aliquidstat pro aliquo o discurso do “15 de...
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ÁREA TEMÁTICA: Direito, Crime e Dependências
ALIQUIDSTAT PRO ALIQUO- O DISCURSO DO “15 DE OUTUBRO”
VELEZ, António
Doutorando em Sociologia
ISCTE-IUL
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Palavras-chave: Movimentos sociais; acção colectiva; semiótica; direito.
Keywords: Social movements; collective action; semiotics; law.
PAP1427
Resumo
A presente comunicação decorre de um estudo apoiado nas discussões teóricas de Luhmann
(1989, 1993 e 1996), Habermas (1981) e Hellmann (1996 e 1998) sobre movimentos de
protesto, assumindo como objecto central o que se reconhece em Portugal como a plataforma
“15 de Outubro”, subscrita por 39 movimentos sociais com diferentes dimensões e formas de
organização. A actualidade do tema funciona simultaneamente como elemento facilitador e
condicionante – justificando a importância de uma observação sociológica, mas exigindo
cuidado na abordagem a dinâmicas muito recentes e imprevisíveis, tanto na sua emergência e
desenvolvimento como na sua volatilidade. Esta condição indica o caminho de uma análise
de natureza mais exploratória, tendo-se privilegiado como foco principal o discurso
apresentado pelo referido grupo. Mobilizando métodos de análise documental, procuram-se
interpretar diferentes categorias de expressão escrita que permitam a sistematização de uma
primeira análise sobre percepções face ao direito.
Abstract
The present Communication follows a research supported by the theoretical discussions of
Luhmann (1989, 1993 and 1996), Habermas (1981) and Hellmann (1996 and 1998) on
protest movements, focusing the Portuguese "October 15" platform – signed by 39 different
social movements. The fact that it is a recent activity facilitate and impose limits to the
analysis - justifying the importance of a sociological observation, but requiring extra care in
approaching very recent and unpredictable dynamics, in its emergence, development and
volatility. This condition suggests a more exploratory work, in this case focusing the
discourse of the group present in a “manifesto”. Mobilizing methods of document analysis,
we seek to interpret different types of writing that allow a first systematic analysis of
perceptions facing the law.
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Aliquidstat pro aliquoi- o discurso do “15 de Outubro”
1. Introdução
A presença e interpretação de signos (ou sinais)ii na vida pessoal é um elemento constante e permanente. De
facto, muitas das acções que conduzimos diariamente – e às quais atribuímos muitas vezes elementos como a
“intuição” ou alguma forma de “automatismo” – encontram-se fortemente dependentes da interpretação de
signos: ver as horas no despertador (e perceber se estamos ou não atrasados); abrir a torneira da água quente
no banho (e não da a água fria); decidir que roupa vestir (quente, fresca, colorida, sóbria, etc.); entrar num
transporte público ou conduzir um veículo até certo local (escolhendo o transporte com o destino certo, ou
lendo o painel de instrumentos de um automóvel e respeitando os sinais de trânsito); etc.
Podemos assim compreender os sinais como algo intrínseco à actividade social, funcionando como um
complexo conjunto de elementos mediadores dessas mesmas actividades; neste sentido, não será estranha à
sociologia (em particular no domínio da comunicação) a abordagem destes sinais enquanto elemento de
análise – procurando compreender o seu processo de semiose: as formas como são construídos, mobilizados
e interpretados. No caso particular do presente exercício, esta relação é talvez ainda mais evidente; ao pensar
na análise de movimentos sociais, facilmente se identifica uma forte presença – mais ou menos explícita – de
signos de natureza escrita, verbal, visual ou outros não-verbais, que traduzem e caracterizam grande parte da
sua actividade.
Neste caso, a análise será resumida a um único texto, em forma de “manifesto” e que se apresenta como
“base” do discurso de um movimento social conhecido por “Plataforma 15 de Outubro”. Este é um elemento
que define a principal limitação desta análise, excluindo pra já a análise de outros documentos escritos, bem
como outros documentos que assumem diferentes formas de expressão.
2. Os sinais da sociedade
Num primeiro momento, será importante enquadrar o próprio conceito de signo. O desenvolvimento deste
conceito na semiótica (ou semiologia) aponta para o reconhecimento de um elemento expresso enquanto
categoria produzida por um sujeito num processo de semiose, procurando representar um significado ausente
– relacionando três entidadesiii: um significante, um significado e um objecto; e adoptando diferentes
formas: sinais, sintomas, ícones, índices, símbolos, ou nomes. Ainda assim, este reconhecimento não se
reduz a uma análise elementar dos signos, mas antes às dinâmicas de criação de sentido inerentes; não será,
portanto, tão relacionada com o objecto em si, mas mais com as dinâmicas que envolvem todo o processo.
