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ALINE 2012

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© 2013

1ª edição

• ISBN: 9788580455533

Impresso em Brasil / Printed in Brazil

Impresso por

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Como eu poderia esquecer de quem me foi sincera?

Mirian Estela Siqueira

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Agradecimentos aos sites:

http://jeocaz.wordpress.com/2008/08/13/lendas-indigenas/

http://www.potyguar.com.br/folclore/index_arquivos/lendasbrasileiras.htm/

http://cantinhodosdeuses.blogspot.com.br/

http://lscvprofneto.blogspot.com.br/2011/08/arte-indigena.html

http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/indios-brasileiros/

http://meikart.blogspot.com.br/2011/04/cultura-indigena.html

Entre outros que me orientaram ao escrever este livro.

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Todos nós temos a premência de cuidar de uma criança!... Ainda que seja, meramente, a que existe em cada um de nós.

Índice

Pag. 07 – As Irmãs Cibele e Michele

Pag. 25 – Aline

Pag. 41 - O Vale do Paraíso

Pag. 61 - Fantoche

Pag. 79 – O morro dos índios

Pag. 107 – Jandira

Pag. 131 - Final

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Primeiro Capítulo

AS IRMÃS CIBELE E MICHELE

Parou repentinamente de falar com Cibele e

ficou embasbacado vendo a criança que entrara pela porta da frente da casa, trazida pela mãozinha por uma rude senhora.

- Ana Clara!

Avançou de braços abertos, um sorriso do tamanho dum mamute na cara magra onde a barba, teimosamente, raleava igualzinho o capim ruim dos campos ao redor do povoado onde se hospedara há quinze dias, num de seus retornos do mato. O homem atualmente era sertanista, guiava, pelas selvas do norte brasileiro, Dr. Ambrósio e sua equipe profissional na missão voluntária e nobre de levar assistência médica às tribos indígenas e aos caboclos ribeirinhos, quase sempre abandonados à sua sorte e às febres corriqueiras naqueles matos distantes e esquecidos. Entre assustada e admirada, Isaura parou à entrada da sala, olhou o homem que avançava na sua direção e decididamente fez um sinal com a mão estendida o forçando a parar.

- Não o entendo! – Falou Cibele tomando uma das mãos do homem. – Esta é a minha filha Aline!

O homem despencou das pernas e desatou num choro convulso.

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- Minha filha Ana Clara! Os demônios a levaram pobrezinha.

Cibele olhou para Isaura, ambas confusas ante o que acontecia no interior daquela sala. Perceberam que tratavam com um homem desajustado, imerso nas desilusões e fracassos do seu passado e que o mesmo tinha uma filha de nome Ana Clara, arrebatada de seus braços talvez pela própria mãe, mas que na sua demência associava a perda da criança a espíritos maus, demônios. Cibele o agarrou por um braço e o levou a um canto da sala onde estavam as mesas de jantar, puxou uma cadeira e o fez ali se acomodar sentando-se, por sua vez, do lado oposto da mesa. Fez sinal para que Isaura retirasse Aline do local e em seguida se pôs a conversar com o homem.

- Quem levou Ana Clara?

O homem levantou o rosto e encarou a senhora com desconfiança. Demorou-se um pouquinho calado, mas por fim, em resposta a pergunta de Cibele, balbuciou.

- Os demônios! Os malditos demônios!

Cibele chamou uma das raparigas que serviam o local.

- Traga uma garrafa de vinho e dois copos.

Serviu a bebida ao homem, encheu também o seu copo em seguida o entornando de uma só vez. Não conseguia bebericar como o figurino

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prescreve a uma dama e também bebia muito. Era comum a moça que fazia as faxinas retirar da sua mesa, pela manhã, quatro ou cinco garrafas vazias. Quando não estava a serviço de algum cliente num dos quartos, geralmente era vista às voltas com as garrafas, noite adentro a se empanturrar de vinho.

- Quero conhecer mais da sua vida, você é um homem calado e triste e o tenho observado no jardim da casa tantas vezes divagando.

O homem olhou para Cibele e sorriu... Um sorriso amargo e sofrido.

- Os demônios me perseguem desde pequenino. Sou um homem marcado pelo destino e pela má sorte, por isso vivo pelos matos.

Mostrou-lhe as mãos calejadas e magoadas pela enxada.

- Poderiam ser as finas mãos de um doutor, como o meu pai idealizou. Mas são as mãos de um lavrador, vê?

Cibele fez um sinal afirmativo com a cabeça.

- Confundiu minha filha Aline com sua filha Ana Clara. Se parecem tanto assim?

O homem voltou a pender a cabeça.

- Estou confuso! Os olhos são os mesmos, azuis como o céu de uma manhã de primavera. Fascinavam-me tanto! Nunca me cansava em fitá-los.

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Esboçou um sorriso acanhado e breve, como de menino surpreendido em surdina dizendo besteira. Coçou o queixo e continuou a falar.

- Mas tem mais idade que Ana Clara. Minha menina tinha quatro anos quando a perdi e hoje deve andar pela casa dos sete anos.

Cibele sorriu e tocou um dos ombros do homem.

- Se enganou muchacho, porque Aline ainda não completou seis anos! É graúda para a sua idade!

O homem ficou encabulado.

- E quem é a senhora que está com Aline?

- Isaura, sua babá. Devido à natureza da minha casa é claro que não convém que a menina permaneça por aqui. Mora com Isaura, uma velha amiga minha de infância. A pago para cuidar da garota enquanto trabalho.

Eram duas irmãs, Cibele a mais nova e Michele, mas tinham vidas completamente opostas. Cibele, empreendedora e ativa, montara aquela casa a anos pondo lhe uma placa de pensão que, na realidade, nada mais era que um disfarce para sua principal atividade, a prostituição. Durante o dia não se via movimento no local, mas às horas vespertinas começavam chegar as raparigas, todas bem vestidas e perfumadas, pois Cibele prezava muito pela boa aparência, além da

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qualidade dos serviços noturnos prestados por sua casa. Mas era uma boa pessoa com um coração grande e afetuoso. Tratava muito bem suas moçoilas e a elas repartia o lucro obtido em cada noite, com honestidade e justiça sem par. Cibele nunca pisara solo além da cidade vizinha à vila onde nascera e se criara. Mulher da roça até os dezessete anos quando o pai lhe faltou, mas lhe deixou cerca de vinte mil em dinheiro além de umas cabeças de vacas que as vendeu para comprar a casa no vilarejo. Engravidou já madura, aos trinta e dois anos, culpando sempre a bebedeira que a fez esquecer-se do preservativo e não quis abortar, pois perdera uma das suas melhores moças ano antes, vitima de um aborto doméstico imprudente. Juntou o medo aos conselhos de Michele e pariu a criança que, mesmo indesejada, não deixou de ser uma das coisas boas da sua vida. Mas achara conveniente entregar o bebê aos cuidados de Isaura, devido à profissão que levava. Isso fez com que não desenvolvesse maiores afetos à menina, sem, contudo, se furtar a dar-lhe o necessário para sua subsistência. Já Michele seguira vida religiosa. Freira num convento dominicano numa cidade distante entregou-se completamente ao serviço de Deus e às obras de caridade. Vez ou outra aparecia no povoado em visita à irmã, mas raramente permanecia por mais de dois a três dias e sempre na casa paroquial local.

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Na manhã seguinte o homem viajou à capital. Foi juntar-se a equipe de Dr. Ambrósio e tomar o avião que o levaria à Porto Velho, onde o médico mantinha um centro de estudos de assuntos indígenas. Mas retornou três meses após, trouxe um colar de contas para Cibele e vários artefatos indígenas para a pequena Aline. Estivera doente. Acometido de febre do mato emagrecera e tomara uma tez pálida amarelada, os olhos fundos na cara esquelética brilhando a tristeza contumaz, a mesma expressão alucinada de quem só enxerga o que foi longe no passado. E como andasse debilitado e precisando de cuidados, Isaura o recebeu na sua casa de sítio, pois a babá de Aline conhecia como ninguém as ervas que curam, sendo respeitada como a melhor benzedeira e curandeira daquelas cercanias. Mas enquanto melhorava o homem da moléstia contraída, Isaura percebia que sua paranóia piorava a cada dia. Criou afinidade à Aline a quem só chamava por Ana Clara. E a criança, sofrendo a carência do pai que nunca conhecera, se apegou de certa forma ao homem o rodeando o dia inteiro e entregando-se completamente aos seus agrados, sentindo-se feliz e protegida por aquele que até poucos dias atrás lhe era completamente estranho.

- Os demônios! Estão de volta os malditos! Querem roubar-me Ana Clara.

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- Me faz medo! – Falava mais com as mãos do que com a boca, Isaura.

Cibele olhou para a babá preocupada.

- Julga que corre algum perigo?

- Não sei. Provavelmente não! Embora meio amalucado, não deixa de ser uma excelente pessoa. Muito tem me prestado com os afazeres do sítio, lida com a terra e com os animais com a alma, provando ser excelente lavrador.

Caminhavam as duas amigas pelos jardins da casa, enquanto conversavam, atentas à Aline que brincava sob os manacás floridos.

- Que há de ter passado o pobre pela vida, para andar assim triste e transtornado?

Mês e pouco transcorridos o homem sumiu. Anoiteceu no sitio de Isaura, mas não amanheceu; foi-se misterioso e fugaz como sempre. Aline sentiu a falta do sertanista. Infeliz e amuada sem, no entanto, em momento algum indagar pela ausência do homem, julgaram-na doente.

A selva era escura e tenebrosa em certos trechos. Dir-se-ia povoada por medonhos duendes e gnomos, caso fosse parte de algum local esquecido do velho mundo. No entanto se pisava solo brasileiro e a atenção do homem apenas se

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voltava aos ruídos nos galhos altos ou na relva rasteira, que podiam significar alguma oncinha de tocaia ou uma cascavel traiçoeira atrás dos troncos. Mas o homem se sentia no seu habitat. O mato era a sua vida, o seu mundo, lhe dava prazer e tranqüilidade. Desceu algumas centenas de metros e percebeu o ruído das águas; entre touceiras de samambaias e aguapés o ribeirão corria sobre pedriscos polidos. Ajoelhou-se na relva macia e tenra da margem e bebeu extasiado a pura e límpida água do riozinho. Então se sentou na barranca e ficou alheio à vida, fascinado com os peixinhos prateados a ziguezaguearem entre as raízes submersas e lodosas. Nos galhos retorcidos do arvoredo os cipós teciam sua renda preciosa de flores brancas e amarelas, a se debruçar sobre as águas sussurrantes, como a querer beijar a infinidade de libélulas e borboletas esvoaçantes no frescor da manhã. Desde a madrugada estava o homem a perambular pelos matos. Ali se sentia liberto dos pesadelos e demônios que o assediavam pela vida. Já sol a pino, retornou ao carro abandonado sob as árvores esqueléticas do bosque que margeava a mata reservada da fazenda. Sentando-se no banco do carro, pernas dependuradas para fora, ficou a admirar as formigas saúvas no seu afã diário de carregar folhas para alimentar as entranhas da terra. Os passos ouvidos o fizeram atentar-se à trilha que serpenteava o interior do bosque e levava às casas dos sítios vizinhos. Isaura se aproximava trazendo

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Aline presa pela mãozinha. Ao ver o homem a menina se acanhou por um momento, mas soltando-se da mão de Isaura correu ao seu encontro e pulou no seu pescoço, num abraço afetuoso que o fez estremecer ao mesmo tempo emocionado e aflito. Beijou carinhosamente a criança no rosto e a trouxe ao seu colo, os olhos a teimarem a deitar as lágrimas na face rude e maltratada pelo sofrimento e pelos anos. Isaura ficou à distância observando a cena, depois se aproximou. O homem remexeu o porta luvas do carro e retirou de lá as cinco notas amarrotas de cem, as estendendo à Isaura. A mulher olhou o dinheiro, mas titubeou nervosa e indecisa e, arrependida, sem nada proferir agarrou o braço da menina e puxou tentando arrebatá-la do homem. Mas as forças lhe eram adversas. Prendendo a criança junto ao seu corpo com uma das mãos, o homem estendeu a outra ao chão, sob o carro, a erguendo em seguida armada de trava de madeira que elevou ameaçadoramente sobre a cabeça de Isaura. Esta, assustada, soltou o braço da menina e se afastou rapidamente alguns metros. Tendo atirado o dinheiro na relva o homem fechou a porta do veículo dando-lhe partida e, o acelerando, tomou a estradinha em fuga como se uma legião de demônios se fizesse a sua cola. Isaura permaneceu em pé sob o arvoredo, a olhar o carro em disparada sumir na curva da estrada ao longe. Momentos após, só permanecia a poeira

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teimosa a levitar sobre a terra vermelha do caminho.

- Não chore! Não hei de lhe fazer mal algum.

O homem olhava o rostinho mareado de Aline, aflita e insegura com o que lhe sucedia. Entrou com o veículo por um carreador cheio de mato; parecia há anos abandonado pelo descuido e buracos que lhe tomara conta de quase todo o seu percurso. Após três quilômetros com feições de trinta, chegou a uma casa de tijolos nus, rodeada de lavouras de milho.

- Novamente você está na sua casa, Ana Clara! Mas logo vamos embora, pois esta propriedade está vendida ao fazendeiro Torres desde junho do ano passado.

Falou enquanto tirava a criança do interior do carro e a carregava nos braços para o interior da construção centenária.

- Aqui você nasceu e viveu até os quatro anos, mas os demônios a levaram para longe. Hoje tenho você de volta.

Aline permanecia sentada no banquinho de madeira onde o homem a colocara, cabecinha baixa, medrosinha. O homem olhou a criança, mas dela não pareceu sentir pena. Alienado nos seus pensamentos permanecia em pé no meio da sala

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repleta de móveis antigos tomados pelo descaso e poeira.

- Venha, vamos acender o fogo para eu preparar a comida.

E pegando a mãozinha de Aline a levou até a cozinha. Agachou e pegou algumas lascas de lenha de sob o fogão as ajeitando no borralho. Logo a fumaça tomava conta do interior do cômodo, fazendo lacrimejarem os olhos da menina.

- Estão umedecidas; custam pegar fogo! Agora vamos buscar água.

Pegou o velho balde de lata e, sem esperar pela criança, saiu para o quintal. A trinta metros estava o poço, em cujos barrancos as samambaias vicejavam. O sarilho rangeu e logo depois o balde mergulhava na água pura e cristalina do coração da terra. Rodou o cilindro de madeira semi apodrecido e ficou a olhar a corda a se enrolar lentamente no sarilho, trazendo o balde transbordante do precioso líquido.

- É tudo que precisamos nesta vida! A água nos alimenta e purifica, é remédio para o corpo e alento para a alma. Infelizmente não são todos que a têm assim em abundância.

Somente quando retornou com a água para o interior da cozinha percebeu que Aline não o acompanhara. Olhou apreensivo entre os móveis, não a vendo.

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- Fugiu!

Correu ao quintal e circundou a casa à procura da criança. Gritou por ela, já nervoso e agitado.

- Ana Clara!

Desceu o caminho até a cerca de arame farpado onde a erva-de-lavadeira, enrolada nos fios de aço, abundava seus frutinhos amarelo ouro salpicado de tenras sementes vermelhas. Olhou à distância. No cimo dos morros, além, as casinhas brancas pareciam tremer ao quente sol do meio dia, cercadas de vida humilde e prazerosa. Voltou a casa e novamente olhou desanimado ao seu redor, na esperança de ver a criança. Na cozinha o fogo agora crepitava no fogão queimando a toa. Foi quando, ao entrar, ouviu ruídos vindos de um dos quartos. Aline, deitada sobre a cama entre os sujos lençóis amarrotados e mal cheirosos, chorava baixinho.

- Não devia ter feito isso com o seu pai! - Recriminou em voz alta o homem se achegando à criança. – Merece uns tapas para que não fuja mais. – Falou levantando a mão para a pequena. Porém arrependido a abaixou em seguida e, sentando-se ao lado da menina, se pôs a acariciar sua cabecinha. A pegou no colo, mas em seguida a largou em pé no chão do quarto, coçou o queixo e ficou a olhá-la.

- Não gosto da forma como anda vestida! Parece um menino com esses shorts.

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Foi então à cômoda e lhe abrindo uma das gavetas se pôs a remexer as velhas e emboloradas roupas ali guardadas. Tirou um vestidinho cuidadosamente embrulhado em plásticos e o deitou sobre a cama.

- Há quanto tempo! O trouxe da capital para você, mas na época era demasiadamente grande e não chegou a usá-lo. Agora creio que lhe serve, pois você já está crescida.

Ajudou a criança a se despir e vestiu nela a roupa azul claro ponteado de estrelinhas prateadas, como se fosse um céu de lua nova. Ficou absorto a olhar a pequena em pé no interior do quarto.

- Está ainda um pouco grande, mas ficou lindo em você! Parece uma princesinha saída de um conto de fadas!

Voltou a remexer as gavetas da cômoda e retirou algo também embalado em plástico. Era uma bonequinha de borracha macia como se tivesse mesmo pele de uma criancinha. Desembrulhou e a estendeu em direção à Aline. Esta, acanhada, demorou em se decidir pegá-la.

- Tome! É sua!

E deitando o brinquedo o agitou.

- Veja! Seus olhinhos se fecham como se dormisse.

Ai a tomou pela mãozinha.

- Venha! Vamos preparar o de comer.

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E a levou de volta à cozinha. Derramou a água na chaleira e deixou-a a ferver. Pôs-se a seguir a fuçar num dos velhos armários de parede.

- Não temos nada a preparar! – Lamuriou-se o homem e novamente saiu ao quintal. Mas voltou rapidamente e olhou a menina, agora agachada no chão de tijolos vermelhos sujos pelo tempo, abraçada ao brinquedo. A pegou pela mão e a arrastou para fora da casa.

- Trate de ficar próximo a mim! Temos que descer ao rio e pescar alguns peixes.

E retirando uma das varas de pescar enganchada sob o beiral do telhado, levou a menina à trilha que descia ao vale distante cerca de duzentos metros da casa. Tomada pelo mato que crescia vigorosamente pelos arredores, a caminhada por ela tornava-se penosa. O homem então se pôs a desbastar os ramos com a vara de pesca para que pudessem andar até se aproximarem do barranco do ribeirão. O rio era pouco largo e profundo, mas com corredeiras fortes, o que tornava suas águas turvas e assustadoras.

- Quase não há peixes nesta época do ano, mas alguns lambaris podem-se pescar. – Coçou o queixo enquanto falava com a criança. Cerca de cem metros acima o ribeiro formava uma lagoa. Mostrou-lhe o bando de paturis barulhentos em vôo rasante sobre as águas serenas daquele remanso. Das árvores pendiam pencas de grandes

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flores amarelas que atraiam abelhas e borboletas ao infinito e que tanto atraiam os lindos olhos azuis de Ana Clara. Ali, também, se fizera o bebedouro de centenas de animais silvestres que, pela manhã e à tarde, deixavam o mato para saciar a sua sede. O homem ficou imerso nas suas recordações durante os quarenta minutos que demorou em pescar meia dúzia de peixinhos magros. Foi então que fez menção às grandes pedras que se sobressaiam no leito do riozinho quase submersas pela cheia de outono. Bem no meio das águas turvas, a cerca de oito a dez metros, estava a grande pedra branca. O homem ficou em pé na margem a olhar o imenso bloco de granito fustigado pelas águas limosas.

- Você adorava ser levada àquela pedra para tomar o sol da manhã, enquanto eu me banhava.

