aline aparecida dos santos silva dolores – um ensaio ... · agradecimentos a pedro augusto e luis...

158
Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio fotobiográfico PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Novembro de 2014

Upload: lambao

Post on 07-Feb-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

Aline Aparecida dos Santos Silva

Dolores – um ensaio fotobiográfico

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Novembro de 2014

Page 2: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

Aline Aparecida dos Santos Silva

Dolores – um ensaio fotobiográfico

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Letras da Universidade Federal de

São João del-Rei, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica

da Cultura

Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Orientadora: Adelaine LaGuardia

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:

TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Novembro de 2014

Page 3: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

A minha mãe, por toda a sua

luta solitária que me fez

chegar aqui.

A Luis Mauricio, que me deu

olhos para ver as luzes da

cidade-mundo.

Page 4: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

AGRADECIMENTOS

A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a

esta pesquisa. Palavras não seriam o melhor caminho para tamanha gratidão.

A Manuel Graña Etcheverry, Manolo, mestre, amigo – o mais sábio entre os

sábios, com um carinho sem fim, em seus 98 anos.

À Adelaine LaGuardia, minha orientadora, pela confiança depositada em mim,

desde as pesquisas de Iniciação Científica, e por ter aberto meus olhos para

outros horizontes.

À Eneida Maria de Souza, por sua generosidade, seus ensinamentos e seu

permanente apoio.

A todos os professores do curso de Letras da UFSJ.

A Edmílson Caminha, pela entrevista a mim concedida e pelas excelentes

indicações de leitura.

À Eliane Vasconcellos, por suas preciosas pesquisas de mestrado e doutorado

compartilhadas comigo.

À Silvana Mendes, poeta de minha terra e minha mãe de coração.

A minha irmã, que soube entender minha ausência, durante todos estes anos

de estudos.

A meu pai, pela amizade que aprendemos a cultivar.

A Wesley, pelo auxílio técnico, tão útil a esta pesquisa, e pelas valiosas

indicações.

Page 5: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

Aos amigos Aline Ângelo, Aline Silva, Deise, Denny, Edevaldo, Guilherme, Igor,

Josi e Laís, pelo companheirismo, pela força e pelas discussões, sempre ricas,

que mantemos.

À UFSJ e seus funcionários, por todo o apoio que me deram.

À Fundação Casa de Rui Barbosa e ao Instituto Moreira Salles, pelo cuidado

com a Memória de nosso país.

À CAPES, pelo compromisso com os pesquisadores e, em particular, pela

bolsa que me concedeu, sem a qual, este trabalho não teria sido possível.

Page 6: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

RESUMO

Nesta dissertação de mestrado, apresentamos um ensaio fotobiográfico sobre

Dolores Morais Drummond de Andrade, mineira, nascida (aparentemente) no

último ano do século XIX, que passou praticamente toda sua vida no Rio de

Janeiro. Para a realização deste trabalho, que não pretende ser uma biografia

convencional, nos baseamos, principalmente, em documentos e entrevistas.

Analisamos todo esse material à luz dos estudos relativos ao trato de fontes

primárias e das críticas biográfica e feminista.

Palavras-chave: crítica biográfica; crítica feminista; Dolores Morais Drummond

de Andrade; fotobiografia; gênero

Page 7: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

RESUMEN

En esta disertación de maestría, presentamos un ensayo fotobiográfico sobre

Dolores Morais Drummond de Andrade, mineira, nacida (aparentemente) en el

último año del siglo XIX, que pasó prácticamente toda su vida en Río de

Janeiro. Para la realización de este trabajo, que no pretende ser una biografía

convencional, nos basamos, principalmente, en documentos y entrevistas.

Analizamos todo ese material a la luz de los estudios relativos al trato de

fuentes primarias y de las críticas biográfica y feminista.

Palavras clave: crítica biográfica; crítica feminista; Dolores Morais Drummond

de Andrade; fotobiografía; género

Page 8: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12

OS BASTIDORES DA PESQUISA ................................................................... 20

SÃO JERÔNIMO, SANTA BÁRBARA .............................................................. 32

DOLORES, DOLARES, DONDOLÔ ................................................................. 47

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 104

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 109

ANEXOS ......................................................................................................... 114

ENTREVISTAS ............................................................................................ 115

CARTAS ..................................................................................................... 133

UMA HISTÓRIA EM FRAGMENTOS .......................................................... 150

DE CARLOS PARA DOLORES ............................................................... 151

DE DOLORES PARA CARLOS ............................................................... 157

Page 9: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

Dolores – um ensaio fotobiográfico

Women will starve in silence until new stories are created

which confer on them the power of naming themselves.

Sandra Gilbert e Susan Gubar

Page 10: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

A mulher e a casa Tua sedução é menos de mulher do que de casa: pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la. Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda; pelos espaços de dentro: seus recintos, suas áreas. organizando-se dentro em corredores e salas, os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem efeito igual ao que causas: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la. João Cabral de Melo Neto

Page 11: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

Fig. 1 Retrato de Dolores feito pelo pintor russo D. Ismailovitch, 1943. Arquivo da família.

Page 12: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

12

INTRODUÇÃO

De cuanto fue nos nutrimos.

Gabriel Celaya

Eis aqui um breve ensaio sobre a vida de Dolores Morais Drummond de

Andrade, composto por fotografias, dados e algumas lembranças de pessoas

que a conheceram. Desde já avisamos que nem sempre os ordenamos

cronologicamente: não se trata de uma biografia convencional. O intuito é

expor episódios e imagens, para que, com eles, cada um elabore seu próprio

perfil de Dolores. Em outras palavras, os exibimos como se fossem pontos no

espaço; ao leitor, cabe uni-los para conformar sua própria “aproximação

poligonal” de algo altamente não linear como é a vida de uma pessoa. Cada

qual, com sua história e sua visão de mundo, comporá seu contorno particular

da nossa personagem. Como bem afirma Virginia Woolf, os fatos de uma vida

não são como os da ciência e estão sujeitos a mudanças de opinião e, por sua

vez, as opiniões, como os tempos, mudam.1

Advertimos também ao leitor do (quase inevitável) risco que corremos ao

longo do trabalho de, constantemente, vincular a pessoa de Dolores à de

Carlos Drummond de Andrade, seu companheiro de quase sete décadas. Na

medida do possível, tentamos evitar essa contingência, mas, como se

compreenderá, nem sempre o conseguimos, já que praticamente toda a

documentação existente sobre ela foi compilada por ele. Podemos garantir,

isso sim, que fizemos tudo o que ao nosso alcance esteve para que a figura de

Carlos não ofuscasse a de Dolores. Como afirma a pesquisadora australiana

Sue Mckemmish (2013), “a biografia só pode ser entendida – trazida à vida no

presente – quando seu ‘objeto singular’ é posto em relação com outras

pessoas – quando se define seu lugar nas redes intrincadas que compõem as

vidas de outras pessoas” (p. 29).

Tampouco podemos deixar de mencionar que analisamos a vida desta

mulher - possivelmente nascida no último ano do século XIX (vide p. 37) - com

1A arte da biografia, In: O valor do riso.

Page 13: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

13

a visão das relações de gênero dos dias de hoje. Seja como for, é necessário

ressaltar que nos esforçamos ao máximo por não cair na armadilha de tratar

nossa protagonista pura e exclusivamente com os critérios e valores

contemporâneos. O arcabouço teórico utilizado nesta dissertação é, em boa

parte, formado por trabalhos relativamente modernos da crítica feminista, com

ênfase na visão de gênero de Joan Scott (1995), para quem tal categoria “é

uma forma primária de dar significado às relações de poder e é [também] um

elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças

percebidas entre os sexos” (p. 86). Também nos beneficiamos, direta ou

indiretamente, dos estudos de Zahidé Muzart, Constância Lima Duarte,

Adelaine LaGuardia, Eliane Vasconcellos, Rose Marie Muraro, Cida Golin,

Regina Zilberman e Maria da Glória Bordini.

Entre as referências teóricas, nos respaldamos principalmente em

estudos sobre fontes primárias, relativos ao trabalho com arquivos literários.

Em um de seus artigos sobre as escritoras brasileiras do século XIX,

Constância Lima Duarte afirma que “a misoginia perdura, inclusive nos

arquivos literários” (2011, p. 241). Tal assertiva nos leva a pensar que a

memória, considerando-a como uma construção, compõe-se também de muitas

ausências. Como encontrar essas ausências nos arquivos? Como desvendar

se não os fatos, pelo menos seus indícios, no não-dito, no que não foi narrado?

Segundo Luciana Heymann (2013), o arquivo é uma “metáfora do cruzamento

entre memória, saber e poder; [é um] constructo político que produz e controla

a informação, orientando a lembrança e o esquecimento; e, nas palavras de

Foucault, como a lei do que pode ser dito” (p. 68). Ora, se buscarmos a figura

de Dolores no acervo que o próprio Carlos Drummond de Andrade doou ao

Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, pouco

encontraremos. Tudo indica que o escritor, discreto como sempre foi, preferiu

preservar a vida conjugal nos limites do privado. Por outro lado, não se pode

deixar de notar o cuidado que o poeta itabirano teve de conservar e arquivar

documentos relativos à vida de sua companheira, lidando aí com a “intenção

biográfica”.

Acreditamos que são duas as perguntas que um “arquivista”, um “arconte”

faz, ao decidir tornar públicos eventos de sua vida, parte de sua história: por

Page 14: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

14

que? para quem? A sociedade e as instituições normalmente não se

interessam pela vida do homem comum, de forma que, se queremos buscar os

pequenos eventos do cotidiano e a vida de pessoas mais discretas, anônimas,

primeiro devemos passar pela Lei das pessoas notáveis. O “monumento”, o

arquivo-fonte sempre encobrirá o “fragmento”, o qual só se deixa ver quando

dessacralizamos o arquivo, quando vamos além de sua assinatura. Sendo

Dolores uma personagem exclusivamente do mundo privado, por que torná-la

pública? Analisando-os pela própria lógica tradicional do arquivo, quais eventos

de sua vida mereceriam vir à luz? Como operar numa memória que se pauta

em dois grupos, o dos mortais e o dos imortais, privilegiando estes e

descartando aqueles? Para Fausto Colombo (1991), a seleção é

[...] o âmbito que poderíamos chamar de ativação preventiva do esquecimento (cf. Botinelli-Colombo, 1983): trata-se, de fato, de decidir, diante de um conjunto de dados, eventos ou informações, quais devem ser privilegiados e quais podem ser abandonados ao possível cancelamento (p. 89).

Assim, ao mesmo tempo em que se luta contra o esquecimento, o próprio

esquecimento é instaurado. Nas palavras de Philippe Artières (1998), “a

escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que se

quer dar a uma história” (p. 3). É, pois, nessa classificação, na seleção de

acontecimentos que operam o biopoder, a biopolítica, na expressão

foucaultiana, nesse grande campo de forças que é o arquivo.

Durante esta pesquisa, o arquivo se mostrou como um espaço profícuo

para reflexões sobre as relações e representações de gênero. O primeiro

sintoma do esquecimento é o apagamento de algumas vozes, nos arquivos de

grandes personagens da história. No documentário O fazendeiro do ar, dirigido

por Fernando Sabino e David Neves, nos 11 segundos, que vão do minuto 2:54

ao 3:05, vemos Dolores, ao lado de Drummond, no sofá da sala de visitas. Ela

fala, mas não ouvimos sua voz; ali, quem fala é o poeta: é, unicamente, a voz

dele que deve ser deixada para a posteridade. A voz pública, que ecoa até nos

lugares mais recônditos. Mas entendemos que a ausência de memória também

é memória. E Dolores imprimiu seus rastros na vida de seu companheiro.

Como expõe Isabel Travancas (2013), “um arquivo, ainda que possa parecer

Page 15: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

15

resultado de um esforço individual, raramente o é. Há anônimos que nele

participam, desde os membros da família até a própria equipe das instituições

que os abrigam” (p. 234). Essa voz de silêncio nos levou a buscar nossa

protagonista exatamente onde o arquivo se “anarquiva”. Foi como se ela

mesma nos afirmasse: “Onde não estou, aí existo. Busquem minha voz onde

ela se cala”. Diante de tal situação, é inevitável não mencionar o “mal de

arquivo” que nos acometeu. O texto derridiano é clássico, mas vale repeti-lo:

A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo (en mal d’archive). Escutando o idioma francês e nele o atributo “en mal de”, estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de paixão, é não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva (DERRIDA, 2001, p. 118).

É, pois, esse “mal d’archive” que problematiza o próprio arquivo, o

desestabiliza e o indaga, em seus excessos ou em suas penúrias, embora

também turve a visão do pesquisador. E o filósofo francês esclarece os

sentidos que podem ser dados ao “mal de arquivo”, o que estaria ligado à ideia

daquilo que é, ao mesmo tempo, veneno e antídoto, pensamento presente na

sua obra:

Nada é tanta perturbação e nem mais perturbador. A perturbação do que é aqui perturbador é sem dúvida aquilo que perturba e turva a visão, o que impede o ver e o saber, mas é também a perturbação dos assuntos perturbantes e perturbadores, a perturbação dos segredos, dos complôs, da clandestinidade, das conjurações meio privadas, meio públicas, sempre no limite instável entre o público e o privado, entre a família, a sociedade e o Estado, entre a família e uma intimidade mais privada que a família, entre si e si. A perturbação ou o que em inglês chamamos o “trouble” destas visões e destes assuntos, eu os nomeio com uma palavra francesa ainda intraduzível para lembrar ao menos que o arquivo reserva sempre um problema de tradução. Singularidade insubstituível de um documento a interpretar, a repetir, a reproduzir, cada vez em sua unicidade original, pois um arquivo deve ser idiomático, e ao mesmo tempo ofertada e furtada [sic] à tradução, aberta e subtraída [sic] à iteração e à reprodutibilidade técnica (p. 117-118).

Page 16: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

16

Não podemos afirmar precisamente como esses dois sentidos para o mal de

arquivo nos afetaram. O fato é que a busca incessante pela figura de Dolores

nos conduziu até a formação deste novo arquivo, o ensaio fotobiográfico. Para

compô-lo, passamos também pela seleção, classificação e ordenamento,

trabalho que resultou no esboço de um sujeito, tal como já fora preconizado por

Roland Barthes: dividido, difratado, disperso, espalhado numa dança. A própria

pesquisa foi assim. Encontrávamos um pouquinho de Dolores aqui, um

pouquinho acolá. Por vezes, nada encontrávamos, enfrentando, desse modo, a

desordem, o vazio, o “arquivo do mal” de que trata Derrida. Mas de que outra

forma seria o arquivo dos comuns? Verdadeiro “habitáculo à deriva”, na feliz

imagem barthesiana, um vir a ser, rumo ao não lugar, sem promessa de fixação,

sem promessa de sempre ser e sempre estar.

Todo arquivo traz em si a ausência-presença de um povo menor, traz em

si pequenos gestos que giram ao redor do centro, onde se localizam os

grandes eventos, as medalhas de honra, as condecorações, diplomas, as

vaidades, as máscaras, por assim dizer, daquele que o organizou. Ora, quando

investigamos, por exemplo, uma cidade turística, seria justo e correto analisá-la

apenas por seu centro histórico e outras atrações já preparadas para os olhos

curiosos? Onde a periferia que corta a geografia dessa cidade? Onde o diálogo,

as negociações, os sacrifícios, as concessões dentro dessa cidade?2 Com o

trato de um arquivo literário não é diferente: ele é uma cidade letrada, de onde

emanam a ordem e a lei, mas, se avançarmos um pouco mais nesse labirinto,

2 Curiosamente, tempos depois de escrever esta introdução, nos deparamos com o texto El

advenimiento de Buenos Aires, de Jorge Luis Borges: “Me he referido ya a las dificultades que ofrece una definición de Buenos Aires; buena prueba de ello es la perplejidad que sentimos cuando llega un hombre de otro país y queremos mostrarle nuestra ciudad. ¿Qué ocurre entonces, qué nos ocurre a todos? Inevitablemente, instintivamente, le mostramos lugares inexpresivos o lugares que son típicos en sí mismos, pero no del alma general de Buenos Aires. De todos los paseos y plazas le mostramos el menos íntimo: el parque de Palermo; también le mostramos el centro, que es una suerte de tierra de nadie donde se congrega la gente de todos los barrios. Finalmente, ya que por obra del tango el suburbio de Buenos Aires ha logrado cierta nombradía en el mundo, le mostramos la Boca del Riachuelo, es decir un barrio sui generis, que también para nosotros es forastero. Los otros arrabales de Buenos Aires son casi iguales y poco importa su delimitación topográfica; están hecho de tierra, de llanura, de mucho cielo y ante todo de soledad. Nada de eso mostramos al amigo que visita nuestra república; lo llevamos a un suburbio muy populoso, a un suburbio movido, en el que hay algo que no encontramos en ningún otro: delicados y melancólicos tintes de crepúsculo y de agua. ¿Por qué obramos así? Yo entiendo que lo hacemos porque nos consta que Buenos Aires es incomunicable. Inútil sería mostrar el parque Lezama o tal o cual árbol memorable que hay en la Recoleta o los casi infinitos barrios modestos que integran la ciudad” (2003, p. 29).

Page 17: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

17

é certo que encontraremos traços, pegadas de vozes silenciadas no reino das

letras. E há que se instaurar um diálogo entre essas diversidades culturais que

aí se apresentam.

Façamos ainda uma ligeira análise de gênero sobre o que está nas

entrelinhas dos arquivos. Tomemos como exemplo de arquivo o livro O pai, a

mãe e a filha, de Ana Luisa Escorel. Nessa obra, a autora narra um gesto da

maior importância entre dois grandes intelectuais brasileiros. O pai de Ana

Luisa, Antonio Candido, recebe como presente das mãos de Sérgio Buarque de

Holanda a máquina com que escreveu Raízes do Brasil. Sobre esse ato,

Rachel Esteves Lima afirma, no artigo A máquina da memória em movimento:

Nas mãos de Candido, a máquina com que foi presenteado funciona, pois, não apenas como um instrumento técnico para a datilografia, mas também como uma espécie de “guarda-costas” (KAUFMANN, 1997, p.113) que lhe confere a segurança de trilhar, no campo da literatura, o mesmo caminho que Sérgio Buarque de Holanda acreditou ser capaz de conduzir à evolução do País, no terreno da política (LIMA, 2013, p. 37).

