da ciência como uma categoria de conhecimento possível22, sendo que a razão

teórica estava situada em um marco de referência que engloba a razão prática, o

juízo reflexivo e a própria reflexão crítica.

A postura de Hegel, no entanto, consiste em afirmar que a crítica

kantiana, baseada em uma filosofia primeira, está fundamentada em uma ilusão,

pois o sujeito cognoscente não pode estar, como uma unidade, ao mesmo tempo

fora e por cima do movimento da história, tampouco pode ser o saber absoluto um

ponto de partida, senão de chegada. Assim, o sujeito pretende chegar à consciência

subjetiva, alcançando o saber absoluto e, em decorrência disso, a lógica e, só

assim, a filosofia23.

A reflexão crítica do sujeito cognoscente demanda que este não

confie diretamente no acervo de seus conhecimentos adquiridos, mas

cientifique-se das condições do saber possível, em princípio, naquele contexto. Somente com a ajuda de critérios fidedignos sobre a validade de nossos juízos podemos conferir se há sentido em estarmos seguros de nosso saber. No entanto, como poderia a faculdade cognitiva ser examinada criticamente se tal crítica deve igualmente reivindicar, ela própria, ser verdadeiro conhecimento?24

Ora, não se pode pretender ter acesso à faculdade cognitiva

antes de conhecer, pois o exame das potencialidades do conhecimento é, por si só,

um saber25.

20 McCARTHY, Thom as . La T eor ia Cr í t i ca de Jürgen Haberm as . T rad. Manue l J im enez Redondo . Madr id : Tecnos , 1992, p . 75 . 21 HABERMAS, ib idem , p 26 . 22 I dem , ib idem . 23 ST EIN, Ern i ldo ; BONI , Lu is A. ( o rg . ) . D ia lé t ica e herm enêut ica : Po r to A legre : Un ivers idade , 1993, p . 611 . 24 HABERMAS, ib idem , p . 29 . 25 I dem , ib idem .

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Tal circularidade deu ensejo, em Hegel, igualmente, à submissão da

teoria do conhecimento à crítica, com a adoção de uma dúvida incondicional. Ao

invés de superar tal círculo, todavia, o filósofo acabou radicalizando sua crítica, o

que não possibilita um esclarecimento da filosofia em relação à ciência.

Muito embora Habermas esteja de acordo com Hegel, no sentido de

que o sujeito cognoscente deve ser concebido em seu próprio desenvolvimento

histórico, a aquiescência não se estende à compreensão ostentada por este em sua

Filosofia do Espírito Absoluto26, pois esse recorte teórico deixa sem perspectivas

qualquer discussão acerca da epistemologia27.

Na metacrítica de Marx a Hegel, segundo Habermas28, há a

afirmação de que o surgimento e a transformação das formas de consciência não se

dão idealisticamente, por meio do Espírito Absoluto, senão por intermédio das forças

produtivas e das lutas de classes sociais, sendo que tais fenômenos se

desenvolvem sob condições materiais contingentes. Assim, o sujeito cognoscente

não será o eu transcendental, tampouco o espírito absoluto, mas sim o ser natural

humano que trabalha e se adapta à natureza, pois o trabalho é, para Marx, um

processo de inter-relação - “[...] ação, assimilação e desassimilação da natureza [...]”

– uma relação entre a natureza objetiva circundante e a natureza subjetiva29 e as

capacidades humanas se desenvolvem historicamente no curso dessa inter-relação.

Na medida em que os sujeitos que trabalham constituem um mundo,

proporcionando o processo de intercâmbio material com a natureza, a reflexão sobre

o sujeito de conhecimento não pode ficar estritamente condicionada ao

individualismo das limitações da crítica transcendental de Kant, pois esta não está

fundamentada historicamente, mas também não deve estar limitada pelo excessivo

idealismo da filosofia hegeliana.

No entanto, Marx acabou por se desviar da análise da ciência a

partir dos construtos existentes nos trabalhos teóricos de Kant e Hegel, ao conferir a

sua própria obra o manto de uma ciência rigorosa30, o que pode ser atestado pela

26 McCARTHY, ib idem , p . 76 . 27 HABERMAS, ib idem , p . 43 . 28 I dem , ib idem . 29 I dem , ib idem , p . 46 . 30 McCARTHY, ib idem , p . 77 .

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especificação de leis econômicas do movimento da sociedade moderna como

espécies de leis naturais. Nesse contexto, para Habermas ...