E apanhando Aline no colo, o homem entrou nas agitadas corredeiras do ribeirão. Mas a menina assustou-se e na ânsia de agarrar-se ao seu pescoço, lançou a bonequinha nas águas próximas à margem e se pôs a chorar. Alcançando a pedra o homem colocou a criança sentada sobre a mesma. Aline, medrosamente, se pôs a gritar deixando o homem nervoso.

- Me engana! Você não é Ana Clara! Ana Clara jamais teve medo de vir à pedra. Você é uma menina má que os demônios me trouxeram para lograr-me! – Esbravejou gesticulando para a criança, olhos desvairados e maus faiscando sobre

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a pobre Aline. E, afastando-se alguns metros como se voltasse à margem, o homem parou e se virou para olhar a menina. Aline escorregava no limo da pedra aos gritos, então mergulhou na água escura do riozinho. Covardemente o homem ficou a olhar a criança se agitando nas águas e em seguida ser arrastada pela correnteza. Mas, a uns trinta metros abaixo, Aline foi lançada sobre um banco de areia e dali para a lama apodrecida da margem do rio. A criança se debateu desesperadamente ao sentir que se afundava no pântano e, reunindo as parvas forças que lhe restavam, subiu aos tropeções o barranco fugindo para o interior do mato cerrado. A foi encontrar, o homem, sentada meio aos bambuzais, cabecinha deitada no próprio colo, chorando de medo e frio. A chamou, agora pelo nome.

- Aline.

A criança soluçou e escondeu com os seus braços a cabecinha.

- Venha! Vamos retornar a casa.

A pegou assim no colo e a carregou de volta à margem do rio. Olhou pesaroso para o seu corpinho trêmulo; o vestidinho azul celeste se rasgara e a lama apagara, para sempre, as belas estrelinhas prateadas.

- Sente-se aí. Vou limpar os peixinhos e já vamos embora.

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Depois, apanhando a barrigada dos lambaris, olhou para a menina.

- Vou jogar ali mais distante. É por causa das cobras, sabe! Sentem de longe o cheiro de peixe e vem aos montões; e aí é perigoso.

E vendo que a menina chorava novamente.

- Não tenha medo! Volto já já!

Retornou logo após, como lhe falara. Trouxe na palma das mãos ainda sujas de peixe, algumas frutinhas vermelhas.

- Coma! São docinhas e lhe farão bem.

Tomou a criança pela mãozinha e se dispôs a se afastar do rio. Aline reclamou choramingando.

- Por favor! Busque a minha bonequinha!

O brinquedo, felizmente, boiava enroscado nas ninféias floridas, a pouco mais de três metros do local onde caíra. Chegando a casa atiçou o fogo no velho fogão de taipa.

- Vamos tirar essa roupa enlameada.

Pegou a grande bacia de folha dependurada na parede, nela entornou a água fervente da chaleira e adicionou água fria até morná-la. Sentou Aline na água fumegante e se pôs a ensaboá-la.

- Feche os olhinhos para não arder.

Buscou a toalha encardida no cômodo pegado e nela envolveu a criança.

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- Temos que arranjar outra roupa para você.

A levou novamente ao quarto pondo-se a revirar as gavetas da cômoda. Repentinamente fitou o teto. No madeiramento enegrecido do telhado as aranhas haviam tecido as suas teias, agora balouçantes ao leve vento que entrava por entre os antigos caibros.

- Malditos! Estão de volta! Não consigo me livrar deles aqui dentro de casa.

Pôs-se a gritar palavrões e a esmurrar o ar onde os demônios flutuavam na penumbra. Foi quando o teto, talvez devido ao apodrecimento avançado da madeira e às vibrações provocadas pelos gritos do homem ou, mais certamente por um simples acaso, veio abaixo. O homem se lançou sobre corpo de Aline a protegendo dos escombros que desabaram ruidosamente sobre suas costas. Sentiu-se atordoado, mas se recobrou logo a seguir; com custo retirou as terças de sobre o seu corpo e olhou ao redor, porém nada viu, pois o interior da casa estava tomado pelo fino pó que a queda de parte das velhas telhas levantara. Olhou Aline desfalecida sobre a cama. No entanto, felizmente, a criança não se ferira.

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Segundo Capítulo

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Eu flutuava num céu imerso em luz, vestida de

azul, meio a estrelinhas prateadas. Tudo era muito fascinante e sereno. Ao meu redor flutuavam comigo uma infinidade de bonequinhas de borracha macia, em cujos rostinhos lindos os redondos olhinhos azuis faiscavam. Eu era Aline; mas Aline não tinha o seu papai. Já Ana Clara tinha o seu papai. Então eu queria ser Ana Clara para ter o meu papai. Mas o papai de Ana Clara era louco. Então eu já não queria ser Aline, nem Ana Clara. Queria ser a bonequinha de borracha que nem tinha nome e nem precisava de um papai, somente de uma mamãe que a cuidasse e a amasse. Aí, senti que caia; despencava do infinito rodopiando como uma estrela cadente. Despertei assustada com os meus próprios gritos, sem noção do que acontecera. Encontrava-me deitada no banco dianteiro do carro e o homem me envolvera com sua camisa. Olhei pelo vidro da janela do veiculo. O homem trazia às pressas algumas caixas do interior da casa, as deitando no chão próximo à traseira do automóvel. Entrou e saiu varias vezes trazendo coisas. Então veio até a porta do carro, o abriu e me espiou. Os cabelos em desalinho, seus olhos vermelhos na cara transtornada suja de terra, me causaram medo e

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escondi meu rosto no assento. Senti seus dedos me tocando, encolhi-me e chorei baixinho.

- Ana clara! Tome! Trouxe-lhe a bonequinha. – Colocou o brinquedo junto ao meu rosto e fechou novamente a porta. A seguir foi ao porta-malas e, antes de nele ajeitar as caixas, retirou um galão de gasolina. Permaneceu parado por um instante olhando atentamente a casa. Escurecia rapidamente. Abraçada à bonequinha me sentei e espiei novamente para fora do carro. Sentia frio e fome; e vontade de fazer xixi. Quis sair, mas o homem travara a porta. Então, vendo que estava nua, senti vergonha do homem que ali atrás do carro pelo vidro me olhava. Depois correu em direção à casa e parou à entrada da cozinha. Levantou os braços bradando o galão de gasolina com fúria e gritou palavras de baixo calão, completamente transtornado.

- Malditos demônios! Hão de se queimar como se queima no inferno!

E em seguida desapareceu no interior da casa. Logo mais a fumaça começou a vazar pelas rachaduras das paredes e pelos vãos das telhas. Assustei-me com o estilhaçar dos vidros das janelas; o fogo começava a lançar suas labaredas pelos buracos da antiga construção. A fumaça negra e de maus presságios ganhava o céu, encobrindo uma a uma as estrelinhas tímidas na noite que iniciava. O homem agora corria ao redor da casa aos gritos de morte aos demônios, rindo e

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bradando os braços como a comemorar a fogueira sinistra que, rapidamente, ia consumindo por inteiro a velha moradia. Logo o fogo se alastrou para o matagal ao redor e, sob o carro, o capim ardia pondo em risco a segurança do veículo. O homem entrou no carro, todo sorriso e satisfação, mas ao dar a partida constatou que não pegava. Gritando injúrias desceu do veículo e o empurrou ladeira abaixo, saltou para dentro e o fez pegar no tranco. Então o investiu por sobre o mato em chamas, em direção a casa que no momento desabava levantando uma nuvem de fumaça e poeira. Alcançando a estradinha o veiculo galgou os morros já tomados pelo breu na noite. Sobre um outeiro próximo o homem estacionou o carro e saiu dele. Do alto se via, à distância, o fogo que se estendera rapidamente por toda a cercania. Os gritos dos lavradores da região se começaram a ouvir. Urgia apagar as chamas do mato que ameaçavam invadir as plantações de milho. O homem entrou novamente no carro e me olhou. Encolhi-me no assento ao seu lado. Eu chorava, mas completamente alienado e imerso no seu desvario, o homem não se atentava a isso.

Acordei com a forte luz da manhã que entrava pelo para brisa do carro me magoando os olhos. Estava sozinha. Sem entender o que se passava olhei pelos vidros. O carro estava estacionado no meio de um bosque de árvores baixas e galhos

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retorcidos, praticamente tomados por arranha-gatos. Forcei a porta na tentativa inútil de abri-la. No chão do veículo a bonequinha se achava caída. Agachei-me para apanhá-la quando ouvi o ruído de pés pisando as folhas secas atrás do carro. O homem vinha meio agachado sob os cipós cheio de espinhos e trazia os galões de gasolina. Abasteceu o carro e guardou os galões novamente no porta-malas. Encolhi-me no assento, trêmula, ao perceber que o homem abria a porta do veículo. Chamou-me. Semi escondida sob a camisa fingi que dormia.

- Venha um pouco para fora, Ana Clara!

E me puxando pelo braço me pôs fora do veículo. Pus-me a chorar, me sentindo insegura e desamparada.

- Não há porque ter medo! Não lhe quero mal, você é minha filha. Faz seu xixi.

E foi para a traseira do carro se pondo a checar os pneus. Logo mais voltávamos à estrada. O caminho que transcorríamos era uma estradinha estreita, circundado por mato que se alternava por esparsas lavouras de milho e feijão. Aqui e ali, modestas casinhas brancas de paredes baixas no meio de bananeiras e coqueiros, enfeitadas por roseiras e jasmins-manga sempre floridos, entre canteirinhos bem cuidados de bons senhores e cravinas. O carro corria lento devido o cascalho que cobria a estrada; ia espantando as galinhas que ciscavam ao redor das casas, o homem

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cuidadoso no volante, atento por não atropelar qualquer animalzinho que ousasse atravessar na sua frente. Cachorrinhos festivos corriam a latir aos pneus e os gatos multicoloridos se ouriçavam nas soleiras das portas e pulavam agilmente, se escondendo no interior dos casebres. Serelepes crianças vinham se empoleirar nos mourões das cercas gritando alegres, mãozinhas gesticulando tchauzinhos que se perdiam na poeira fina que o carro ia levantando no frescor da manhã ensolarada. Tudo tão bonito! Mas me ia passando meio despercebido, pois meus pensamentos vagavam longe, eu saudosa da madrinha Isaura e de minha mãe Cibele, mesmo esta última não fazer-me companhia e muitas vezes demorar a me visitar, quando eu doente, no sítio da minha babá. Além do mais sentia frio e fome. Uma sensação de fraqueza que me tornava sonolenta, o cansaço da viagem já a minar os meus ânimos, a entorpecer os meus sentidos. No inicio da tarde chegamos a uma cidadezinha. O homem novamente desceu do carro e se foi misterioso, deixando-me sozinha deitada no assento. Forcei novamente a porta. As ruas estavam desertas àquela hora, já que os homens trabalhavam nas lavouras e, nas casas, as mulheres se ocupavam de seus afazeres domésticos, geralmente nas tábuas de lavar roupa ou com as enxadas a remexer os canteiros das hortaliças. Cerca de meia hora após vi crianças saindo do portão de uma escola, trajadas nos seus guarda-pós brancos, às correrias e algazarras. Um

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grupo veio em direção ao carro. Pus-me a bater nos vidros e a gritar acenando para elas, pedindo socorro. Acercaram-se do carro, curiosas a me espiar pelos vidros. Na ânsia de lhes chamar a atenção não percebi que a camisa que me cobria o corpo escorregara para o assento. Desataram a rir e a caçoar de mim, todas saltitando ao redor do carro, gritando em coro.

- Ela está peladinha! Ela está peladinha!

Voltei a me encolher no assento do carro me cobrindo como podia com a camisa e chorei.

Nesse momento o homem retornava. Veio pisando duro, gesticulando e gritando imprecações, escorraçando com os pirralhos que debandaram em todas as direções correndo assustados, mas ainda me gozando.

- Capetas! Os pego de cinta se me não fogem.

Tropeçou no estribo ao entrar e xingou novamente antes de colocar os pacotes que trouxera sobre o painel do carro. Novamente pegou a estradinha que levava ao interior, rodou uns quatro ou cinco quilômetros e voltou a parar sob algumas árvores.

- Sente-se no banco!

E como eu teimava a permanecer deitada e encolhida escondendo a cabeça no assento, me agarrou pelo braço e, ainda meio irritado com os meninos, acabou sendo rude comigo. Voltei a chorar.

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- Já lhe disse que não há motivos para manhas! Nada de ruim lhe vai acontecer.

Retirou os pacotes do painel e os colocou no meu colo. Um deles me chamou a atenção pelos palhaçinhos alegres e saltitantes do papel de embalagem.

- São para você.

Mas vendo que não me animava em abri-los, tomou um e rasgou o papel pardo que o embalava.

- Doces! Uma comidinha iria melhor agora, mas não foi possível eu comprar na cidadezinha, por não ter lá um restaurante. Coma-os para se fortalecer um pouco.

Depois de alguns quilômetros a estradinha foi se tornando mais estreita e mal cuidada. O homem precisou entrar pelo mato para desviar de um grande buraco que tomava todo o meio do caminho, assustando os sapinhos que pularam do barranco para as águas barrentas do fundo da vala. Daí para frente a paisagem mudou-se drasticamente. Já não se via lavouras e casas e a vegetação, que até então se limitava a grandes trechos de matagal tomado por cipós, se compunha de arvores enormes e sombrias, donde os bandos barulhentos de maritacas esvoaçavam com sua plumagem de bandeira nacional por

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sobre o carro, como a protestarem a invasão que fazíamos ao seu território. De repente o homem parou o carro, olhou para trás e para os lados. Ele, bicho do mato que era, pareceu desorientado, perdido nos caminhos confusos da sua vida atribulada. Deu ré, o manobrou e voltou pelo mesmo caminho que transcorrêramos. Cerca de quilômetro e meio a bifurcação passara despercebida ao homem. Virou o volante metendo o veiculo entre os troncos das árvores.

- É aqui!

A estradinha que ora se apresentava, serpenteando mato adentro, era pior que a que deixáramos.

- Temos que ir devagar para o carro não se quebrar. - Ruminou preocupado o homem, coçando o queixo. No final da tarde chegamos a um rio. O homem parou na sombra das árvores que margeavam a água, desceu e veio abrir a porta do meu lado.

- Desça!

E vendo que eu titubeava me puxou para fora, mas me pegou no colo em seguida e abrindo o porta luvas retirou um sabonete.

- Temos que nos banhar antes que fique escuro.

E foi entrando água adentro. O rio tinha águas limpas e tranqüilas, criava um grande remanso onde a areia fina formava pequenas dunas. Voltei a ficar assustada, me agarrei no pescoço do

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homem e olhei ao redor, mas não se via naquele rio as grandes pedras cheias de limo e suas águas eram rasinhas. O homem me desceu em pé, as águas não passando dos meus joelhos. E se pôs a me ensaboar com cuidado.

- Feche os olhinhos.

Depois de me banhar me levou à margem e me colocou sentada na areia branquinha.

- Brinque um pouquinho enquanto eu me lavo.

Voltei para a água e me pus a catar as pedrinhas polidas do fundo do rio. O homem se afastara da margem e se banhava, mas voltou rapidamente quando escutou os meus gritos. O pequeno animal assustou-se e saltitando sumiu mato adentro. O homem coçou o queixo.

- Tolinha! Não precisava ter medo. É apenas um veadinho!

Mas não retornou ao rio. Tomando-me no colo voltamos ao carro. Pegou sua camisa, a vestiu e foi ao porta malas do veículo retornando com uma toalha. Enxugou-me e pegando o pacote dos palhaçinhos coloridos no interior do carro o colocou em minhas mãos.

- Abra o seu presente!

Nervosa, rasguei o papel, na tentativa de abrir o pacote.

- Desembrulhe com cuidado para não rasgar a embalagem. É tão bonita!

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Vislumbrada me deparei com os seis vestidinhos de babados floridos, calcinhas e um par de chinelinhos havaiana vermelhos. Não percebi que caíra no chão a tiara de pedrinhas azuis. O homem se agachou e a recolheu para mim.

- Vou ajudar você a se vestir para irmo-nos embora. Ainda há muito chão a transcorrermos.

Penteou-me e ajeitou a tiara na minha cabeça, calçou-me os chinelinhos. Afastou-se e ficou a me olhar, completamente abobalhado. Sorriu um sorriso largo, coisa pouco comum na sua face sinistra.

- Você é mesmo uma linda princesinha!

O percurso era penoso, por diversas vezes o homem tivera que parar o carro e sair para retirar do caminho algum tronco que o atravancava. No preciso momento abastecia o veículo.

- Nosso último galão! Vou ter que arranjar gasolina, se quiser chegar.

Já ao anoitecer o homem voltou a parar, saiu do carro e olhou atentamente ao redor.

- Espere aí, que já volto!

Ainda gritei um tenho medo, mas o homem já sumira no interior do mato. Fiquei quietinha e me abracei à bonequinha procurando me acalmar. Logo mais os arbustos se mexeram e o homem saltou do meio das ramagens. Trazia as mãos repletas de grandes frutas amarelas e algumas raízes.

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- Veja só que maravilha! O mato nos dá de tudo e aqui todos os alimentos são saudáveis! Apenas temos que ser modestos para nos rejubilarmos com seus prazeres.

E me estendendo uma das frutas se pôs a roer ruidosamente as raízes, falou com a boca cheia.

- São euforbiáceas silvestres! Aprendi a conhecê-las com meus amigos indígenas.

Anoiteceu. O homem ainda dirigiu por mais alguns quilômetros e parou.

- Não dá para prosseguirmos! Os faróis são insuficientes para clarear o caminho, é perigoso batermos nalgum tronco ou quebrarmos; então estaríamos fritos. Temos que pernoitar aqui.

De madrugada acordei assustada com os estrondos. Relâmpagos riscavam o negror da noite e ao redor os galhos quebravam-se açoitados pela ventania. O homem me abraçou e me aconchegou ao seu corpo, procurando me acalmar.

- São os demônios! Mas aqui estamos protegidos, não precisa chorar.

Logo mais a chuva caia aos borbotões. Pela manhã o tempo amainara e por entre os ramos das árvores o sol esboçava um tímido sorriso de luz e calor. O homem saiu do carro e atolou seus pés na lama.

- Diabos! Estamos encalhados.

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Pôs-se a empurrar o veículo na tentativa de retirá-lo do charco que se transformara a estradinha ao redor, quando os gritos ouvidos o deixaram alarmado, atento ao mato. Logo mais um grupo de homens surgiu de entre as árvores e apressados vieram em nossa direção. O homem nervosamente passou os dedos nos cabelos os revirando, gesticulou para mim.

- Você, fique quietinha!

Mas, felizmente, era um grupo de engenheiros e seus auxiliares acampados nas imediações, engajado no trabalho da projeção de uma rodovia a ser construída pelo governo.

- Precisa de ajuda, senhor?

E logo mãos vigorosas empurravam o carro para o alto da colina, livrando-o do atoleiro.

- Por esta época do ano isso aqui fica horrível! Para onde vai?

O homem olhou o engenheiro de soslaio. Inventou o que dizer.

- Moramos em Valentina, estamos retornando da capital.

Falou sem gaguejar o homem.

- Mas escolheu o caminho mais difícil. Porque não veio por Louvores, tomando a Rodovia 409?

O homem ficou em silêncio pensando numa outra resposta. Coçou o queixo e arriscou:

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- Tenho uma tia em Plumerias! Quis fazer-lhe uma visita.

Estranharam a explicação, visto que mesmo para Plumerias se chegava pela Rodovia 409, mas deixaram por ficar. Arranjaram-lhe dois galões de gasolina e retomamos a viagem. Depois de todas àquelas horas calada me arrisquei a perguntar.

- Para onde você está me levando?