Esse não é, de forma alguma, um gesto gratuito. Temos a máquina em que se

gerou a obra Raízes do Brasil, sendo doada de um intelectual a outro. Herança

cultural custodiada por varões. Teria dona Gilda de Mello e Souza usado

também essa mesma máquina para dar vida a seus trabalhos de pesquisadora

e grande pensadora que foi? Ao falar de Gilda de Mello, Lima ainda relata:

[...] a mãe nos é apresentada como uma pessoa extremamente elegante, mas bastante recolhida e impaciente em relação aos desejos da filha. Não obstante, o cuidado com a criança se manifestava na dedicação com que ela se entregava a tarefas como as de cachear-lhe os cabelos, de costurar com o maior capricho as roupas que vestiam a filha e as suas bonecas, de tomar para si a responsabilidade de passar a ferro as rendinhas de seus vestidos, de levá-la às aulas de balé e de piano, de, finalmente, enxergando na menina um talento precoce que a levaria, no futuro, à profissão de designer, recolher e guardar os desenhos que ela fazia e que hoje ilustram sua autobiografia. Se o pai lhe transmitiu como legado o dom da palavra, é da mãe, que se empenhara em pioneiramente conferir dignidade intelectual a temas considerados de menor importância, como a moda e a fotografia, que Ana Luisa Escorel herda a atenção ao detalhe, a habilidade de costurar sua narrativa com descrições minuciosas... (p. 43).

Page 18: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

18

É do pai, portanto, que a filha herda o dom da palavra. À figura materna cabe

recolher os traços, os rabiscos soltos de Ana Luisa, o que não era palavra,

embora pudesse ser considerado como um discurso. Talvez, isso explique a

hierarquia do título desse livro-arquivo: o pai vem em primeiro lugar. A mãe,

mesmo sendo, como sabemos, uma intelectual reconhecida, está ligada mais

ao privado, ao cuidado das roupas, passando-as e costurando-as, “temas

considerados de menor importância”. Com Dolores não foi diferente, nem com

Mafalda Verissimo, nem com Leda Alves, Frigga Moog, Zélia Suassuna, Maria

Lúcia Dourado e tantas outras que acompanharam, desde os bastidores, a vida

de homens notáveis. Essas mulheres sempre estiveram em um canto, tecendo,

silenciosamente, a própria vida. E é aí que devemos procurá-las: do outro lado

das frestas, no dado escondido, no que foi calado entre “quatro paredes”, num

canto à meia luz, no entre-lugar do balanço de uma cadeira.3

O arquivo, mesmo com os seus riscos, suas armadilhas, pode ser

considerado uma representação das formas de vida em nossa sociedade.

Assim sendo, fica latente a vontade de um projeto maior, que englobe também

as relações de gênero, a serem analisadas dentro desse artefato cultural. Em

que situação encontraríamos os maridos anônimos de escritoras consagradas?

Algum deles se ocupou completamente de sua companheira, como o fizeram

as esposas dos escritores, como o fez Dolores? O arquivo pode nos insinuar

algumas respostas a esse respeito. Talvez, seja essa uma perspectiva para

novos estudos.4

Além desta introdutória, este trabalho consta de quatro seções. Uma,

contendo a motivação e os bastidores da pesquisa. Outra, em que expomos 3 Em entrevista concedida a Cida Golin, Ivone Montello, esposa do escritor Josué Montello, afirma: “Participo da produção literária do Josué com o meu silêncio à sua volta, em primeiro lugar, transmitindo a ele a paz e a tranquilidade de que necessita para escrever” (2002, p. 63). Uma vez mais, temos a figura do escritor custodiado por sua mulher. Dona Ivone também mostra como o papel das mulheres de escritores é multifacetado, ao fazer a seguinte declaração sobre o marido: “Ele fica no gabinete trabalhando, sossegado; sempre que é preciso ele me chama para resolver as coisas. Eu é que cuido de toda a vida dele, secretariando o dia inteiro” (op. cit., p. 63). Além de cuidar dos afazeres domésticos, essas mulheres se apresentam como secretárias, assessoras de seus esposos. Não deixa de ser sugestivo o fato de que, na pequena biografia desse escritor, disponível no site da Academia Brasileira de Letras, o nome de sua esposa não seja sequer mencionado uma única vez. 4 Aqui, nos parece apropriado citar o que afirma o intelectual uruguaio Hugo Achugar, em seu

livro Planetas sin boca: “Más que el palimpsesto, el fragmento. El fragmento o el ensayo nunca terminado, nunca terminable, el ‘work in progress’, el eterno ‘ensayo en proceso’ de escribirse, modificarse, corregirse” (2004, p. 14).

Page 19: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

19

alguns episódios da vida de Dolores, no período que vai do seu nascimento até

1925, ano de seu casamento com Carlos. Uma quarta, dedicada aos anos que

vão de 1926 até sua morte, em 1994. E a última, de considerações finais, na

qual destacamos algumas das reflexões feitas ao longo do trabalho e

apontamos Dolores como uma figura que, preparando os bastidores para a

criação literária de seu marido, testemunhou, mesmo que tangencialmente, a

própria evolução de boa parte da literatura brasileira do século passado. Em

suma, salientamos que a vida desta mulher nos traz o retrato de sua época

(século 20), dos hábitos da sociedade de seu tempo e, enfim, a história de um

povo; fornece-nos ainda “subsídios para uma história privada da literatura”,

usando o título do livro de Cida Golin. 5 Ainda na seção das conclusões,

mencionamos a forma como tratamos o arquivo literário de CDA. Também

conformam esta dissertação três apêndices: um, com três entrevistas e os

outros dois com cartas trocadas entre Dolores e Carlos e uma pequena história

em fragmentos, composta por excertos retirados de toda a correspondência do

casal (de 1950 a 1979).

Avisamos que, em se tratando de um ensaio (i.e., de uma tentativa, um

"experimento"), por momentos, nos permitimos a liberdade de sair do prosaico

e incursionar no verso.

5 Segundo Cida Golin (2002), “Uma possível história privada da literatura [...] poderia se

expandir para além da obra final do escritor, da intimidade literária: são objetos que não vêm à luz no texto final, os segredos da criação, a rotina da produção literária, os espaços criativos (o gabinete, a casa, a mesa), os inéditos, as práticas de leitura e recepção individuais, as cartas do autor, a opinião dos leitores. Os acervos literários tornam-se fontes privilegiadas desse percurso. Trata-se de uma história de múltiplas vozes, a do escritor e seus coadjuvantes – sua mulher, por exemplo –, investigando como a literatura, enquanto sistema simbólico, é vivido [sic] no cotidiano, no ambiente íntimo” (p. 39).

Page 20: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

20

OS BASTIDORES DA PESQUISA

Quando esta dissertação ainda era apenas um projeto, Pedro Augusto

Graña Drummond me mostrou uma das tesouras de sua avó, e mencionou a

Singer com a qual ela costurava para a família. Imediatamente, isso me

remeteu à vida de minha própria avó.

Entre linhas, pontos, agulhas, fita métrica, nós e arremates, tentei tecer

o meu enredo, feito, todo ele, de retalhos. Sou neta de Maria Aurélia e também

da máquina Singer. Desde criança, o barulho que acompanha minha memória,

até hoje, até agora, no instante em que escrevo estas linhas, vem do contato

dos pés de minha avó com o pedal da máquina de costura. Todos os dias, às

sete da manhã, aquela mulher baixinha, ex-professora – abandonara o cargo

para se casar –, branca, de olhos azuis, sentava-se, incansavelmente, no

tamborete, e passava o dia costurando as fazendas de chita que revestiam os

colchões de capim feitos por meu avô. Eu, sempre ali, por perto, brincando com

os restos de pano que sobravam – eram muito úteis para que minhas bonecas

não ficassem nuas – furando meus dedos na agulha, ouvindo estórias,

escutando canções religiosas, que aquela costureira sempre cantava. Cresci

nesse quarto de costura de um velho casarão rosa.

No momento em que passei a entender um pouco mais as relações

familiares, notei uma coisa muito simples, mas que já, há algum tempo, havia

se revestido de valor para mim e transformado em fome de conhecimento, em

matéria de pesquisas. Vi os cabelos de minha avó embranquecendo naquele

trabalho de costura. Os colchões iam para as cidades próximas, a zona rural e

hospitais. O dinheiro, que era pouco e bem medido, corria direto para o bolso

do meu avô, sempre aquele que negociava com os clientes, na sala, depois da

ordem: “Maria, põe café aqui pro compadre”. Maria levava o café e saía,

silenciosa e discretamente. Para a neta, isso era uma tristeza, porque, se fosse

a avó-favo-de-mel quem administrasse as finanças, seria bem mais fácil

surrupiar-lhe as moedas de dez centavos para comprar doce de leite no

botequim da rua. Mas, com o dinheiro no bolso do avô, a situação se

complicava...

Page 21: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

21

Há pouco tempo, estive em uma típica fazenda mineira, nos arredores

de minha terra natal, e meus olhos se arregalaram quando vi um colchão

revestido com aqueles panos coloridos que a vovó costurava. Qual foi minha

surpresa! Perguntei à dona quem o havia feito e ela respondeu, imediatamente:

“Foi o sô Jésus colchoeiro, ué, teu avô!”. Em um segundo, vi a imagem de

minha avó, da máquina, do tamborete, vi a metamorfose daquela mulher

costureira, a mais dócil, a mais paciente, mais discreta que já conheci, e o som

das pedaladas soou forte na memória. Ali, naquele produto de mercado, estava

o corpo da minha avó. No entanto, a “assinatura” era do senhor Jésus

colchoeiro.

Desculpe o leitor a pequena lembrança. Ela talvez explique muito de

mim e, espero, do tema que há algum tempo estudo: a história das

mentalidades femininas.

No ano de 2012, a Festa Literária Internacional de Paraty rendeu uma

maravilhosa homenagem aos 110 anos de Carlos Drummond de Andrade. Tive

a oportunidade de estar presente no evento. Depois de ter assistido a várias

apresentações, me dei conta de que, ao falar do escritor itabirano, apenas uma

vez citou-se, rapidamente, o nome de Dolores, sua mulher. Caminhando pela

cidade, comecei a pensar no papel das mulheres na formação da literatura

universal, na sua participação no campo das artes, em geral. Perguntas foram

se assomando ao pensamento. Em quê Nora Joyce teria contribuído para a

obra de James Joyce? Aliás, quem foi Nora, além da musa que alimentou as

fantasias eróticas daquele escritor Irlandês, como comprovam as cartas que ele

lhe enviava? De que se ocuparia, por exemplo, Zélia Suassuna, enquanto

Ariano estava concentrado em seu escritório? Parecia-me estranho que as

mulheres, as secretárias dos escritores, tão íntimas do cotidiano deles ficassem

assim às margens da biografia desses grandes homens.6 E quem foi Dolores

6 Há que se fazer menção ao livro “Carta a D. História de um amor”, do filósofo austríaco André

Gorz (2012), em que o autor traça um perfil de si e de Dorine, sua companheira ao longo de 58 anos. Logo no início da carta, Gorz faz uma pergunta: “Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?” (p. 5). Em outras partes da carta, o escritor revela a contribuição que a esposa deu a seu trabalho de escritório, como, por exemplo, no excerto a seguir: “[...] como em todos os empregos que tive em seguida, você assumia a sua parte no trabalho que eu tinha a fazer. Volta e meia, ia até o escritório, ajudar na tabulação e na classificação das dezenas de milhares de cartas que tinham restado. Você participava da redação das circulares em inglês. Nós estabelecíamos relações com os estrangeiros que vinham visitar o escritório, convidávamos para almoçar. Não

Page 22: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

22

Morais Drummond de Andrade quando deixou de ser Dolores Dutra de Morais?

Quem foi esta mulher que passou 62 anos ao lado de um ícone da nossa

literatura? Era certo que tinha alguma história. Pelo dictum de Pascal,

“Ninguém morre tão pobre a ponto de não deixar alguma coisa.” (BENJAMIN

apud Didi-Huberman, 2011, p.133). Mas onde buscá-la? Se a encontrar, o que

fazer de sua história? Abri um dos livros de um poeta que muito me agrada,

Affonso Ávila, e pensei logo em Laís Correa de Araújo. Leio um e penso no

outro. O caso de Dolores é diferente. Transcrevo aqui o poema que li, em

Código de Minas (1963-1967), intitulado “Círculos familiares”:

o sogro na situação o consogro na oposição o genro na coligação (na prebenda a parentela) o irmão na câmara federal o cunhado na câmara estadual o concunhado na câmara municipal (no cartório a parentela) o tio no senado o primo na cni o primirmão na cemig (no negócio a parentela) o marido na presidência o filho na previdência o sobrinho na prefeitura (na embaixada a parentela) o padrastro governador-do-estado o enteado ministro-de-estado o meioirmão secretário-de-estado (na empreitada a parentela) o avô na reação o pai na corrupção o neto na subversão (par-a-par a parentela) (p. 73-74).

estávamos unidos apenas em nossa vida privada, mas também por uma atividade comum, na esfera pública” (p. 20-21). Com esse último livro, publicado na França em 2006, Gorz e Dorine se despedem da vida e entram na história. Em 22 de setembro de 2007, ambos se suicidam. Ao fazer essa breve autobiografia e biografia da esposa, em forma de carta, o filósofo nos mostra o quanto as pessoas mais discretas, que povoam a inevitável solidão de intelectuais notáveis, são importantes para que o trabalho do escritório possa ser levado ao público. Compartilhar a história de vida também dessas pessoas é fazer jus ao muito que elas doaram de si para o nascimento de obras nas quais habitam, ainda que de forma invisível.

Page 23: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

23

Ao ler o poema, que muito veio a calhar, notei a obliteração da presença

da mulher (ela aparece, por trás do marido, apenas no primeiro verso da quarta

estrofe). Ora, é patente a crítica que o poeta faz ao sistema oligárquico de uma

Minas ainda revestida de tradicionalismo, onde assuntos sobre política eram

exclusivos de homens e o lugar da mulher era bem definido. No entanto, não

devemos nos esquecer das mulheres pioneiras, que, desde a Colônia,

trabalhavam no trato com o público e tiravam daí o seu sustento. Segundo

Luciano Figueiredo (2007):

“Negras de tabuleiro” foi a designação que acompanhou pelo Brasil colonial aquelas mulheres dedicadas ao comércio ambulante. Se aqui e ali há registro de que incomodavam as autoridades, seja porque fugiam com facilidade às medidas fiscalizadoras, seja porque sua conduta moral desagradava, foi nas Minas do século XVIII que sua atuação alcançou dimensões mais graves (p. 151).

Elas não só trabalharam no espaço público como também contestaram o

sistema, burlaram as leis. No século XIX, despontaram, no Brasil, inúmeras

escritoras que fizeram duras críticas à sociedade, como, por exemplo, Maria

Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance abolicionista e um dos

primeiros escritos por mulher brasileira (MUZART, 2000), Nísia Floresta

Brasileira Augusta, que reivindicou os direitos das mulheres, e tantas outras,

como nos mostram os três volumes sobre as Escritoras brasileiras do século

XIX, organizados por Zahidé L. Muzart. Escritos de Lima Barreto e Machado de

Assis apresentam mulheres que produziam os discursos a serem proferidos

pelos maridos, nos tribunais e em reuniões que versavam sobre política. Dessa

forma, ao longo da história, a atuação da mulher se deu também no espaço

público, apesar das duras críticas e repreensões que recebia, por romper com

a doxa.

Busquei logo depois o célebre ensaio Um teto todo seu, de Virginia

Woolf, e reli uma passagem na qual já havia feito inúmeras anotações. É

preciso transcrevê-la, para que o leitor não perca o fio da meada:

Com os olhos da imaginação, vi uma senhora muito idosa atravessando a rua, apoiada no braço de uma mulher de meia-idade, sua filha, talvez, ambas tão impecavelmente calçadas e

Page 24: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

24

recobertas de peles, que o vestir-se, à tarde, lhes deve ser um ritual, e as próprias roupas devem ser guardadas em armários com cânfora, ano após ano, durante todos os meses do verão. Elas atravessam a rua no momento em que as lâmpadas se acendem (pois o crepúsculo é sua hora favorita), como devem ter feito ano após ano. A mais velha está perto dos oitenta, mas se alguém lhe perguntasse o que a vida significou para ela, diria que recordava as ruas iluminadas para a Batalha de Bataclava, ou que ouvira os canhões dispararem no Hyde Park pelo nascimento do rei Eduardo VII. E se alguém lhe perguntasse, tentando definir exatamente a data ("Mas o que estava a senhora fazendo em 5 de abril de 1868, ou em 2 de novembro de 1875?"), ela faria uma expressão vaga e diria não conseguir lembrar-se de nada. Pois todos os jantares foram preparados; os pratos e os copos, lavados; as crianças, mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta de tudo isso. Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história tem uma palavra a dizer a esse respeito. E os romances, sem que o pretendam, mentem de maneira inevitável. Todas essas vidas infinitamente obscuras permanecem por registrar, disse eu, [...]; e prossegui em pensamento pelas ruas de Londres, sentindo na imaginação a pressão do mutismo, o acúmulo de vidas não registradas, quer das mulheres nas esquinas com as mãos nas cadeiras e os anéis incrustados nos dedos inchados, que, ao falar, gesticulavam de um modo semelhante ao balanço das palavras de Shakespeare; quer das vendedoras de violetas e de fósforos e das velhas encarquilhadas paradas nos vãos das portas; ou das moças errantes cujo rosto, como ondas sob o sol e as nuvens, assinalam a chegada de homens e mulheres e as luzes bruxuleantes das vitrinas. [...] E há também a moça atrás do balcão — para mim tanto faz conhecer a verdadeira história dela como a centésima quinquagésima vida de Napoleão ou o septuagésimo estudo sobre Keats e seu uso da inversão miltoniana, que o velho professor Z e outros como ele estão agora redigindo (1985, p. 118-119).

Tudo isso me levava, inevitavelmente, a Dolores. No Rio de Janeiro, em

conversa com um de seus netos, mencionei a vontade de escrever algo sobre

ela, um ensaio biográfico. Perguntei se isso seria possível, se havia algum

material sobrevivente que falasse dela. A resposta foi favorável. Há cartas,

fotos, receitas de culinária, máquina de costura, tesouras, bilhetes, um quadro

lindo, pintado pelo russo D. Ismailovitch e... os bordados, as colchas no estilo

patchwork. Eis aí o arquivo de Dolores se abrindo. Voltei para Minas com o

pensamento borbulhando, imaginando o que poderia fazer com esse material.

Sendo uma iniciante, aprendiz de pesquisadora, receei não estar à altura das

circunstâncias. Apoiada pelos meus professores e, em especial, minha

orientadora, comecei formalmente a pesquisa para esta dissertação.