À medida que a ciência do homem é uma análise constitutiva, ela inclui necessariamente a auto-reflexão cognitivo-crítica da ciência. A auto-compreensão da economia como uma ‘ciência natural do homem’ dissimula esta necessidade. Verdade é, como já foi dito, que esta acanhada auto-compreensão metodológica resulta, conseqüentemente, de um sistema referencial restrito ao agir instrumental.31

A visão segundo a qual o processo de trabalho consiste em um

processo científico realiza a idéia do jovem Marx, no sentido de que “[...] a ciência da

natureza engloba tanto a ciência do homem quanto é por ela englobada.”32 Dessa

feita, a ciência humana seria necessariamente considerada sob o gênero da ciência

natural e, por essa via, a ciência natural estaria “subsumida sob os parâmetros da

ciência do homem”33. Essa proposição tem importância “[...] no sentido de um

determinado pragmatismo lógico transcendental.”34, sem no entanto questionar-se

ao nível da teoria do conhecimento, ou refletir as proposições metodológicas da

teoria da sociedade.

Isso nos leva, no entender de Habermas, a um obscurecimento

da idéia de ciência do homem, em virtude da ausência de uma adequada distinção

ontológica entre interação e trabalho, fenômenos estes tratados por Marx na vala

comum da práxis social, e ainda, em decorrência de sua omissão quanto à possível

aplicação do conceito materialista de síntese “[...] às realizações instrumentais e às

inter-relações do agir comunicativo.”35.

De outra forma, tivesse Marx se precatado sobre tais peculiaridades

de seu pensamento, poderia ter retomado a crítica de Hegel ao critério subjetivo da

teoria do conhecimento de Kant, possibilitando assim o estabelecimento de um

princípio segundo o qual a crítica radical do conhecimento é possível, mas “na forma

de uma reconstrução da espécie.”36. Isso por certo possibilitaria o estabelecimento

de um princípio no sentido de que a crítica radical do conhecimento pode ser 31 HABERMAS, ib idem , p . 63 . 32 I dem , ib iem , p . 66 . 33 I dem , ib idem . 34 I dem , ib idem . 35 I dem , ib idem , p . 77 . 36 I dem , ib idem .

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realizada, mas somente como uma reconstrução da história da espécie37. Por

conseguinte,

[...] a teoria da sociedade não é possível, sob o ponto de vista de uma autoconstituição da espécie no medium do trabalho social e da luta de classes, senão como auto-reflexão da consciência que se conhece.38

O que Habermas pretende, nesse ponto, é a explicitação da

condição crítica desempenhada pela filosofia na ciência e, assim, a teoria da

sociedade não pode negar a filosofia, porquanto aquela assumiu ser a auto-reflexão

da história da espécie. Preservar-se-ia a filosofia, dessa feita, no momento da

fixação do entendimento ideológico-crítico que estabelece o embasamento

metodológico da análise científica. Logo, ao invés de desacreditar a filosofia, a

ciência – que é crítica material do conhecimento – deve resgatar indiretamente o

labor filosófico na medida em que possibilita o acesso aos problemas concretos.39

Pode-se concluir, a partir de tais considerações, que o pensamento

de Marx não foi suficiente para embasar uma reflexão epistemológica radical contra

as investidas do positivismo do final do século XIX40.

Ao centrar sua crítica no positivismo, Habermas preconiza que a

questão lógico-transcendental sobre as explicações do sentido do conhecimento

enquanto tal foi substituída por uma visão do conhecimento segundo as realizações

da ciência. Dessa feita, as condições de um conhecimento possível devem passar

por uma apreciação metodológica relativamente às regras de produção e controle

das respectivas teorias científicas. No entanto, na medida em que o positivismo

dogmatiza a fé da ciência nela mesma, acaba por vedar sua auto-reflexão,

imunizando-a contra a filosofia.

A metodologia, a seu turno, assume as vezes de uma teoria do

conhecimento e, o conhecimento, já definido pelo trabalho dos cientistas, pode ser

explicado por intermédio da análise dos métodos encetados para a investigação

científica.

37 I dem , ib idem . 38 I dem , ib idem . 39 I dem , ib idem . 40 McCARTHY, ib idem , p . 77 .

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Nesse âmbito, a teoria do conhecimento deve estar ajustada a um

molde metodológico, sob pena de ser tida por obscura. Já a teoria da ciência fica

limitada à análise das proposições científicas e dos modos de proceder no âmbito de

suas regras aplicáveis, segundo as quais as teorias são elaboradas e explicadas.