O homem disfarçou e olhou para o lado, mas como eu insistisse, limitou-se a responder.

- Para o paraíso!

Voltei a calar-me novamente. No final da tarde chegamos a um caminho que transcorria por uma região de castanheiras. Olhei para o homem e ponderei:

- Eu não sou Ana Clara!

O homem fingiu não escutar-me. Continuou a dirigir devagarzinho, prestando atenção aos barrancos.

- Chegamos! Mas vem agora o pior trecho.

Parou o carro novamente, desceu e foi urinar num tronco ao lado do veículo.

- Desça, também! Vem fazer xixi!

Eu bem queria, mas com receio do homem preferi permanecer no carro. Foi retirar o galão de gasolina para reabastecer o veiculo e depois olhou o céu.

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- Vai chover novamente! Temos que nos apressar para chegarmos antes do anoitecer.

Entrou e bateu a porta com força. A estradinha agora se igualava mais a uma simples trilha de carroças, serpenteando mato adentro. O carro seguia penosamente entre buracos e grandes troncos caídos que se apodreciam por todos os lados. Bandos de macaquinhos negros e amarelos pulavam sobre as árvores, curiosos conosco, fazendo caretas. Ao entardecer o homem parou. No meio do mato havia um tosco barraco de pau a pique coberto de folhas de coqueiro. Logo abaixo uma pequena plantação de milho.

- Enfim!

O homem desceu do carro, saltando agilmente por sobre grandes aboboras amarelas esparramadas pelo chão no meio da relva espessa, estendeu os rudes braços ao céu bradando alegremente por ter chegado.

- Estamos no paraíso!

E, olhando para mim que não me atrevera a sair do carro.

- Desça! Daqui para frente temos que ir a pé.

Foi ao porta-malas retirando dali uma grande caixa.

- Por hoje essa é suficiente! Amanhã cedo venho buscar as demais.

Ao retornar, vendo que eu teimosamente permanecera no interior do veículo, ficou nervoso.

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- Ande! Já para fora! – Falou irritado enquanto segurava no ombro a caixa de papelão. Agarrou-me pelo punho e me puxou de dentro do carro. Eu perdi o equilíbrio, caí no meio das aboboreiras.

- Você é teimosa, Ana Clara!

Sentei-me no chão sobre a relva e chorei.

- Não sou Ana Clara! Sou Aline, entendeu? Eu sou Aline!

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Terceiro Capítulo

O VALE DO PARAÍSO

O homem deixou a caixa sobre o capô do carro

e lhe foi fechar os vidros. Anoitecia com rapidez. Nos arvoredos sombreados pela noite que avançava, as cigarras entoavam ode à loucura. Eu morria de medo e teimosamente permanecera sentada no chão. O homem prendeu um lampião a querosene à cintura e pegou a caixa de sobre o carro.

- Vamos logo menina! O caminho é longo e já está ficando muito escuro.

Agarrando-me pelo braço, me levantou do chão e caminhou arrastando-me pelo meio do milharal. Logo após a roça, o caminho entrava no interior da mata. Assustada com a escuridão que já tomara conta do local, desandei a gritar desesperadamente. O homem, então, pegou-me no colo e seguiu por entre o arvoredo. Pus-me a espernear tentando escapar dos seus braços e a esmurrá-lo na cabeça como doida. O homem falou alto.

- Pare com isso! Pare! Ou te dou uns tapas!

E, como eu tentei mordê-lo, me pôs no chão e me deu um safanão, mas não me soltou o braço. Gritou nervosamente.

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- Fuja! Fuja! Isso aqui está cheio de bichos brabos que vão lhe devorar. Fuja!

Só então me soltou.

- Fuja agora! Vá! – Falou alto e gesticulando.

E em seguida, percebendo que eu fizera xixi na roupa.

- Pobrezinha! Não carece ficar assustada.

E ergueu-me novamente no seu colo. Só então percebeu que eu perdera um dos chinelinhos vermelhos. Logo mais a mata terminava e o caminho voltou a clarear; descia a colina, entre tufos de capim barba de bode e samambaias bravas, em direção a um riozinho que corria meio oculto, coberto pela vegetação e desaguava a pouco mais de duzentos metros no rio Paraíso. O homem me pôs novamente no chão e atravessou a pinguela, deixando a caixa do outro lado da aguinha, sobre um toco. Então veio me buscar. A subida do lado oposto era íngreme. O homem, embora sendo forte, arfava carregando a caixa no ombro e eu no outro braço. Eu me acalmara e agora, sentindo sono devido ao cansaço da viagem, cochilava com a cabeça reclinada no seu ombro. Do outro lado do morro, quase chegando ao vale, bananeiras ocultavam o barraco de madeira lavrada a machado, coberto com tabuinhas enegrecidas pregadas em sólidos paus de aroeira. O homem empurrou a porta com o pé e entrou. Estava muito escuro no seu interior.

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Tateou até encontrar o fogão e pôs a caixa sobre a sua taipa. Em seguida me desceu ao chão.

- Se agarre às minhas pernas e fique quietinha!

Eu estava sonolenta, já quase não percebia o que estava se passando. Cuidou, então, de acender com o isqueiro o lampião. Somente quando consegui enxergar o interior do casebre me assustei e me pus a chorar. O homem se desvencilhou de mim e, semi-agachado, se pôs a inspecionar cada palmo do local com a luz do lampião. Foi também ao cômodo apegado, mas voltou logo em seguida.

- Bichos peçonhentos! Existem aos milhares por aqui! Mas podemos ficar tranqüilos, pois nenhum se escondeu dentro de casa.

Então se sentou na taipa do fogão. Parecia alheio a mim, embora conversasse, como se falasse consigo mesmo. Só muito depois me olhou. Eu continuava em pé no meio do cômodo, tapava o rosto com as mãos e soluçava. O homem se levantou e veio a ter comigo.

- Não há do que ter medo! – Coçou o queixo. - Você verá como aqui tudo é muito bom e bonito.

Pegou-me no colo e voltou a sentar-se na taipa do fogão, sobre as cinzas esparramadas. Abracei-me ao seu corpo. Naquele momento percebi que, na ausência de quem cuidara de mim por todos aqueles anos, agora eu precisava, realmente, de um pai. Sem me soltar o homem se levantou

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novamente. Num canto, sobre uma mesinha, uma velha talha nos sorria. O homem a destampou e retirou dela uma caneca d’ água que levou à minha boca.

- Beba! Hoje não temos o que comer. Trouxe carne-seca, feijão e farinha, mas se comermos agora nos dará muita sede. Amanhã eu cozinho.

Sentou-me, por minha vez, na taipa do fogão.

- Esqueci suas roupas no carro. Terá que dormir assim mesmo por essa noite.

Foi remexer numa velha caixa de madeira no cômodo apegado. Xingou, assustado com os ratos que saltaram para fora dela, ao destampá-la.

- Malditos roedores! Estão por toda parte!

Voltou com um trapo mais ou menos limpo, o umedeceu na água da caneca.

- Vou limpar você sumariamente para que durma melhor. Amanhã desço até a margem do rio para roçar o mato, aí poderemos tomar um bom banho.

Eu quase já não o ouvia; o cansaço me dominara completamente.

O sol entrava pelas frestas da parede de madeira; acordei com seus raios lambendo a minha cara. Fiquei desnorteada, esquecida da realidade. Vi-me deitada numa tarimba forrada

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com palha de milho, sobre alguns panos sujos. Procurei descer, mas era demasiadamente alta para as minhas perninhas.

- Madrinha Isaura? – Chamei por minha babá, ainda tonta de sono. Escorreguei pelas palhas as derrubando de sobre as varas, até que meus pés tocaram o chão. No cômodo apegado, que servia de cozinha, vi no fogão o fogo crepitando na lenha seca aos estalos, levantando fagulhas. Senti medo novamente e quis chorar. Sentei-me no chão de terra batida do casebre sem saber o que fazer. Logo mais o homem empurrou a porta da cozinha e entrou carregado de caixas. Corri para o cômodo que servia de dormitório e me escondi agachada, atrás da forquilha da tarimba. O homem demonstrou não fazer caso, depositou as caixas num canto do casebre, retirou de uma delas uma pequena valise preta de viagem e a enfiou por sobre a trave mais alta do casebre. Em seguida voltou ao quintal. Criei coragem e fui espiar pela porta. Com um enxadão o homem agora cavava no meio do capinzal úmido de orvalho. Chacoalhou os ramos da mandioqueira e riu alto, com prazer, erguendo as raízes marrãs claras ao céu ensolarado da manhã, como se levantasse um troféu. Ao voltar com o alimento se deparou comigo agarrada ao pau da porta. Mostrou-me as raízes cheias de terra.

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- À nada se compara! A natureza nos é generosa! Os frutos da terra são dádivas de Deus que muitos rejeitam por orgulho ou presunção.

Pôs as mandiocas no chão e foi ver as caixas. Separou uma de papelão grosso, cuja tampa se fechava por fora e a trouxe para mim, que continuava em pé à porta agarrada ao mourão de aroeira que lhe servia de batente.

- É sua! Servirá para guardar as suas coisas.

A pôs no chão e a destampou. Sobre os vestidinhos cuidadosamente dobrados, a bonequinha parecia dormir.

- Minha Colinho!

Corri pegar a bonequinha a abraçando efusivamente.

- Não precisa mais chorar, minha filhinha!

Falei com o brinquedo, mas eu própria já chorando.

– Sua mamãe não te abandonará mais! Vou cuidar para sempre de você!

Junto com a roupa estava também o chinelinho vermelho que eu perdera na tarde anterior e o papel de palhaçinhos saltitantes.

- Vamos ao rio! Mas antes temos que reacender o fogão.

E foi ao borralho atiçar as achas de lenha. Ajeitou a lata de água sobre a chapa, só aí me levou para o quintal. Atravessamos o pomar de

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limoeiros tomado pelo matagal e pegamos a trilha que descia a encosta.

- Menos de três meses sem aqui pisar e já o mato tomou conta de tudo!

O homem parou à sombra de uma goiabeira, olhou as frutas amarelas nos galhos retorcidos.

- São temporãs.

Não entendi o que ele quis dizer. Apanhou uma e a admirou por alguns segundos.

- Está bichada!

Não fez caso; jogou-a inteira dentro da boca e mastigou a frutinha com prazer.

- Deliciosa!

Escolheu outra, num galho mais alto.

- Essa parece estar ótima.

E a estendeu na minha direção.

- Coma! Você vai ter que se acostumar com os frutos da terra. No mato, ou comemos o que a natureza nos oferece ou morremos de fome! - Refletiu por um momento. - Mas a natureza é generosa e tudo o que nos oferece tem a benção de Deus.

Não entendo o porquê, mas eu me sentia tranqüila agora, embora tudo o que me cercasse fosse assustador, mas também fascinante. Vi, com curiosidade, as grandes aves negras voando alto, em círculos, num céu de um azul intenso e luminoso salpicado de nuvenzinhas brancas, vindo umas em

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direção a outras como fossem se chocar. Nos arbustos que margeavam a trilha, bandos de tuins saltitavam nos ramos, barulhentos e alegres e, conforme caminhávamos, pequenos lagartos cinzentos com estrias verdes pelo corpo a correrem agilmente a nossa frente, produzindo barulho com as patinhas espertas nas folhas secas do caminho. O homem ia devagarzinho, cuidando para que eu não tropeçasse nas raízes que em determinados trechos, saltavam do chão se retorcendo no meio da passagem, como se fossem serpentes mansas. Logo mais entramos num bosque de arvores frondosas, cujos galhos sustentavam um mundo de casinhas de João de Barro. Então me assustei com as formigas pretas que infestavam as folhas apodrecidas do chão. O homem percebeu e pegou-me no colo. Abracei-me ao seu pescoço e fiquei quietinha. Ouvi o ruído de água corrente, senti o frescor do ar que nos circundava indicando que o rio estava próximo.

- Por aqui não vai dar! Está muito cheio de mato e o barranco é alto para suas perninhas.

Foi descendo mais um pouco, até sair numa clareira, desviou-se de um grande charco. Então, mostrou-me a graciosa ave de “patas, pescoço e bico longos e delgados”, semi-oculta pela vegetação do brejo. Incomodada com a nossa presença, voou suavemente embora o seu tamanho e peso, por traz das arvores altas, em direção ao rio. O homem fez menção à planta que

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vicejava alegremente no local, suas hastes alaranjadas a balouçar à leve brisa da manhã.

- Chama-se Pirituba na língua tupi! Aqui a chamamos de taboa. É excelente para fazer travesseiros!

Logo abaixo vimos o rio. Naquele ponto, à margem, suas águas corriam serenas e rasas, mas pouco acima eram turbulentas, quebravam-se com grande rumor nas pedras formando pequenas cachoeiras. O homem me pôs no chão de cascalhos e areia vermelhos.

- Vamos nos refrescar! E se despindo, correu rio adentro e saltou na correnteza com alegria, como se fosse um menino. Eu me sentei no chão e me limitei a ficar olhando o homem na sua euforia, nadando e mergulhando naquelas águas turvas, agora de mim esquecido e totalmente alheio às suas cismas e recalques, livre da maldição que o perseguia pela vida. Estava nos seus domínios, no seu verdadeiro e único mundo.

- Hei! Hei!

Gritou acenando para mim, festivo como num parque de diversões, alegre e risonho como num espetáculo de malabarismo. Isso foi suficiente para que os meus medos debandassem por completo e a confiança voltasse ao meu coração que agora, encarava o homem como se realmente fosse o meu pai. O meu pai! E quanto eu precisava de um pai! O sol corria alto pelo céu quando voltamos ao casebre. Enxugou-me os cabelos, cuidadosamente

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os penteou e os adornou com a tiara de pedrinhas azuis. Coçou o queixo e ficou a me olhar demoradamente, seus olhos brilhando de emoção e carinho.

- Como você é linda, Ana Clara!

Senti ímpetos de protestar o meu nome, mas me calei. Limitei-me a abaixar a cabeça e ficar olhando os meus pezinhos. O homem foi então ao fogão e retirou os tições fumegantes, os depositando no chão ao lado da taipa. Chuviscou água do caneco para amainar a fumaça que tomou conta do interior da cozinha. Aí, ajeitou as brasas as revolvendo com a cinza e nelas enfiou as suculentas raízes de mandioca.

- Nosso almoço será mandioca assada!

Sorriu alegre com a perspectiva de uma refeição ao seu prazer e, logo após, foi fuçar no quintal, a procura de uma enxada. Chamou-me.

- Venha Ana Clara! Vamos preparar os canteiros para a semeadura das sementes de hortaliças que eu trouxe.

Passou o resto da manhã cantarolando, cavoucando a terra ao lado do barraco. A pouco mais de vinte metros havia uma fonte. O homem me tomou pela mão e me levou até ela.

- É aqui que saciamos a nossa sede. Cada vez que eu bebo destas águas elevo o meu pensamento a tantos que nesse momento estão com sede, porque infelizmente não as têm.

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Por entre as pedras do barranco, meio a samambaias e avencas, a água pura e cristalina jorrava em bica por um pedaço oco de bambu. O homem bebeu a exaustão.

- Nada melhor há neste mundo! Ouço a voz de Deus no sussurro dessas águas. – Olhou para mim por um momento. - Os crentes dizem que Deus se comunica com as pessoas através das páginas de um velho livro, escrito a mais de quatro mil anos. Mas eu digo que Deus nos fala por sua obra maior, a natureza, com sua perfeição, seus esplendores e maravilhas.

Calou-se por um instante antes de continuar.

- Como também diz o meu velho amigo Frei Messias. Mas eu discordo de alguns pontos de vista seus. A manifestação maior de Deus está na semente e nas raízes que se escondem no seio do solo. Os ramos floridos de rosas nada mais são que o reflexo desta presença divina oculta na terra. Assim somos nós, também.

Percebeu então que eu nada entendera. Sorriu e me puxou pelo braço.

- Venha! Vamos comer o nosso almoço.

Explicou-me, nos dias que se seguiram, o porquê da roça de milho tão distante da moradia.

- A terra desta região brasileira é muito fraca, toda essa área desmatada está irremediavelmente

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perdida. Só a mandioca e o cará ainda produzem razoavelmente por aqui. Isso faz com que o desmatamento se acelere, pois para culturas fortes como as do milho e do feijão, é sempre preciso terra nova. Por isso derrubei o mato naquela área à cabeceira da propriedade, pois as terras por lá são menos arenosas. O problema é que, após quatro ou cinco safras, também aquelas terras já estarão enfraquecidas. Então urge fazer novas derrubadas de árvores para que se colha novamente.

Ponderou em seguida:

- Diana e Ártemis estão furiosas por verem como nossas florestas e fauna são devastadas.

Olhou atentamente as grandes arvores que margeavam o caminho que transcorríamos. Nos galhos da ingazeira, bandos de macacos disputavam meio a grande algazarra os doces e gelados frutos então maduros. Eufórico socou o ar.

- São mesmo formidáveis! Dos sagüis você não precisa temer. – E apontou com o dedo os primatas no alto das árvores. – Mas evite os muriquis do norte. Eles são cordiais e tranqüilos entre si, se abraçam, trocam carinhos como se fosse gente, mas ficam nervosos e agitados com a presença humana nos seus territórios.

Naquela noite o homem saiu por diversas vezes ao quintal e olhou o céu. Pareceu preocupado e

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abatido enquanto revirava com os dedos os seus cabelos.

- Estamos no final da lua minguante!

Tentou disfarçar o que lhe transtornava mente e alma.

- Creio que vai chover!

Realmente. Pela madrugada a chuva caiu, com rajadas de vento que fizeram tremer as paredes de paus corroídas pelos cupins, do velho casebre. O homem abraçou meu corpo trêmulo e acariciou minha cabeça, procurando me acalmar, mas com intenção, principalmente, de me proteger de um eventual acidente. No entanto, felizmente, cerca de meia hora depois a tempestade passou, mas a chuva suave se derramou por toda a madrugada. Amanheceu frio e voltou a chover forte no meio da manhã.

- Hoje não se trabalha!

O homem foi às suas caixas as revirando, retirou de uma delas um punhado de livros. Estava eu a brincar com a Colinho no quarto quando o homem se sentou na tarimba e sentou-me ao seu lado.

- Vou ler uma história para você.

Separou um dos livros e mostrou-me a capa. Havia um morro coberto de árvores que a ornamentava. Tudo muito verde.

- Um dos meus preferidos!

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O abriu e o folheou, leu um trechinho para eu ouvir.

- O deus de nossa fé é um deus humanizado que assimila nossas virtudes e defeitos, ama e odeia, dá vida e mata, protege esse e abandona outrem a sua danação. É, também, a concepção do deus utilitário, a servir a quem o adora, solucionando todos os problemas do dia a dia sendo comum assim, associarmos as nossas vantagens ou desvantagens materiais como gosto desse deus feito à imagem e semelhança humana. Sexuado, é homem porque, claro, num mundo historicamente machista, seria uma vergonha um deus mulher. Tem nome: Javé, Jeová, Alá... como se o nome não fosse uma limitação. A pedra é simplesmente pedra não é peixe. Teve um filho, por sua vez, homem. Cercou-se por gerações de importantes personagens machos; a bíblia que o diga.