A semiótica encontra assim uma relação directa com o estudo dos signos, ou sinais, nomeadamente dos
significados que a eles se associam. No caso particular da Semiótica Social, procuram-se encontrar e
relacionar elementos que permitam conhecer as formas como as pessoas se apropriam do uso dos sinais para
a construção de uma vida em comum. Vannini (2009) indica quatro conceitos fundamentais que orientam a
reflexão:
Transformação – referente à mudança de sistemas de significado ao longo do tempo. Ex. Moda,
tecnologia, palavras;
Regras – construídas socialmente, podem ou não ser escritas. Podem apresentar-se mais ou menos
institucionalizadas, facilitando ou dificultando a mudança;
Multimodalidade – crescente mediação de meios de comunicação que aprofunda a noção de
complexidade;
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Função – num primeiro nível mais evidente (instrumental); num nível menos visível
(estratégica/reguladora); ao nível informativo (recurso); ao nível pessoal (status); e ao nível
heurístico (descoberta).
De forma mais específica, focando o tema do presente texto, apresentam-se no quadro seguinte os elementos
mais relevantes para análise do discurso dos movimentos sociais, partindo da abordagem da semiótica social
(Idem).
Discurso
O “quê” da comunicação.
Conversa falada, expressa por
palavras ou expressão de uma
linguagem corporal socialmente
construída
Os discursos apresentam e avaliam
práticas sociais, regulando
actividades – forma como se
realizam, quem pode participar, ou
os papéis e identidades
apresentados.
Género
O “como” da comunicação.
Actos discursivos que constroem
realidades próprias, como
desculpas, declarações de
intenções, pedidos, ofertas ou
demandas.
Os géneros formatam experiências e
práticas ao apresentar expectativas
partilhadas na forma e potencial de
significado (recursos semióticos).
Estilo
Sistemas de significado
alargados que ligam partes mais
pequenas, tornando-as todos
concretos.
Estilos articulam-se determinando
práticas sociais.
Ex. estilo individual + estilo social
= estilo de vida
Modalidade
Medida de quão verdadeira é
uma representação, em termos
do grau de verdade e de
mecanismos pelos quais uma
impressão da verdade é
alcançada.
Modalidade pode ser linguística e
não-linguística (visual, abstracta,
sensorial e naturalística).
Quadro 1 – Elementos de análise ao discurso dos movimentos sociais (Vannini, 2009)
3. Metodologia
As implicações metodológicas deste enquadramento apontam para diferentes níveis de classificação de
signos, conforme apontam Fidalgo e Gradim (2004, pp. 22-24), em referência a Umberto Eco, Charles S.
Pierce, Morris e Jakobson:
Fonte (naturais/animais/humanos);
Inferências que suscitam (artificiais/naturais);
Grau de especificidade (significa por si/significa cumulativamente);
Intenção e grau de consciência do emissor (propositado/espontâneo);
Canal físico e aparelho receptor humano (diferentes signos consoante sentidos);
Relação com o seu significado (unívocos, equívocos, plurívocos ou vagos);
Replicabilidade do significante (intrínsecos/extrínsecos);
Tipo de relação pressuposta com o referente (índices, ícones e símbolos);
Comportamento que estipulam no destinatário (identificadores, designadores, apreciadores,
prescritores e formadores);
Funções do discurso (referencial, emotiva, fática, imperativa, metalinguística e estética).
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Num sentido mais estrito – relativo ao caso específico de palavras articuladas em texto – apresentam-se
outras considerações, próprias da análise deste tipo de signos. Belo (1982) apresenta uma proposta
metodológica, que apesar de limitada pelo facto de não permitir a construção de uma lógica, oferece material
linguístico susceptível de utilização, entendendo poder ser principalmente adequada a textos relativamente
curtos e de natureza mais subversiva onde se exige maior dispêndio de energia criadora, inovação e ruptura
na linguagem – parecendo assim adequar-se à análise de textos produzidos por movimentos sociais, que
geralmente procuram sugerir alguma forma de mudança. Esta forma de análise textual segue então as
seguintes fases:
1. Detectar tipos
Narrativo – acontecimentos. “Eu”/”nós”/”eles”; “aqui”/”agora”; “hoje”/”ontem”.