Page 25: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

25

No segundo semestre de 2013, parti para o Rio de Janeiro, levando na

mala meu material de trabalho: um computador, um scanner, uma impressora,

caderno de anotações, gravador e máquina fotográfica. Ao chegar ao

apartamento da família Drummond, deparei-me com um material riquíssimo.

Eram 183 cartas, arquivadas em pastas, algumas escritas a lápis, em papel

manteiga, já mostrando a ação imperdoável do tempo. Tais missivas

começaram a ser trocadas entre Dolores e Drummond, em 1950, um ano após

o casamento de Maria Julieta, a filha do casal, com o escritor argentino Manuel

Graña Etcheverry, e seguiram até 1979, data da última viagem de Dolores a

Buenos Aires. Esse material é uma espécie de reportagem do cotidiano de

Dolores e a família (Maria Julieta e Manolo e, posteriormente, os três netos,

Carlos Manuel, Luis Mauricio e Pedro Augusto) na capital argentina, e de

Drummond, no Rio de Janeiro. Assim, Dolores atuou também como uma

biógrafa da própria família. Enquanto o marido narrava, muitas vezes, suas

atividades públicas, a vida de amigos escritores, Dolores narrava, em boa parte

das cartas, os acontecimentos familiares, de modo que, se, de um lado,

contava-se sobre a doença de Bandeira e os últimos dias de Cecília Meireles,

sobre a morte de algum literato e da vida política no país, de outro se falava da

gripe e dos estudos dos netos, de suas traquinices, do trabalho de Maria Julieta,

programas em família, enfim, o “tricô doméstico”.

Compunham também o arquivo algumas fotos de Dolores, bilhetes de

aniversário trocados pelo casal, colchas feitas por ela, cadernos de receitas,

tesouras que ela usava para costurar, enfim, fragmentos de uma vida, lampejos

de uma existência. No Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui

Barbosa, busquei pelo acervo de Carlos Drummond de Andrade, encontrando

aí, para minha grata surpresa, um fichário de receitas de Dolores, com seções

separadas por adesivos coloridos. Toda essa organização traz a letra do poeta.

Esse contato do escritor com os cadernos de culinária de Dolores e seus

trabalhos manuais, possivelmente, tenha dado origem a poemas como “Visão

de patchwork”, escrito em forma de receita, publicado no livro Viola de bolso III

e “Poema culinário”, da seção intitulada Patchwork, de Poesia Errante.

Ainda em busca de rastros, fiz uma pesquisa no Instituto Moreira Salles

do Rio de Janeiro, onde encontrei inúmeras cartas que os pais de Dolores

Page 26: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

26

enviavam de Belo Horizonte à filha, que residia no Rio de Janeiro, além de

fotos da família e um Diploma de Economia do Lar, recebido por Dolores. Após

uma análise, encomendei a cópia do material ao Instituto. Passei, assim, à

digitalização das cartas do casal, organizando-as no computador e, depois de

alguns dias de investigação, prossegui com as entrevistas aos familiares e

conhecidos de Dolores. Voltei a Minas com todo esse material.

O trabalho com fontes primárias requer paciência e experiência. A

primeira me acompanha. A segunda, naturalmente, vai sendo adquirida, com o

passar do tempo– começou com a pesquisa, financiada pelo CNPq, que

desenvolvi, na graduação, sobre a obra da escritora Alfonsina Storni, durante

minha Iniciação Científica. No trato com o arquivo de Dolores, tive algumas

dificuldades; a pesquisa, com tempo marcado para terminar, se prolongava, a

cada vez que me sentava para transcrever as cartas: garatujas infindáveis, a

tinta da caneta, vencida pelo tempo, o papel manteiga, em que a escrita de

frente e verso se mistura, palavras que ainda recusam qualquer tentativa de

leitura, inclusive com o auxílio de tecnologia avançada. Mesmo assim, pude

transcrever e organizar todas as cartas, material imprescindível para esta

dissertação.

Para fazer este ensaio fotobiográfico, foi preciso buscar a figura de

Dolores nos “restos” do arquivo literário de Carlos Drummond de Andrade,

naqueles elementos marginais e inclassificáveis, que se configuram mais como

rastros, pegadas deixadas sobre esta “cidade letrada”, que é o arquivo, de

onde emanam a lei e a ordem. Tais “restos” são lampejos que surgem nas

trevas, as sobrevivências do arquivo. Segundo Didi-Huberman (2011), op. cit.,

Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista (p. 52).

Talvez, esses fragmentos, que povoam a periferia do arquivo, em seus rápidos

lampejos, possam também lançar uma pequena luz sobre toda essa “cidade

das Letras”, ainda que suas possíveis revelações sejam lacunares, em trapos,

ainda que as luzes maiores os vençam.

Page 27: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

27

Faz-se necessário observar que Dolores, sendo conhecida apenas como

a “esposa do poeta”, uma pessoa “comum”, não teve, em princípio, nenhuma

intenção em se arquivar, em guardar suas memórias. No entanto, como relata

Maria Esther Maciel (2009):

[...] não só os feitos, as conquistas e as tragédias das pessoas notáveis fazem uma biografia interessante. Marcel Schwob, no Prólogo ao seu livro Vidas Imaginárias (1896), já chamava a atenção para a avareza dos biógrafos que, ao suporem que só a vida dos grandes homens e mulheres pode nos interessar, dão-se o papel de historiadores e negligenciam a vida das pessoas comuns, discretas e anônimas (p. 400).

Graças às conquistas da Nova História e das teorias dela advindas, hoje nos

interessamos também pela escrita da vida do homem comum (DOSSE, 2009).

E de quantos “homens comuns” se compõe a vida dos notáveis? “Acaso, não

existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”

(BENJAMIN, 1985, p. 226). No arquivamento da vida de um notável é possível

ouvir ecos de uma voz emudecida.

Sendo o arquivo de Dolores formado por fragmentos, não haveria outra

forma de esboçar seu perfil biográfico senão por essas partículas isoladas,

rápidos lampejos de vida. Toda a escrita deste ensaio seguiu um caminho que

a própria biografada nos sugeriu, com suas colchas no estilo patchwork. Um

retalho aqui, outro acolá, juntando-se eles para registrar ao menos uma

centelha de vida, um suspiro, uma lágrima. Tal método também nos foi

apresentado por Roland Barthes, ao trabalhar o conceito de biografema:

[...] termo relativo à teorização e à prática de escrita de Roland Barthes, desenvolvida pelo autor em seu livro Roland Barthes por Roland Barthes. Refere-se ao conceito que responde pela construção de uma imagem fragmentada do sujeito, uma vez que são abolidos do discurso da memória o estereótipo da totalidade e o relato de vida como o registro de fidelidade e autocontrole... É ainda o que se deve conceder, numa biografia, aos detalhes, a “alguns gestos” e inflexões, manifestações alheias a princípios de ordem permanente e universal... (SOUZA, 2004, p. 34).

A vida narrada através de “unidades estruturais”, uma espécie de caleidoscópio,

onde, a cada vez que reorganizamos os mesmos fragmentos, temos uma nova

Page 28: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

28

figura. Na impossibilidade de controlar a vida, em sua totalidade, optamos aqui

por apresentar a imagem fragmentada de Dolores, desviando-nos, assim, dos

princípios da ordem universal e de hierarquias.

Ainda no que concerne à elaboração deste ensaio, outras dificuldades

se apresentaram neste percurso. Segundo Eliane Vasconcellos (1999):

O ser humano do sexo feminino aparece sempre subordinado: ela é esposa, filha, mãe e até mesmo a amante de algum homem. Em uma representação sintática da sociedade, o homem (marido, pai, amante) era sempre a oração principal e as mulheres, as variadas orações subordinadas que o seguiam. É no outro que é buscada a sua identidade (p. 121).

Tal assertiva ficou ainda mais clara para mim enquanto escrevia este ensaio. A

maior preocupação que tive neste trabalho foi a de evitar que a figura de

Drummond se sobrepusesse à de Dolores. (A própria Maria Julieta Drummond

de Andrade, após ter tido um poema de sua autoria atribuído ao pai em sua

coluna do jornal carioca O Globo, assina simplesmente “Maria Julieta” em seu

último livro). Naturalmente, durante a escrita, percebi que, para falar de Dolores,

era necessário falar de Carlos. A partir de 1920, data do início do namoro, a

vida dela começa a ser registrada por ele, um arquivista nato. Assim, na

maioria dos documentos relacionados a Dolores, temos a marca deixada por

Carlos (como se pode verificar nas fotografias usadas neste trabalho). Nas

fotos a que tive acesso – nem todas colocadas no ensaio –, quase nunca

Dolores está só; na maioria delas, Drummond está presente. Creio que, se

escrevêssemos sobre Zélia Suassuna ou até mesmo Zélia Gattai, figura que se

destacou publicamente, com suas obras literárias, teríamos que, em algum

momento, buscar as suas identidades, respectivamente, em Ariano Suassuna

ou em Jorge Amado.

É preciso observar que, se, por um lado, falar das mulheres de

escritores, sem falar deles, seria algo praticamente impossível; por outro, não

seria demais afirmar que falar deles, sem mencioná-las e dar-lhes o justo

reconhecimento, seria uma tarefa possível, porém inadequada. Sobre esta

questão, sempre no contexto dos séculos passados, Vasconcellos (op. cit.)

afirma:

Page 29: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

29

Esta dependência feminina não termina nem depois da morte do marido. Na viuvez, tanto ele quanto ela encontram-se no mesmo estado, ambos se caracterizam pelo fato de terem perdido o respectivo parceiro. Mas, mesmo depois de morto, ele continua impondo a ela sua supremacia, pelo menos no campo linguístico. É comum referirmos a uma mulher como a viúva de X, mas só em situações muito raras, nós o mencionamos como o viúvo de fulana, pois o homem é identificado por seu próprio nome ou por sua atividade profissional [...] (p. 136).

A todo o momento, tive em mente os riscos que correria, vendo-me sempre

forçada a vincular a imagem de Dolores à figura de Drummond – não

esqueçamos que, depois de namorar cinco anos, foram casados por mais de

seis décadas. Nas próprias entrevistas que fiz para esta dissertação – algumas

delas em anexo –, às vezes, o assunto se desviava da biografada e terminava-

se por falar de seu marido. Fato curioso é que essa dependência do nome do

esposo não se resume apenas às mulheres que atuaram somente no lar. Em

entrevista concedida a Rachel Esteves de Lima, publicada no livro Figurações

do íntimo - Ensaios (2013), a professora e pesquisadora francesa Françoise

Simonet-Tenant relata: “Quando acabei esse trabalho [sobre a relação entre

Valéry e a música], na França, começaram a falar de uma escritora que tinha

sido amante de Paul Valéry” (p.14-15). Posteriormente, a estudiosa cita o nome

de Catherine Pozzi, que, para o público, mais que escritora, foi amante de

Valéry... Como escapar a essa dependência? De minha parte, fiz o possível

para colocar Dolores sempre em primeiro plano. Espero tê-lo conseguido.

O leitor encontrará, nas próximas páginas, alguns coriscos de histórias,

anedotas que trazem apenas um perfil da Dolores, a partir do que me foi

contado por pessoas e pelo que encontrei em documentos. E, aqui, noto algo

bastante curioso. Nas biografias acadêmicas que conheço, quase nunca se vê

o “lado negativo” do biografado. Sempre me pergunto se esses seres de papel

seriam mesmo assim, perfeitos, sem mácula. Mas, ao ter a oportunidade de

lidar com a matéria, percebi que, raramente, os documentos de arquivos

mostram coisas negativas a respeito dos seus arquivistas; com as lembranças

daqueles que os conheceram, em geral, a situação não é diferente: seleciona-

se o que é bom e o que se lembra de bom da vida das pessoas. Portanto, nem

os documentos do arquivo, nem as entrevistas que fiz me possibilitaram

Page 30: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

30

mostrar certas facetas de Dolores. Porém, o leitor não é ingênuo e poderá

elaborar conjecturas, tirar suas próprias conclusões e, até mesmo, criar uma

nova versão sobre o que aqui está escrito.

Há ainda algo que devo mencionar, quanto ao uso das imagens.

Gostaria que estas fossem observadas também como citações, como aquilo

que está presente para reforçar o já dito, mas, bem além, deslocar o leitor para

outros espaços, talvez até mesmo para dentro de si, assim como fazemos,

diante das imagens de livros como Os Emigrantes, de Sebald, O Africano, de

Le Clézio, ou Clarice – fotobiografia, de Nadia Gotlib, obras que, de certa forma,

também nortearam esta pesquisa. É possível que as imagens selecionadas

falem mais do que o texto escrito. Não que as fotografias tragam de volta o

passado, pois elas são sempre um aqui e agora, um acontecimento novo aos

nossos olhos. Em seu livro A câmara clara (1984), Roland Barthes afirma:

A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em uma foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora, esse é um efeito verdadeiramente escandaloso. A Fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia, mergulhe na substância religiosa de que sou forjado; nada a fazer: a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição: não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo impregnada no Sudário de Turim, isto é, que ela não era feita por mão de homem, archeiropoietos? (p. 123-124).

É dessa forma que devemos olhar as imagens aqui expostas, como se estas

fossem uma ressurreição, um acontecimento novo, uma revelação, a cada

momento. Fausto Colombo, em seu livro Os arquivos imperfeitos, relembra dois

conceitos importantíssimos de Barthes, em relação à análise das imagens, da

fotografia: o studium e o punctum, a saber:

[...] o studium é o percurso que a imagem preestabelece para a leitura, o deslocamento do já acontecido, do já sido. Aceitar o studium significa conhecer na origem da foto a realidade que ela produz, deixar-se levar para dentro de uma lembrança concretizada e bloqueada pelo ícone. O punctum, em contrapartida, é o comparecimento do casual, do inesperado, e como tal conduz para além do studium; mas esse além ainda é

Page 31: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

31

o real, que se deixou ocasionalmente impressionar (COLOMBO, 1991, p. 48).

Para a seleção das fotos aqui utilizadas, os dois conceitos citados foram

levados em consideração. Gostaria que os potenciais leitores deste ensaio

pudessem também interpretar as imagens disponibilizadas, norteando-se pelos

sentidos dados ao studium e ao punctum. Que se deixem, acima de tudo,

impressionar pelo casual, pelo que vai além da fotografia, da pose (ensaiada?)

dos corpos ali presentes.

Em anexo, coloquei algumas (poucas) cartas de Dolores e Drummond.

Aquelas são uma forma de dar voz à remetente, pois configuram uma espécie

de diário, uma escrita de si e dos outros, e estas tampouco deixam de ser uma

fonte de informações a respeito dela.

Por fim, cabe frisar o aspecto político deste trabalho. Gosto de observar

as coisas mínimas, as pequenas formas de vida, a história miúda do cotidiano,

o povo menor que, em sua singeleza, revelam dados significativos de uma

sociedade numa época determinada.

Quanto ao teor desta narrativa, não posso precisar em que ponto saio

do real e parto para a ficção, tampouco sei onde ambos se cruzam, ou até se é

possível separá-los. Escolha o leitor os caminhos que lhe convierem. De minha

parte, fico, daqui em diante, com as palavras de Didi-Huberman (op. cit.):

Ver o horizonte, o além é não ver as imagens que vêm nos tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e lampejo a nossa frágil imanência, os “ferozes projetores” da grande luz devoram toda forma e todo lampejo – toda diferença – na transcendência dos fins derradeiros. Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem (p. 115).

Há aqueles que se alimentam de lampejos clandestinos. “Beleza siderante que

é a de ‘ver isso, ao menos uma vez na vida’” (ROCHE, 1982 apud DIDI-

HUBERMAN, idem, p.47).

Page 32: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

32

SÃO JERÔNIMO, SANTA BÁRBARA

1900 (?) - 1925

Estas memorias o recuerdos son intermitentes y a ratos

olvidadizos porque así precisamente es la vida.

Pablo Neruda

Fig. 2 Foto de Dolores, sem data. Arquivo da família.

São Jerônimo, Santa Bárbara!!! São Jerônimo, Santa Bárbara!!! São

Jerônimo, Santa Bárbara!!!...

Apavorados, ajoelhados no chão, e de mãos dadas, inclinando o corpo

para frente e para trás, assim rezavam os filhos da família Dutra de Morais,

quando trovões e relâmpagos cortavam o céu de Mar de Espanha, pequena

cidade da Zona da Mata mineira. Entre essas muitas crianças, está Dolores

Dutra de Morais.

A modo de brevíssima introdução ao esboço de sua vida, eis aqui uma

sequência de palavras que sugerem um perfil de Dolores: Mulher, acima de

tudo. Filha de. Mãe de. Enfermeira. Costureira. Datilógrafa. Secretária de

fábrica de sapatos. Profissão oficial: do lar. Pequenina. Compreensiva.

Reservada. Silenciosa. Meiga. Tímida. Recatada. “Precavida, como a formiga

Page 33: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

33

da fábula”. Constante. Fiel. Esposa do escritor. Força do poeta. Mulher ao lado.

“Sempre sua”. Companheira da vida inteira. Idade incerta. Livro de receitas.

Cozinha. Filas de açougues. Anjo do lar. Cadeira de balanço. Uisquinho.

Palavras cruzadas. Revista Burda. Máquina Singer. Tesoura. Agulhas. Linha.

Dedal. Penélope. Cinema de bairro. Música clássica. Mozart. E Beethoven. E

Baudelaire. Sogra de. Avó de. Doceira. Boa risada. “Dondolô”, “Dolares”.

Buenos Aires. Flâneur da Calle Florida. Antiquários. Santos antigos. São José.

Santa Rita. Tapetes turcos, chineses, persas. Reumatismo. Vista fraca.

Alheamento. O nada. Entre o nem ser, nem estar. Sábado, 2 de julho, 1994.

Silêncio.

Quarta-feira, 2 de julho, 2014, 20 anos depois. Por meio de substantivos

e adjetivos, desenha-se o ser de papel, frio e pálido, sem sangue, com a face

que nos olha, firme e sem expressão. Face manchada de tempo, de quem

existiu, com carteira, assinatura e impressão digital. Lampejos de uma

existência.

Fig. 3 Carteira de Identidade de Dolores Morais Drummond de Andrade. Arquivo da família.

Page 34: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

34

Como é de costume criar, para tudo, um começo...

Fig. 4 Dona Maria das Dores Morais (Sinhá) e o Senhor Sevanir Dutra de Morais. Pais de Dolores, Ruy, Geraldo, Massilon, Álvaro, Galeno, José, Vitória, Maria, Ruth e

Conceição. Lembrança da Lua de mel, em Poços de Caldas, Minas Gerais – 1891. Arquivo da família-Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.