Consequentemente, convém insistir, a teoria do conhecimento fica

limitada à metodologia. Em nome de um conhecimento exato, perde-se a indagação

transcendental do sentido do conhecimento em favor do questionamento positivista

sobre o sentido dos fatos. Consagra-se, assim, o realismo ingênuo, na premissa de

que o conhecimento descreve a realidade.

A postura crítica de Habermas em relação a Hegel e Marx, no

sentido de que estes não conseguiram superar o positivismo, surge como um ponto

de partida para sua proposta de vivificar as etapas abandonadas da reflexão, por

meio da adoção da teoria dos interesses cognitivos. O que Habermas pretende é

delinear essa teoria como proposta para uma radicalização da epistemologia,

objetivando aclarar os fundamentos que o conhecimento tem na vida41.

A teoria é tratada, por Habermas, a partir da análise das lições de

Schelling acerca do método e do estudo acadêmico. Com efeito:

O horror à especulação, o pretenso abandono do teorético pelo meramente prático produz necessariamente na acção a mesma banalidade que no saber. O estudo de uma filosofia rigorosamente teórica familiariza-nos do modo mais imediato com idéias e só as idéias proporcionam ao agir força e significação moral42.

O uso do vocábulo teoria, nesse caso, está ligado ao sentido de

contemplação do cosmos e, como tal, a teoria “penetra na práxis vital” o que se dá

“[...] mediante o ajustamento da alma ao movimento ordenado do cosmos”,

impregnando assim a vida com sua forma. A teoria “reflete-se na atitude daquele

que se submete à sua disciplina, no ethos.” 43.

41 I dem , ib idem . 42 HABERMAS, Jürgen . Técn ica e C iênc ia com o ideo log ia . T rad . Ar tu r Morão . L isboa : Ed ições 70 , 1994 , p . 129. 43 I dem , ib idem .

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Esse tema é retomado por Habermas e posto em confronto com

Husserl, que teria se deixado orientar pelo conceito tradicional de teoria, adotando

como referencial o ideal platônico de conexão entre a pura teoria e a prática vital44.

Ocorre que as ciências empírico-analíticas estão comprometidas

com uma atitude teórica que pretende ser livre da dogmatização ou dos interesses

da vida; também as ciências histórico-hermenêuticas que, tal qual as ciências

empírico-analíticas, detêm a consciência do método, descrevendo teoricamente uma

realidade estruturada e preservando, assim, seu caráter positivista.45

No âmbito das ciências sociais observa-se igualmente um critério

orientador nitidamente positivista, com a separação entre conhecimento e interesse,

na medida em que estabelece distinções entre proposições normativas e descritivas,

visando a determinar o que são os conteúdos cognitivos e os meramente emotivos a

fim de preservar a idéia de pesquisa isenta de valores.

A crítica de Habermas a Husserl, nesse particular, está assentada

no fato de que embora ambos defendam o mesmo objetivo, qual seja o de colocar

em evidência o caráter deficiente e limitado da visão dogmática objetivista que

decorre de uma concepção positivista das ciências, Husserl prossegue no objetivo

tradicional da filosofia com a finalidade de renovar uma teoria pura que descreva

normas absolutas para o conhecimento, o que mascara a conexão entre

conhecimento e interesse e em nada nos auxilia a dissolver a ilusão objetivista.

O trabalho de Habermas, ao contrário, pretende percorrer o caminho

da reflexão filosófica por meio do processo dialético da história a fim de descobrir os

traços da violência que distorcem o diálogo almejado pelos indivíduos.

Para tanto, o filósofo formula três teses, a saber: a) a primeira

estabelece que a orientação geral que ordena as ciências da natureza está fulcrada

em “um interesse de raízes antropológicas profundas”46, pela predição e controle

dos fatos naturais, cuidando assim de um interesse técnico; b) a segunda preconiza

que a orientação geral que ordena as ciências histórico-hermenêuticas fundamenta-

se em um interesse de raízes antropológicas profundas no sentido de assegurar e

expandir o entendimento mútuo e o auto-entendimento, na organização da vida,

44 I dem , ib idem , p . 130 . 45 Pa ra HABERMAS o h is to r i c i sm o to rnou-se “o pos i t i v ism o das c iênc ias do espí r i t o ” . Idem , ib idem . 46 I dem , ib idem .