Gnoseológico – texto científico ou de ensaio. “é”/”são”.
Discursivo – mais livre gramaticalmente. Articula-se por marcas de enunciação.
2. Corte em sequências
Secções do texto (“em seguida”, “depois”, “noutro local”, “emerge”, etc.).
3. Código sequencial
Série de actores (A) e verbos (V) nucleares na sequência (A1 V1 A2 + A1 V3 A2 ...).
4. Códigos paramétricos
Dicotomias presentes. Ex. juízos de valor: “bem”/”mal”, “sagrado”/”profano”, “verdadeiro”/”falso”,
“sensato”/”insensato”; “é necessário que”, “deve-se”, “penso que”, “creio que”.
5. Primeira e última sequência
Decisivas para estabelecer a problemática do texto.
6. Nível narrador/leitores
Marcas de enunciação. Ex. “eu”, “nós”, “eles”. Podem combinar-se com códigos de valor.
7. Leitura minuciosa das sequências
Procura da lógica manifesta do texto, segundo as articulações do código sequencial com os códigos
paramétricos e nível narrador/leitores.
8. Lógica e contradição
Identificação de lógicas contraditórias à dominante.
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A aplicação desta metodologia implica a posteriori uma análise dos elementos recolhidos, passando de uma
recolha de natureza semiótica a uma reflexão de natureza sociológica. Neste processo reflexivo, enquanto
fase complementar da recolha de dados, importa considerar quatro aspectos fundamentais:
a) Relação do texto com sistema de práticas sociais de que depende, como um dos seus discursos. Circuito
de leitura - de quem, para quem, onde.
b) Núcleos sequenciais e práticas sociais – modos de organização, produção ou reprodução.
c) Código enclausurante e códigos de valor – normalização ou reprodução de práticas de quem lê.
d) Contradição e sintomas enquanto lugares textuais onde se identificam lógicas – que lógica dominante e
eventuais contradições revela o texto.
4. Os movimentos da sociedade
Após a introdução do conceito de signo – e sua análise – será oportuno o enquadramento do tema em estudo;
facilitando, eventualmente, a aplicação metodológica dos pressupostos de um trabalho interdisciplinar que
compreenda o estudo dos signos em relação aquilo que se entende como o discurso dos movimentos sociais,
também estes associados a problemáticas e metodologias peculiares, desenvolvidas por diferentes autores.
Neste sentido, é de imediato possível verificar que ao longo das últimas décadas, correspondentes a mais de
meio século, os movimentos sociais têm assumido um papel de crescente importância na investigação em
ciências sociais, em particular na sociologiaiv:
No final dos anos 40, a crítica lamentava “o nível de compreensão grosseiramente descritivo e a relativa falta
de teoria” (Strauss 1947, p. 352), nos anos 60 queixava-se de que “nos estudos das mudanças sociais, os
movimentos sociais têm recebido relativamente pouca ênfase” (Killian 1964, p. 426), durante os anos 70, a
investigação sobre acção colectiva foi considerada “uma das áreas mais vigorosas da sociologia” (Marx e
Wood 1975); já no final dos anos 80, comentadores falaram sobre “uma explosão, nos últimos 10 anos, de
escritos teóricos e empíricos sobre movimentos sociais e acção colectiva” (Morris e Herring 1987, p. 138;
ver também Rucht 1991).
Actualmente, o estudo dos movimentos sociais encontra-se solidamente estabelecido, com publicações e
associações profissionais especializadas, em particular no continente europeu e americano.
5. Diferentes abordagens teóricas aos movimentos sociais
As abordagens e conceitos mobilizados para a análise dos movimentos sociais foram acompanhando as suas
transformações ao longo do tempo, contribuindo para a delineação de uma área de estudo com diferentes
planos de observação.
Neste sentido, Meyer (2002, pp. 63-65) defende duas tradições sociológicas de observação dos movimentos
sociais: a primeira relacionada com o trabalho de Simmel, procura a comparação dos fenómenos sociais ao
longo do tempo e dos lugares – indicando Tarrow como um autor que trabalha de acordo com esta tradição; a
segunda assume inspiração Weberiana, procurando conexões causais e conjunções acidentais – suportadas
pelos “eventos emergentes” de George H. Mead e os “indivíduos históricos” de Weber.