Page 35: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

35

Mas o tempo e a vida e os rostos nos escapam...

Fig. 5 Dona Maria das Dores (Sinhá) e família, em Belo Horizonte, sem data. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.

O que dizer da senhora, no centro da foto, cercada de filhos e netos –

carinhosamente chamada Sinhá? Redondinha e eficiente. Era sábia e ativa;

antes do almoço, entrava no galinheiro e, indiferente à confusão que produzia

entre as aves aflitas, ia agarrando galinha por galinha; tocava-as e separava-as.

Identificava sem hesitação as que estavam chocas, isolando-as num cercado

de arame, junto aos ninhos; recolhia os ovos e resmungava contra os galos de

crista empinada. Depois entrava na cozinha onde o feijão, já cozido, esperava

os temperos. Às onze horas, quando o alho e a cebola refogados recendiam, a

sirena da fábrica, pontual, cortava o ar e todos sabiam que o almoço simples

dos netos já estava pronto. Os adultos teriam também, às onze e meia,

ensopadinho de carne com batata, taioba, jiló ou quiabo. Jantava-se cedo, e a

comida, que se mantivera quente no forno, junto às brasas da manhã ainda

acesas, era servida em pratos feitos, sobre a mesa da copa, que nunca vira

toalha: apenas madeira de lei, usada, reluzente. Um último copo d’água do filtro

de barro e o relógio de pêndulo batia seis horas, seis e meia. Uma última

Page 36: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

36

areada na tampa de ferro do fogão (parecia de prata), um gole de café

requentado. Só depois se acendia a lamparina que boiava num pequeno lago

de azeite e devia iluminar o Sagrado Coração da sala, durante a noite. Mais um

dia de dever cumprido, exato, regular, inglório, e tudo a postos para recomeçar

na madrugada seguinte, com os galos, indefinidamente.7

O afeto entre mãe e filha

Fig. 6 Dona Sinhá e Dolores, 18.01.1953, em Belo Horizonte. Arquivo da família.

7 Trechos das crônicas “Canto de galo” e “Antes, em Minas”, respectivamente dos livros O valor

da vida (1982) e Um buquê de alcachofras (1980), de Maria Julieta Drummond de Andrade.

Page 37: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

37

Das Dores e Dolores pelas ruas de Belo Horizonte

Fig. 7 Dona Sinhá e Dolores, 23.04.1932. Arquivo da família.

Quando nasceu Dolores, 1900, 1902, 1903? Sabe-se apenas que foi em

um 19 de abril. Era Morais, era Moraes? Quem sabe?... (vide Fig. 3, p. 33, e

Fig. 11, p. 41). Branca, esbelta, olhos escuros, bem redondos e vivos, cabelo

ondulado e curto. Os primeiros capítulos de sua história foram, mais ou menos,

assim: datilógrafa e secretária de uma fábrica de sapatos, em Belo Horizonte.

Page 38: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

38

Fig. 8 Dolores, 1922. Arquivo da família.

Ele, estudante do curso de farmácia, vivendo da mesada do pai. Magro, olhos

claros, elegante, de terno preto e chapéu. Frequentador do Bar do Ponto e do

Café Estrela. Apaixonam-se. Para o casal, tudo começa no ano de 1920,

quando o contato entre rapazes e moças era rigorosamente controlado pelos

pais ou os irmãos mais velhos delas, munidos de bengala, “coisa perigosíssima,

porque não era ornamento, era para bater, caso o sinal fosse avançado”.8

Mas, para Dolores, tudo começa, efetivamente, no dia 30 de maio de

1925, data em que a união dos dois se formaliza, no papel, perante a

sociedade (vide Fig. 9, p. 39, e Fig. 10, p. 40). Para a esposa, a garantia de um

lar, da “proteção masculina” e “respeito social”, num tempo em que, para a

mulher, “o matrimônio [...] se apresentava como a única perspectiva de vida”

(VASCONCELLOS, 1999, p. 120). Ao homem, a segurança de uma

companheira leal, obediente, a quem ele devia doutrinar9; em suma, alguém

8 Entrevista a Carlos Drummond de Andrade, por Leda Nagle, veiculada no “Jornal Hoje”, Rede

Globo de Televisão, em novembro de 1980. 9 É interessante ver qual era, na época, a discussão sobre a mulher, no meio masculino. Em

carta de 23 de agosto de 1925, Mário de Andrade escreve a Drummond: “Essa indulgência mútua que você bem conhece como base de paz e de que me falou na sua última carta já é um bom ponto de apoio. Mas você tem obrigação de ensinar isso a Dolores. Quer minha opinião

Page 39: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

39

que se ocuparia, afinal, das coisas práticas do seu cotidiano. Uma época em

que o casamento era levado muito a sério e significava laço vitalício. No Brasil,

30 anos depois, o desquite, que não dissolvia os vínculos conjugais e não

permitia novos casamentos, era a única possibilidade de separação oficial dos

casais. O divórcio só passou a fazer parte das leis brasileiras na década de 70

(BASSANEZI, 2007).

Fig. 9 Bilhete de Carlos para Dolores, 30.05.1971. Arquivo da família.

sincera sobre a mulher? Acho a mulher o mais incomparável vir-a-ser que tem neste mundo. A mulher é sempre um vir-a-ser até que encontre alguém que a faça ser. Isso quer naturalmente dizer que num casal tudo depende do marido. (...) o homem registra sentimentos pela inteligência pra cultivá-los (na arte, na filosofia, na vida) ao passo que a mulher registra os sentimentos pra efetivá-los melhor. Efetivá-los melhor sempre dentro da vida dela. Enfim: me parece que o homem é mais tardonho que a mulher ... e por isso adquire uma inteligência mais crítica. Daí o viver buscando o sentido da vida, criando artes aparentemente desinteressadas, filosofias e modos de viver. Ora a mulher tem mais instintivamente o sentido da vida não sei se por inteligência mais rápida ou se por sentimentos mais intensos e por isso mais iluminadores... Porém vem daí o ter uma inteligência mais aplicada e por isso eminentemente ativa, ao passo que a inteligência masculina é mais passiva, mais desprática, eminentemente artística. Você me conhece suficientemente pra saber que não estou fazendo literatura. É o que sinceramente penso atualmente e me vem da minha experiência. Ora você faça sua mulher ser, trabalhe ela, faça ela o quanto possível interessar-se ativamente na sua vida de dentro e de fora do lar e sobretudo na vida intelectual e moral de você sempre sem se esquecer da indulgência grande que sabe ter diante de si uma inteligência aplicada aos sentimentos.” Parece-nos que essa questão de “doutrinar” a mulher, de educá-la, para que possa acompanhar o trabalho intelectual de seu companheiro, é uma ideia da época, já que, como o próprio Mário sugere, a educação das mulheres era para o cuidado do lar e a dos homens, para a arte e a filosofia. E James Joyce, no dia 22 de agosto de 1912, em carta à sua companheira Nora, diz: “Quando voltarmos para Trieste, serás capaz de ler livros, se eu tos der? Então podíamos conversar os dois. Ninguém te ama como eu, e eu gostava de ler contigo os mais diversos poetas, dramaturgos e romancistas, servindo-te de guia. Só te darei a ler o que há de melhor na literatura.”

Page 40: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

40

Fig. 10 Notícias sobre o casamento de Dolores e Carlos, 18.04.1925, 02.06.1925, 03.06.1925. Arquivo da família.

Page 41: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

41

Fig. 11 Convite de casamento de Dolores e Carlos, 30.05.1925. Arquivo da família.

Fig. 12 Dolores e Carlos, 26.01.42. Arquivo da família.

Na época em que Dolores se casou, não era visto com bons olhos que a

mulher tivesse uma ocupação remunerada e menos ainda quando o próprio

Page 42: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

42

marido se encontrava desempregado, sendo sustentado pelo pai, pois a função

de prover o lar cabia, exclusivamente, ao homem. Foi assim que Dolores, ao se

casar, abandonou o emprego.10 E não só isso. Ela, antes mesmo do casamento,

tomou uma providência que durou por toda a vida: omitiria sua verdadeira

idade. Tudo indica que era mais velha do que o marido, e isso também não era

socialmente aceitável. Desse modo, por uma questão de princípios, nunca

declarava sua real data de nascimento. No entanto, lá pelos anos 80, quando

teve que se operar de um nódulo frio na tireóide, acompanhada por Carlos,

num consultório, indagada sobre sua idade e vendo que o caso era sério, com

firmeza e dignidade, revelou ao médico o seu segredo, que ainda assim nos

escapa. Suspeita-se que nascera um ano antes do século XX.11

Fig. 13 Bilhete de Carlos para Dolores, 19.04.1970. Arquivo da família.

10 “Segundo depoimento da professora Clirian Alquéres, amiga da família Drummond de Andrade, Dolores, esposa do poeta, abandonou o emprego (1925) para casar-se com Carlos que se encontrava desempregado. O casal passou a viver à custa do pai de Carlos [...]” (VASCONCELLOS, op. cit., p. 98). 11

Anexo I (p. 116-126): entrevista a Luis Mauricio Graña Drummond, no dia 04.12.2013.

Page 43: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

43

O documento como ficção – um modo de subverter o que nos é apresentado

como real

Fig. 14 Verso da Carteira de Identidade de Dolores. Arquivo da família.

Documentos com datas fictícias, uma história de amor, sem data, sem

assinatura e sem fim, encontrada no arquivo de Dolores. A narrativa que

termina em vírgula, ou não termina, fazendo jus ao título que lhe foi dado.

Curiosamente, a moça da história é um ano mais velha do que o garoto e tem

os “olhos morenos”. Dolores?

Page 44: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

44

Page 45: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

45

Fig. 15 Documento sem data. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Transcrição na página seguinte.

Page 46: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

46

História simples que recomeça...

Era pequeno, de cabelos amarelados e claros, já com uma indecisa

tristeza nos modos e um ar de alheamento, de ausência. Ela, ao contrário, mais

velha um ano, tinha, nos olhos morenos, duas fontes de alegria mal reprimida.

Brincavam muito. Eram amiguinhos, queriam-se para marido e mulher,

tinham sempre as mãos unidas, uma efusão ingênua.

- “Quando eu for homem... você casa comigo?...”

- “Caso, sim...”

E, numa ingênua efusão, tinham as mãos unidas, olhos nos olhos, como

bons amiguinhos.

Aquilo durou uma infância. No colégio, ele sentia um certo rubor ao

lembrar-se do idílio infantil e inconsequente. No colégio, ela rezava orações,

fazia belos desenhos, crescia.

Até que uma vez...

O encontro foi num domingo de dezembro, um dezembro de férias, na

casa de D. Mariazinha. Seria que os dois continuassem os mesmos? Não

continuavam, mas os olhos dele se abriram para os olhos dela, e, fitando-se, a

história recomeçou...

Ele era romântico, e, sobre as suas roupas escuras, a cabeleira clara,

em anéis, parecia uma coroa de ouro. Ela sabia versos, e a história se

complicou com versos e romantismo...

Regressaram aos estudos, cada um levando nozes, retratos. Os retratos

envelheceram na ternura dos dois, foram destruídos, como nozes...

Agora é de vez – pensaram.

Mas a historia recomeçou ainda uma vez, nova e diferente. Viram-se

numa grande cidade, dentro de um grande jardim, à beira de um pequeno lago.

Os pais estavam presentes,

Page 47: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

47

DOLORES, DOLARES, DONDOLÔ

1926 - 1994

Mirar el río hecho de tiempo y agua y recordar que el

tiempo es otro río, saber que nos perdemos como el río y

que los rostros pasan como el agua.

Jorge Luis Borges

Fig. 16 Fotos de Dolores em diferentes datas. Arquivo da família.

Quando entrevistadas, as mulheres de escritores do século XX quase

sempre relatam histórias semelhantes. Maria Lúcia Dourado, em conversa com

Vera Regina Morganti (1994), revela que era a primeira leitora dos escritos de

Autran Dourado, servindo-lhe também como datilógrafa. Com Dolores, não foi

muito diferente. Segundo o próprio Drummond, ela, em 1924, datilografou os

originais de Os 25 poemas da triste alegria12 e a seguir encadernou o trabalho,

conferindo-lhe toda a aparência externa de um livro. Graças também a esse

trato cuidadoso que Dolores deu à obra, hoje é possível conhecermos o “tom”

12

Essa obra acabou se perdendo, reaparecendo mais de 80 anos depois, no acervo de um bibliófilo carioca. Foi lançada em 2012, pela Cosac Naify, em edição fac-similar. As informações aqui colocadas foram retiradas da apresentação do livro, feita por Antonio Carlos Secchin.

Page 48: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

48

do “quase livro do pré-poeta” de 1924, bastante diferente do poeta de Alguma

Poesia.

Datilógrafa, noiva, esposa, companheira. Em 1926, tendo Carlos

conseguido um cargo de professor de Geografia, Dolores muda-se com ele de

Belo Horizonte a Itabira. Mas não gostou nada da ideia de abandonar a capital

mineira, assim descrita por Pedro Nava, em Beira-mar:

Belo Horizonte era uma capital profundamente quieta e bem pensante. Amava o soneto, deleitava-se com sua operazinha em tempos de temporada, acatava o Santo Ofício que censurava por sua conta os filmes, suas moças liam Ardel, Delly, a Bibliothèque de ma Fille, a Collection Rose, não conversavam com rapazes e faziam que acreditavam que as crianças pussavam [sic] nas hortas entre pés de couve, raminhos de salsa, bertalha e talos de taioba. Havia uma literatura oficial. Os discursos de suas excelências eram obras antológicas [...] (1979, p.179).

No dia em que chegou à fazenda, adoeceu, horrorizada de ver aquela “vida

besta”, demasiado pacata. Voltou para a cidade, manifestando sintomas de

“gravidez extra-uterina”. De tão mal que estava, foi transportada em padiola até

Santa Bárbara, onde tomaria o trem para Belo Horizonte. Em carta de 31 de

agosto de 1926, Drummond escreve a Mário de Andrade, contando-lhe sobre a

doença de sua companheira: “trouxe Dolores para aqui, ela veio melhorando,

melhorando e agora já está boa, pelo menos aparentemente. O médico de

Itabira disse que era preciso operação, um segundo daqui disse: vamos ver, e

um terceiro, meu amigo, disse que não era preciso. Agora ela já se levantou e

sai a passeio comigo. Em Itabira esteve mal que você nem imagina: sem fala,

sem vista e resignada a morrer. Que filho custoso, Mário!”

De fato, a gravidez do primeiro filho foi bastante conturbada. No dia 19

de março de 1927, Dolores entra em um penoso trabalho de parto e no dia 21

dá à luz um menino, enorme e robusto, de nome Carlos Flávio. Asfixiado pelo

cordão umbilical, viveu apenas meia hora.

Page 49: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

49

Fig. 17 Fotos de Carlos Flávio e seu túmulo, Belo Horizonte, 21.03.1927, 08.1977. Arquivo da família.

O próprio nome Dolores, que em espanhol significa “dores”, já lhe antecipava o

sofrimento.

Quase um ano depois, no dia 4 de março de 1928, na Rua Silva Jardim,

número 117, nasce a única filha do casal, Maria Julieta, linda, quase robusta,

manhosa e risonha.

Page 50: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

50

“Dos dias em que, se o sol era forte, comia-se a merenda ao ar livre, ao redor

da mesa comprida e baixinha. Aquela vez foi terrível: a mãe, sempre com

ideias modernas, prepara sanduíche de tomate, manteiga e açúcar, e o

pãozinho insólito, que ela pretendia mastigar com orgulho, acabou sendo

objeto de escárnio geral, até mesmo da professora. Chorou muito ao chegar

em casa, e no dia seguinte a mãe foi ao Jardim reclamar, mas já não era

possível extrair do episódio o fundo de vinagre.”13

Fig. 18 Fotos de Maria Julieta, Dolores e Drummond, 1929. Arquivo da família.

13

Trecho retirado de “Faíscas”, seção “Memória”, da obra O valor da vida (1982), de Maria Julieta Drummond de Andrade.

Page 51: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

51

“(Morangos com creme numa latinha redonda, supremo requinte materno,

alguns anos depois. Como os tempos eram outros, as colegas já lhe invejavam

a delícia rosabranca.)”14

Fig. 19 Maria Julieta e Dolores, 1932. Arquivo da família.

Sendo dona de casa, com a filha e o marido para cuidar, Dolores passa

a frequentar um curso da Escola de Economia no Lar 15 , promovido pela

Companhia Força e Luz de Minas Gerais. Como se pode ver, na reprodução da

página seguinte, eram aulas oferecidas especialmente para mulheres.

14 Idem 15

O primeiro curso de Graduação de Economia Doméstica surgiu em 1952, com a implantação da primeira Escola Superior de Ciências Domésticas, na Universidade Rural do Estado de Minas Gerais, hoje Universidade Federal de Viçosa. No segundo semestre de 2014, a UFV passou a oferecer o curso de doutorado em Economia Doméstica, o único da América Latina e o primeiro do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade. (Ver https://www2.dti.ufv.br/ccs_noticias/scripts/exibeNoticia.php?codNot=20138).

Page 52: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

52

O modo de sentar, bem comportado. Todas as damas de pernas cruzadas,

mãos apoiadas no colo, vestidos longos, sapatos de salto. A moda da época,

disciplinando os corpos.

Fig. 20 Dolores – em pé, a terceira, da esquerda para a direita –, Belo Horizonte, 02.09.1933. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.

Page 53: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

53

Enquanto os homens recebiam seus diplomas de médicos, advogados,

farmacêuticos e subiam em palanques, para discursos eleitorais, as mulheres

recebiam diplomas como o de Economia no Lar. Segundo Vasconcellos (op. cit.,

p. 203),

A educação feminina, na virada do século [do XIX para o XX], estava estreitamente relacionada com as atividades desenvolvidas pelo ‘belo sexo’. A mulher da classe social mais alta deveria aprender apenas algumas das chamadas prendas de sociedade: tocar piano, falar francês, bordar, costurar. A agulha se sobrepunha à caneta. Isto ocorria porque a mulher era formada para casar e não para manter-se (p. 203).

Tal é o retrato da época. No entanto, vale lembrar que, já em 1879, algumas

(poucas) mulheres cursavam o nível superior, a partir do Decreto nº 7.247, de

19 de abril daquele mesmo ano, da reforma Carlos Leôncio de Carvalho, pela

qual se anexavam às Faculdades de Medicina as escolas de farmácia,

obstetrícia, ginecologia e cirurgia dentária (VASCONCELLOS, op.cit., p. 216).