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tratando-se de um interesse prático e c) a terceira tem em conta a reflexão crítica,

sendo esta movida pelo interesse por emancipação.47

A pesquisa de Habermas acerca dos interesses cognitivos é feita em

cada um dos processos de investigação de que é dotada a atividade científica. As

ciências empírico-analíticas compreendem as ciências da natureza e as ciências

sociais, na medida em que seu escopo é produzir um conhecimento nomológico,

sendo que as ciências histórico-hermenêuticas, que compreendem as denominadas

ciências humanas e as ciências históricas e sociais, têm por finalidade a

compreensão interpretativa das configurações simbólicas; já as crítico-reflexivas

englobam a psicanálise e a crítica da ideologia, ou teoria social crítica, bem como a

própria filosofia, enquanto disciplina reflexiva e crítica48.

A intenção de Habermas, a partir de tal taxonomia, é correlacionar

uma modalidade de interesse cognitivo a cada uma das orientações das ciências.

Mostra-se curial, portanto, que na orientação das ciências empírico-

analíticas sobressaia o interesse técnico, tendo por base um sistema de referência49

no qual as proposições científicas ou experimentais são avaliadas. Nesse âmbito

são instituídas regras para a elaboração de teorias e também para sua comprovação

crítica. A partir de conexões hipotético-dedutivas, obtêm-se proposições com

conteúdo empírico, podendo ser interpretadas como “[...] enunciados sobre a

covariância de grandezas observáveis [...]”, o que permite a obtenção de

prognósticos. Não há como negar, portanto, que as ciências experimentais

constituem suas teorias mediante um interesse cognitivo que é o interesse pela “[...]

segurança informativa e pela ampliação da ação de êxito controlado.”50.

Para Habermas, em linhas gerais, o critério de racionalidade

adotado nas ciências da natureza, em uma “atividade controlada pelo sucesso”51, é

medido pela satisfação de um interesse que, evidentemente, está associado à

satisfação de uma necessidade vital. Tal sucesso pode ser medido pela capacidade

47 I dem , ib idem , p . 129 e ss . 48 McCARTHY, ib idem , p . 80 . 49 HABERMAS, ib idem , p . 137. 50 I dem , ib idem , p . 138 . 51 HABERMAS. Conhec im en to e In te resse , p . 150 .

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de o indivíduo resolver problemas que possui, e, ao mesmo tempo, proceder a

valoração vital e ao valor cognitivo52.

O interesse não é aqui colocado no mesmo nível de outros

mecanismos de orientação, por exemplo, o instinto animal, mas não está totalmente

“[...] isolado do contexto objetivo próprio ao processo vital.”53.

Quanto ao mais, cumpre anotar que, em verdade, as ciências

histórico-hermenêuticas e as ciências críticas podem ser aproximadas em um

mesmo grupo, na medida em que a diferença entre ambas estaria localizada na

ênfase política atribuída às ciências críticas, em uma alternativa progressista para as

ciências humanas54.

Nas ciências histórico-hermenêuticas há, como já dito, a

preponderância do interesse cognoscitivo prático. A avaliação dos enunciados não

se dá segundo o sistema de referência da ciência empírico-analítica, inexistindo

ainda distinção entre as esferas da linguagem formalizada e da experiência objetiva.

Com efeito, as teorias não são elaboradas, já, de modo dedutivo, sendo de se

considerar que as experiências não têm em perspectiva o “êxito das operações”55. É

da compreensão de sentido, e não da mera observação, que se ocupam os

cientistas histórico-hermeneutas. Para tanto, louvam-se da interpretação de textos e

buscam determinar o sentido possível de seus enunciados por meio da

hermenêutica enquanto filosofia prática56.

Essa perspectiva leva-nos à segunda parte da extensa pesquisa de

Hans Georg Gadamer exposta na obra Verdade e Método57, mais precisamente no

questionamento acerca da viabilidade de uma epistemologia das ciências histórico-

hermenêuticas, e também à apreciação crítica de Habermas expressa no livro

Dialética e Hermenêutica58. O que Habermas enfatiza é que Gadamer sempre

52 I dem , ib idem . 53 I dem , ib idem . 54 MENEZES, Eduardo D ia tah y B . de ; FREIT AG, Bárbara (o rg . ) . Jürgen Haberm as : 70 anos . R io de Jane i r o : Tem po Bras i l e i r o , 1999 , p . 95 . 55 HABERMAS. Técn ica e C iênc ia com o ideo log ia , p . 138. 56 GADAMER, Hans Georg . A razão na época da c iênc ia . T rad . Ânge la D ias . R io de Jane i ro : Tem po Un ivers i t á r io , 1983 , p . 58 . 57 GADAMER. Hans Georg . Verdade e Mé todo – T raços Fundam enta is de um a herm enêut ica f i l osó f i ca . 2 ed . T rad .F láv io Pau lo Meurer . Pe t rópo l is : Vozes , 1998 , p . 352 . 58 HABERMAS, Jürgen . D ia lé t ica e Herm enêu t ica . T rad . Á lva ro Va l ls . Por to A leg re : L&PM, 1987 .