Della Porta e Diani (1999, pp. 5-8) referem que tradicionalmente, os movimentos sociais eram
principalmente focados em assuntos sobre trabalho ou nações; a partir dos anos 60, emergiram os “novos
movimentos sociais” centrados em preocupações como a igualdade de género, protecção ambiental, entre
outros. Nesta altura, a investigação em ciências sociais europeia tinha uma tendência para a mobilização de
princípios teóricos Marxistas na abordagem ao protesto, encontrando desde logo o obstáculo da centralidade
do conflito trabalho/capital. Estavam então em causa outros conflitos, relacionados com novas questões
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sociais e conduzidos por diferentes actores: jovens, mulheres e novos grupos profissionais – Touraine (1977,
1981), por exemplo, apontou a necessidade de entender esta multiplicidade de preocupações e conflitos. Em
sentido distinto, a investigação norte-americana tendeu para uma abordagem mais comportamental, centrada
no indivíduo. Neste caso, os movimentos sociais eram muitas vezes compreendidos como manifestações de
sentimentos de privação, frustração ou agressão. Até certo ponto, estas ideias encontravam-se com
abordagens estrutural-funcionalistas como a de Neil Smeiser (1962), que viu os movimentos sociais como
efeitos de rápidas transformações sociais num sistema incapaz de absorver as tensões decorrentes a curto
prazo.
As características que permitem a configuração de diferentes formas e níveis de organização dos
movimentos sociais foram igualmente objecto de estudo, inicialmente por via de uma abordagem Weberiana
centrada na burocratização onde a institucionalização era considerada uma evolução natural das organizações
de movimentos sociais. Herbert Blumer (1951, pp. 203), por exemplo, distinguiu quatros estados no ciclo de
vida de um movimento social típico: o “fermento social”, caracterizado pela agitação desorganizada; a
“exaltação popular”, com objectivos mais definidos; a “formalização”, com participação disciplinada e
coordenação estratégica; e a “institucionalização”, quando se torna uma parte orgânica da sociedade e se
cristaliza numa estrutura profissional.
Os movimentos sociais foram assim assumindo uma importância crescente na agenda da investigação em
ciências sociais, e em particular em sociologia – processo cujo resultado pode actualmente ser verificado nas
diversas investigações e publicações existentes sobre o tema, cuja natureza dinâmica pode ter contribuído,
em certa medida, para a derivação de múltiplas abordagens teóricas.
6. Análise documental
O texto em análise apresenta-se como um manifesto, tendo como objectivo a divulgação de uma afirmação
ou opinião de quem o produz; o próprio documento é assim indicado como representativo de um discurso
que se quer apresentar. Neste sentido, o seu conteúdo poder-se-á entender como parte fundamental do
discurso deste grupo (fonte); no entanto, não esgotará certamente esta análise, precisamente pela forma que
apresenta – um manifesto que em determinado contexto avalia condições de governação e de vida das
pessoas, exigindo e procurando provocar alguma mudança; logo, pensado e elaborado para o efeito,
selecionando e relevando alguns aspectos e ignorando outros de forma estratégica e de acordo com aquilo
que se quer transmitir. Será portanto importante – senão fundamental – a procura de outros elementos que
permitam uma análise complementar à do manifesto em si; sejam esses elementos outros textos, imagens ou
outro tipo de media que se relacione com as actividades deste grupo.
Por outro lado, o texto assume um significado particular enquanto documento que regista uma primeira
acção de um grupo de pessoas; significado que assume outra dimensão quando combinado com outros
registos da mesma fonte. Procura ainda despertar sentimentos e comportamentos nos destinatários
(responsáveis políticos e, principalmente, a população em geral – opinião pública), com articulação de
diferentes funções discursivas – referências a procedimentos, emoções e imperativos de mudança.
Uma primeira leitura do texto que constitui este manifesto deixa clara a posição deste grupo, expressa no
título e primeiras linhas – desenvolver uma forma de protesto com três características fundamentais:
“apartidário, laico e pacífico”; procurando exigir: “democracia participativa, transparência nas decisões
políticas e o fim da precariedade de vida”.
O corpo do texto será seguidamente analisado por secções – correspondentes a parágrafos definidos e
separados no próprio documento – procurando elementos interpretativos particularmente relacionados com
percepções face ao direito.
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“Somos “gerações à rasca”, pessoas que trabalham, precárias, desempregadas ou em vias de
despedimento, estudantes, migrantes e reformadas, insatisfeitas com as nossas condições de vida. Hoje
vimos para a rua, na Europa e no Mundo, de forma não violenta, expressar a nossa indignação e protesto
face ao actual modelo de governação política, económica e social. Um modelo que não nos serve, que nos
oprime e não nos representa.”