Voltou-se, para Nênias e Adalgisa, com o olhar distante perdido nas profundezas das suas conclusões e continuou:

- É um deus falsificado. O verdadeiro Deus está além do bem e do mal, das qualidades e defeitos que nossa limitação humana só consegue compreender. Nos sentimos muito importantes e superiores por nos conhecermos. Não somos melhores que a rosa que, sem ter consciência de si mesma, desabrocha pela manhã e espalha suas

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pétalas ao vento na tardezinha do mesmo dia. Deus se manifesta na candura dessa rosa como se manifesta na fúria do furacão que a brutalmente despedaça. E, digo além, Deus está presente, em sua natureza, tanto na rosa que embeleza nosso mundo quanto na invisível e inabitável estrela mais distante do universo, onde inexiste inteligência ou fé que o reconheça. Deus é impensável e ilimitado e a nada do que humanamente imaginarmos se assemelha. A morte vem nos libertar da nossa maior limitação, a consciência humana que nos redoma à insignificância de sermos um. Voltamos às origens, à essência que nos agrega definitivamente a essa força suprema que é Deus. Entendermo-nos como humanos nos limita e brutaliza. Temos que perder essa consciência para que possamos ser um todo com o universo e, assim, nos unirmos plenamente a Divindade. A rocha que calcamos no nosso caminho está mais em harmonia com Deus que nós, míseros pretensiosos. Nos elementos da natureza está a Essência Divina e é ao retorno a esses elementos que nos leva a morte.

Olhou para mim, que atenta o ouvia.

- Esse é meu amigo Frei Messias. Mas ele escreve muito difícil! - E folheou o livro com calma.

- Gosto muito do seu final. Ouça!

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- Cerca de um ano passou tranqüilo em Aqui, trabalhando na horta de frei Messias, ajudando na colheita de feijão e milho.

- Até ordenhar as vaquinhas de Sô Raimundo o senhor Prefeito aprendeu! - Dizia troçando o jovem Nênias. - Vou fazer um poema ao nosso Prefeito pois bem merece meus aplausos!

Mas, vai daí, bateu a saudades dos seus velhos tempos políticos. E certo que mais moderadamente, voltou a questionar os moradores. Foi então que avisou a todos, fossem à entrada do povoado na manhã daquela quinta feira que teriam uma surpresa.

Cedinho estava o prefeito à entrada de Aqui. Fixara algo no tronco da grande figueira que ostentava a entrada da propriedade e o cobrira com um manto vermelho emprestado da sacristia de frei Messias. Logo mais foram chegando os moradores do povoado; não que tivessem vindo para a cerimônia preparada pelo Prefeito, já que acostumadamente era passagem para suas roças. Iam seguir adiante, mas a um gesto de frei Messias descansaram suas enxadas e ficaram em pé, calados, frente ao Prefeito que com medo de perdê-los, se apressou a concluir a cerimônia com um breve discurso.

- Como havia dito a vocês, Aqui e Lá não se prestam para nome de sua bela cidade, por isso

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tomei humildemente a liberdade de escolher um nome apropriado, que tenho certeza, será do agrado de todos.

E, num gesto rápido, descerrou a placa de madeira presa ao tronco, onde se lia em letras irregulares pintadas pelo próprio Prefeito:

Bem vindo à Pés do Mundo.

Neste ponto o homem parou, sorriu divertido.

- Coisa de maluco! O autor dá as boas vindas no final do livro!

Então continuou:

Os roceiros, sem compreenderem, ficaram a olhar para o religioso, que leu para eles os dizeres da placa. No mesmo momento tomaram de suas enxadas e, taciturnos, partiram para suas roças.

O Prefeito, desenxabido, olhou para frei Messias.

- Acha que não gostaram?

Frei Messias abanou a cabeça, falou sorrindo:

- O lobo...

Não completou o antigo ditado, abraçou amigavelmente o Prefeito.

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- Deixe-os. A bondade dessas almas está justamente no seu modo sincero de ser.

Neste momento o sol despontava sobre os morros ao longe, iluminando vidas e abrasando corações. Frei Messias apontou à distância:

- Veja! Não é realmente lindo o sol nascente em Pés do Mundo?

O prefeito olhou os morros que lentamente se douravam ao sol.

- Sim! Realmente é muito belo!

Era a primeira vez, em sua memória, que se atentava num dos mais dignos espetáculos do Criador.

Ficaram por alguns minutos com o olhar distante no horizonte e depois, ainda abraçados, foram retornando sem se apressarem ao povoado.

Num momento o Prefeito parou frei Messias e o olhou nos olhos. Sentiu dali emanar uma energia sublime que o fazia forte e em paz com a vida, como se por aqueles bondosos olhos se canalizasse a força de um Ser Supremo que, apesar de não vermos, se faz presente a cada momento de nossas vidas, na alegria ou tristeza, na saúde, doença e até na morte, a nos fortalecer a cada ato nosso por um mundo melhor, fraterno e justo. Abraçou com força a frei Messias.

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- Meu amigo; como tiveste razão o tempo todo!

Frei Messias fez um sinal com os dedos e piscou.

- Ambos estivemos certos; apenas nos deparamos com razões diferentes! A divergência de opiniões, embora cause atritos, não deve invalidar a franqueza das nossas escolhas e, muito menos, ofuscar a visão diversa que tenhamos de uma mesma realidade!

Permaneceram por alguns minutos em silêncio, embalados pela reconciliação plena e conclusiva de suas vidas opoentes e só depois sorridentes, almas então rejuvenescidas, ainda braços dados um ao outro entraram na capela.

Logo mais, naquela manhã serena, o sino tangia docemente.

Chamava as crianças de Pés do Mundo para as aulas com frei Messias.

- Então viu o papel de palhaçinhos coloridos que eu usara como cobertor da Colinho, o pegou e ficou a admirá-lo. Fechou o livro que acabara de ler e procurou por outro, entre os tantos que pusera sobre as palhas da tarimba e o mostrou.

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- Este narra uma história triste, de um palhaço!…

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Quarto Capítulo

FANTOCHE

- Ai! Ai! Chiquinha. Eu quero casá co’cê! Se ocê

não aceitá casá comigo eu vou morrê... De bebê... - Era o palhaço da praça central alegrando a garotada naquela manhã de quinta feira. Agarrando a boneca de pano a chacoalhou com furor e a abraçou em seguida cheio de carinho. E puxando uma grande mamadeira de sob o estrado de madeira onde ficava empoleirado, se pôs a mamar sem modos e com boca mole, estalando a língua, para risos e festa da gurizada. Foi quando a menina loura de grandes olhos azuis se achegou com uma flor entre os dedinhos e a estendeu ao comediante. Esse pegou a flor e a cheirou; duas lágrimas teimosas a se derramarem por sua cara, borrando a pintura que o caracterizava. Passou o resto daquela tarde nas tolas pantomimas que as crianças adoravam, mas chorando interiormente. Voltou já noitinha para seu barraco de favela onde morava sozinho. Cerca de ano e meio foram mortas sua mulher e sua filhinha, vítimas de balas perdidas, numa invasão policial a caça de traficantes que culminou no fatídico tiroteio. Comeu seu pãozinho adormecido com o feijão morno e se estendeu na cama, pensamento voltado àquelas que tanto amara e que a insânia desta vida lamentavelmente levara para sempre. Na dormência que tomou conta do seu corpo,

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anteviu a criança loura que lhe dera a flor vermelha naquela tarde. Despertou febril, o corpo molhado de suor, gemeu como se dor sentisse. E sentia! No clarão do luar que se fazia pela janela aberta do barraco, viu a bonequinha fantoche jogada de qualquer jeito sobre a mesinha. Ouviu o relógio da velha igreja badalando suavemente as doze pancadas da meia noite. Olhou ao redor sentindo calafrios, a cabeça a girar lhe parecendo que os poucos móveis do interior do barraco tremiam e iniciavam uma dança estranha e sinistra. Uma luz esverdeada inundou misteriosamente o interior do barraco. Na mesinha a boneca se mexeu, criou vida, sentou-se e coçou a cabecinha de pano encardido. Saltou de sobre a mesa e correu ao redor da cama aos saltos, rodopiando sobre si mesma, se jogando em cambalhotas pelo chão, alegre e sadia como uma criancinha da roça. O palhaço sentou-se na cama, envolvido pela magia do momento, admirando o brinquedo em suas travessuras. Então ouviu choros e gritos de crianças entre explosões de mísseis e rajadas de metralhadoras. Jogou-se sobre os lençóis amarrotados, tapou a cabeça com o travesseiro. No Iraque, a guerra declarada pela insensatez americana fazia as suas vítimas. Saltou da cama urrando, chorando como louco e se ajoelhou no chão sujo do barraco. Tomou a boneca de sobre a mesinha e a apertou de encontro ao seu peito, abraçando-a emocionado, soluçando com desespero.

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- Morta! Morta novamente! Morta!

No dia seguinte sentiu-se doente, sem graça no seu trabalho na cidade. Correu os olhos ansiosamente entre as crianças na esperança de rever a menininha de cabelos de trigais maduros. Viu na tevê da loja em frente às imagens fatídicas da guerra, o show bélico da bestialidade humana, bombas inteligentes explodindo prédios e casas.

- Talvez cheias de criancinhas inocentes. Malditos sejam!

Sem motivação para o trabalho voltou cedo para casa, a cabeça parecendo querer rachar de dor. Procurou não ficar dentro do barraco. Sentou-se no barranco aos fundos, passou o restante da tarde olhando os casebres dependurados na encosta do morro, perigando desabarem. Noite alta entrou e foi direto para a cama. Novamente aquela tontura estranha tornando-lhe a cabeça pesada, os olhos embaçados. Olhou ao redor: o espaço minguado do seu barraco tomava proporções de imensidão de um deserto... Onde a vida escasseia e a morte espreita em cada palmo de areia quente. Do solo estéril ao céu, fagulhas esverdeadas de tênue luz embalavam a criança que perambulava sem rumo. Passinhos incertos, foi ao encontro do homem bomba que a agarrou pelo braço a arrastando num chão seco de esperanças.

- Venha! O grande terrorista quer vê-la.

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O palhaço estremeceu, saltou da cama aos gritos e revolta, mente entorpecida pelo desespero.

- Não! Pelo amor de Deus, não!

Tropeçou na boneca estirada no chão, seu corpinho frio de pano florido cheio de costuras.

- Morta! Morta novamente!

Dias transcorridos, o ataque ao escritório da ONU em Bagdá, causando a morte do brasileiro Sergio Vieira de Mello.

- Que será o fim desta barbárie, meu Deus? Deus... Julgo que a comunidade maçônica tem razão em pregar um Deus ausente. Cansou-se das nossas vilezas e nos abandonou à nossa sorte. Só nos resta satanás!

Nesse ponto o homem parou de ler, enfiou seus dedos entre os cabelos. Foi ao fogão e atiçou o fogo já quase apagado, colocou mais uma acha de lenha no borralho e pôs água à fervura. Olhou para mim sentada na tarimba.

- Temos que aquecer água para o seu banho, pois o tempo está muito frio.

Sentou-se novamente ao meu lado nas palhas, reabriu o livro e resmungou amargamente:

- Diz que tem uma missão divina a cumprir. É coisa de louco esta vida! Matou-se e ainda se mata mais em nome de Deus que em nome do diabo.

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Reiniciou a leitura.

- O palhaço passou tranqüilo alguns dias, divertindo a meninada, mas a criança loura não mais apareceu.

Naquela manhã de dezembro, os jornais publicaram a prisão de Saddam Hussein, enfiado num buraco apertado nos arredores da cidade de Tikrit, como toupeira.

- Iludidos!... ou mentirosos! Farto de milhões roubados do seu povo, bunkers estratégicos e secretos com segurança máxima e pleno conforto, sósias mentalmente manipulados para lhe servirem em situações adversas, se enfiaria feito tatuzão num buraco fedido. É bem como a importante e séria revista escreveu: “uma mentira a mais não faz diferença”.

Madrugadas após novamente o pesadelo, suor frio a banhar-lhe o corpo adoecido. Viu entre as imagens distorcidas das torres gêmeas em chamas as caras satânicas do grande terrorista e do grande estadista rindo, escarnecendo de quem sofria. Novamente o deserto surgiu aos seus pés. Presenciou nas montanhas, meio ao ermo, ante a negra bocarra da caverna onde se oculta o ermitão, numa disputa insana ao poder o grande estadista e o grande terrorista às turras. Pareceu-lhe que se abraçavam ao invés de se baterem. Dentro da caverna a menina loura era o alvo da disputa da insensatez. Representava ante os poderosos a inocência massacrada, o sangue derramado

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naquelas areias esquecidas por tudo e por todos... Até por Deus. De um lado o terror sacudia a bandeira do ódio desmedido e cruel. De outro, a potência desfraldava sua bandeira de falso céu cheio de falsas estrelas... Porque o verdadeiro céu se apagou para sempre nos olhos das crianças mortas, destroçadas pelas bombas da prepotência, pelas rajadas de metralhadora da insensatez. O palhaço viu luz jorrando sobre o deserto, a mesma luz verde dos seus desvarios. Ante o clarão misterioso, a intolerância e a prepotência se fundiam se transformando num único e medonho mostro. Mas, numa fração de segundo que se fez eternidade, o grande estadista e o grande terrorista se quebraram como cristal, seus cacos tinindo na fria areia do deserto humano, a se esparramarem na infertilidade dum chão onde não mais se pisa, não mais se ama. O palhaço sentiu angústia mista ao alivio e consolo do momento. Tomou a criança loura nos seus braços e correu saltitante e feliz pelo deserto que se descortinava à sua frente, inebriado de sonhos e fantasias.

- Vejam, chove! Chove no Afeganistão! – Gritou eufórico, rodopiando sobre si mesmo, elevando a menina ao céu como oferenda santificada.

Aí, sim, pôs a criança no solo, a guiou a passos certos sobre a areia molhada, meio as flores que brotavam e perfumavam magicamente todo o caminho.

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- Venha! Vou te levar mais além! Onde prevalecem as flores brancas o sol é mais intenso, a vida mais fecunda!

Ouviu o barulho forte d’água.

- Chove! Chove muito no deserto. Chove!

Percebeu choros e gritos ecoarem no seu cérebro, a se perderem pelos desertos e grutas da sua vida triste e destroçada pela força do destino.

- Infeliz é a sina de quem ama e pela vida sofre!...

O encontraram de manhãzinha trajado de lama podre, abraçado fortemente ao seu fantoche querido... Fora afogado pela enchente da noite, massacrado pelo deslize do morro que arrastou sua favela.

O homem fitou-me por algum tempo, meneou a cabeça e desalinhou os cabelos com os seus dedos.

- Por milhares de anos o mundo tem testemunhado toda sorte de injustiça e crueldade por parte dos seres humanos!... E ainda espera pela justiça divina.

Depôs o livro sobre as palhas da tarimba e foi à janela olhar o tempo.

- Serenou! O céu está limpo de nuvens. Hoje já não chove mais.

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Voltou ao quarto e sentou-se novamente ao meu lado. Pôs ambas as mãos sobre a cabeça, enquanto falava.

- Retornam da guerra após tantas mortes inúteis e cruéis e são condecorados como heróis, enchem-lhes o peito de medalhas e a fronte de louros... Cometem crimes contra a humanidade, roubam, exploram a pobreza e a posteridade os honra com nomes de ruas, edifícios e praças... Louco é este mundo que enobrece a perversidade em detrimento da bondade. Alexandre, o grande... Profeta Eliseu... Rodovia dos Bandeirantes... Rua Domingos Jorge Velho... Eu, caso tivesse uma cidade a nomear-lhe as ruas e edifícios, nunca que me lembraria de tais vermes! Nem mesmo de doutores e senhores. As chamaria: Rua Dona Maria Lavadeira... Avenida Francisca dos Quitutes... Travessa Raimundo Retireiro... Edifício Roceiro Antonio... E, porque não? Alameda Anísio Pinguinha, que embalde as covardes línguas apregoaram que só foi capaz devido o litro de cachaça a mais na cabeça, saltou dentro da latrina, salvando assim o pequeno Luiz de dois anos que ali caíra acidentalmente e se afogava na imundície. E a praça principal, então, aquela mais bonita e importante da cidade, eu a nomearia: Praça Professora Dinorah Pinheiro!

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A noite se aproximava. O homem dirigiu-se ao fogão para preparar o de comer, remexeu a panela de feijão lhe adicionando água quente. Ao voltar vi-lhe o rosto transtornado e abatido. A leitura do livro mexera com seus sentimentos, avivara fatos do seu passado.

- Eu os mato! Mas são como Phoenix!... Renascem das próprias cinzas!

Olhou para mim que voltara a brincar com a Colinho.

- Você precisa tomar um banho! Vou mornar a água no tacho.

E, enquanto eu me entretinha no meu banho brincando com as espumas, o homem foi ao quarto e retirou a maleta preta de sobre a trave de madeira, repousou-a sobre a tarimba e a abriu. Verificou o seu conteúdo por alguns minutos, fechou-a novamente e a voltou ao seu lugar sobre a trave, próximo ao telhado.

Naquela noite o homem não se deitou, permaneceu fora do barraco até altas horas. Eu já dormia quando veio ao lado da tarimba, me sacudiu. Assustei-me com seu rosto transfigurado, os olhos vermelhos, seus cabelos revoltos. Gritou completamente transtornado, ao tempo que esmurrava um dos paus da tarimba com fúria:

- Você não é Ana Clara! Tem me enganado com seus olhos azuis, mas você não é a minha filha!

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E correu novamente para fora do barraco e dali para a mata imersa na escuridão daquela noite sem lua. Cobri-me até a cabeça e fiquei trêmula a chorar baixinho, me sentindo novamente abandonada. Pela madrugada vi luzes verdes no interior do quarto. Do papel colorido de embalagem jogado no chão, os palhaçinhos haviam saltado, flutuavam sobre a tarimba risonhos e brincalhões, uns às cambalhotas, outros jogando bolinhas coloridas para o alto e as apanhando com maestria. Sentei-me sobre a palha e esfreguei os meus olhos, mas não senti medo naquele momento mágico. Então percebi que me acariciavam as costas. Sobre a tarimba, sentado ao meu lado, o palhaço da história sorrindo me olhava. Falou-me com voz suave, amiga e doce.

- Aline! Não hás de ter medo. Nada te ameaça por aqui, podes ficar tranqüila. Faremos companhia a ti no teu sono, te protegeremos. Durmas sem temor que por ti velamos.

E sorriu-me novamente, amigo e afetuoso. Dormi sossegada e alegre o restante daquela noite. Passava do meio dia quando o homem voltou, mas não entrou no barraco. Sentou-se na soleira da porta, olhar perdido na vastidão da mata, calado e abatido. Suas roupas estavam sujas de lama, seu rosto e seus braços arranhados pelos ramos das árvores. Senti pena e fui sentar-me ao seu lado. Então ele abraçou-me carinhosamente.

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- Perdoe-me, Ana Clara! Os demônios voltaram! Julguei que me livrara deles, mas voltaram a atazanar a minha vida! Perseguem-me desde pequenino.

Abraçado a mim chorou. Depois se levantou e desceu ao rio para banhar-se. Retornando ao barraco e vendo que eu estava na cozinha, sentada no banquinho de madeira com a bonequinha no meu colo, foi ao quarto e novamente retirou sua valise do alto da trave. Abriu-a, mas percebendo que eu deixara o banquinho e entrava no quarto, fechou-a rapidamente e a voltou ao seu lugar sobre a peça de madeira. Eu, que a principio pouco me atentara a esse segredo do homem, passei a ficar curiosa, desejosa de saber o que o ele guardava com tamanho cuidado naquela valise. Mais à tarde o homem me levou ao milharal.

- As espigas estão maduras, vamos colhê-las.