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insistiu na impossibilidade da redução da hermenêutica filosófica a uma teoria da

ciência. Mas constata, todavia, que a obra Verdade e Método influenciou

visivelmente a teoria das ciências, em especial as sociais e as do espírito, na

medida em que possibilitou “o auto-esclarecimento do pensamento metódico, para a

liberalização da compreensão de ciência e até para uma diferenciação da práxis da

investigação”59.

Em seu excurso intitulado “Ciências Sociais Reconstrutivas versus

Ciências Sociais Compreensivas” Habermas expõe sua percepção de que as

ciências sociais não deveriam abrir mão da dimensão hermenêutica da pesquisa e

que elas só ao preço de distorções poderiam reprimir o problema da

compreensão”60. A afirmação de Gadamer no sentido de que a hermenêutica não

deveria ser tratada como um “assunto da metodologia”61, por ser uma arte e não um

método e principalmente por não visar à coleção e análise de dados, mas sim a

elucidação dos “processos de compreensão ordinários”62, não afastou Habermas da

idéia de que a guinada interpretativa não esvaziou o status científico das

abordagens não objetivistas.

A partir da crítica da teoria da compreensão fundada em empatia,

preconizada pelo jovem Dilthey, Habermas opõe-se ao relativismo decorrente da

renúncia de tantos outros filósofos quanto à pretensão de objetividade e de obtenção

de um saber explicativo. Sua ênfase se dirige ineludivelmente à preservação do

atributo nomológico conferido às ciências sociais.

Ora, na medida em que os intérpretes compreendem o significado

do texto e percebem por que seu autor fez este ou aquele juízo de valor sobre a

verdade de uma dada asserção, ou reconhecem a correção de determinados valores

e normas, bem como a sinceridade de suas vivências, existe um agir dotado de

inequívoca racionalidade imanente63. Assim, a interpretação deve ser concebida

como uma atividade racional e os intérpretes devem necessariamente socorrer-se

do uso de padrões de racionalidade.

59 I dem , ib idem . 60 HABERMAS, Jü rgen. Consc iênc ia Mora l e Ag i r Com un ica t i vo . T rad . Gu ido A . de A lm e ida . R io de Jane i r o : Tem po Bras i l e i r o , 1989, p . 37 . 61 I dem , ib idem . 62 I dem , ib idem . 63 I dem , ib idem .

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Eis a questão! Esses padrões de racionalidade devem ser comuns e

obrigatórios para as partes envolvidas no processo de compreensão hermenêutica.

Isso seria suficiente para justificar o caráter científico da Hermenêutica? Habermas

responde que não, na medida em que

[...] semelhante recurso, normalmente implícito, a padrões de racionalidade presumivelmente universais não é ainda nenhuma prova da racionalidade dos padrões pressupostos, mesmo que esse recurso seja de certa maneira inevitável para o intérprete apaixonado, dedicado de corpo e alma à compreensão. Mas a intuição fundamental de todo falante competente – que suas pretensões à verdade, à correção normativa e à veracidade devem ser universais, isto é, em condições apropriadas, aceitáveis por todos – dá ensejo, de qualquer modo, a lançar um rápido olhar à análise formal-pragmática, que se concentra nas condições universais e necessárias da validade de proferimentos e operações simbólicos. Estou pensando aqui nas reconstruções racionais do know-how de sujeitos capazes de falar e agir, que estimamos capazes de produzir proferimentos válidos e que se estimam capazes eles próprios, pelos menos intuitivamente, de distinguir entre expressões válidas e não-válidas64.

No entanto, Habermas atribui às disciplinas como a lógica, a meta-

matemática, a teoria do conhecimento e a epistemologia, bem como a ética, a

estética, a teoria da ação e da argumentação, dentre outras, o escopo de

estabelecer um saber pré-teórico, orientado por um domínio intuitivo de sistemas de

regras que servem de fundamento para a geração e avaliação dos proferimentos e

operações simbólicas65, no caso de “inferências corretas, bons argumentos,

descrições, explicações ou previsões acertadas, frases gramaticais, atos de fala

bem sucedidos, ações instrumentais eficazes, avaliações adequadas, auto-

representações autênticas, etc.”66.