A primeira secção do corpo do texto funciona como “apresentação” da iniciativa, personalizando o grupo
com exemplos particulares (precários, estudantes, migrantes, reformados, etc.) e resumindo o fundamento da
acção com um resumo narrativo (hoje vimos para a rua [...]protesto face ao actual modelo de
governação[...]que não nos serve nem nos representa). É apresentado um juízo de valor, considerando “um
modelo que oprime”; ao mesmo tempo que se legitima a acção pela identificação de grandes grupos sociais
que pretendem exercer um direito de expressão e protesto.
“A actual governação assenta numa falsa democracia em que as decisões estão restritas às salas fechadas
dos parlamentos, gabinetes ministeriais e instâncias internacionais. Um sistema sem qualquer tipo de
controlo cidadão, refém de um modelo económico-financeiro, sem preocupações sociais ou ambientais e que
fomenta as desigualdades, a pobreza e a perda de direitos à escala global. Democracia não é isto!”
Na segunda secção é dada continuidade à narrativa introduzida na secção anterior, especificando uma forma
de forma de governação política (democracia) que é marcada por um certo secretismo, afastando a
participação e “controlo do cidadão” nas instâncias de decisão. No mesmo sentido é ainda indicada
incapacidade (“refém”) e influência de “instâncias internacionais”. Com esta narrativa pretende-se justificar
a acção resumida anteriormente, face a uma situação que revela contraditória: “a democracia não é isto!”.
Nesta secção é ainda introduzida a primeira referência directa ao direito, neste caso como uma das principais
consequências da narrativa descrita: “a perda de direitos à escala global”.
“Queremos uma Democracia participativa, onde as pessoas possam intervir activa e efectivamente nas
decisões. Uma Democracia em que o exercício dos cargos públicos seja baseado na integridade e defesa do
interesse e bem-estar comuns.”
“Queremos uma Democracia onde os mais ricos não sejam protegidos por regimes de excepção. Queremos
um sistema fiscal progressivo e transparente, onde a riqueza seja justamente distribuída e a segurança
social não seja descapitalizada; onde todas as pessoas contribuam de forma justa e imparcial e os direitos e
deveres dos cidadãos estejam assegurados.”
“Queremos uma Democracia onde quem comete abuso de poder e crimes económicos e financeiros seja
efectivamente responsabilizado por um sistema judicial independente, menos burocrático e sem dualidade de
critérios. Uma Democracia onde políticas estruturantes não sejam adoptadas sem esclarecimento e
participação activa das pessoas. Não tomamos a crise como inevitável. Exigimos saber de que forma
chegámos a esta recessão, a quem devemos o quê e sob que condições.”
A terceira secção mobiliza novamente a questão política e é apresentado o cenário alternativo, representando
a vontade deste protesto em particular. As ideias são apresentadas em três parágrafos, representando uma
enumeração de pontos que se pretendem revistos: todos os parágrafos começam com a palavra
“queremos...”. Assim, é apresentada uma definição de propostas de forma mais concreta, sempre apoiada no
elemento legitimador: o uso da primeira pessoa do plural.
Num primeiro momento a presentação de propostas é feita de forma mais abrangente: “queremos uma
democracia representativa”; sendo ainda especificados pontos fundamentais que se encontram com a ideia de
justiça: “integridade e defesa do interesse e bem estar comuns”. Com esta argumentação – agora de natureza
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mais discursiva que argumentativa – procura-se ainda reforçar a legitimação de terceiros (comunidade) pela
referência a um bem-comum.
Num segundo momento a argumentação é mais específica, encontrando-se com referências do domínio
económico: “os mais ricos não sejam protegidos”; “sistema fiscal progressivo”; “descapitalização”.
Novamente, são paralelamente introduzidos elementos relacionados com o direito e a justiça: “regimes de
excepção”; “transparente”; “riqueza justamente distribuída”; “onde todas as pessoas contribuam de forma
justa e imparcial e os direitos e deveres dos cidadãos estejam assegurados”.
O terceiro momento conclui a proposta, reforçando a força que se quer apresentar: para além do “queremos”
no início da frase, encontra-se também um “exigimos” no início da última frase do parágrafo – neste caso,
fazendo referência a uma condição de “recessão”, verificando-se ainda uma insistência na “participação
activa das pessoas”. Este ponto, apresenta relação particular com o direito e as propostas que se apresentam:
“quem comete[...]seja efectivamente responsabilizado”; “sistema judicial independente, menos burocrático e
sem dualidade de critérios”.