Parecia tranqüilo, demonstrando que voltara novamente ao seu estado normal. Separou algumas abóboras para levar e fazer doce. Mas ao entardecer, quando retornamos ao barraco, notei que novamente ficou agitado e, naquela noite, mais uma vez fugiu para o mato, me deixando sozinha. No entanto eu não senti medo. Fechei a porta da cozinha e fui me deitar na tarimba. Tinha meus amigos palhaçinhos para me fazerem companhia e o palhaço grande que ria para mim e comigo conversava. Durante todas aquelas

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noites escuras o homem se refugiou no mato. Somente quando a lua reapareceu no céu se tranqüilizou e voltou a ficar no barraco durante a noite. Nos dias que se seguiram o homem fez-me revelações confusas. Encavalou-me num anoitecer sobre seu pescoço e seguiu por uma trilha no meio do mato. Andava no escuro feito gato. Havíamos saído numa clareira a duas centenas de metros além do barraco, quando uma estrela cadente riscou o céu pardo de começo de inverno.

- Veja! – Esperou a luz que cortava o céu se esvaecer. – Quis mostrar-lhe os vaga-lumes e nos agraciamos com algo muito mais bonito!

Refletiu por um momento.

- Quando criança, minha mãe me disse que ao vermos uma estrela cadente deveríamos lhe fazer um pedido. Meu pedido era sempre para que meu pai...

Calou-se. De outra vez me confidenciou:

- Eu subia no telhado de casa e olhava o mundo ao meu redor. Via os telhados vermelhos das casas vizinhas e os galhos das arvores sacudidos ao vento e ao sol, repletos de passarinhos chilreantes. E nesses momentos achava o mundo muito belo. Mas, ao descer do telhado e voltar para dentro de casa, às vezes me deparava com meu pai sentado na poltrona da sala lendo os jornais... Então achava o mundo muito feio.

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Pareceu-me estar envergonhado pelo que me falara, mas continuou.

- Vinha sorrateiramente no mais escuro da noite e entrava no meu quarto. Dormíamos eu e minha irmãzinha Mara na mesma cama, mas com ela ele não bulia!... Pela manhã me retirava da cama e eu, ainda sonolento, era levado ao jardim de nossa casa. Mostrava-me as hastes de ferro pontiagudas da grade do quintal fronteiriça à rua e apontava uma delas com o dedo.

- Se contar para a mamãe, eu o espeto naquela mais alta e as pessoas que passam pela rua caçoarão de você, rirão por vê-lo ali espetado na ponta do ferro.

Meneou com a cabeça como se quisesse se livrar de tais recordações.

- Eu ficava feliz por estar doente, pois quando adoecia meu pai não me procurava a noite. E foi numa manhã assim, eu acometido de febre teimosa e os médicos não atinando com doença alguma, que meu pai nos abandonou. Minha mãe soube posteriormente que fora conviver com um dos seus auxiliares e, para evitar más línguas, cuidou de antes despedir os outros empregados da sua pequena fábrica de móveis. Mas afortunadamente, esse seu companheiro foi o pivô do seu sucesso empresarial. Nomeado por meu pai gerente da sua empresa moveleira, demonstrou inteligência ousada e grande capacidade administrativa. Tornou-se a peça fundamental para

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que meu pai erguesse o grande império industrial que são hoje as organizações Porto & Fontes.

Calou-se e ficou um momento me olhando. O senti amargurado quando continuou a falar-me.

- Quando mamãe faleceu, minha irmãzinha foi recolhida por minha avó materna, mas a mim vovó não quis. Falou que não queria um maluco na sua companhia. Fui adotado, então, por minha tia Antônia, solteirona, que na época era funcionária pública coordenadora do programa estadual de reflorestamento da região onde morávamos. E, por não ter com quem me deixar após meu período escolar, passou a levar-me consigo no seu trabalho nos viveiros de mudas. Foi ali que ganhei gosto por mexer com plantas; e dediquei-me a isso com tamanho esmero, que minha tia abriu uma conta num banco e pôs-se a depositar parte dos seus salários como compensação à minha ajuda no seu trabalho. Meu pai só voltou a falar comigo anos após, quando eu já terminara o colegial. Custeou-me o cursinho e fez minha matrícula na faculdade, mas ficou furioso quando descobriu que eu trancara o curso de engenharia industrial madeireira e iniciara o de agronomia. Por isso cortou a ajuda financeira que me dava. Eu queria mesmo era mexer com terra, andar com as unhas sujas, como ele me disse, do que de mais precioso criou Deus nesta vida. – Agachou-se e apanhou um punhadinho de terra, o ficou por alguns momentos a olhar com ternura na palma de sua

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mão. Depois o devolveu ao solo e se levantou novamente. – Com minhas economias juntadas no banco e a ajuda de minha tia Antonia, comprei então o pequeno sítio onde você nasceu. Além disso, a opinião do meu pai não me valia, compreende? Pois meu pai não me era importante! Tanto que, quando seu carro derrapou no asfalto molhado pela chuva e capotou deixando-o gravemente ferido, me neguei a ir visitá-lo no hospital. Somos terríveis! Quando embirramos com uma pessoa não nos importamos em magoá-la e se a odiarmos, então, é mil vezes pior.

Pegou a faca grande e foi cortar as abóboras e os mamões em pedacinhos quadrados, sobre o estrado de madeira.

- Vamos fazer os docinhos! Teremos que utilizar mel de abelha, já que não dispomos de açúcar.

Muitas vezes, também, falou-me da sua mãe. Mostrou-me as florezinhas tímidas colorindo a manhã fria e seca daquele mês de junho, a nos espiarem por entre a relva rala do solo ressequido. Poético recitou:

- Quando no rigor do inverno

cessa o capim de crescer,

têm elas a sua chance

de poderem florescer.

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E depois apontou as árvores exuberantes de flores roxas, ficou enamorado a olhar aqueles gigantes centenários floridos com esmero divino. Sorriu.

- Os ipês roxos são genuinamente brasileiros, mas têm aspirações estrangeiras. Perdem suas folhas no frio, porque entendem que pode nevar. Porém reconhecendo o seu engano, tratam de florir rapidinho se julgando atrasados, pois já é final de primavera no hemisfério norte.

Ficou por um tempo refletindo coisas do seu passado distante.

- Lembro-me de mamãe remexendo o solo fértil da frente de casa. Eu ainda era bem criança e já as daisies explodiam no seu jardim em perfume e cores mirabolantes. Ai de minhas mãozinhas se ousasse eu a bulir numa única pétala daquelas beldades que eram a pupila dos seus olhos.

Sorriu novamente. Agora um sorriso amargo.

- Ela, na sua teimosia de florir o mundo, só colheu espinhos. Minha mãe!... A doença tomou-lhe conta de todo o corpo!... Foi agravada pelo desgosto de ter perdido meu pai para um homem. Morreu numa manhã de março na maior crueldade, abandonada por Deus e pelo mundo todo. Jamais eu vira o seu jardim florido como naquela manhãzinha!... Pareceu-me que todas as flores a quisessem homenagear nos últimos momentos da sua vida!

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Disfarçou e enxugou uma lágrima a escorrer por sua face.

- Fechou para sempre seus lindos olhos que tanto me atraiam.

O homem também cantava. Dedilhava habilmente o violão que trouxera, porém entoava meio rouco suas canções. Naquela tarde se pôs a cantar uma melodia suave, que achei bonita. Mas parou pelo meio, olhou para mim acomodada aos seus pés e alevantou-se do banco onde se sentara. Repousou o violão no chão de saibro pisado e foi ao fogão remexer o borralho onde pusera batatas-doce para assarem. Voltou a olhar para mim e sorriu.

- Há uma cidade no sul do Brasil que se chama Sertaneja. Eu já estive lá e a amei. Por causa do seu nome!

Também demonstrava gostar de animaizinhos. De certa vez que achei um filhote de papagaio que caíra do ninho numa manhã de chuva forte, me deixou ficar com ele.

- É natural a necessidade de termos alguém para cuidarmos. Por isso toda criança quer ter seu bichinho de estimação. Eu, como às vezes mamãe não permitisse ter bichos em casa, tinha meus boizinhos de chuchu. - Ficou pensativo, coçando o

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queixo. - Mas lembro-me do grande porão que havia na casa do meu amigo Zé Aviador! O chamávamos de, o reino dos gatos. Sua mãe tinha três gatos que adoravam ficar no porão.

Mergulhou ainda mais nas suas recordações.

- Zé Aviador!... Muito bom camarada o Zé Aviador. Trabalhava num cartório da cidade onde nasci. Levava corriqueiras broncas do tabelião que nunca o dispensou dos seus serviços, visto que, embora fosse amalucado, era um auxiliar esforçado e exímio na máquina de escrever. Tinha mania de fazer aviões de papel, almejava desde sempre a ser aviador!... Mas a pobreza é o maior tropeço desta vida. Aniquila desejos, frustra aspirações, mata as ilusões sem piedade.

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Quinto Capítulo

O MORRO DOS ÍNDIOS

O homem tinha o seu caderno de anotações.

Todos os dias ao entardecer, após se banhar no rio, sentava-se no banquinho da cozinha e escrevia coisas neste caderno. Somente muito depois me revelou que controlava ali os dias do ano.

- A vida no mato nos faz perder a noção do tempo. Pelo meu caderno sei que hoje é 23 de setembro de 2004, uma quinta-feira. É um dia importante para mim, pois hoje minha mãe completaria sessenta e um anos de vida. Por isso ao amanhecer, logo aos primeiros raios do sol, rezei uma ave-maria. – Ficou em silêncio, cabeça baixa. - Desde criança, só rezo as ave-marias. Minha mãe ensinou-me também o pai-nosso, mas eu nunca consegui rezá-lo.

Virou seu rosto para mim, seus olhos brilhantes como nunca os vira antes me fitando com ansiedade e tristeza.

- Eu sou seu pai, também sou pai de Jandira, mas nunca acreditei nos pais, entende?

Eu não entendera nada, mas percebi arrependimento em tal confissão. O homem saiu cabisbaixo para o quintal. O fui procurar, deparei-me com ele, agora, cabeça altiva olhando o céu.

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- O tempo está firme, o céu está bonito assim azul!...

Olhou-me fixamente nos olhos, acabei por ficar acanhada.

- É tão bonito o azul! Gostaria que esse azul nunca se apagasse!...

Pegou-me pela mão e me levou pela trilha que descia até o rio.

- Hoje não vamos trabalhar. Quero levá-la a conhecer um lugar belo, não muito distante daqui.

Fomos margeando rio acima, pelo interior do mato. Olhou os passarinhos chilreando nos galhos dum Jequitibá.

- O amor é como um passarinho. A qualquer medo bate asas, às vezes para nunca mais voltar. Assim foi com sua mãe. Eu a acusei e critiquei, mas agora reconheço o quanto estive errado. - Refletiu por um momento. - Tenho uma dívida muito grande para com as mulheres. Sempre as encarei como prostitutas natas. As mulheres têm que ser tratadas com respeito e carinho, mesmo as prostitutas! – Me ajudou a saltar o tronco que atravancava o nosso caminho. - Assim como Charles Darwin, creio na evolução, mas do espírito. Com uma diferença da evolução das espécies: na evolução espiritual evoluímos ao futuro ou regredimos ao passado.

Riu-se.

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– Como se pudéssemos regredir não para o passado.

Mas continuou.

- O homem que maltrata uma mulher regride espiritualmente ao macaco! – Coçou o queixo. - Na verdade, nós homens somos idiotas com nosso machismo, pois não somos plenamente homens. – Notou que eu o olhava com perplexidade, sorriu.

- Todo homem tem sua parcela de mulher.

Abriu a camisa e mostrou-me os seus seios.

- Em alguns homens eles se desenvolvem, sabe?

Então calou-se por um longo tempo, como se ruminasse alguma idéia. Aí atirou:

- Nós, homens, maltratamos as mulheres puramente por inveja que delas temos!

Havíamos chegado a um ponto do rio em que a correnteza era muito forte. As águas desciam do alto do morro quebrando-se nas pedras com furor e o seu ruído era ensurdecedor, de maneira que eu já não entendia o que falava o homem, mesmo este gritando. Mas compreendi que tínhamos que atravessar a correnteza por sobre as pedras. O homem ergueu-me nos seus braços e pulou sobre a primeira rocha. Assustei-me e me agarrei fortemente ao seu corpo. Depois te tanto tempo no seu convívio, chorei novamente. Mas o homem,

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embora sua idade avançada, tinha agilidade extraordinária e superando o risco de cairmos no rio e nos afogarmos, chegou sem muito esforço, saltando de pedra em pedra, à margem oposta e me pôs com segurança em pé no chão, sobre a relva rasteira e muito verde. Continuamos a caminhada pela estreita trilha até chegarmos ao cume da elevação rochosa. A vista dali era fascinante! Via-se o rio reluzente à luz do sol por quilômetros, serpenteando meio a selva até perder-se entre os verdejantes morros longínquos.

- Juçaras!

Olhei para o homem sem o entender.

- É o nome destas palmeiras! – Fez menção a planta típica daquela região, que se elevava em quantidade e exuberância entre os grandes blocos de pedra. – Também são chamadas Içaras! No interior do seu tronco se oculta o palmito doce e saboroso. Mas eu as prefiro assim, com sua folhagem alegremente balouçante em saudação ao privilégio de um novo dia. Sente como o ar é muito mais gostoso com a presença desses colossos da natureza ao nosso redor? Eu gosto de respirar o verde!

Mostrou-me os desenhos riscados nas rochas, dizendo serem pré-históricos feitos por índios que habitaram a região a muitos, muitos anos. Mas não me pareceram ser assim tão antigos. E apontou uma direção com o dedo.

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- Hoje eles vivem lá! Não é tão distante como nos parece, apenas quatro ou cinco léguas. Porém o percurso é de difícil acesso. Mister se faz atravessar outros rios e muitos igarapés. Mas eu sei como chegar até lá! Somente eu sei! Um dia levo você para conhecer sua irmãzinha Jandira.

- Eu não tenho irmã! – Retruquei com veemência, quase com raiva.

Fingiu não escutar-me.

- Você conhece o significado do nome Jandira?

E antes que eu pudesse responder me explicou:

– Aquela que faz o mel.

Voltei a protestar:

- Mas eu não tenho irmã alguma!

O homem ficou calado e pensativo, depois me olhou firmemente nos olhos.

- Você tem uma irmã! Além da sua mãe eu fui casado com Jaciara, da tribo Aicanã e nos nasceu Jandira, a doce e eterna Jandira, pouco mais velha que você.

Os dias transcorriam tranqüilos. O homem se ocupava com o preparo do terreno para o plantio do milho.

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- Vou arriscar semear um pouco de feijão entre as fileiras. Mas creio que produzirá pouco, pois a terra já se tornou bastante arenosa.

Foi naquela tarde que chegaram. Vieram em um velho jipe, duas mulheres e um homem, seus rostos queimados pelo quente sol do verão cobertos de poeira. Alegres saltaram do veículo, já acenando para o homem e gritando sorridentes.

- Água! Queremos água pelo amor de Deus que nos valha.

O homem se retraiu. Ficou nervoso e agitado com a presença daquelas pessoas que vinham intrometer-se na sua vida.

- Procurou-me com o olhar. Eu brincava com a Colinho à sombra atrás do barraco.

- Se esconda! Ande!

Sem entender o que acontecia, corri entre as moitas de bananeiras e me agachei, permanecendo quietinha, sentindo o coração aos saltos dentro do meu peito. O homem não lhes respondeu aos cumprimentos; carrancudo, se limitou a entrar no barraco. Sem cerimônia os visitantes entraram após ele.

- Dê-nos um pouco d’água, por favor!

Indicou o moringue num canto, coberto pelo caneco de lata enferrujado pelo uso e pelo tempo.

- Somos funcionários do IBGE. - Falou uma das mulheres ao pegar água no moringue. - Estamos fazendo o senso, contando os habitantes para

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dados estatísticos. Nunca saberíamos que o senhor mora neste fundão de mata, se a velha Domingas não nos dissesse.

A segunda mulher, por sua vez, falou:

- O senhor parece ter ficado assustado conosco. Nada tem a temer! Somos simplesmente funcionários do governo; eu sou a Maria Rita e minha amiga é a Roberta.

- Vivo sozinho aqui! Podem anotar aí: apenas um morador. – Retrucou o homem.

- O senhor não deveria permanecer isolado neste fim de mundo. É perigoso! E se ficar doente ou for picado por uma cobra? Não tem alguém que lhe valha aqui!

Eu havia criado coragem e desobedecendo as ordens do homem, me aproximara, permanecendo à porta do barraco sem ousar entrar. O homem me viu e ralhou comigo, corri novamente a me esconder. A mulher que lhe falava olhou para a outra, meneou com a cabeça, ambas demonstrando não entenderem a situação ali criada. O homem, sem alternativa, falou rispidamente.

- É Ana Clara, minha filha!

Foi sentar-se no banquinho de pau, levou os dedos aos cabelos, os revolvendo. A funcionária sentou-se ao seu lado.

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- Somos amigas! Em nada queremos prejudicar ao senhor. Diga-me com sinceridade: quem é Ana Clara?

- Já lhe disse! - Grunhiu o homem. – Minha filha.

- E onde está sua mãe? – insistiu a mulher.

O homem ergueu sua cabeça, olhou a mulher com rancor. Seus olhos vermelhos, a fisionomia alterada, fizeram com que o motorista pressentisse o perigo a que se expunham. Fez sinal a chamando.

- Vamos! É melhor nos irmos.

E saiu às pressas indo se juntar à outra funcionária já no Jipe.

- A bondosa mulher ainda permaneceu sentada ao lado do homem por mais alguns minutos. Ao levantar-se, tocou-lhe o ombro.

- Nós voltaremos. Temos que seguir adiante com o nosso trabalho, mas dentro de dois ou três dias estaremos de volta. Enquanto isso reflita no que lhe falei. É um grande erro ficar sozinho aqui neste fundão de mato. Se quiser o levaremos para a cidade e lhe providenciaremos ajuda médica. Por enquanto um breve adeus. - Saiu do barraco ainda lhe fazendo um aceno com a mão.

- Malditos! Foram os demônios que os enviaram!

Gritou o homem completamente possesso. E, ao sair correndo de dentro do barraco, se deparou comigo.

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- Você há de me pagar! Mandei que se escondesse!

E erguendo-me, me atirou sem modos sobre o grande tronco do cedro centenário. O vi recolher o machado do chão e correr para a estradinha com ele alevantado, completamente transtornado, gritando palavras de morte. Mas o jipe já sumira atrás das árvores, na curva do caminho que levava à estradinha alguns quilômetros além. O homem voltou. Vendo então que eu me agachara e tentava descer do tronco, gritou raivoso.

- Que pensa você que está fazendo?

Levantei-me às pressas e fiquei apavorada a olhar o homem que novamente erguera perigosamente o machado. E vindo em minha direção desferiu um golpe com a ferramenta entre os meus pés, cravando violentamente a lâmina afiada no cerne semi apodrecido do velho madeiro. Pus-me a chorar. Somente então o homem pareceu cair em si; jogou-se ajoelhado no chão, escondeu o rosto entre as mãos e também chorou.

- Perdoe-me! Tenho medo! Tenho medo de mim mesmo!

Voltamos para casa ainda sol alto. O homem, assim que entramos, foi à trave do telhado, retirou

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sua valise preta e a levou à mesa da cozinha. O rodeei na esperança de ver o que ele ocultava dentro dela.

- Vá tratar dos porquinhos!

- Mas ainda é muito cedo! – Respondi timidamente. – Vão sentir fome durante a noite.