“Facultava-se, então, nestas escolas, a inscrição para candidatos de ambos os

sexos, devendo as mulheres ocuparem [sic] lugares separados nas salas de

aula” (BERNARDES, 1983, apud VASCONCELLOS, op.cit. p. 216). Porém,

ainda de acordo com esta pesquisadora, as mulheres que estudavam recebiam

severas críticas da sociedade.

Dolores, por sua vez, fez jus ao diploma. Futuramente, os três garotos,

seus netos, teriam o gosto de vestir calças, camisas e pulôveres feitos pelas

mãos da avó. Para o marido, em sua máquina Singer, fazia até as cuecas. De

suas mãos, saíam deliciosos doces de banana, de abóbora. E a sopinha de

feijão com macarrão, tão simples, mas ainda recordada pelo neto Luis Mauricio,

com os olhos brilhando e um sorriso leve: “... aquela sopa de feijão com

macarrão, que era ótima...”, ele diz. Certa vez, com mais de 30 anos, esse

mesmo neto se intoxicou e chegou vomitando e aos gritos à casa de Dolores. E

o fato é que “a vovó acordou, me deitou e me cuidou. No dia seguinte, ela fez

pra mim sopa de arroz batida no liquidificador e em 24 horas eu fiquei bom. Ela

cuidou de mim, acho que diria, melhor que uma mãe. Nos domingos, ela não

fazia jantar, mas fazia uns sanduichinhos. Pegava o pão de forma, tirava as

beiras e colocava um presuntinho e mais alguma coisa, enrolava tudo isso num

Page 54: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

54

pano de prato úmido, colocava na geladeira e ficava bom; vinha acompanhado

por uma laranjada, ou alguma coisa que ela preparasse.”16

Dolores fazia também grandes colchas de retalhos, do tipo patchwork,

com figuras hexagonais ou quadradas. Algumas delas ainda estão com os

netos. Os objetos de vovó, guardados carinhosamente, permanecem como

uma lembrança familiar. Ao lado dos textos do avô, estão os tecidos da avó e

ambos aquecem a memória dos que ficaram. O próprio “método patchwork”,

usado em trabalhos manuais de Dolores, de certa forma é semelhante ao

procedimento adotado neste ensaio, composto de “retalhos”, fragmentos de

uma vida. Fotos, bordados, receitas, alguma breve informação no fim de uma

carta, entrevistas, bilhetes, coisas esparsas, que, juntas, tentam tecer uma

fagulha de vida, um sopro de existência, uma “colcha”. É justamente assim que

os norteamericanos costumam confeccionar as colchas de retalhos, obras de

memória, feitas com pedaços de tecidos que pertenceram à pessoa cuja vida é

relatada nesse trabalho manual. O tecido como forma de sobrevivência.

Observemos que, naqueles tempos, com frequência, essa atividade da

costura, exclusiva de mulheres, era realizada concomitantemente a uma

própria de homens: a da escrita ou da leitura.17 Enquanto as agulhas elaboram

produtos manuais, que futuramente serão passados às mãos de filhos, netos,

bisnetos, da máquina de escrever vai nascendo também um tecido outro, que,

em pouco tempo, será legado ao público, a uma nação, ao mundo. Enquanto

Penélope borda, Ulisses se entrega a aventuras, mais além, que serão

contadas para a posteridade. Em entrevista a Vera Regina Morganti (op.cit.),

Mafalda Veríssimo diz que fazia colchas de tricô enormes, enquanto Erico

escrevia, e também participou de um curso para bordar lençóis de linho, tendo

bordado todo o seu enxoval. Nydia Guimarães, mulher de Josué Guimarães,

afirma que estava sempre ao lado do marido, enquanto ele escrevia. Bordava

tapeçaria, para não conversar com ele. Dolores, por sua vez, chegou a eleger

16 Entrevista com Luis Mauricio Graña Drummond (p. 116-126). 17

Implicitamente, a imagem da mulher que tece, enquanto o homem lê, aparece na crônica “Na varanda”, do livro Um buquê de alcachofras, de Maria Julieta Drummond de Andrade: “Um casal de velhinhos se senta na varanda, num começo de tarde chuvosa, e conversa. Sobre quê? Sobre tudo, sobre nada – não interessa. Estão sentados e conversam. Ela nem sequer faz algum trabalho manual, uma blusinha de crochê para a neta, um paninho para colocar debaixo da fruteira da sala; ele não tem nenhum jornal ou livro no colo” (p. 162).

Page 55: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

55

uma cadeira de balanço18, para colocar no escritório de Carlos, ao lado da

mesa de trabalho. Lá, em silêncio, fazia seus serões de costura. Era, de fato,

como Mafalda e Nydia, uma espécie de anjo do lar, vivendo em seu cantinho,

discretamente, sempre atenta, sempre zelosa. Era ela quem, a passos leves,

entrava no escritório às dez da manhã, para levar uma laranjada, um café, um

pedaço de queijo ao marido, enquanto ele fazia o “tricô das crônicas”. (Certa

vez, Drummond chegou a declarar ao neto Luis Mauricio que não sabia fazer

um café, algo bastante natural para aquela geração).

Dolores enfrentava as enormes filas dos açougues e “era comum vê-la

fazendo feira, toda semana, caladinha, recatada, acanhada", como disse, em

entrevista, sua vizinha, dona Stella Pavan. Mesmo tendo empregadas – que

usualmente a chamavam de “Dondolô” –, ela jamais se descuidava da direção

do lar. Nenhum detalhe lhe escapava: disposição de móveis, adornos, quadros,

etc. Por uma questão estética, gostava de santos barrocos. Sua casa no Rio

tinha móveis antigos, os santos, uma virgem catalogada, comprada em Buenos

Aires – Santa Rita.

Fig. 21 Foto de Carlos Drummond de Andrade, ao lado de Santa Rita, sem data.19

18

Essa cadeira pode ser vista no início do vídeo O fazendeiro do Ar, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=UP66vBqmiNE 19 Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=carlos-drummond-de-andrade. Acesso: 20.06.2014.

Page 56: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

56

Edmílson Caminha, um dos maiores estudiosos da obra de CDA, afirma

que “Dolores era muitas: mãe dedicada, avó compreensiva, dona de casa

eficiente, amiga prestimosa, mas também, e de maneira especial, esposa de

poeta, cumpridora do papel de coadjuvante de um homem público, de um

escritor permanentemente assediado pela imprensa e pelo público. Assim,

discreta e silenciosamente, soube viver à sombra do marido.”20

Fig. 22 Dolores, Edmílson Caminha e Drummond, Rio de Janeiro, 01.1984. Foto por Ana Maria Caminha. Arquivo Edmílson Caminha.

Certamente, a recíproca não foi verdadeira: ele não viveu à sombra dela;

no entanto, é também incontestável que, sem o apoio constante de Dolores,

Carlos teria encontrado maiores dificuldades ao longo de sua carreira.21 Por

exemplo, não foram poucas as vezes em que ela atendia o telefone ou

chegava à janela para dizer que ele não se encontrava. O marido estava, sim,

no escritório, fazendo seu trabalho, em paz, e na tranquilidade garantida pela

20

Anexo II (p. 127-129): entrevista com Edmílson Caminha, concedida a mim, em 10.12.2013. 21

Vejamos, por exemplo, o que o escritor Erico Verissimo fala sobre sua esposa, no livro Solo de Clarineta: “Mafalda amadurecia, transformando-se numa companheira compreensiva que me dava todo o apoio moral e o estímulo de que eu necessitava. Sem sua paciência, sua tolerância, seu bom-senso e seu bom-humor, minha carreira de escritor teria sido muito mais difícil do que foi ou talvez mesmo impossível” (1987, p. 264).

Page 57: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

57

custódia da mulher. De fato, Dolores cuidava do tempo do marido. Não

escrevia, mas cuidava do que ele escrevia, entendia o seu ofício.22 E é curioso

o fato de que na obra dele existam apenas dois poemas para ela.23

Segundo seu genro, o escritor argentino Manuel Graña Etcheverry24,

Dolores era muito econômica e, em tempos de inflação, sempre que podia

trocava cruzeiros por dólares, fazendo, assim, sua pequena economia. Carlos,

sendo também uma pessoa econômica, mas sem se importar com o assunto

dos dólares, se divertia com a preocupação da mulher, a quem,

carinhosamente às vezes chamava de “Dolares”.

“Dolares” costumava guardar dinheiro em fronhas e envelopinhos. (De

fato, após seu falecimento, os netos encontraram embrulhinhos com notas de

denominações já sem curso legal). Era ela quem cuidava das finanças miúdas

do lar, provendo as formas materiais de sobrevivência, e isso talvez explique

esse seu modo mais cuidadoso de lidar com o dinheiro. A propósito de

mulheres administrando o dia a dia de homens notáveis, nos permitimos

mencionar o seguinte caso, transcrito do livro O casaco de Marx, de Peter

Stallybrass (2012): “foi Marx quem escreveu sobre o funcionamento do dinheiro,

mas eram sua mulher, Jenny, e sua criada, Helene Demuth, que organizavam

as finanças da casa e faziam as visitas à loja de penhores.” E Dolores/Dolares,

em seu árduo vai-e-vem cotidiano, como ela mesma afirmava, era “precavida

como a formiga da fábula”.

22

Nesse sentido, o comportamento das mulheres de escritores se assemelha bastante. Dorine, a esposa de André Gorz, dizia ter se “unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode se apossar dele por completo, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa. [Ela afirmava que] amar um escritor é amar que ele escreva. ‘Então escreva!’” (GORZ, 2012, p. 21). 23

“Anoitecer”, do livro A Rosa do Povo e “A companheira”, em Poesia errante, derrames líricos (e outros nem tanto, ou nada). 24

Anexo III (p. 130-132): entrevista com Manuel Graña Etcheverry, concedida a mim, em 11.11.2013.

Page 58: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

58

Fig. 23 Bilhete de Drummond para Dolores, 25.12.1970. Arquivo da família.

Fig. 24 Bilhete de Drummond para Dolores, 19.04.1971. Arquivo da família.

Page 59: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

59

Fig. 25 Página do caderno de receitas de Dolores. Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de

Janeiro.

Page 60: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

60

A imagem inevitável da mulher na cozinha. Naquele tempo, era o lugar de onde

ela podia falar de si, colocando em prática o que lhe fora ensinado.

Fig. 26 Caderno de receitas de Dolores, Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

Page 61: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

61

Em boa parte dos Livros da Odisseia, Penélope não é vista; ela se recolhe.

Está, provavelmente, em algum canto, tecendo a sua vida, a sua própria

história, que é também a de outros. Tecer é uma forma de escrever a existência

com linhas aveludadas. Aracne, a jovem tecelã, não contava e arquivava

histórias por meio do que tecia? Aliás, texto é palavra variante de tecido... O

ponto dado com elegância, o arremate, os nós, a trama, o enredo, o fio da

meada, o novelo e a novela: a escrita elaborada de tantas outras formas...

Fig. 27 Os bordados de Dolores, leitora número 1 da revista alemã Burda, de corte e costura. Arquivo da família.

“DASDORES (assim se chamavam as moças naquele tempo) [...] Dasdores e

suas numerosas obrigações: [...] velar pelos doces de calda, pelas conservas,

manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe o

Page 62: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

62

máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da

educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não

ocupar todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode

vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que

se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores nunca tem tempo para

nada. Seu nome, alegre à força de repetido, ressoa pela casa toda. “Dasdores,

as dálias já foram regadas hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo

desse gato furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para

sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e providencia mil

coisas...”25

Fig. 28 Pano de mesa feito por Dolores. Arquivo da família.

25 Excerto do conto “Presépio”, do livro Contos de Aprendiz, de Carlos Drummond de Andrade.

Page 63: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

63

Fig. 29 Dolores, 1930, Arquivo da família.

Em 1934, Dolores e a filha de seis anos permanecem em Belo Horizonte

por um tempo, enquanto o marido está no Rio de Janeiro, à espera de ser

nomeado no Gabinete de Gustavo Capanema, ministro de Educação e Saúde

Pública, e procurando alguma casa para alugar. No fim do ano, arrumam as

malas e partem para a capital.

Page 64: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

64

Provavelmente, o Rio de Janeiro que encontraram...

Fig. 30 O bairro de Ipanema, 1928. Atrás dos fotografados, a Avenida Vieira Souto. Ao longe, pode-se ver a Igreja de Nossa Senhora da Paz, recém-inaugurada. No fundo da foto, o Sumaré e também os muitos morros baixos de Ipanema, que foram derrubados.

Arquivo de George dos Reis.

Page 65: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

65

De Minas abissal para o mar aberto do Rio

E a cabeça da filha, buscando o colo da mãe.

Fig. 31 Drummond, Dolores e Maria Julieta, Rio de Janeiro, 1935. Arquivo da família.

A família levava uma vida simples, de hábitos frugais. Horário para almoço e

jantar. Comida mineira. Couve, um bifinho, ovo e o angu do marido que, como

ele mesmo dizia, era sempre bom porque, ao ser alimento insosso, nunca

estava ruim. E ela dava a ele um copo de leite, após o almoço. Mineiros...

Page 66: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

66

Depois, a vida na casa da rua Joaquim Nabuco, 81 (segunda residência

da família na então capital da República). A falta de água26, que nunca era uma

novidade em Copacabana, e as goteiras, causadas pelos temporais de primeira

classe, recolhidas com pinicos e baldes. No dia seguinte, o sol, sempre a

postos, alheio a tudo o que se passou. Às cinco da manhã, a dona de casa já

se movimentava: o café, o bolo e até o feijão de molho, tudo bem arranjado e a

mesa pronta nos horários de costume.

Certo dia, por volta de 1945, a filha Maria Julieta, tendo que ir a um

acampamento de bandeirantes, deixa uns papéis com a mãe, com o rascunho

de uma novela que havia escrito. A garota tinha apenas dezessete anos.

Dolores, sempre atenta, sempre solícita, com sua perícia de datilógrafa, bateu

tudo à máquina. Foi a primeira leitora de A busca – assim se chama a obra.

Quando a filha voltou, mostrou os escritos ao pai, que os levou à Editora José

Olympio, onde Rachel de Queiroz, consultada, aconselhou a publicação.

Nasceu aí uma das mais jovens escritoras brasileiras. Dolores, nos bastidores,

uma vez mais, é testemunha de parte da criação de nossa história literária.

26

As duas primeiras crônicas que CDA publica no “Correio da Manhã”, em 9 e 10 de janeiro de 1954, “A pipa” e “Relações de água”, ilustram o problema sistêmico da falta de água na cidade do Rio de Janeiro, em 1954, auge da crise de sua distribuição na capital, que só será sanada com a construção da estação de tratamento do Guandu, por Carlos Lacerda, quando governador do Estado da Guanabara (1960-1965).

Page 67: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

67

Fig. 32 Dolores e Carlos, 1963. Arquivo da família.

Mas, entre mãe e filha, além do carinho, havia certa tensão, como

lembra o neto Luis Mauricio. Carlos e Maria Julieta tinham um mundo à parte, o

mundo literário, coisa deles dois. Dolores aí praticamente não entrava.

Segundo o genro Manuel Graña Etcheverry, Dolores nunca teria feito críticas

literárias a Carlos. Maria Julieta, sim, o fazia e, eventualmente, ele, o genro,

também o fez. No entanto, Dolores, em seu trabalho silencioso, de formiga, não

foi talvez (implícita) personagem de uma história literária? Não Dulcinéia do

Toboso, nem Beatriz de Dante, mas personagem de carne e osso. Acaso os

leitores e as mulheres dos escritores ou os maridos das escritoras, que

permanecem por ali, calados, próximos aos livros, não estariam bem acima do

patamar de uma nota feita às margens de um manuscrito, uma palavra riscada,

uma caricatura elaborada num momento de distração? Matéria para a crítica

genética.

Não era costume à época que a mulher questionasse o marido. E

Dolores era uma representante da geração brasileira a que pertencia, como

afirma Edmílson Caminha, em sua entrevista, na qual também relata, ao ser

Page 68: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

68

questionado sobre a contribuição dela ao trabalho literário do marido: “Tenho a

certeza de que Dolores foi fundamental na vida de Carlos, como o porto seguro

de que ele necessitava, como ser humano e como artista. Sabiamente, ela o

compreendia nos seus múltiplos papéis – de marido, de escritor e de homem

que nunca perdeu a capacidade de amar. Inteligente que era, sabia dos

relacionamentos extraconjugais de Carlos, mas optou por suportá-los, em

nome da sobrevivência da família e da relação minimamente harmoniosa que

deve prevalecer entre marido e mulher. Não tenho dúvida de que uma

separação teria sido fatal para Drummond, pela ausência da pax domestica

sem a qual não conseguiria viver nem escrever. Assim, a convivência com

Dolores refletiu-se na obra de Carlos (não apenas pelo equilíbrio emocional

que lhe proporcionava, como acabo de dizer), mas explicitamente, também,

nos poemas em que faz alusão direta à companheira de toda uma vida.

Namorador impenitente (o que só depõe em favor dele...), Drummond não teria

conseguido viver sem Dolores.”27

Fig. 33 Maria Julieta, Dolores e Carlos, 1951. Arquivo da família.

27 Entrevista com Edmílson Caminha (p. 127-129).

Page 69: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

69

Fig. 34 À esquerda, Manuel Bandeira; no centro, os noivos Pomona Politis e Thiago de Mello; à direita, Dolores e Carlos, padrinhos do casamento, 1951. Arquivo da família.

Sobre as relações extraconjugais a que Caminha faz alusão, paira uma

vaga reminiscência de algo que haveria sido contado (por Dolores?). Ela teria

dito ao marido: “Pois sim, raparigas, raparigas... Fique com elas, mas não lhe

dou mais filhos!” Como dissemos, isto não se constitui sequer em lembrança,

nunca foi confirmado e, talvez, jamais o seja. O fato é que eles não tiveram

mais filhos. Há também uma versão (tampouco confirmada) da cena em que

um vaso de flores voa para cima do poeta, quebrando-lhe um braço... A filha,

Maria Julieta, algumas vezes também criticaria o pai por sua infidelidade, de

mais de 30 anos, em seu relacionamento com Lygia Fernandes, mulher mais

jovem, que o itabirano conheceu, na década de 50. Segundo conta José Maria

Cançado, em seu livro Os sapatos de Orfeu, quase todas as tardes, depois do

trabalho, Carlos comparecia ao apartamento da companheira. Alguns de seus

versos são dedicados a ela.