“As pessoas não são descartáveis, nem podem estar dependentes da especulação de mercados bolsistas e de
interesses financeiros que as reduzem à condição de mercadorias. O princípio constitucional conquistado a
25 de Abril de 1974 e consagrado em todo o mundo democrático de que a economia se deve subordinar aos
interesses gerais da sociedade é totalmente pervertido pela imposição de medidas, como as do programa da
troika, que conduzem à perda de direitos laborais, ao desmantelamento da saúde, do ensino público e da
cultura com argumentos economicistas.”
“Os recursos naturais como a água, bem como os sectores estratégicos, são bens públicos não privatizáveis.
Uma Democracia abandona o seu futuro quando o trabalho, educação, saúde, habitação, cultura e bem-
estar são tidos apenas como regalias de alguns ou privatizados sem que daí advenha qualquer benefício
para as pessoas.”
A quarta secção revela uma estrutura articulada entre um discurso e um sentido narrativo, recuperando as
referências políticas de base e socioeconómicas – em particular os recursos humanos e naturais: “as pessoas
não são descartáveis”; “os recursos naturais[...]são bens não privatizáveis”; “interesses financeiros”;
“programa da troika”; “regalias de alguns”; “benefícios para as pessoas”. A questão política é resumida na
ideia de um “futuro abandonado” em relação a: “trabalho, educação, saúde, habitação, cultura e bem-estar”
Articulada com a questão socioeconómica, novamente o direito se apresenta de forma transversal, seja em
forma de proposta ou consequência: “princípio constitucional[...]totalmente pervertido”; “imposição de
medidas”; “perda de direitos laborais”
“A qualidade de uma Democracia mede-se pela forma como trata as pessoas que a integram.
Isto não tem que ser assim! Em Portugal e no Mundo, dia 15 de Outubro dizemos basta!
A Democracia sai à rua. E nós saímos com ela.”
A última secção do texto regista as conclusões em frases curtas, indicando como ponto principal a falta de
“qualidade da democracia”. Apresenta também a maior carga de intenção mobilizadora, marcada pelo
discurso exclamativo: “Isto não tem que ser assim!”; “dia 15 de Outubro dizemos basta!”; “A democracia sai
à rua. E nós saímos com ela.”
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7. Conclusão
O texto analisado permitiu cumprir – na medida possível – a proposta inicialmente apresentada: proceder a
uma análise exploratória do discurso de um grupo (movimento social) específico, apresentando as principais
características presentes num documento produzido em forma de manifesto e procurando, em particular,
reconhecer uma relação com conceitos que se inscrevem e interessam ao domínio da sociologia do direito.
A análise realizada revelou que as principais referências são elaboradas em torno das noções de “direitos” e
“justiça”, normalmente num sentido negativo, de perda – em relação directa com o contexto de crise e
recessão económica vividos na altura da produção do documento. Para além das referências explícitas a
direitos que se pretendem garantir – e ao bom funcionamento do sistema jurídico em geral – relevam-se
ainda alguns elementos de interesse: por um lado, a insistência na proposta de um diferente modelo político,
ainda que reforçando a palavra Democracia com o uso de maiúsculas; por outro lado, insistindo na
“participação” e dando maior utilização à palavra “pessoas” do que à palavra “cidadãos”.
Estes elementos poderão servir de base a uma exploração mais alargada de dados, principalmente por via de
abordagens complementares que permitam atenuar a principal limitação do presente exercício: a análise de
outras fontes de informação (principalmente visuais) que possibilitem uma melhor e mais completa
compreensão das dinâmicas deste grupo em particular.
8. Bibliografia
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Blumer, Herbert 1951: Social Movements. In A. McClung Lee (ed.), Principles of Sociology. New York:
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Killian, Lewis 1964: Social Movements. In Robert E. Farris (ed.), Handbook of Modern Sociology. Chicago:
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Vannini, Phillip (2009) ‘Social Semiotics: Constructing Stuff in Everyday Life’ in Michael Hviid Jacobsen
(ed.) EncounteringtheEveryday, PalgraveMacmillan: New York, pp.: 353-375.
i Definição clássica de signo (ou sinal): algo que está por algo.
iiOpta-se aqui pelo uso da expressão “signo”, respeitando a sua importância na semiótica. (Fidalgo e Gradim, 2004, p.
15) iii
Idem ivDella Porta e Diani (1999, pp.5-8)