O homem estava nervoso, gritou comigo. Assustada, corri para o quintal e fui esconder-me no paiol. Ao retornar, já à tardinha, vi que a maleta continuava sobre a mesa da cozinha. Fiquei intrigada. Estava curiosa por ver o seu conteúdo, mas o homem permaneceu pelo restante da tarde sentado no banquinho de pau. Cobria os olhos com as mãos e, seguidamente, revirava frenético os cabelos com os dedos. Novamente era noite sem lua. O homem ficou comigo no barraco até a luz do lampião fraquejar e, como tantas vezes já o fizera, se refugiou no mato. Estranhei, porém, que desta vez levou consigo o velho e afiado facão de cortar cana que sempre mantivera dependurado num dos paus, ao lado da tarimba. Aflita fiquei acordada esperando pelos palhaçinhos do papel, que não vieram. Mas o cansaço e emoções daquela tarde me venceram e dormi a noite toda de modo mais ou menos tranqüilo. Somente de madrugada acordei com ruídos no telhado do casebre, mas percebi que era apenas uma corujinha e o homem me ensinara que, mesmo as corujinhas, são bichinhos importantes e por elas tínhamos que zelar também. Quanto aos tristes

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gemidos vindos da mata, já não me amedrontavam. Eu sabia que eram passarinhos que piavam a noite, os urutaus, que como as corujinhas, a saracura três potes e os curiangos possuem hábitos noturnos. Pela manhã levantei-me e fui ao quintal. O homem, numa barganha feita com o seu carro, trouxera dum sítio distante algumas galinhas, quatro porquinhos e um casal de cabritos que precisavam de cuidados. E isso eu fazia com prazer, mesmo sem ele me forçar, todas as manhãs. Ia ao paiol buscar as espigas de milho e as debulhava às galinhas; cortava as mandiocas e abóboras em pedaços para os porquinhos. Já os cabritinhos tinham o seu repasto no capinzal logo além da fonte. Somente ao retornar à cozinha vi que a valise continuava sobre a mesa. Temerosa, mas com grande curiosidade, a abri e, para surpresa minha, constatei que a mesma nada continha. Peguei-a com cuidado e a levei ao quarto, guardei-a junto à caixa dos livros. O dia passou sem o homem retornar. À noite, como eu não aprendera, pois o homem não me deixava fazer por ser perigoso, a acender o lampião, tratei de ir cedo para a cama. E novamente naquela noite meus amigos palhaçinhos não vieram.

- Porque choras?

A voz me assustou. Ergui a cabeça e olhei, mas era o meu amigo palhaço grande sentado aos pés da tarimba, sorrindo.

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- Onde estão os palhaçinhos? – Perguntei-lhe aflita, mas não me respondeu. Deixou de sorrir e misterioso se limitou a falar:

- Mesmo para nós o mundo é cruel!

Levantou-se e veio até a cabeceira da tarimba. Ajeitou o cobertor sobre meu corpo, igualzinho minha madrinha Isaura fazia.

- Agora precisas dormir; é importante para ti! Fiques em paz que estou zelando por teu sono.

E sumiu-se lentamente.

Pela manhã fui à minha caixa de papelão e chorei ante o que vi. A ratazana roera o papel colorido dos palhaçinhos e dos retalhos fizera o ninho para seus filhotes. Fiquei revoltada, senti ímpetos de massacrar os ratinhos tal minha raiva e desconsolo. Mas, novamente, recordei certas palavras do homem e me contive. Verifiquei que, por sorte, minha roupa estava intacta. Retirei com cuidado os vestidinhos de dentro da caixa e deixei os bichinhos em paz sobre o papel picado, mas qual não foi minha surpresa quando, depois de tratar dos animais, voltei a olhar a caixa. A mãe ratazana levara seus filhotes dali. Peguei os pedacinhos do papel e tentei juntá-los na esperança de recompô-lo, mas não tinha cola para prendê-los e, mediante a dificuldade de montar o quebra-cabeça que se transformara, desisti. Infelizmente perdi, para sempre, meus amigos palhaçinhos. Três dias se passaram. Ao amanhecer do quarto dia o homem retornou.

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Assustei-me com o sangue sobre seus braços e rosto, a camisa com grandes manchas vermelhas. Nada me falou, evitou olhar-me, mas percebi seu rosto abatido com olheiras, o cansaço e a angustia marcando seus traços fisionômicos. Falou em voz baixa, sem erguer a cabeça:

- Como diz o meu grande amigo Frei Messias; se Deus não existisse, a quem pediria eu perdão dos meus pecados?

Notei que não trouxera consigo o facão de cortar cana. Acendeu o fogo no fogão, se despiu e dispôs sua roupa a se queimar sobre os paus no borralho. Depois desceu seminu ao rio, indo se banhar.

- Estamos ilhados!

Passávamos por um período de fortes chuvas.

- O córrego ao sopé do morro já passou de dez metros de largura e o rio Paraíso transbordou mais de seis metros. A cheia já se aproxima dos limoeiros.

Eu brincava com Colinho, não dei atenção ao homem. Novamente foi à caixa de seus livros, mas deixou-me a brincar, indo sentar-se no banquinho da cozinha para ler.

- Quer ouvir um poema, Ana clara? - Gritou o homem da cozinha. Deixei Colinho sobre as palhas da tarimba e fui sentar-me no chão, aos seus pés. -

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Atente a esta; veja como é bonita. Chama-se “Das Cores”.

Se pôs, então, a recitar em alta voz:

O azul é a cor que ao meu ego domina,

O verde esperança e prazer me traz,

Amarelo é o ouro, é o sol que me ilumina,

O branco é trégua aos meus conflitos, minha paz,

Me alegram o roxo, o pink e o lilas.

Como é bonita cada cor e tão divina!

O cor de rosa é belo e puro, é cor menina,

O laranja as vezes azeda, mas me apraz,

Oculto no meu corpo o vermelho predomina,

Pelo cinzento o meu cérebro prima,

O violeta me anima e me compraz.

Gosto da doce cor do ananás!

De uma raça, força sem par o preto assina;

Já marron é a terra mãe e me ensina

Que a vida se desbota e no seu fim, marron a todos faz.

Mas me agracia os olhos e os mais fascina,

Empolgando-me a alma de uma forma assim

assas,

O incolor da água generosa que entre

pedras mina!

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O tempo chuvoso não cessava. A madeira do casebre se encharcara e devido ao apodrecimento avançado das paredes o cheiro se tornara forte, causando-me irritação nas narinas e ataques de tosse que me tornavam abatida e doentia. Juntou-se a febre para agravar minha saúde, de modo que já não conseguia deixar a tarimba, visto ter tonturas e as pernas enfraquecidas. O homem se desesperou.

- Pobrezinha! Em que fim de mundo eu fui enfiar você.

Foi ao mato a procura de ervas e raízes medicinais, trouxe o precioso e raro mel de abelha jataí. Encheu-me de agrados e atenção ao passo que, mesmo o tempo tendo estiado e as águas do ribeirão voltado a correr no seu leito normal, se absteve de ir ao trabalho no milharal para me proporcionar cuidados e me fazer companhia.

- Dizem os pobres nos seus conformismos, que desta vida nada se leva.

Refletiu.

- Leva-se! Leva-se sim!... A fome que passou pela vida, a doença não curada por displicência médica, a mágoa por não ter podido dar o que lhe pediu um filho.

Saiu um momento ao quintal, mas voltou logo.

- Vou ler para você.

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Mostrou-me então, naquela manhã, um livro cheio de gravuras muito coloridas e explicou:

- São pedras preciosas. - E apontando uma com o dedo. - Esta é o diamante. No seu estado bruto parece não ter graça, somente depois de lapidada é que fica bonita. Muda mesmo até de nome, passa a ser chamada brilhante. – Ficou pensativo. – Mas entendo que seja o contrario. A preciosidade do diamante está no seu interior intocado pelo joalheiro, o seu brilho externo nada vale. Assim somos nós. Nosso aspecto exterior é mera lapidação. Abaixo da nossa pele esconde-se nossa brutalidade, nosso real valor, e é nessa brutalidade que Deus se manifesta.

Continuou a folhear o livro.

- Todos se enganam quanto ao diamante! O têm como a pedra mais preciosa e rara que existe.

Vi neste momento os seus olhos brilharem. Seu rosto, quase sempre traçado pela inquietação que muitas vezes o levava ao desespero, se transfigurar em luz como fosse a face de um anjo.

- Na realidade, a pedra mais rara, preciosa e bonita já encontrada é a Turmalina Paraíba.

Depôs o livro sobre as palhas, aproximou seu rosto do meu e ficou a olhar meus olhos. Sussurrou:

- A mais bela é a Turmalina Paraíba! A mais bela! Os mais belos! Como são belos!...

Escondi a cabeça nos panos da tarimba. Repetiu ainda algumas vezes as mesmas palavras,

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então percebi que saíra do cômodo para a cozinha. O escutei mexendo no fogão e logo voltou.

- Beba o seu chazinho de cidreira, Ana Clara, depois vamos ao rio. Você precisa tomar um banho decente, além de respirar um pouco de ar puro.

Esperou eu tomar o chá e levou a caneca para a cozinha. Voltou com a toalha enrolada no pescoço. Ignorou os meus protestos ao puxar os panos que me cobriam, pegou-me no colo e saiu, me carregando para o quintal. Ao redor do barraco os brincos de princesa floriam em tons diversos de cores e perfumes.

- Veja só, quantas abelhinhas! O mundo é mesmo estranho. A abelha passa toda a sua vida a fabricar o doce e puro mel, mas quando nos ferroa, e é somente uma única vez que o faz, ficamos revoltados e geralmente tacamos fogo em toda a colméia.

E mostrando-me as borboletas a esvoaçarem de um lado para outro.

Vou contar-lhe uma historia. – Foi falando animadamente comigo, enquanto descíamos a encosta em direção ao rio.

- Havia numa cidadezinha do interior um velho que adorava gatos, mas também gostava das borboletas que vinham nas flores do seu jardim. E como os gatos caçavam as borboletas, um dia

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teve uma idéia. Cegou os seus bichanos para que não vissem as borboletas e assim, não mais as perseguissem... Na nossa vida, quantas vezes nos comportamos como a este velho. Remediamos um mal existente com uma maldade maior. Assim são das pequenas vinganças às guerras, verdadeiras idiotices humanas muitas vezes com a pretensão do aval de Deus às suas práticas. – Calou-se por alguns instantes. – A verdade é que temos a má índole de mesclar Deus às nossas praticas, mesmo quando estas não passam de pura patifaria. Por isso Deus se faz ausente!

Havíamos chegado ao rio e ao invés de me levar a me banhar, o homem sentou-me nas pedras à margem e sentou-se ao meu lado.

- Você é tão pequena e ainda não conhece quase nada de Deus e de religião. E mesmo os adultos são equivocados quanto a isso, muitas vezes. A religião é importante, mas não é ela que melhora as pessoas. O que muda o mundo é a ciência, a capacidade que nos faz compreender o que até então são mistérios. Quantas criancinhas foram sacrificadas à divindade no intuito de aplacar a sua ira, até se entender que os relâmpagos e trovões não são a fúria de Deus, mas simplesmente fenômenos da natureza em dias de tempestade? A ignorância das coisas gera os mistérios e estes se ligam à divindade e suas causas. A nossa formação religiosa nada mais é do que os pensamentos de determinados indivíduos

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que, no passado, tiveram a pretensão de serem porta vozes de Deus. Assim, as pessoas acabam se confundindo ou sendo confundidas, o que é pior. O bom seria que todos se conscientizassem que Deus não precisa de intermediários humanos e, muito menos, de palavras escritas num livro, por sinal manipulado a bel prazer pelas religiões durante os séculos, para se comunicar. E que, ao querer um intermediário, escolhe coisa mais santa que os homens: uma flor ou uma borboleta, por exemplo, ou, no máximo, uma criancinha. A religião acabou por andar abraçada a crueldade por pretender suficiência e querer suprimir a ciência. Por isso existiram câmaras de tortura nos subsolos dos conventos e dos mosteiros. Ou a inquisição, chamada pela Igreja até a pouco tempo de santa que queimou em suas fogueiras milhares de pessoas, a maioria mulheres, por julgá-las praticantes de bruxarias. As Guerras santas, como as cruzadas e inúmeras outras que dizimaram por tanto tempo milhões de inocentes, somente por não professarem a mesma fé ou terem um entendimento diferenciado de Deus. O certo é que a crueldade é parte da essência humana e, em muitas épocas, a religião ao invés de lutar para suprimi-la, a praticou. – Se distraiu a olhar um peixinho prateado que saltara à flor da água tentando abocanhar uma joaninha. Então ponderou: – A fé sem a ciência prega um deus medíocre. Houve alguém que sabiamente catalogou os religiosos em crentes e crédulos.

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Crentes são os que crêem questionando o que lhes é ensinado e, percebendo sem fundamentação, refutam. Digamos serem estes que unem fé e ciência. Já crédulos são os que acreditam piamente em tudo que lhes é falado, mesmo que seja uma grande besteira. Infelizmente é nessa categoria que se encaixam a maioria dos fiéis religiosos. Mas também é certo que se a religião sem a ciência é falha, a ciência sem a fé capenga. A arrogância de muitos cientistas os leva a excluir Deus de suas pesquisas e descobertas científicas; os faz desconsiderar que, superior à sua inteligência privilegiada, uma inteligência suprema a tudo criou com tal pericia e perfeição que nada se justifica sem a sua existência. Assim, a ciência sem Deus pode ser devastadora. E foi!... Hiroshima e Nagasaki que o digam!...

Percebeu que eu nada entendera. Tomou-me pela mão e me auxiliou a descer das pedras, levou-me até o rio.

- Pela lógica, os cientistas deveriam ser os mais crentes em Deus, e não o são!... Vamos, tome o seu banho.

Sentou-se no barranco e ficou a olhar-me enquanto eu me lavava. Depois me enrolou na toalha e pegando-me no colo foi subindo a encosta em direção ao casebre. Anoitecia. O homem parou no meio dos limoeiros e ficou a olhar o céu que vaidosamente se adornava com milhões de estrelinhas. Meneou com a cabeça.

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- É final de lua minguante.

Mostrou enigmático um ponto do infinito com o seu dedo.

- Está lá, a minha estrelinha!

E entrou no barraco.

Eu passei bem a noite, mas ao alvorecer tive um acesso de tosse. O homem sentou-se ao meu lado e me abraçou.

- Na pobreza tudo está bem, até que alguém de casa fique doente!

Ficou a olhar-me preocupado.

- E também é na doença que se desmascaram os ateus. Nessas horas todos titubeiam, perdem a pose e clamam por Deus.

Ajeitou o cobertor sobre meu corpo.

- Tente dormir mais um pouquinho. Vou acender o fogão para fazer o seu chá.

Passou a manhã toda comigo a conversar, relembrando.

- Ao lado da minha casa, morava o juiz de paz da comunidade. Era um cara bacana e todos o estimavam, falava com as pessoas como se conhecidas a anos, mesmo quando as via pela primeira vez. Habituava-se a dizer que era dos tempos em que se levantava o mastro de Santo Antonio e se ascendia fogueiras para São João.

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Tinha a mania de andar pela cidade com um lápis preso atrás da orelha, o que se tornara sua marca de registro. Nunca morara nos sítios, mas era convidado a todas as festas de roça da região. Eu, particularmente, gostava de conversar com ele. Já de outro meu vizinho eu não gostava, porque além de não responder aos meus cumprimentos pela manhã, baforava fumaça de seu charuto na minha cara. Mas, quando se propôs a construir a sua casa nova, na rua dos fundos, levou uma geladeira para o galpão dos seus pedreiros e a supria, todos os dias, da boa água do seu poço. E, não raramente, os agraciava com um cesto de pão recheado com queijo fresco de Minas e garrafas de café!...

Percebeu que eu não atinara ao seu raciocínio.

- Quero dizer que o nosso senso de justiça é injusto! Basta um ato mau de uma pessoa para que toda a bondade que exista nela se desvaneça.

Sorriu para mim ao lembrar-se de outra historieta.

- Havia, num vilarejo, uma única padaria. Seu padeiro amável e cordialmente recebia os fregueses pela manhã com um sorriso esculpido na cara. Tratava a todos como fossem seus irmãos, mas era um tanto relaxado e, diante da sujeira que mantinha sua padaria, os fregueses muito reclamavam, mas não deixavam de buscar seus pãezinhos todas as manhãs. Passaram-se os anos e esse padeiro, agora envelhecido, adoentou-se e por isso vendeu a padaria a outrem que viera da

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capital. Este, por sua vez, mantinha a padaria um brinco, prezando sobremaneira pela limpeza e asseio, mas era ranzinza, cara fechada, tratava mal sua clientela. E a padaria esvaziou-se de seus fregueses.

Piscou para mim que o olhava boquiaberta.

- Deixe estar! São cismas de um louco!...

Mais uma noite negra chegou. O homem novamente alterou-se, veio até o quarto e ficou a me olhar na tarimba como se me estranhasse. Notei que ficou agitado, passou os dedos pelos cabelos os desalinhando. Voltou à cozinha, aos gritos e blasfêmias e correu à parede onde pendurara seu facão mateiro, o agarrou e pôs-se a lutar dentro da cozinha com os demônios do seu delírio. Eu sentei-me nas palhas da tarimba e fiquei quietinha, apreensiva e medrosa. Percebendo que eu o observava, voltou ao quarto, me encarou de maneira alucinada e gritou, brandindo o facão, ferindo o ar.

- Não é! Você não é Ana Clara! O azul dos seus olhos me engana, esconde a verdade dos fatos. Você não é a minha filha!

Avançou sobre mim como doido agitando o facão perigosamente próximo ao meu rosto. Meus olhos turvaram-se pelas lágrimas, levantei os braços em direção a ele numa tentativa ingênua de defesa. Atirou o facão por sobre a minha cabeça

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atingindo a madeira da parede atrás da tarimba, urrou de forma estranha nunca feita antes e correu para fora do casebre perdendo-se no negror da noite.

- Por que choras?

O palhaço grande, à cabeceira, me olhava triste e comovido.

- Durmas meu bem! Eu estou aqui.

Já passara do meio dia e o homem não retornara. Ao cair da tarde a porta do casebre se abriu, mas não era o homem. Vi entrar na cozinha uma velha senhora, rosto enrugado e um grande coque nos cabelos atrás da cabeça embranquecida. Torceu o nariz ao ver o estado que estava o barraco, abriu as janelas da cozinha e do quarto de dormir e empurrou as caixas com as coisas do homem num canto do cômodo. Olhou a tarimba onde eu estava deitada.

- Que porquice! Ainda bem que eu trouxe a minha rede!

Pegou uma faca na cozinha e voltou ao quintal. Logo retornava com um feixe de guanxuma; rasgou uma tira de um dos trapos da tarimba o amarrando e nele enfiou uma das varas improvisando uma vassoura. Foi à talha e retornou com uma caneca de água para chuviscar o chão de terra batida e se pôs a varrê-lo vigorosamente. Vez ou outra levantava a vassoura para retirar as

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teias de aranha que pendiam do teto e dos cantos das paredes do casebre.

- O que faz a falta de uma mulher numa casa!

Terminada a limpeza sumária do casebre, pôs fogo à lenha no fogão e voltou ao quintal. Logo retornou com os ovos de galinha, algumas abobrinhas e iniciou o preparo do seu jantar. A noite chegou rapidamente e ela foi deitar-se cedo na sua rede estendida nos paus da cozinha. A ouvi roncar durante noite adentro. Julguei que meu amigo palhaço grande não viesse devido a presença da mulher, mas ficou comigo a madrugada toda. Somente não conversou comigo, talvez para não chamar a atenção da intrusa, porém sorriu para mim durante todas aquelas horas, envolto na sua luz esverdeada que me iluminava e dava-me alento e tranqüilidade. Pela manhã ouvi a velha remexer-se na rede e bocejar. Saltou ao chão disposta, com a saúde em forma para os seus oitenta e tantos anos.