Naqueles tempos, em que ter uma amante, de alguma forma, era

socialmente aceitável (para os homens), tudo convergia para que não

Page 70: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

70

houvesse mesmo a dissolução das famílias. E o que diziam as publicações das

revistas a respeito das aventuras extraconjugais?

Para o homem:

[...] que atitude deve tomar um marido que se sabe enganado?

Permanecer ao lado de quem o atraiçoa seria indigno de sua

parte [...] Mesmo porque não se pode exigir de um marido que

viva com uma mulher que lhe é infiel. Não pode haver

harmonia num clima de indignidade. Num caso desses o pai

tem que fazer da fraqueza das crianças a sua armadura de

coragem para enfrentar sozinho as responsabilidades que

deveriam ser desempenhadas a dois (O Cruzeiro, 28 de jan.

1956 apud Bassanezi, op. cit. p. 634).

Para as mulheres:

[Mantenha-se] no seu lugar de honra, evitando a todo custo

cenas desagradáveis que só servirão para exacerbar a paixão

de seu marido pela outra [...] [Esforce-se] para não sucumbir

moralmente [...] levando tanto quanto possível uma vida normal,

sem descuidar do aspecto físico [...] (O Cruzeiro, 04 de jun.

1960, apud Bassanezi, op.cit.. p. 635).

E ainda:

[...] sorrir e não fazer cenas para que o marido, a fim de fugir

dessas cenas, não caia nos braços de outra e abandone de

vez a casa (Jornal das Moças, 08 de mar. 1956, apud

Bassanezi, op.cit. p. 635).

Como vemos, a mulher que se separasse, ou que causasse a separação, não

receberia da sociedade a mesma complacência dada ao homem.

Conforme já foi dito, no ano de 1950, apenas o desquite era permitido, e

este não dissolvia o casamento. Guimarães Rosa, por exemplo, após seu

relacionamento extraconjugal com Aracy de Carvalho, teve seu desquite

legalizado em abril de 1943, durante sua estada na Colômbia. Os dois se

casaram por procuração no México, no dia 20 de agosto de 1948 (SCHPUN,

Page 71: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

71

2011, p. 378-379). Nessa época, no Brasil, uma pessoa desquitada não podia

assumir oficialmente outro laço conjugal. Assim, tiveram que se casar em terras

estrangeiras.

Em 13 de março de 196028, Drummond, em carta para Dolores, que

estava em Buenos Aires visitando a filha, dá a notícia da separação de Portinari

e sua mulher Maria nestes termos: “Só uma notícia triste e que me chocou

extremamente: Portinari e Maria se desquitando”. E Dolores responde, em

carta de 17 de março de 196029: “Fiquei sofrida com o caso Portinari, devia

esperar isto de todo casal, mas este tão amigo, tão eles mesmos.” Futuramente,

quando, em 1970, a própria filha Maria Julieta e seu marido Manolo se

separaram, Dolores, andando pela Avenida Santa Fe, em Buenos Aires, ao

passar por ele, virando a cara, finge não vê-lo. Mas, pouco depois, tudo se

acertou e reataram a amizade bonita e sincera que sempre tiveram.30 Não é

preciso mais para dizer que ambos eram contra a dissolução do casamento, da

família, etc. Um precisava do outro, ambos se apoiavam. Além disso, a esposa

mineira era um dos poucos elos que levavam o marido ao seu passado, tão

celebrado em sua poesia e na sua prosa, e ele também era ponte para o

passado de Dolores. Como afirma o neto Luis Mauricio: “Apesar das coisas, foi

um casal bem constituído, um típico casal da época, de classe média. Havia

essas desavenças, essas coisas que, hoje em dia, não seriam toleradas por

uma mulher, nem por um marido, enfim, mas era assim mesmo o tempo deles.

Foi assim. Nunca se separaram, nem creio que tenham cogitado sequer essa

ideia.”

Em entrevista concedida a Leda Nagle, em 1980, quando questionado

sobre a situação da mulher brasileira na época, o escritor não hesita em dizer:

“Acho que a minha filha Maria Julieta ilustra bem esse esforço da mulher no

sentido de ela se construir uma pessoa autônoma, independente, pensando

pela própria cabeça e influindo na sua própria vida. As mulheres estão fazendo

28

Anexo IV (p. 141). 29

Anexo V (p. 142). 30

Vale a pena mencionar o seguinte episódio para destacar o carinho constante que existiu entre Manolo e seus (ex) sogros. Certa vez, ao final dos anos 70, ele foi a um congresso na UFRJ apresentar um trabalho seu sobre o ritmo na poesia. Carlos e Dolores, um casal tão reservado, que quase não recebia visitas em casa, lhe enviaram um telegrama dizendo: “Fique conosco”. Mais ainda, como era costume nos tempos do casamento com Maria Julieta, eles lhe cederam o próprio quarto.

Page 72: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

72

um grande trabalho nesse sentido. O que eu acho muito simpático. Até então,

nós éramos proprietários da mulher. Hoje elas não são mais propriedades

nossa. Isso é ótimo.” E sobre os movimentos de libertação do homem nos

Estados Unidos, Drummond afirma: “Acho que o homem não precisa muito

desse movimento. O homem precisa ceder alguns dos privilégios que ele

sempre teve, para haver uma competição saudável, sobretudo no mercado de

trabalho, entre o homem e a mulher. Isso é o que eu acho, uma vez que ela

conquista a independência econômica, não se dobra mais a caprichos

masculinos, nem a gente vai domesticá-la como se fosse um bicho, um gato.

Acho que a coisa está caminhando para um equilíbrio bastante razoável nesse

sentido” (RIBEIRO, 2011).

Page 73: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

73

E havia o exemplo dos pais de Dolores – casados há 60 anos.

A tradição não é uma vocação. É uma herança.

Fig. 35 Pais de Dolores, foto frente e verso, 09.06.1951. Arquivo da família – Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.

Em 1949, a filha Maria Julieta casa-se com o advogado e escritor

argentino Manuel Graña Etcheverry. A partir dessa data, Dolores passa a ir

regularmente a Buenos Aires, na maioria das vezes sozinha, pois o marido,

além de não gostar de viajar, tinha que ficar no Rio, já que era funcionário

Page 74: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

74

público. No mês de maio de 1950, tendo viajado à Argentina, pela primeira vez,

ao saber da gravidez de Maria Julieta, Dolores já se põe a tricotar.31 Queria

presentear o primeiro netinho com uma boa produção de agasalhos, para que

ele enfrentasse garbosamente o frio cortante do inverno portenho. Todos os

anos, Dolores tirava suas férias conjugais e da labuta diária, indo a Buenos

Aires. Tal qual uma flanêuse, trocava pernas pela calle Florida, Avenida Santa

Fe e por onde pudesse encontrar santos barrocos32, tapetes persas, turcos,

chineses. Antiquários e leilões de móveis antigos: aí estavam ela e a filha.

Passava algum tempo lá, com a vida bem diferente da que levava no Rio.

Festas pomposas em navios brasileiros, cinema a qualquer dia, a qualquer

hora, sem aquele rigor do cineminha dominical de bairro, das 14 horas, com o

marido. Apresentações do mais alto nível no Teatro Colón33, no Grand Splendid,

jantares na Embaixada do Brasil, em casa de conhecidos, passeios pelos

arredores de Buenos Aires, exposições de arte.

Fig. 36 À esquerda, Maria Julieta, Dolores e Manolo, Buenos Aires, 1963. Arquivo da família.

31

Anexo VI. Carta de 13 de maio de 1950 (p. 134). 32

Anexo VII. Carta de 16 de setembro de 1965 (p. 146). 33

Anexo VIII. Carta de 04 de agosto de 1957 (p. 138).

Page 75: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

75

E os netos foram chegando. As mãos da avó, tecendo; cartas sendo escritas,

uma a uma, enviadas ao marido, no Brasil, iam relatando a infância das

crianças: um dentinho de leite que caía, uma gripe, um tombo, as notas

escolares, o desenvolvimento nas artes, nos idiomas, nada escapava àquela

avó atenta. Contava-lhes estórias divertidas. Fã dos desenhos do netinho mais

velho, mandava-os ao avô, dizendo: “É preciso aproveitar esse menino,

Carlos!”. Nas cartas, descrevia o olhar, a emoção e o sorriso de cada um, em

sua chegada ao aeroporto de Ezeiza34, um verdadeiro acontecimento para as

crianças. Nessas tantas missivas que voavam de Buenos Aires ao Rio de

Janeiro, Dolores tecia a história de sua família.

Fig. 37 Manolo, Dolores, Carlos e o cão Puck, 09.1951. Arquivo da família.

34

Anexo IX. Carta de 23 de agosto de 1958 (p. 140).

Page 76: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

76

Com um olho em Buenos Aires e outro no Rio de Janeiro, Dolores

cuidava do Ministério Doméstico, como ela e Carlos brincavam de chamar a

própria casa.35 Pague o leite e o jornaleiro, na data tal, ela pedia. “Caso Manolo

queira trazer alguma coisa: as toalhas de banho estão em sua valise nova, no

porta-malas e ainda há dois lençóis e uma toalha de rosto numa caixa, no

armário de espelho de nosso quarto. Há também o travesseiro, que poderá vir

numa bolsa de papel que o Banco de Crédito Real nos deu e que está também

no mesmo armário embaixo, ao lado das gavetas. Há dois pares de sapatos

Vulcabras, embaixo, no mesmo lugar, em caixas. E principalmente os copos de

cerveja no bufê da sala de jantar. Se ele quiser trazer alguma coisa, poderá

escolher.” Tudo em perfeita ordem. Tudo bem explicado, preciso, para não

tomar o tempo do marido, que estaria ocupado com os trabalhos de escritório,

trabalhos estes que garantiam ao casal uma vida um pouco melhor, em termos

financeiros.

Fig. 38 Da esquerda para a direita, a pintora argentina Mary Graña, sua cunhada Maria Julieta e Dolores, Buenos Aires, sem data. Arquivo da família.

35

Anexo X. Carta de 7 de julho de 1963 (p. 143).

Page 77: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

77

Fig. 39 Carta de dona Sinhá para Dolores, 29.11.1952. (Depois da morte do marido, o capitão Sevanir, dona Sinhá vai viver em São Paulo, onde estavam alguns de seus

filhos). Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.

Page 78: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

78

Fig. 40 Carta de dona Sinhá para Dolores, 23.07.1953. Arquivo da família - Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.

Page 79: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

79

Geralmente, Dolores viajava em agosto, que era o mês do aniversário do

segundo neto, Luis Mauricio, e passava um mês em Buenos Aires.36 Aquilo

tudo era uma festa só: ela levava presentes, normalmente, piorras, discos e

relógios, e as crianças gostavam dela, porque era boa e sempre carinhosa. Era

uma alegria, quando ela abria a mala e apareciam os brinquedos! Por outro

lado, botava medo nos meninos, enquanto dormia. “A vovó roncava alto.” Que

terror!

Fig. 41 Carlos Manuel, Drummond, Maria Julieta e Dolores, Buenos Aires, 1953. Arquivo da família.

36

Anexo XI. Carta de 27 de agosto de 1964 (p. 145).

Page 80: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

80

Fig. 42 Da esquerda para a direita, Luis Mauricio, Maria Julieta, Carlos Manuel e Dolores, Buenos Aires, 24.09.1955. Arquivo da família.

Fig. 43 Da esquerda para a direita, Pedro Augusto, Dolores e Luis Mauricio, à porta da casa da família, Arroyo 831, Buenos Aires, 1964. Arquivo da família.

Page 81: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

81

No Rio, Dolores saía pouco e, quando o fazia, era em companhia das

primas Pitu e Maria. Carlos, sempre ocupado com seus escritos, reservava os

domingos para, religiosamente, almoçar com a esposa e ir ao cineminha de

bairro, das 14 horas. E, quando Manolo ia de carro ao Rio de Janeiro,

passeava com a sogra. Ela gostava de ver as construções de pontes e túneis

novos. Queria acompanhar a metamorfose da cidade grande. Certa vez, numa

Barra da Tijuca ainda pouco urbanizada, genro e sogra viram como se filmava

a queda de um automóvel no mar. Eram cenas de Diamantes a gogó (1967),

filme dirigido por Giuliano Montaldo.

Fig. 44 Dolores e Carlos, por Alair Gomes, Rio de Janeiro, 1978. Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa,

Rio de Janeiro.

Page 82: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

82

No apartamento da rua Conselheiro Lafaiete, para onde se mudaram em

1962, pelas noites, programas televisivos e, em particular, novelas distraiam o

casal – ambos eram “noveleiros”, embora Carlos, geralmente, fosse um

espectador “tangencial”. Em carta de 17.7.79, estando Dolores em Buenos

Aires, Drummond narra parte da novela “Pai Herói” 37 , colocando sua

companheira a par de tudo o que havia se passado: “A novela do ‘Pai Herói’

está pegando fogo. Imagine você que André (Tony Ramos) foi preso sob a

acusação de haver matado e enterrado em lugar ermo sua mulher Karina. O

júri absolveu-o por falta de provas, exatamente como ao primo Leopoldo Heitor:

o cadáver encontrado não era o de Karina. Enquanto isso, esta, disfarçada com

óculos escuros, assistia ao júri do coitado, e ninguém a reconhecia... Afinal, ela

deu-se a reconhecer à primeira filha, no jardim público, aonde levara o filho de

André e as duas crianças ficaram amigas para sempre. Rosa Maria Murtinho, a

matusquela, apaixonou-se pelo malandro do Claudio Cavalcanti e resolveram

viver juntos. Como este não aparecesse, ela subiu ao telhado e lá de cima

começou a fazer uma porção de micagens, ameaçando atirar-se. Juntou gente,

e o Corpo de Bombeiros salvou a situação. Aí o Cláudio apaixonou-se deveras

pela maluca, e fez um filho em sua outra namorada, de puro entusiasmo pela

primeira. O César continua cada vez mais mau caráter, a ex-babá sente

remorso por haver abandonado a filha de Karina, mas promete não contar nada

a ninguém se César lhe arranjar emprego. E o Baldaracci começa a ficar

desmoralizado. Perdeu a demanda com o pai de Ana Preta, que agora está rico,

enquanto ele, Baldaracci, se entrega à farra rasgada, e seu pai Colasanti se

prepara para casar. Janette Clair é mesmo um gênio, né?”

37

Escrita por Janete Clair, exibida pela Rede Globo, de janeiro a agosto de 1979.

Page 83: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

83

Sou mulher feita e refeita, fui triste, fui prisioneira, hoje

sou frágil, sou livre, coleciono lutas e abandonos na pele

cicatrizada.

Maria Julieta Drummond de Andrade

Fig. 45 Dolores, Rio de Janeiro, abril de 1981. Arquivo da família.

Amante de palavras-cruzadas e fiel leitora de O Globo, pedia aos netos,

assim que almoçavam depois da praia, para irem, ali mesmo, pertinho da

Conselheiro Lafaiete, buscar o jornal, que, na época, ainda era vespertino. Os

garotos, já cansados, curtindo as férias, se recusavam a fazer o que a avó

pedia, mas nunca saíam vitoriosos, pois, sistematicamente, eram submetidos a

uma certa chantagem psicológica: “Tudo bem, eu vou, mas se depois vocês

souberem de uma velhinha que apareceu morta aí na rua...” Não havia outro

remédio senão, é claro, atender ao pedido da vovó.

Page 84: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

84

Fig. 46 Maria Julieta, Carlos e Dolores, no Hotel Fazenda Pedras Negras, em Rio Bonito, RJ, 10.1982. Arquivo da família.

As fotos revelam certos detalhes, evocam momentos, fazem uma

espécie de congelamento e mudo recorte do tempo. Falam muito. Calam muito.

O retrato de outubro de 82 nada nos conta sobre uma história que, segundo

Pedro Augusto, aconteceu no dia em que ele foi feito. Quando Carlos

completou 80 anos, Dolores ficou comovida pela quantidade de homenagens

que o companheiro havia recebido. Os repórteres queriam uma entrevista, uma

palavra, ao menos. Fãs mandavam flores, doces, bebidas, presentes de toda

ordem – a filha Maria Julieta dedicou-lhe seu livro O valor da vida, publicado

nesse ano de 1982. Era a literatura em festa, em grande comemoração.

Page 85: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

85

Fig. 47 Dolores e Carlos, na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 05.11.1982. Arquivo

da família.

Na hora do almoço, a família sentada à mesa, para brindar o aniversário do dia,

e uma cena que ficou marcada na memória de Pedro: Dolores se põe a chorar,

dizendo que todos se lembravam do Carlos, todos procuravam por ele, queriam

falar com ele e ninguém falava dela, ninguém se lembrava dela. Poderia se

dizer que, nesse momento, Dolores revelou o sentimento da mulher que está

sempre ao lado, girando em torno do centro, o anjo do lar, que aparece aqui e

ali, sem que os outros percebam sua presença solitária. Um estar-ausente.38

38

Parece-nos que vem a propósito citar duas autoras. Simone de Beauvoir, no livro O segundo sexo afirma: “Não é permitido à mulher fazer uma obra positiva e, por conseguinte, fazer-se reconhecer como pessoa acabada. Por respeitada que seja, é subordinada, secundária, parasita. A grave maldição que pesa sobre ela está em que o sentido mesmo de sua existência não se encontra em suas mãos. Eis por que os êxitos e os malogros de sua vida conjugal têm muito mais gravidade para ela do que para o homem: este é um cidadão, um produtor, antes de ser um marido; ela é antes de tudo – e muitas vezes exclusivamente – uma esposa, seu trabalho não a arranca de sua posição; é desta, ao contrário, que ela tira ou não seu valor” (BEAUVOIR, 1990, p. 209-210). E Eliane Vasconcellos (op. cit.) assevera: “a mulher deveria saber, inteligentemente, usar a sua capacidade e seus dons, com discrição, em benefício do marido, respaldando-o nas letras e artes ou simplesmente na profissão que exercia” (p. 121).

Page 86: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

86

Dolores deu à sua época o que esta lhe pediu. Se sua identidade só se

(re)constrói a partir do sobrenome e da presença do marido, se sua existência

foi completamente vinculada à do esposo, sua figura, mesmo de forma não

explícita, deve ter deixado rastros na obra do poeta itabirano. É curioso

observar que, ao falar da vida e obra de Drummond, os estudiosos poucas

vezes citam o nome de Dolores. Vinte anos após sua morte, ela ainda continua

uma presença-ausente.

Fig. 48 Bilhete de Dolores para Drummond, 31.10.1979. Arquivo da família. “Carlos, meu grande amigo do coração: ouça estes formidáveis concertos para piano de Mozart e nunca se esqueça de sua companheira de todos os momentos. Um beijo

de Dolores. 31.X.79.”