A atividade racional, nesses moldes, evidencia uma feição

indiretamente legisladora, em um juízo estritamente crítico, com a explicitação de

elementos como condições de validade desses proferimentos, bem como a

explicação de casos que com eles não se compatibilizam.

Não se pode negar ainda a feição nitidamente construtiva desse

processo, com o estabelecimento de novos padrões analíticos, “[...] na medida em

64 I dem , ib idem , p . 47-48. 65 I dem , ib idem , p . 48 . 66 I dem , ib idem .

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que as reconstruções racionais empurram as diferenciações entre as pretensões de

validez particulares para além dos limites que a tradição ensinou.”67. Via de

conseqüência, a análise genérica das condições de validade viabiliza o surgimento

de reconstruções racionais que pretendem descrever os universais.

Insta ressaltar ainda que assim como o interesse técnico decorre de

uma forma de vida conectada ao trabalho, o interesse prático está respaldado na

existência de um liame intersubjetivo que envolve a compreensão e o entendimento

por intermédio da linguagem ordinária como forma garantidora da sobrevivência dos

indivíduos da sociedade. Tais estruturas de comunicação não podem, no entanto,

ser captadas dentro dos balizamentos das ciências empírico-analíticas e sim em

uma dimensão de interação simbólica na qual a adequação das convenções sobre o

significado dos conceitos não decorre de operações em processos objetivados, mas

da “interpretação de conceitos, fins, valores e razões”68, o que pressupõe, mesmo

em relação ao conhecimento produzido pela investigação empírico-analítico, um

entendimento intersubjetivo.

Diante dessas balizas, mostra-se conveniente avaliar o atual estágio

da compreensão, assimilação e difusão do conhecimento acerca dos possíveis

métodos de pesquisa adotados no direito, sabidamente uma ciência histórico-

hermenêutica. Assume elevada importância, conseqüentemente, determinar de

modo minimamente conseqüente e escorreito quais os possíveis objetos que

poderão efetivamente ser estabelecidos nessa modalidade científica, e ainda, como

determinar os problemas de pesquisa que delinearão os elementos e os contornos

dos ambientes pesquisáveis.

Também assim, falta-nos avaliar com mais rigor e compreender de

modo mais eficiente e completo a atual importância da hermenêutica filosófica e

jurídica, seus pontos de confluência e a diversidade de seus âmbitos de atuação,

assim como a variedade de seus métodos ou a multiplicidade de seus possíveis

resultados.

Com a gradual e consistente superação das verdades universais e

objetivamente dadas pelo conhecimento aurido do positivismo lógico de matiz

iluminista, nosso trabalho de pesquisa em direito deverá apostar em outras linhas

67 I dem , ib idem . 68 McCARTHY, ib idem , p . 92 .

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metodológicas que nos afastem do corrosivo esoterismo ou da análise superficial e

inconseqüente dos problemas jurídicos mais importantes.

A progressiva superação dos modelos positivistas no âmbito do

direito nos afasta, por certo, da ilusória e absoluta certeza sobre as verdades no

conhecimento jurídico. Não obstante, mostra-se necessário avançar no estudo e

aprofundamento da reflexão das possibilidades da epistemologia na esfera das

ciências histórico-hermenêuticas, assim como avaliar seus critérios de pesquisa e as

possibilidades legitimadoras do uso dos métodos e da linguagem científica nessa

jovem ciência.

Conclusivamente, a pesquisa em direito deverá refutar o modelo de

trabalho de matiz empírico-analítico afastando-se, dessa feita, da busca de um

conhecimento respaldado no interesse técnico, pois em seu âmbito de análise não

poderá haver o delineamento de predições e controle dos fatos jurídicos observáveis

no mundo da vida.

Não custa insistir que as ciências histórico-hermenêuticas estão

fundamentadas em um interesse de raízes antropológicas profundas no sentido de

assegurar e expandir o entendimento mútuo e o auto-entendimento na organização

da vida. Por isso, devem apostar em um contexto de pesquisa orientado por um

interesse prático, sem olvidar da importância e do alcance da reflexão crítica,

ensejadora de um conhecimento guiado pelo interesse por emancipação.

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