- Dormi como uma santa!

Foi ao quintal fazer suas necessidades fisiológicas no meio do capinzal e depois lavar-se nas águas da biquinha. Voltou com um maço de flores colhido nos jardins do homem e com elas improvisou um arranjo num caneco de lata, sobre a mesa da cozinha. Somente então foi tratar dos animais. Os dias se passaram rapidamente. Na tarde do décimo sétimo dia da presença da estranha no casebre, chegaram alguns homens a

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mando do delegado de policia. A velha ficou nervosa e agitada, gaguejou ao responder as perguntas feitas pelos agentes da lei.

- Eu sou Domingas! Nada tenho a ver com isso! Mal me pagou o homem para cuidar das suas coisas e tratar dos bichos, na sua ausência! Não sei onde ele anda! Está embrenhado nestes matos de Deus há mais de quinze dias!

Os diligentes inspecionaram cada palmo do casebre, até atrás das forquilhas da tarimba olharam. Esparramaram os objetos das caixas no chão socado do quarto, levantaram as palhas da tarimba procurando. O policial viu Colinho sobre as palhas. Ergueu o brinquedo o sacudindo, às gargalhadas fazendo chacotas, chamando a atenção ao seu colega. Disseram à velha que procuravam pelas armas. Depois saíram do barraco para o quintal, vasculharam as redondezas à procura do homem. Mas se apercebendo da dificuldade de encontrá-lo foram-se embora naquela mesma tarde. A mulher, por sua vez, também juntou as suas coisas e, maldizendo a sorte, voltou para o seu sítio. Naquela noite fiquei muito feliz, porque o palhaço grande voltou a conversar comigo.

- Passarás por muitas dificuldades ainda, mas não hás de desanimar, pois o pesadelo passará e a felicidade irá sorrir-te como jamais sorriu a alguém nesta vida!

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Chegada a manhã seguinte o homem retornou, mas não veio sozinho. Os vi entrarem no quarto e se acercarem do meu leito de doentinha. O homem abraçou-me e me beijou com carinho, mas nada disse. O xamã iniciou uma dança estranha acompanhada por um canto numa língua que eu não compreendia. Era auxiliado por um jovem índio enfeitado de plumas de arara vermelha e, à minha cabeceira, me afagava a cabeça graciosa indiazinha, seus olhos negros a brilharem na face morena sorridente.

- Você é Jandira? – Perguntei-lhe entre surpresa e alegre com aquela presença terna a me fazer agrados. Fez que sim, mexendo com a cabeça, demonstrando me entender. O xamã falou com o jovem índio no seu linguajar incompreensível e este saiu às pressas para o quintal, correndo em seguida para o mato. Mas não demorou. Trouxe um punhado de sementes, grãos de urucum e raspas de pau pereira para o pajé me preparar os remédios. Assim os dias se passaram e, creio que mais pela presença amiga de Jandira que pelos cuidados medicinais do velho índio, recuperei minha saúde e energia completamente e para minha alegria, quando se foram os nativos, Jandira ficou para me fazer companhia.

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Sexto Capítulo

JANDIRA

Raspava a mandioca para fazer a farinha e

depois preparar a gostosa e nutritiva tapioca. Eu a ajudava conforme podia, pois o homem às vezes me ocupava com outros afazeres. Nunca me exigira nada, mas agora, depois que Jandira chegara, me enchia de trabalhinhos. Jandira sorriu e perguntou-me:

- Você sabe como surgiu a mandioca?

Fiz um sinal negativo com a minha cabeça.

- “Num tempo muito antigo e numa aldeia tupi muito longínqua, a filha do tuxaua deu a luz a uma criança branca como o luar. O pai da moça quis matá-la, mas quando sonhou com um moço branco, este lhe disse que perdoasse a filha, pois a mesma não tinha culpa; aceitou, então, a neta e lhe deu o nome de Mani. A menina logo começou a andar e falar, mas morreu antes de completar um ano. Como era costume daquela tribo, enterraram Mani dentro da sua casa, depois de lhe tirar o telhado. Após alguns dias nasceu uma planta diferente sobre a sepultura de Mani. Sua mãe a protegeu e irrigou e a planta cresceu. Notaram os índios que os pássaros que bicavam as suas flores e lhe comiam as sementes, ficavam embriagados. Passados os dias a terra se rachou mostrando as raízes brancas e nutritivas que os

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índios aprenderam a usar para sua alimentação. Deram-lhe o nome de manioca, que significa casa de mani e à planta o nome de maniva”.

Riu, como se achasse graça ela própria no que dissera.

- A mandioca é um grande alimento não só para nós índios. Todos devem comê-la pela sua riqueza de cálcio, ferro, fósforo e vitamina B. Dela também preparamos o cauim, que alegra o coração do índio e traz alento ao seu espírito.

Piscou para mim achando-se uma grande sabichona. E era! Quanto aprendi com Jandira. Sobretudo no tocante a amizade e companheirismo e... Porque não, amor? Tornou-se especial para mim, ao ponto que eu procurava estar sempre à sua proximidade, querendo saber das coisas que ela conhecia, ouvir suas palavras sábias e sinceras, rir com seu sorriso alegre e conquistador. Rir!... a quanto tempo eu não ria como agora! Quando podíamos escapar do olhar fiscalizador do homem, fugíamos para o mato. Passávamos horas libertinas e felizes, perdidas naquela imensidão verde rica de flores e frutas que Jandira cuidava de me dar a conhecer, seus benefícios ou perigos para a vida, sua valia na alimentação ou na doença como importantes remédios. Quando voltávamos, muitas vezes já anoitecendo, íamos preparadas para as broncas do homem. Mas os dias transcorriam agora alegres e calmos.

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- Veja Aline o que eu fiz!

Mostrou-me as cabaças untadas com urucum, atravessadas por um pauzinho.

- Chama-se maracá. Venha Aline, vamos homenagear a Anhum!

Iniciamos a brincadeira, eu querendo imitar o ritmo com que Jandira chacoalhava seu maracá e dançava. Pôs-se a cantar:

- “Eminotin, vê, ê, ê, ê, andó, xó, ca, é, vô, a, há, há, ha; Dô camâm corojê, canambang, cô iyongdá, emí no tim , gire que matin... ê que matin”.

Tentei acompanhá-la, mas não consegui. Cansei-me e fui sentar-me á sombra do cajueiro. Jandira riu divertida, mas parou com a brincadeira e veio sentar-se ao meu lado.

- Para ser índio é preciso ter muita energia! – Brinquei com Jandira.

- Bobagem! É importante estarmos contentes com o que nós somos não com o que gostaríamos de ser. Só uma coisa é essencial na nossa vida: a bondade. Mesmo sendo fracos e limitados, sermos bons nos faz gigantes. O contrario se formos maus. Rastejamo-nos no brejo como...como... um rhaebo guttatus.

- Nossa Jandira, o que é isso?

Jandira cutucou o chão com um pauzinho e riu.

- É sapo, bobinha!

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- Ahhh!... Sapo em linguagem de índio se fala assim?

Claro que não! Falam assim os brancos que vão à tribo fazer pesquisas. Sapo para nós é sapo mesmo, ou cururu!

O homem saíra ao quintal e olhava ao redor do casebre à nossa procura.

- Ana Clara? Jandira?

Ficamos quietinhas para que não nos apercebesse, mas acabou por nos encontrar. Ralhou conosco, fez ameaças. Por fim se acalmou e nos chamou para almoço. Mas, transcorridos os dias, notei que o homem estava enciumado com a atenção que Jandira me dava. Corriqueiramente passou a me levar ao milharal forçando-me, assim, a me distanciar da minha amiguinha. Tanto fez, então, que Jandira acabou por desaparecer do barraco. Fiquei triste e amuada e o homem se apercebeu disso, mas demonstrava felicidade pela ausência de Jandira, embora disfarçasse.

- Bobagem! Ela é índio e índio gosta de ficar no mato. Provavelmente anda por ai caçando e logo voltará, você vai ver.

Coincidiu que com a ida de Jandira, desapareceram do paiol um pequeno machado lavrador e um dos facões mateiros do homem. Mas, passados alguns dias, ao entrar no paiol para buscar o milho para as galinhas, encontrei as ferramentas desaparecidas novamente no seu

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devido lugar. Fiquei intrigada, porém nada falei ao homem e fui alimentar as aves.

- Uhhh! Uhhh! Sou o Curupira! Vim buscar você.

A voz gutural vindo de trás do paiol me assustou momentaneamente, mas logo percebi que se tratava de Jandira. Corri ao seu encontro e a abracei carinhosamente.

- Sua fujona! Saiba que me deixou muito triste.

O homem, por sua vez, ao ver Jandira ficou nervoso, demonstrou contrariedade, não escondendo a sua irritação. Naquela tarde me forçou a ir consigo capinar o milharal. No caminho olhou para mim com raiva, grunhiu entre os dentes.

- Não gosto mais de Jandira!

Fiquei assustada com o seu jeito de falar, parei amuada na trilha que nos levava à roça.

- Vamos logo!

E vendo que eu me sentara na areia e ali teimava a permanecer, fez um gesto com o braço demonstrando impaciência e seguiu a passos largos, já não fazendo mais caso de mim. Logo após o homem desaparecer ao longo do caminho, percebi a vegetação ao meu lado se sacudir. Levantei-me assustada já disposta a correr, quando Jandira saltou do meio do mato no caminho, à minha frente.

- Venha!

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Acenou alegre para mim e voltou a se meter entre as moitas de jaborandi, célere correndo em direção à mata. Corri também procurando alcançá-la, mas não tinha a mesma destreza de Jandira e acabei por perder-me no interior da selva. Quando já entrava em desespero me tomaram pela mão.

- Você? - Sorri de satisfação por ver o meu amigo palhaço grande à minha frente.

- Fiques calma! Nada te ameaça, nada de mal te sucede. Teu pesadelo está por terminar e a felicidade será o teu maior prêmio!

E aos poucos se esvaeceu misteriosamente, só permanecendo o seu sorriso afetuoso a me embalar a alma, a dourar meus olhos de alegria.

- Vamos Aline, o que você está esperando?

Jandira acenava para mim a poucos metros, entre os troncos das árvores gigantescas. Voltou ao meu encontro.

- Você está estranha! Parece até ter visto Aruanã?

E me puxou pelo braço ajudando-me a acompanhá-la, fomos descendo a colina até chegarmos ao ribeirão. Jandira auxiliou-me a atravessá-lo por sobre um grande tronco tombado que, feito ponte, ligava as duas margens; descemos algumas centenas de metros e saímos numa clareira ao lado do rio Paraíso. Vi, vislumbrada, uma choupana redonda sustentada

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por troncos, cujas paredes e teto se compunham de folhas de coqueiro cuidadosamente atadas sobre varas.

- Bem vindo à minha oca!

Sorriu Jandira para mim, graciosamente fazendo sinal com as mãos e levou-me ao interior da construção.

- Eu mesma a fiz. – Falou-me orgulhosamente. - O que você acha?

O interior da choça estava vazio. Havia apenas um pouco de capim seco próximo à entrada, onde Jandira às vezes se deitava para tirar uma soneca sossegada.

- Venha, vamos nadar! – E me agarrou pelo braço levando-me à margem do rio. As águas eram tumultuosas, quebravam-se nas grandes pedras e formavam corredeiras perigosas. Tive medo, mas Jandira me tranqüilizou. Poucos metros abaixo as rochas formavam como um muro contra as fortes águas do rio e providenciavam uma espécie de lagoa, onde as águas, serenas e aquecidas pelo sol, convidativas repousavam. Jandira subiu numa das pedras de lá se atirando nas águas, num mergulho voluptuoso de três metros de altura, desaparecendo por alguns minutos nas profundezas da lagoa. Fiquei apreensiva pela minha amiguinha, mas quando a vi surgindo a poucos metros abaixo, sorrindo bati palmas a aclamando e feliz tranqüilizei-me.

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- Venha, Aline! Mergulhe você também!

Mas com receio das águas limitei-me a sentar-me numa pedra e ficar apreciando minha amiguinha na sua regalia. Cerca de meia hora após, Jandira saiu da lagoa.

- Aqui é rasinho! - Mostrou-me um ponto da lagoa onde se via o fundo de pedras polidas e brilhantes. - Venha nadar também!

Tirei o vestido e entrei na água, mas escorreguei e cai de bruços me sentando a seguir no fundo da lagoa. Jandira riu-se a vontade e me ajudando a levantar foi levando-me para o interior do remanso, onde a água era mais profunda e se propôs a ensinar-me a nadar. Depois, saímos da lagoa e nos sentamos sobre as grandes pedras à margem do rio. Jandira me falou com toda seriedade deste mundo.

- Este é o rio Amazonas!

Em seguida sorriu fazendo um gesto sobre a própria cabeça, insinuando birutice.

- Mas bom seria fosse mesmo o rio Amazonas! – E continuou fantasiando. - Veja ali as vitorias regia e lá no meio, bem lá no meio a perder de vista, os jangadeiros. Estão à caça do peixe-boi, buscam fisgar os botos cor-de-rosa. – E fazendo gestos com suas mãos. - Xôôô! Xôôô! Fujam do perigo, amiguinhos, fujam!

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Ficou com o olhar alongado como se realmente visse o que dizia. Olhou-me a seguir e sorriu graciosamente.

- “Contam que certa vez uma linda índia, apaixonada, quis transformar-se em estrela. Na esperança de ver seu sonho realizado, a jovem lançou-se às águas misteriosas do rio, desaparecendo em seguida. Iaci, que presenciou tudo, num instante de reflexão, apiedou-se dela por ser tão linda e encantadora. Deu-lhe como prêmio a imortalização aqui na terra. Por não ser possível levá-la para o reino astral, transformou-a em estrela das águas (vitória-régia), doou-lhe um adorável perfume e espalmou-lhe as folhas para melhor refletir sua luz, nas noites de lua cheia”.

- Que belo, Jandira!

Ao voltarmos, já de tardezinha, deparamo-nos com o homem postado à porta à nossa espera. Vi os seus olhos vermelhos, seu rosto transtornado pela angústia. Fomos alimentar os animais, como fazíamos todas as tardes. Testemunhei assim, durante os dias que se seguiram, uma tristeza muito grande no homem. Quase não nos falava e o percebi várias vezes chorando. Nas noites sem lua nos abandonava no barraco e as passava vagando pelos matos, só retornando já sol a pino. Mas eu já me acostumara com essa rotina. Então

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Jandira e eu levantávamos bem cedinho, íamos à sua oca e lá passávamos horas esquecidas dos problemas e do mundo. Chamou-me, o homem, certa manhã e fomos ao milharal. Foi calado por todo o caminho, remoendo seus pensamentos. Ao chegarmos levou-me para dentro do barraco e sentou-me no banquinho de pau. Permaneceu calado um bom tempo antes de dizer.

- Vamo-nos embora daqui!

Fiquei sem o entender.

- Não quero perder você novamente, percebe?

Falou-me o homem querendo impor dureza à sua voz embargada por aflição e emoção, quase chorando.

- Os demônios a querem roubar de mim, novamente! Agora se disfarçam em Jandira para realizar o seu intento. Querem me roubar você... Querem roubar!

Ficou alterado, se jogou no chão do barraco se contorcendo como se atacado por uma crise epiléptica. Eu fiquei assustada, pois nunca presenciara algo assim em todo o tempo que estava na sua companhia. No instante seguinte o homem se recobrou, sentou-se no chão e me olhou. Seu rosto agora estava completamente transfigurado e na boca a saliva espumava e escorria-lhe pelos lábios. Trêmula, levantei-me com intenção de sair da sua presença. Ainda sentado no chão abraçou-me chorando como doido.

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- É o azul dos seus olhos que me embriaga a alma, me alucina e me confunde. Você não é Ana Clara! Não é! Mas mesmo assim não quero perdê-la, entende? Vamos embora para longe daqui, vamos embora!

Empurrei sua cabeça, ansiosa por me libertar dos seus rudes braços. Corajosamente retruquei:

- Solte-me! Não irei com você. Você me dá medo! Quero voltar para casa, para minha madrinha Isaura!

O homem soltou-me, levantou-se cambaleante como se estivesse bêbado. Aproveitei e corri para fora do barraco indo esconder-me no interior do milharal. Estava assustada e angustiada. Envolto na sua luz verde o palhaço grande surgiu à minha frente, apenas sorriu-me e sumiu repentinamente. Então ouvi o homem me chamando. Percebi que me procurava por entre as touceiras de milho. Corri para a floresta próxima e me ocultei no meio das árvores.

- Aline! Estou aqui.

Jandira, a boa e prestativa indiazinha viera ao meu socorro.

Voltamos às primeiras horas da tarde. O homem estava no meio do capinzal, entre os cabritinhos que ele tanto gostava. Ao nos ver chegar veio ao nosso encontro, mas passou diante de nós calado

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e entrou no casebre. Nos pomos a espiá-lo pela porta. O vendo a arrumar os seus livros e pequenos objetos na valise de viagem, fiquei penalizada por ele. Jandira, ao perceber, me chamou e nos afastamos até o chiqueiro dos porcos. Foi, então, que ouvimos gritos medonhos dentro do barraco. Antes que pudéssemos nos aproximar da porta o homem já saltara ao quintal, completamente alucinado, facão mateiro erguido a sangrar o espaço com sua lâmina afiada e investiu em nossa direção. Percebendo que sua intenção era atacar Jandira, me pus a sua frente no intento de protegê-la. O homem me empurrou com violência e eu, perdendo o equilíbrio, caí na lama onde os porquinhos se refrescavam nas tardes quentes, enquanto Jandira desesperadamente corria entre os limoeiros e dali para a mata pouco distante, desaparecendo entre o arvoredo. O homem não me socorreu; partiu em perseguição à minha amiguinha. Senti uma espécie de desânimo, a cabeça girando; fiquei ali deitada no charco. Senti me tocarem o ombro, ouvi a voz amiga do palhaço grande falando-me, mas não o vi.

- Ânimo! Precisas estar forte. Não desanimes, pois tudo é passageiro. Vamos, força!

Mas senti que as minhas forças minguavam e não consegui levantar-me. Não sei quanto tempo fiquei ali caída entre os porquinhos, quando ouvi Jandira me chamando.

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- Aline! Acorde Aline! Temos que ir embora. O homem já está voltando.

Minha amiga lograra o homem no interior do mato e retornara; agora me sacudia. Agarrou-me pela mão, esforçando-se para ajudar a me levantar. Levou-me para o matagal próximo até eu melhorar e depois fomos para o seu esconderijo.

- Vamos ao rio, para que você se limpe.

Logo mais ouvimos barulho de passos nas folhas secas da clareira. O homem nos localizara; chegou com os dedos entre os cabelos, parecia arrependido e aflito, talvez com intenção de nos pedir perdão. Entrou na oca, mas saiu a seguir. Jandira me abraçou e pediu-me que ficasse em silêncio. Deixamos o rio nos levar, minha amiga me auxiliando para que eu não sucumbisse nas águas profundas e corredias. Logo abaixo os arbustos deitavam seus ramos sobre o leito do rio; ocultamo-nos atrás das verdes ramagens e ficamos quietinhas. O homem andou nos arredores da choça a nossa procura. Momentaneamente tomado de rancor, se pôs a desmantelar a oca que Jandira fizera com tamanho esmero e, tomando parte do capim seco o incendiou e atirou sobre a cobertura de folhas de coqueiro. Logo mais a oca era completamente consumida pelo fogo, mas ao contrario da euforia no incêndio da casa onde nascera Ana Clara, o homem foi acometido de enorme amargura e tristeza. Tomado de desespero e melancolia fugiu para o

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interior da mata, perdendo-se no ermo e solidão daquela imensidão verde que sempre lhe dera alegria e motivos para viver e, agora, tornara-se a sua ruína e maldição. Jandira, aflita, saiu das águas do rio e correu se aproximando da sua querida oca em chamas. Vi a decepção estampada na sua face morena, triste como se perdesse um ente muito querido. Um misto de mágoa e rancor lhe dominando o espírito ante o inconcebível, perante o desproposito daquele ato tão mesquinho. A abracei e com os meus dedos lhe tirei as lágrimas que escorriam por seu lindo e querido rostinho.