Dolores apreciava os grandes compositores da música erudita e, como

nos narra Pedro Augusto, “ela os reconhecia ao escutar suas obras na Rádio

MEC”. E, conforme nos comenta Luis Mauricio, era leitora de Baudelaire

(“conservei a linda edição francesa, com sua própria assinatura, de Les fleurs

du mal, Payot & Cie; 10 x 7 cm, encapada em fazenda: um mimo!”). A avó dos

meninos conhecia bem o peso de um nome consagrado e possuía senso de

humor, como vemos no seguinte episódio. Certa vez, ao receber um amigo de

seu neto Pedro, pregou-lhe uma boa brincadeira. Havia, entre os adornos da

casa, a bela cabeça de um santo antigo. Sem cerimônia e com espírito

brincalhão, dando umas piscadelas para o neto, a anfitriã deslumbrou seu

jovem visitante, fazendo-lhe acreditar que era peça do Aleijadinho! E Dolores

Page 87: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

87

era mesmo assim, subvertia a realidade, nas pequenas coisas. Referia-se a

Jorge Luis Borges com apenas um nome: “Jorges” e, assim, a seu modo,

mostrava ser também borgeana. Essa era, possivelmente, uma forma que tinha

de criticar certas facetas da existência. Quando os netos eram ainda pequenos,

Dolores lhes contava a história de Cafas-leão, mítico gigante que percorreu (e

ainda percorre) gerações e gerações da família Drummond39, e fazia com que

os garotos acreditassem que ela iria publicar nos Estados Unidos um livro

sobre esse personagem, a um tempo, simpático e desastrado. As crianças

levavam o caso muito a sério. E isso permanece no imaginário dos netos como

uma boa lembrança. Drummond, em carta de 16 de agosto de 195640, dirige-se

à companheira com estas palavras: “Dolores, onde estás, onde estás que não

respondes? Escreves o teu romance e por isso não tens tempo de mandar

algumas linhas para este velho companheiro?” A história ficou como uma

anedota, uma brincadeira, mas, quem sabe, podia sim ter sido um desejo

recôndito de Dolores. Porém, o que ela efetivamente usou para imprimir a

memória de sua existência foi a máquina de costura, a agulha e a linha; e, na

memória dos seus netos, a mesa posta, a decoração do lar, o seu carinho, por

fim, coisas miúdas, de todo dia, que as atas da História não se interessam

muito em arquivar. Como afirma Virginia Woolf (1985), no ensaio Um teto todo

seu: “todos os jantares foram preparados; os pratos e os copos, lavados; as

crianças, mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta de

tudo isso. Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história tem uma palavra a

dizer a esse respeito” (p. 118).

Voltemos a Dolores. Como nos contam seus netos, era de um natural

bom humor, uma pessoa extremamente tolerante – “foi o único membro da

família que jamais me censurou”, segundo Luis Mauricio. Mas também tinha

caráter forte e seu lado, digamos assim, ranzinza. Na velhice, costumava

repetir muitas vezes a mesma coisa. Disso bem sabem os faxineiros que certa

vez limparam a fachada do prédio onde ela vivia: “Ô, moço, toma muito cuidado,

não vai quebrar meu vidro!” “Não, dona, fique tranquila.” “Olha lá, toma cuidado

com meu vidro, não vai quebrar, não!” Idem, idem, idem. Até que... só se viram

39

Vide o poema “Didática”, em Boitempo, de CDA. 40

Anexo XII (p. 136).

Page 88: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

88

cacos de vidro pelo chão. Dolores, é claro, não podia deixar de acrescentar:

“Ah, tá vendo! Eu disse que vocês iam quebrar, eu disse!” Seus netos se

lembram também de uma curiosa superstição de Dolores: toda vez que entrava

em casa, tocava a carranca do São Francisco que ficava entre a porta do

elevador e a da própria casa.

Fig. 49 Dolores, Rio de Janeiro, circa 1980. Arquivo da família.

Testemunha da experiência humana, em 1969, Dolores reuniu-se com

Carlos, em frente à televisão, para ver a alunissagem de dois corajosos. Não

bastassem as aventuras terrestres, agora o homem buscava a lua. O ambiente

do lado de cá era de grande expectativa, com aquela transmissão ao vivo para

o mundo inteiro!

Page 89: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

89

Fig. 50 Bilhete com autocaricatura de Carlos para Dolores, Natal de 1969. Arquivo da família.

Fig. 51 Bilhete de Dolores para Carlos, 31.10.1972. Arquivo da família.

Page 90: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

90

Mais de uma década depois, com seus netos, no seu apartamento da

Rua Conselheiro Lafaiete, Dolores assiste à primeira aterrisagem do ônibus

espacial. No momento crucial, o telefone começa a tocar; ela atende e, sem

prestar muita atenção ao interlocutor, lhe diz: “Ô, moço, não vê que estamos

assistindo ao homem espacial!!!”, encerrando assim, sem mais, a chamada

inconveniente.

Outro episódio engraçado de sua velhice pinta de corpo e alma seu

precavido espírito mineiro. Dolores, de formação católica, não foi praticante, na

idade adulta. No entanto, conservou alguns vestígios dessa educação. Certa

vez, quando soube da morte de um dos seus irmãos, pediu uma missa por sua

alma, à qual assistiu com Maria Julieta. Quando o padre cita o nome do irmão

falecido, também menciona o nome de outro irmão de Dolores, sumido do

convívio familiar, há muitos anos. Maria Julieta, atônita, pergunta à mãe: “ué,

ele também morreu?”, ao que Dolores responde: “Não, não sabemos, mas

pelas dúvidas...”

Page 91: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

91

Dolor. Sentimiento de pena y congoja.

(Diccionario de la Real Academia Española)

Fig. 52 Maria Julieta e Dolores (atrás, o retrato de Carlos, feito por Portinari), Buenos Aires, 1979. Arquivo da família.

Não há como deixar de frisar, uma vez mais, os rastros deixados por

Carlos nos documentos que nos levam a Dolores. Na foto acima, vemos o pai,

a mãe e a filha. A figura paterna aparece em destaque, no alto, como se

estivesse ali para proteger a família, desde um lugar privilegiado, desde um

espaço reservado só para si.

No fim da década de 70, quando a filha Maria Julieta começa a luta

contra o câncer, Dolores, incansável, como sempre, apronta as malas e,

sozinha, toma o avião para Buenos Aires. Mesmo com idade já avançada,

ainda podia oferecer sua companhia e seus préstimos. Antes de Carlos

também viajar à Argentina, ela o mantém informado, por meio de cartas.

Escreve sobre o estado de ânimo de “Bruxinha” – apelido que os pais deram à

filha – acompanhando a doente, passo a passo. Em carta de 26 de junho de

Page 92: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

92

1979, Dolores descreve uma cena impactante, onde o corpo da filha aparece

nu e mutilado, diante dos olhos da mãe: “Sexta-feira, foi um dia horrível para

mim. Eu ainda não tinha visto a cicatriz: ela achava que me deveria mostrar

mais tarde, bem mais tarde. De repente, depois do banho, ela me chamou e,

abrindo a toalha, me disse: ‘Olha, olha bem!’ Nem sei como aguentei. Tudo

estava O.K., muito melhor do que eu esperava. Mas, quando vi o peito mutilado,

o mundo desabou sobre mim. Nunca passei por um momento assim. Mas reagi

instantaneamente. ‘Que tal, mãe? Que tal, mãe?’ ‘Ótimo?’ A voz custou a vir,

mas disse logo: ‘ótimo!’ ‘assim é que eu gosto de uma mãe durona como V.’

‘Que dor, meu Deus! Que desgraça!’”41

Em 1981, a saúde de Dolores já estava bastante debilitada. Após ter

passado por uma cirurgia de nódulo frio, não conseguia ir à rua; não

comandava as pernas endurecidas e sentia algumas vertigens. E janeiro de

1982 chegou com uma novidade nada agradável para ela: tendo a circulação

arterial afetada, andava com muita dificuldade. A compra de uma bengala foi

inevitável.

Fig. 53 Dolores e Plínio Doyle, o terceiro da esquerda para a direita, Rio de Janeiro,

05.11.1982. Arquivo da família.

41

Anexo XIII (p. 147).

Page 93: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

93

No ano de 1983, Maria Julieta despede-se de Buenos Aires e de seu

trabalho no Centro de Estudos Brasileiros, instalando-se, definitivamente, no

Rio de Janeiro. Com a saúde um pouco frágil, devido ao tratamento a que se

submetera, a filha acompanha a rotina dos pais. Chega a comentar com um

dos filhos sobre alguns pequenos deslizes na memória de Dolores, que, às

vezes, se confundia com a própria mãe, dona Sinhá.

Fig. 54 Dolores, Maria Julieta e Carlos, Rio de Janeiro, 1984. Arquivo da família.

Page 94: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

94

Como se não bastassem o peso da idade e seus problemas, a vida

ainda reservava um duro golpe a Dolores: a perda de sua única filha. No dia 5

de agosto de 1987, no Rio de Janeiro, falece Maria Julieta.

Fig. 55 Pedro Augusto, Dolores e Carlos, Rio de Janeiro, 5.08.1987, enterro de Maria Julieta.42

Doze dias depois, estava Dolores, novamente, no Cemitério São João

Batista. Perdera a filha, e agora o marido. Sobreviveu aos dois. (A propósito,

Luis Mauricio relembra o humor do avô, que costumava dizer: “A velhinha ainda

me enterra!”). Dolores foi uma sobrevivente, em todos os sentidos que se pode

dar a essa palavra.

42

Disponível em: http://fotos.noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2012/08/16/carlos-drummond-e-tido-como-um-dos-maiores-poetas-do-seculo-20.htm#fotoNav=5. Acesso: 25.06.2014.

Page 95: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

95

A companheira

A companheira

da vida inteira,

que a meu lado

une o passado

ao novo dia

em harmonia,

a sempre forte

e meu suporte

quando vacilo,

porte tranquilo,

voz de carinho

no meu caminho,

leal, paciente

constantemente,

simples, discreta

força do poeta,

quero-a no instante

final – constante

com sua mão

acarinhando

em gesto brando

meu coração.

Carlos Drummond de Andrade

Page 96: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

96

Após a morte do marido, a casa da família já não era tão procurada.

Como relata João, o porteiro do prédio onde Dolores viveu, era curioso ver

como as pessoas só chamavam pelo “senhor Carlos”. “A dona Dolores, quase

ninguém procurava, não.”

Fig. 56 Dolores e Carlos (de barba, devido a um herpes). Acervo de Carlos Drummond de Andrade, Arquivo-Museu de Literatura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de

Janeiro, 09.1980.

Page 97: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

97

ALHEAMENTO

E tudo se torna esquecimento.

Apagam-se, pouco

a pouco,

as formas, na engrenagem do tempo

Fig. 57 Relógio de Dolores. Arquivo da família.

Page 98: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

98

Os cheiros jamais se repetem,

nem palavras... vozes... sons de passos

pela casa

Fig. 58 Aniversário de Dolores, Rio de Janeiro, 19 de abril de 198? Arquivo da família.

A face encara, mil vezes,

o espelho.

“Quem é aquela a me perseguir?”

Page 99: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

99

Mas que agulhas hão de coser,

se já os fios se perderam?

Fig. 59 Adorno para mesa, feito por Dolores. Arquivo da família.

Um vento sopra ligeiro,

levando,

minando tuas feições.

Dedos rabiscam no ar.

É assim que teces, agora,

tua mais fina obra.

E já não podes falar de ti.

Teus documentos gastos estão,

exaustos de apresentação.

Page 100: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

100

Leveza imperiosa.

Primavera, outono, verão!

O que vêm a ser, senão

a notícia envelhecida

de que coisas acontecem,

indiferentes que são

a teu alheamento...

E, na doce concha dos sonhos,

nem ser, nem estar.

Nada a pesar nos ombros.

Dormes o sono dos gatos,

em profunda amizade

com os raios que pingam do sol.

AASS

Page 101: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

101

“Muitos anos depois daquele 1984, voltei a ver Dolores, quando subi ao

apartamento 701 da Conselheiro Lafaiete, ao encontro de Pedro. Levou-me ao

quarto em que vivia a avó, aos cuidados de uma enfermeira. “Vovó, quem está

aqui é um amigo do Carlos, o Edmílson, que veio visitá-la...” Ela não disse

palavra, alheia a tudo e a todos, sequestrada de si mesma pelo mal que lança

o doente no abismo da solidão e do nada. Preferia não tê-la visto assim, e

guardar-lhe a memória da mulher pequenina, discreta e reservada, sem a qual

Drummond não teria sido quem foi.”43

“Depois ela foi ficando mais e mais “em órbita”, até o momento em que não

reconhecia ninguém; e foi triste porque terminou numa cama e, nos últimos

meses, sendo alimentada por uma sonda pelo nariz. Uma condição de vida

muito precária, ao ponto que, de vez em quando, ela caía e ligavam as

enfermeiras, acompanhantes ou quem quer que estivesse lá; e nós a

levávamos para a clínica; davam uns pontos na cabeça dela e aí o médico nos

dizia: ‘não vamos interná-la, porque, senão, ela vai viver mais nesse estado e,

claro, não queremos isso...’ De fato, quando ela morreu, foi um alívio,

sobretudo para ela. Certamente, mais para ela do que para nós. O Edmílson te

disse bem. Ela estava condenada ao nada.”44

43

Entrevista com Edmílson Caminha (p. 127-129). 44 Entrevista com Luis Mauricio Graña Drummond (p. 116-126).

Page 102: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

102

Fig. 60 Certidão de óbito de Dolores. Arquivo da família.

Page 103: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

103

“Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a

formiga da fábula...”45

Fig. 61 Dolores, por Pedro Augusto Graña Drummond, Rio de Janeiro, 1981. Arquivo da família.

45 Anexo XIV. Carta de 20 de agosto de 1956 (p. 137).

Page 104: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

104

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qualquer um que tenha vivido uma vida, e deixado um

registro dessa vida, não merece uma biografia?...

Virginia Woolf

Através de fotos, documentos, cartas e depoimentos de pessoas que a

conheceram, tentamos aqui traçar um perfil de Dolores Morais Drummond de

Andrade. Esta mineira, que praticamente nasceu com o século XX, o percorreu

em sua quase totalidade: da província à cidade grande, Dolores acompanhou,

de ponta a ponta, a evolução de um Brasil mormente rural ao país urbano dos

nossos tempos. Ou seja, chegou a viver dias próximos aos da abolição da

escravatura, anteriores aos do início da aviação, em que tempestades ainda

aterrorizavam crianças, assim como os da liberação feminina, da

aeronavegação comercial, da corrida espacial e até os do computador pessoal

e a internet.

Não seria exagerado afirmar que foi uma mulher ousada, já que, nos

anos 20, época em que o trabalho feminino era praticamente restrito ao lar, ela

chegou a ser enfermeira e secretária em fábrica. Educada sob os rígidos

cânones finisseculares, como as mulheres de sua geração, foi basicamente

preparada para o casamento e os afazeres domésticos e, a seu modo, ocupou

o papel (secundário) que a elas cabia no matrimônio. O seu, com Carlos

Drummond de Andrade, durou 62 anos. Dando o indispensável suporte

cotidiano ao companheiro, silenciosamente, testemunhou o processo de

criação literária do poeta e, também, mesmo que tangencialmente, a própria

evolução de boa parte da literatura brasileira do século passado.

Dolores foi aquela que, anos a fio, preparou os bastidores e o cenário

que levaram seu marido ao reconhecimento do público. Seu projeto exclusivo

de vida, como o de muitíssimas mulheres daqueles tempos, foi viver para a

família e dedicar-lhe seu tempo integral. Firme em suas convicções e de

temperamento quase estóico, além de entender as necessidades de Carlos,

como homem de escritório que era, como figura pública, assediada

constantemente, teve que suportar as suas infidelidades. Seria difícil imaginar

Page 105: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

105

tal situação se invertêssemos os papéis. Nunca se ouviu dizer que Cecília

Meireles, Clarice Lispector ou Cora Coralina, apenas a título de exemplo,

houvessem tido relações extraconjugais. Isso era inimaginável e inaceitável

pelo pensamento corrente na época. A infidelidade conjugal masculina era uma

prática comum e até aceita na sociedade, reafirmava a hombridade e

praticamente conferia ao marido o ar de boêmio e galanteador.

Observamos, nesta dissertação, que os rastros da vida de Dolores estão

dispostos de forma esparsa em fotografias, cartas, bilhetes e lembranças. E só

pelas coisas pequenas o leitor terá acesso a essa personagem. Tal é o espólio

deixado por ela, além de algum dinheiro guardado em fronhas, já sem valor

corrente. A economia do lar, tão cara ao doutrinamento das mulheres, se

resumiu em uma moeda que não paga nada, que não é aceita no mercado;

mas a impressão digital de quem a guardou ficou gravada nela, como a marca

das mãos do oleiro, em um jarro de cerâmica.

Neste trabalho, não pontuamos nenhum grande evento, não revelamos

nenhum segredo escandaloso, tal como apetece aos curiosos. A vida de

Dolores foi absolutamente comum, de hábitos frugais e de uma rotina muito

bem disciplinada. É claramente por isso que crítico algum dedicou-lhe um

pouco de atenção, nem sequer para obter informações sobre Carlos. Em julho

de 2014, completaram-se 20 anos de sua morte, mas, até o momento, esse

fato não despertou a curiosidade de ninguém. Sua pequena “herança” aguarda

por “herdeiros” que aceitem recebê-la. Como afirma Hugo Achugar (2004), em

Planetas sin boca:

Suele ocurrir, sin embargo, que hay herencias que se rechazan, que hay legados que despojan, que hay tradiciones que se cambian, que, en lugar de memorias, hay olvido. Entre otras cosas, por la sencilla razón de que el testamento supone la existencia de un sujeto – individual o colectivo – que lo enuncie y también, la existencia de un heredero – individual o colectivo – que acepte ser interpelado por el mencionado testamento (p. 30).

Esta pesquisa quis mostrar-se também como um gesto. Desejamos que

seu valor esteja no flash-back, no sentido de trazer perguntas e possíveis

respostas sobre o passado, e no flash-forward, para usar uma expressão criada

por Silviano Santiago (2006), apontando uma proposta para o futuro, a fim de

Page 106: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

106

que se questione, de forma mais profunda, as culturas hegemônicas que ainda

têm se mostrado resistentes a certos temas sensíveis, patentes na

contemporaneidade. Não há centro sem margens, não há margens sem centro;

ambos se cruzam, dialogam e, sobretudo, se digladiam.