- Vou-me embora! Nada mais me prende a esse perverso lugar dominado por Anhangá.

E virando-se séria para mim.

- Você vem comigo!

- Não, sem a minha Colinho. – Implorei.

Jandira me olhou com desprezo, virou-me as costas e sem nada mais dizer, se foi. Decepcionada eu a vi desaparecer por entre os troncos das grandes e sombrias arvores. Pus-me a chorar, sentindo-me outra vez ao desamparo, abandonada naquele deserto de almas que me circundava. Novamente senti o toque no meu ombro.

- Não chores! Jamais estás sozinha, penses assim!

O meu amigo palhaço grande estava ao meu lado sorrindo, mas em seguida desapareceu magicamente. Olhei ansiosa na direção que

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Jandira se fora; oculta atrás do tronco da peroba, apenas seu rostinho moreno e sorridente se mostrava. Saltou agilmente e correu em minha direção me abraçando com força, quase a me derrubar tamanha sua impetuosidade.

- Lhe enganei! – Gritou. - Acreditou, mesmo, que eu me fosse sem você? Se o fizesse eu não seria Jandira; seria um... - Piscou matreira para mim e sorriu. - Um rhaebo guttatus!... Vamos lá buscar a sua Colinho. E agarrando-me pelo braço, me arrastou pela mata em direção à trilha que nos levaria ao casebre.

Jandira parou um pouco antes de chegarmos à trilha, fez sinal com os dedinhos pedindo silêncio. Armados de carabinas e revólveres, três homens passaram por nós pelo caminho que levava ao casebre. Os deixamos ir adiante e os fomos seguindo, com cuidado para não sermos percebidas. Chegaram ao barraco e entraram sem se anunciarem, mas o homem não estava. Demorou ainda algumas horas para chegar e surpreso foi dominado pelos agentes que se identificaram.

- Temos uma ordem de prisão preventiva decretada pela justiça da comarca.

O homem permaneceu calado, entregou-se ao desânimo como se estivesse muito cansado. Sentou-se no banquinho de madeira, reclinou a cabeça sobre o peito e levou ambas as mãos aos cabelos os revirando, num gesto lhe peculiar de

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aflição e nervosismo. O policial ao seu lado ficou penalizado.

- Se o senhor colaborar conosco e permanecer ai sentado, não o algemaremos como as normas determinam.

Enquanto isso se sucedia, os outros dois agentes da lei vistoriavam o casebre. Um dos policiais esparramou as palhas da tarimba, derrubando minha bonequinha no chão. A chutou próximo à porta com desprezo. Fiquei com ódio dele, me precipitei a entrar no barraco, mas Jandira me segurou.

- Espere um momento! Temos que aguardar uma ocasião propícia.

O policial então veio até o homem.

- Onde o senhor escondeu as armas? – Perguntou-lhe.

- Não as tenho! Só possuo ferramentas de trabalho e facas de cozinha.

Respondeu-lhe o homem. A tarde caia rapidamente; não demoraria a anoitecer e o tempo ameaçava chover.

- Vamos passar a noite aqui. Partiremos ao alvorecer.

Comunicou o inspetor. E enquanto um deles foi ao fogão preparar algum alimento, os demais saíram do barraco e o contornaram procurando algum indício de arma escondida. Então viram o paiol e o foram inspecionar. Aproveitei e corri para

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dentro do casebre indo buscar a minha Colinho, mas antes de sair abracei-me ao homem. Este me pegou no colo, olhou meus olhos, sorriu e beijou meu rosto com carinho.

- Adeus Ana Clara! Se cuide, minha pequena.

Saltei do seu colo e agilmente corri porta afora, fugindo para os limoeiros onde Jandira me aguardava. O policial tapou o caldeirão onde remexia o ensopado e olhou intrigado para o homem.

- É louco, o pobre!

Mas notou, ao olhar o chão do casebre, o sumiço da bonequinha. Sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha, chamou os companheiros.

- Tenho certeza que a chutei aqui! Desapareceu misteriosamente!

- É preciso nos apressar, antes que fique muito escuro!

Jandira me arrastava por um braço, no interior da mata. À margem do rio, por um capricho da natureza, grandes pedras se amontoavam e curiosamente formavam uma pequena e graciosa gruta.

- Vamos passar a noite aqui, pois é mais seguro!

Sentamo-nos numa pedra e Jandira, ao perceber que eu tremia, abraçou-me carinhosamente me aconchegando junto ao seu

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peito. No intuito de me acalmar minha amiga pôs-se a narrar:

“Os índios Carajás, no princípio do mundo, viviam dentro do furo das pedras. Não conheciam a Terra. Eram felizes e tinham a eternidade, vivendo até avançada velhice, só morrendo quando ficavam cansados de viver. Um dia, os Carajás decidiram abandonar o furo das pedras, na esperança de descobrir os mistérios da Terra. Apenas um deles, por ser muito gordo, não conseguiu passar pelo furo da pedra, ficando nele entalado. Na Terra, que trazia uma escuridão sem fim, os índios percorreram todos os lugares. Descobriram frutos e comidas. Compadecidos do companheiro que ficara entalado no furo da pedra, levaram-lhe os mais saborosos frutos e um galho seco. Ao ver aquele galho seco, o índio entalado observou: “O lugar por onde vocês

andam não é bom. As coisas envelhecem e

morrem. Veja este galho, envelheceu. Não quero ir

para um lugar onde tudo envelhece. Vou voltar. E

vocês deviam fazer o mesmo!” E o robusto carajá desentalou-se e voltou para dentro da pedra. Os outros continuaram a percorrer a Terra, que se encontrava nas trevas. Um menino carajá, junto com a amada, percorria a Terra em busca de alimentos. Como não havia luz, a amada sangrou as mãos nos espinhos, quando colhia frutos. O menino, na escuridão, comeu mandioca brava. Envenenado pela raiz, o menino carajá deitou-se

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de costas, a passar mal. Vários urubus começaram a andar em volta do seu corpo. Um dos urubus disse: “Ele não está morto, ainda move o corpo.” Outro urubu replicou: “Não, ele está morto.”Todos os urubus opinavam, uns achavam que o menino estava morto, outros achavam que não. Para que a dúvida fosse esclarecida, foi chamado o urubu-rei, com o seu bico vermelho e penugem rala na cabeça. Considerado o mais sábio dos urubus, a ave imponente declarou: “Ele está morto.”E foi pousar na barriga do menino. Inesperadamente, o menino carajá, que se fingia de morto, pegou o urubu-rei pelas pernas e o prendeu nas mãos. A ave esperneou, debateu-se, mas não se libertou das mãos do menino. “Quero os mais belos

enfeites.” Disse o menino ao urubu-rei. A ave, para ser libertada, trouxe as estrelas no céu como enfeites aos olhos do menino. As estrelas eram belas, mas o mundo continuava escuro “Quero

outro enfeite.” O urubu-rei trouxe a lua. E a Terra continuava escura. “Ainda é noite. Quero outro

enfeite, este também não serve.”Então o urubu-rei trouxe o sol. E o mundo ficou cheio de luz. O urubu-rei ensinou ao pequeno índio a utilidade de todas as coisas do mundo. Feliz, o menino soltou a sábia ave. Só então o carajá se lembrou de perguntar ao urubu-rei o segredo da juventude eterna. No alto do céu, a ave contou-lhe aquele segredo, mas voava tão alto, que todos ouviram a resposta, as árvores, os animais, menos o menino. E por não ter

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ouvido o urubu-rei, todos os homens envelhecem e morrem”.

Um relâmpago clareou a entrada da gruta seguido do trovão a ribombar nos confins da mata. Abracei-me a Jandira procurando proteção junto ao seu corpo. A chuva principiou serena, sem ventos fortes, mas eu tinha medo.

Passaram-se tantos anos! Nem sei porque teimo em relembrar todos esses fatos. Somente retornei à casa da minha mãe aos treze anos de idade, quando um sertanista da equipe de Dr. Ambrosio me localizou num escritório da FUNAI, para onde tinham me levado. Minha madrinha Isaura morrera há anos… Disseram-me de desgosto, arrepentida por fatos do seu passado. Minha mãe adoecera gravemente e sem ter quem lhe administrasse cuidados, minha tia Michele deixara o convento e viera morar com ela para servir-lhe de enfermeira. Lembro-me, ainda, da manhã em que entrei no seu quarto depois de tantos anos sem nos vermos, me aproximei do seu leito de enferma e beijei-lhe a testa. Seu rosto, abatido pela doença e pelo cansaço, iluminou-se.

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- São lindos! Como o céu pleno de luz de uma manhã primaveril.

Atentou-se, porém, à minha tez agora juvenil, maltratada pelas acnes. Minguou repentinamente o sorriso no seu rosto, tomando então uma expressão de ressentimento e dúvida. Sacudiu a cabeça negativamente.

- Logra-me esse azul. Você não é Aline!

Não me casei. Não que tenha me traumatizado com as atribulações da minha infância, mas simplesmente porque julguei não conveniente. Quanto às previsões de felicidade do palhaço grande, não tenho certeza se concretizaram. Talvez sim, pelo fato de eu ter vivido uma experiência única em minha vida e, mais certamente, pelo fato de não sentir-me mesmo uma infeliz. Ou, quem sabe, apenas as fez para dar-me ânimo, evitando-se, assim, que eu me levasse ao desespero. Valeram! Como valeram! Da aprendizagem na companhia do homem muita carrego pelos meus dias: o amor à terra e à natureza principalmente e os docinhos de mamão e de abóbora adoçados ao mel, que ele fazia com tamanho capricho e que, ainda hoje, os faço para ganhar o meu pão de cada dia. Ah! Esquecia-me! Conheci Ana Clara! Veio, há uns dois

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anos, rever o local onde nascera e conhecer velhos amigos da sua mãe. Ao nos encontrarmos a abracei e lhe falei, com um sorriso, que eu já tinha sido ela. Olhou-me com desconfiança!... Talvez tenha me julgado louca.

Não sei quantos dias vagamos pelo mato, porém Jandira sabia onde punha o seu nariz. Milagrosamente atravessamos charcos que pareciam não ter fim e rios cujas correntezas ansiavam por nos afogar. Mas a indiazinha era uma heroína!... A minha heroína! Procurou os melhores caminhos para percorrermos; soube achar, no interior da mata, incríveis esconderijos para passarmos as noites protegidas dos perigos. Levantou-me a cada queda e me fez sorrir quando chorava, animando-me com suas fantásticas histórias que, ainda hoje, memorizo e narro às crianças na capela, ao reuni-las para o catecismo, nos finais de semana.

- Psiu!

Jandira me pedia silêncio com um dedinho sobre seus lábios. No interior da mata, vozes e ruídos de muitos homens que se aproximavam. Com a mão feita concha à boca, a indiazinha fez alguns sons guturais imitando piado de algum pássaro da região. No instante a seguir as vozes se calaram e, em retorno, ouvi o mesmo som

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produzido por Jandira por duas vezes, seguido de uma única vez mais prolongado.

- São os meus! Gritou Jandira aos pulos de contentamento. Até mesmo esquecida de mim, correu pela mata em direção as pessoas que se aproximavam, festiva com o reencontro. Um dos índios a elevou ao ar num rodopio e em seguida a trouxe ao colo, a abraçando com alegria. Então vieram ao meu encontro.

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FINAL

O carcereiro olhou, por entre as grades da cela, o homem se debatendo sobre o estrado que lhe servia de cama, após o medico plantonista aplicar-lhe uma injeção com calmante. Ele, força de hábito insensível aos sofrimentos dos presidiários, se compadeceu do homem.

- Delira! À quais alucinações é acometido o pobre que o transtornam desse jeito?

Nesse exato momento, o delegado falando com um dos seus soldados, indagava pelas crianças.

- Mas haviam vestidinhos dentro de uma caixa!

O policial se irritou, encarou o seu superior com nenhuma paciência.

- É um louco! Não existem tais crianças! Diz o maluco que uma delas é uma indiazinha!... Como se existissem índios por aqui num raio de setenta léguas!

Olhou com sarcasmo para o delegado que não escondia sua preocupação e riu com escárnio e menosprezo.

- E mais, que é da tribo Aicanãs! Esses índios vivem distantes mil e quinhentos quilômetros, no interior de Rondônia!

Porém lembrou-se do sumiço misterioso da bonequinha, sentiu novamente aquele estranho

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calafrio percorrer-lhe o corpo. Ficou sério, falou em voz baixa:

- Realmente aconteceu lá, naquele dia, algo misterioso. Mas não sei explicar o quê!

Tratou de se recompor perante o seu superior, pois percebeu que fraquejava na sua posição diante daquele melindroso caso. Mas continuou.

- Penso, agora, que prendemos o sujeito errado. As vítimas, embora tendo sido encontradas com seus corpos retalhados a facão, foram mortas com tiros e não encontramos nem mesmo uma espingarda de chumbinhos naquele barraco.

Dias após, o carcereiro abriu a grade da cela do homem.

- Venha! Seu pai aqui está e quer vê-lo.

O homem sentiu seu corpo estremecer. Toda ruindade dos seus anos de vida afluiu à sua mente ao ouvir aquele simples nome, pai. Apenas balbuciou:

- Tivesse sido um pai!

Negou-se a levantar para acompanhar o carcereiro que o agarrou por um braço e o sacudiu.

- Vamos! Venha logo! Não há de fazer o importante industrial perder seu tempo!

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Rastejou-se, então, até a sala de visitas acompanhado dos policiais. Deparou-se com seu pai, como nos tempos da sua infância, sentado à poltrona da sala lendo jornais. O elegante e bem afortunado homem de negócios, impecavelmente trajado no seu terno de linho preto, sequer levantou a cabeça para olhá-lo. O homem permaneceu ali em pé, abobalhado e infeliz, à sua frente. A ordem de seu pai foi ríspida e seca de quaisquer vestígios de amor ou carinho:

- Levem-no!

Rapidamente os policiais o imobilizaram para que os enfermeiros o envolvessem numa camisa de força e o arrastassem até a ambulância.

Passou-se o tempo. Foram cinco anos de tratamento intenso e tantas vezes doloroso numa clinica de recuperação de doentes mentais. Mas, aparentemente, o homem estava curado e agora recebia alta.

- Parabéns! – Sorridente o médico chefe do manicômio o felicitava. - Está completamente curado, já pode voltar para sua casa.

Sua casa!... Com certeza o médico insinuava a casa de seu pai, o mentor de seus medos e pesadelos, o criador dos espectros que o perseguiram por toda a vida. O homem calmamente olhou para o diretor do hospício e

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sorriu... Um sorriso costumeiramente triste. Sussurrou a seguir:

- Minha casa!...

Então o homem voltou. Veio aos farrapos, doente e emagrecido pela fome e pelo desamparo humano. Mas chegou... Deparou-se com seu barraco arruinado, suas roças tomadas pela selva e o que mais lhe judiava... A falta de Ana Clara. Ergueu sua cabeça ao céu tinto de azul tão fascinante, mas a baixou em seguida para entornar seu olhar sobre o verdor selvagem das matas que o circundavam. Estirou seu dedo e mostrou para si próprio um ponto distante naquelas selvas quase não pisadas pelo ser humano.

- Vou buscá-la! Eu sei onde ela se encontra! Somente eu sei como chegar lá.

Já na aldeia, Aline crescera na companhia de Jandira. A sábia indiazinha, nas ocasiões de visita de homens brancos à reserva, ocultara Aline na selva, logrando assim as equipes da FUNAI ou de pesquisadores depararem com a menina branca entre os nativos. Mas agora Jandira ficara adolescente, já tinha o seu amado e brevemente se casaria. Sua atenção se desviara ao jovem noivo e Aline, sofrendo as saudades dos seus,

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decidiu que chegara a hora de voltar para casa, rever a madrinha Isaura, beijar sua mãe. Foi nesse ínterim que o pajé a chamou à sua oca. Os índios tinham localizado um homem agonizante nas proximidades da aldeia, o trouxeram ao pajé e o branco doente pedia para vê-la. Aline chegou apreensiva à entrada da oca, seu coração pressentindo de quem se tratava o enfermo que viera à sua procura. Presenciou o homem deitado sobre palhas, sofrendo as ânsias da morte.

- Meu pai!

Correu pressurosa a ele tomada de lágrimas que lhe entristeciam a linda face adolescente e ajoelhou-se ao seu lado, o abraçou, beijou-lhe as mãos pálidas e trêmulas pela febre da malária. Aquelas mesmas mãos outrora fortes e determinadas, generosas nos mimos e fiéis escudeiros ante os perigos e traições da selva. As mãos de um pai. Naquele momento triste a amorosa Aline sequer lembrou-se das agruras, dos medos e constrangimentos passados na sua companhia. Seu coração afetuoso fez questão de afluir, à sua mente, somente os bons e ternos momentos na sua convivência com o louco. O homem, no entanto, ciência tinha da própria maldade. Num esforço supremo olhou o rosto da menina e chorou. Então, na sua confusão mental habitual, pediu perdão à Ana Clara e a seguir pediu perdão à Aline... Mas agora o homem estava feliz. Sorria ao mesmo tempo em que

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chorava eufórico como um menino premiado. Morreu com a cabeça reclinada no colo da suposta filha, seu olhar derramando amor e afeto àquele jovem rosto tão querido. Suas últimas palavras foram pronunciadas com toda emoção e maior carinho que se pode deparar nesse nosso mundo tresloucado:

- Como são azuis, meu Deus! Como são belos!

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Dediquei à pessoas que foram e são importantes para mim :

Antonio Gonçalves e Zulmira Benatti, meus pais (saudades).

Meu irmão Antonio Umberto (meu ídolo nos tempos de meninice) minhas irmãs Tereza Aparecida, Ana Irailde e Maria Helena (saudades), Zulmira Flora e Maria Ângela.

Meus professores: Dinorah Pinheiro com carinho, Dinah Pinheiro, Alice, Temístocles Mendes Vilella, Edith de Sousa, Antonio Bitonti (que nos atirava tampas de caneta e giz na cabeça), Alceu José Bermejo (orador magnífico), Luiz Fabretti, Jaime Müller.

Colegas do Escritório de Contabilidade São Carlos: José Milton Frederich (que me deu a primeira oportunidade de trabalho nos idos anos 1963, quando o Escritório se chamava São José), Tuyuki Gondo, Perola, Massami Araki, Antonio Valentim Teixeira (o Maurinho), Edson Evangelhista de Almeida, Bira, Ditão do Cine Sertaneja e João Maturano dos Reis.

Aos meus parentes e demais amigos de Sertaneja, Londrina e Curitiba.

A quem me foi sincera:

Mirian Estela Siqueira (Como eu poderia me esquecer?)

A quem eu amo:

Gretchen Regina, Zulmira Angélica, Glória Maria, Angela Aparecida, Leda Maria, Raquel Angelita, Guglielmo, Cleyton e Eric

Que estão distantes, mas não do meu coração: Zumira e Cristiane.

E à todos os meus sobrinhos e sobrinhas pequerruchos que alegram a minha velhice. José

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Falem comigo: [email protected]

[email protected]

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