Ora, em termos das mencionadas culturas hegemônicas junto às

minorias que elas determinam (e condenam), o trabalho aqui realizado talvez

ajude a mostrar como ainda é difícil pensar o outro, este outro que é

explicitamente negado, por meio da obliteração, da indiferença, da violência.

Como falar de alteridade em um país que, em 1500, abrigava quatro milhões

de índios, dos quais restam, hoje, aproximadamente 900 mil, vivendo no

abandono, em condições paupérrimas, à mercê de uma política que fecha os

olhos para tal realidade? Em que termos podemos pensar as relações de

gênero, se ocupamos o sétimo lugar entre países com elevado número de

vítimas de violência doméstica, sendo que, só na década passada, 45 mil

mulheres foram assassinadas? Confiando ou não nas estatísticas, sabemos

que esses números passeiam, sim, em nossa realidade e devem ser somados

a outras cenas de violência que não constam nos dados oficiais. Nos meios de

comunicação, todos os dias, nos deparamos com notícias sobre ataques

homofóbicos e discursos que ferem a dignidade humana. E apesar dos

esforços em nome da democracia, a globalização chegou apenas para alguns,

melhor dizendo, para aqueles que têm poder aquisitivo para sustentá-la. Prega-

se muito que vivemos em um mundo sem fronteiras, quando ainda nos vemos

diante delas, a todo o momento. E o que está em jogo, diante dessas fronteiras,

é a vida, a vida do cidadão comum, que não pode se proteger por trás de altos

muros com cercas elétricas, a vida dos discretos, dos anônimos que habitam a

periferia da periferia. O “arquivo” desta parte periférica do mundo onde vivemos

é perpassado por todas essas questões. Mas, sendo ele um campo de luta

política, diversas forças atuam para construí-lo, escamoteá-lo, camuflá-lo.

Como afirmaria Derrida (2001): “O arquivamento tanto produz quanto registra o

evento” (p. 29).

Falar de Dolores, por meio de rastros ligeiros deixados por ela, por meio

do apagamento de sua voz, nos fez chegar aos temas expostos acima. Sua

própria vida nos foi “narrada” por outro. Inicialmente, foi Carlos quem apontou o

Page 107: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

107

caminho que nos conduziu à imagem que ele quis deixar de sua companheira.

De acordo Leonor Arfuch (2009), pesquisadora argentina:

O arquivo demonstra, admiravelmente, que o ‘direito de propriedade’ sobre a vida – como Sylvia Molloy argumentou recentemente em uma conferência em São Paulo – é relativo; que outros sempre terão sobre ela o direito, de palavra ou do olhar, do arquivamento ou da ficcionalização. Demonstra também que uma biografia, não somente a dos notáveis, oscila sempre num umbral difuso entre público e privado; entre o encobrimento, no sentido freudiano, e a revelação, tal como é perceptível no registro mais simples da conversação cotidiana (p. 378).

As ideias de Arfuch e Molloy nos remetem ao conceito de “biopoder”, o poder

sobre a vida, o controle da vida. Se os “subalternos” não falam, outros falam

por eles. Agendas repletas de temas políticos são compostas, esforçam-se

para trazer à baila o silêncio do outro, para quebrá-lo. Mas há que se perguntar

o motivo desse silêncio; para quem os subalternos falariam?, quem os ouviria?

Alguma instituição arquivaria suas vozes? É possível falar, alçar a voz, desde

as margens? Reconhecemos que também nós estamos falando por alguém

que não respondeu por si e, assim sendo, devemos ter incorrido em algum

deslize.

Podemos dizer que a nossa protagonista, de alguma maneira, atuou no

processo de formação da história da literatura brasileira e quase diretamente

na própria criação literária de um dos maiores escritores do século XX. Mas

como saber sua opinião, seus sentimentos em relação a isso? Restam-nos

algumas especulações, conjecturas apenas. Possivelmente, ainda seja

necessário buscar por Dolores em outros cantos; Talvez, o que logramos aqui

foi trazer apenas uma sombra dessa mulher. Como afirmou Borges, diante de

um cemitério:

Aquí bajo los epitafios y las cruces no hay casi nada. Aquí no estaré yo. Estarán mi pelo y mis uñas, que no sabrán que lo demás ha muerto, y seguirán creciendo y serán polvo. Aquí no estaré yo, que seré parte del olvido que es la tenue sustancia de que está hecho el universo (2007, p. 537).

Todo ensaio biográfico tenta alcançar “o outro”, este ser que sempre nos

escapa por entre as linhas. Mesmo se tivéssemos pesquisado além do que

Page 108: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

108

estivemos em condições de investigar, teríamos conseguido alcançar Dolores?

E quem estaria em condição de fazê-lo? Ela não continuaria sendo “parte do

esquecimento que é a tênue substância de que está feito o universo”? De

qualquer modo, esperamos, ao menos, que este trabalho e as dúvidas que ele

despertou possam abrir algum caminho para estudos vindouros que deem

conta de analisar as diversidades culturais presentes nos arquivos, bem como

as relações travadas entre os corpos que os habitam.

Ao longo dos meses desta pesquisa, a vida de Dolores, uma mulher

comum, forte e sensível a um tempo, nos resultou sempre instigante.

Esperamos que ela também tenha despertado o interesse do leitor.

Page 109: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

109

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACHUGAR, Hugo. Planetas sin boca - Escritos efímeros sobre arte, cultura y

literatura. Montevideo: Ediciones Trilce, 2004.

ANDRADE, Carlos Drummond de, 1902-1987. Drummond frente & Verso;

fotobiografia de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Edições

Alumbramento/Livroarte Editora, 1998.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Record, 2006.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Os 25 poemas da triste alegria. São Paulo:

Cosac Naify, 2012.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora

Nova Aguilar S.A., 2002.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa Seleta. Rio de Janeiro: Editora Nova

Aguilar S.A., 2003.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Querida Favita: cartas inéditas/GOULART,

Flavio A. de Andrade, OLIVEIRA, Myriam Goulart de (Orgs.). Uberlândia:

EDUFU, 2007.

ANDRADE, Maria Julieta Drummond de. O valor da vida. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1982.

ANDRADE, Maria Julieta Drummond de. Um buquê de alcachofras. Rio de

Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1980.

ARFUCH, Leonor. A auto/biografia como (mal de) arquivo. In: SOUZA, Eneida

Maria de, MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Modernidades Alternativas na América

Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 370-382.

ARFUCH, Leonor. Antibiografias? Novas experiências nos limites. In: SOUZA,

Eneida Maria de, TOLENTINO, Eliana da Conceição (et al.) (Orgs.). O futuro do

presente: arquivo, gênero e discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 13-27.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos: Arquivos

Pessoais. Rio de Janeiro, vol. 11, n. 21, p. 9-33, 1998.

Page 110: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

110

ÁVILA, Affonso. Código de Minas & Poesia Anterior. Rio de Janeiro: Editora

Civilização Brasileira, 1969.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 8ª ed. Júlio

Castañon Guimarães (Trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Leyla Perrone-Moisés

(Trad.). São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: PRIORE, Mary Del

(Org.). História das Mulheres no Brasil. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2007, p.

607-639.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BORGES, Jorge Luis. Obras completas III. Buenos Aires: Emecé Editores,

2007.

BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1956-1986), Buenos Aires: Emecé

Editores, 2003, p. 29-31.

CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu – Biografia de Carlos Drummond

de Andrade. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda, 1993.

COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos. São Paulo: Editora Perspectiva,

1991.

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo – Uma Impressão Freudiana. Rio de

Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Vera Casa Nova,

Márcia Arbex (Trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Gilson César

Cardoso de Souza (Trad.). São Paulo: EdUSP, 2009.

DUARTE, Constância Lima. Arquivos de mulheres e mulheres anarquivadas –

Histórias de uma história mal contada. In: SOUZA, Eneida Maria de, MIRANDA,

Wander Melo (Orgs.). Crítica e coleção. Belo Horizonte: UFMG, 2011, p. 234-

241.

ESCOREL, Ana Luisa. O pai, a mãe e a filha. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,

2012.

Page 111: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

111

FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: PRIORE, Mary Del

(Org.). História das Mulheres no Brasil. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2007, p.

141-188.

GOLIN, Cida. Mulheres de escritores: subsídios para uma história privada da

literatura. São Paulo: Annablume: Caxias do Sul: Educs, 2002.

GORZ, André. Carta a D. Uma história de amor. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In:

TRAVANCAS, Isabel, ROUCHOU, Joëlle (et al.) (Orgs.). Arquivos pessoais:

reflexões multidisciplinares e experiência de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2013, p. 67-75.

JOYCE, James. Cartas a Nora. José Miguel Silva (Trad.). Lisboa: Relógio

D’Água Editores, 2012.

LACERDA, Aline Lopes de. A imagem nos arquivos. In: TRAVANCAS, Isabel,

ROUCHOU, Joëlle (et al.) (Orgs.). Arquivos pessoais: reflexões

multidisciplinares e experiência de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013,

p. 55-66.

LIMA, Rachel Esteves. A máquina da memória em movimento. In: SOUZA,

Eneida Maria de, LAGUARDIA, Adelaine (et al.). Figurações do íntimo: ensaios.

Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 31-44.

LIMA, Rachel Esteves. Entrevista: Françoise Simonet Tenant. In: SOUZA,

Eneida Maria de, LAGUARDIA, Adelaine (et al.). Figurações do íntimo: ensaios.

Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 13-29.

MACIEL, Maria Esther. Vidas entrevistas: a biografia no filme Edifício Master,

de Eduardo Coutinho. In: SOUZA, Eneida Maria de, MARQUES, Reinaldo

(Orgs.). Modernidades Alternativas na América Latina. Belo Horizonte: UFMG,

2009, p. 398-405.

MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da

biografia. Sergio Flaksman (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

MARQUES, Reinaldo. Grafias de coisas, grafias de vidas. In: SOUZA, Eneida

Maria de, MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Modernidades Alternativas na América

Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 327-350.

Page 112: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

112

MARQUES, Reinaldo. O arquivo literário e as imagens do escritor. In: SOUZA,

Eneida Maria de, TOLENTINO, Eliana da Conceição (et al.) (Orgs.). O futuro do

presente: arquivo, gênero e discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 59-89.

MARQUES, Reinaldo. O que resta nos arquivos literários. In: SOUZA, Eneida

Maria de, MIRANDA, Wander Melo (Orgs.). Crítica e coleção. Belo Horizonte:

UFMG, 2011, p. 192-203.

MARTIN, Linda Wagner. Telling women’s lives – The new biography. New

Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 1994.

MCKEMMISH, Sue. Provas de mim... Novas considerações. In: TRAVANCAS,

Isabel, ROUCHOU, Joëlle (et al.) (Orgs.). Arquivos pessoais: reflexões

multidisciplinares e experiência de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013,

p. 17-43.

MORGANTI, Vera Regina. Entrevistas. In: BORDINI, Maria da Glória,

ZILBERMAN, Regina (Orgs.). Confissões do amor e da arte. Porto Alegre:

Mercado aberto, 1994.

MUZART, Zahidé Lupinacci. Maria Firmina dos Reis. In: MUZART, Zahidé

Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX. 2ª ed. Florianópolis:

Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 264-284.

NAVA, Pedro. Beira-mar – Memórias 4. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José

Olympio Editora, 1979.

RIBEIRO, Larissa Pinho Alves (Org.). Encontros – Carlos Drummond de

Andrade. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

ROCHA, Patrícia. Mulheres sob todas as luzes. A emancipação feminina e os

últimos dias do patriarcado. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2009.

SANTIAGO, Silviano, FROTA, Lélia Coelho (Orgs.). Carlos & Mário. Rio de

Janeiro: Bem-te-vi, 2002.

SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. São Paulo:

Editora Rocco, 2006.

SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Revista Aletria. Belo

Horizonte, n. 18, jul/dez. 2008, p. 173-178.

Page 113: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

113

SCHPUN, Mônica Raisa. Justa – Aracy de Carvalho: trocando a Alemanha

nazista pelo Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &

realidade. 20(2), julho/dezembro 1995, p. 71-99.

SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava, o risco da memória, Juiz de Fora:

Funalfa, 2004.

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx – roupas, memória, dor. Tomaz

Tadeu (trad.), 4ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

VASCONCELLOS, Eliane. Entre a agulha e a caneta – A mulher na obra de

Lima Barreto. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta: memórias. 18. ed. Rio de Janeiro: Globo,

1987. V.1.

WOOLF, Virginia. O valor do riso. Leonardo Fróes (Org. e trad.). São Paulo:

Cosac Naify, 2014.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Vera Ribeiro (Trad.). Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2004.

Page 114: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

114

ANEXOS

Page 115: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

115

ENTREVISTAS

Page 116: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

116

Com Luis Mauricio Graña Drummond (gravação, 04.12.2013; transcrição de AASS) Nascido em Buenos Aires, em 1953. Foi fotógrafo e apicultor. É matemático e

trabalha na Universidade Federal do Rio de Janeiro; publica artigos de

pesquisa sobre assuntos de Otimização, sua área de interesse.

LMGD: Dolores ia para o meu aniversário e ficava um mês. Pra nós, que

éramos crianças, era uma festa, porque a gente gostava dela, porque ela era

muito boa, carinhosa e, além do mais, levava presentes.

Normalmente, levava o que ela chamava de piorra, um trompo (pião). E

também relógios pra nós. E, além do mais, roupas que ela própria fazia pra

nós, pro Carlos. Pra nós, ela chegou a fazer calças, camisas, pulôveres e pro

Carlos, até cuecas. Fazia colchas de retalhos (eu tenho duas aqui, do

tipo patchwork). Eu acho que essa colcha que tem figuras hexagonais, se você

observar, não tem duas repetidas. Outra coisa que eu lembro daquelas viagens

é que nós tínhamos medo, porque ela roncava muito. Eu me lembro de outra

coisa, já muito depois, pouco antes da morte dela, eu me intoxiquei, aqui no

Rio de Janeiro, isso deve ter sido lá pra 85, 86, num verão que eu vim aqui, e

eu passei muito mal, vomitei pela rua e cheguei lá, na casa deles, vomitando

aos gritos, no banheiro; aí veio o Carlos Manuel e me disse: “¡boludo, los vas a

despertar!” E eu disse: “¡¡¡Me estoy muriendo!!!”. O fato é que “a vovó acordou,

me deitou e me cuidou. No dia seguinte, ela fez pra mim sopa de arroz batida

no liquidificador e em 24 horas eu fiquei bom. Ela cuidou de mim, acho que

diria, melhor do que uma mãe.

Lembro-me, por exemplo, no período hippie, aquele drama, 1970, 69 e tal, e

ela dizia assim “isso é uma bobagem, coisa de adolescente, coisa de jovem, é

uma bobagem...” Ela tinha uma atitude muito mais liberal. Era muito

compreensiva. Eu nunca briguei com ela, acho. Nenhum de nós três. Talvez,

no fim, quando ela já estava meio em “órbita”, houve alguma desavença,

assim, mas, quando ela estava lúcida... Bom, com mamãe havia alguma briga,

de vez em quando, mas com netos, nunca. E ela nos mimava, dava presentes,

fazia bolo. Pra mim, tinha doce de banana, doce de abóbora e, de noite, tinha

pra gente aquela sopa de feijão com macarrão, que era ótima, e meio-dia, eu

Page 117: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

117

me lembro que a gente chegava pregado da praia, almoçava e, lá pelas duas,

se não me engano, saía O Globo, naquela época, era vespertino. E ela nos

pedia pra gente ir, não precisava nem atravessar a rua, já estava na

Conselheiro Lafaiete, pra comprar jornal. E nós estávamos exaustos de praia e

tudo, e dizíamos que não. Aí, ela dizia: “Tudo bem, eu vou, mas se depois

vocês souberem de uma velhinha que apareceu morta aí na rua...” Aí, a gente

dizia: “Tá bom, vó, a gente vai”. Ela fazia sempre essa chantagem. E aí ela

pegava o jornal e fazia as palavras-cruzadas dela. Era uma coisa de que ela

gostava e era boa nisso, muito boa. Outra coisa que ela fazia era assistir

novelas, de noite. Aí, o Carlos acompanhava, mas ele, assim, dava um pulo, de

um minuto, voltava pro escritório. Com isso, ele sabia, mais ou menos, o que

estava acontecendo. Já nos últimos anos, ele passou a ser mais carinhoso com

ela. Ele a cobria com cobertor, quando ela adormecia assistindo a novela. É...

não se via muito carinho entre eles... eu não me lembro muito.

AASS: Mas, pelas cartas...

LMGD: Pode ser, mas Carlos era pouco efusivo, e, sei lá, eu me lembro, por

exemplo, de uma história de Dolores, parando um táxi, sendo que,

aparentemente, alguém havia dado o sinal antes, e o Carlos: “Que isso,

Dolores, que isso Dolores!” Tinha essas coisas. E, na recíproca, tampouco

havia muito. Eu me lembro que, quando o Carlos morreu, no escritório dele,

minutos depois de ele morrer, ela disse: “Que homem extraordinário!” Acho que

foi a única vez que eu escutei um elogio. E ela velou o corpo dele toda a noite.

Pedro e eu não aguentamos e fomos dormir no carro.

AASS: “Ela ficou sozinha?”

LMGD: Tinha um bêbado uruguaio, que dizia: “¡Drummond, te nos fuiste!” e

segurava a mão do cadáver e dizia poemas e queria puxar o caixão. Nós não

deixamos. Nem conhecíamos ele. Depois, chegou um pessoal aí, com a

bandeira do Vasco, pra colocar. Não deixamos. E também com a bandeira da

Page 118: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

118

Mangueira. É, o Carlos gostava do Vasco e também da Mangueira, porque ele

ganhou com a Mangueira, mas não era pra colocar o...

AASS: E ela contava histórias também...

LMGD: Ela, de noite, nos contava as mesmas histórias que vinham da família

do Carlos, do “Cafas Leão”.46 Ela e ele nos contavam. E eram tão gostosas as

dela quanto as dele. E, no entanto, as poucas de que me lembro são as que o

Carlos contava. Mas ela contava histórias, com o mesmo espírito, do gigante

surrealista, meio atrapalhado, meio porco, e nos fazia acreditar que ela ia

publicar um livro sobre Cafas Leão, nos Estados Unidos. Nós éramos crianças

e acreditávamos.

AASS: E ela ia mais a Buenos Aires do que o Carlos, não é?

LMGD: O Carlos deve ter ido 5 vezes e ela talvez 20, não sei. Ia pro meu

aniversário, ficava um mês.

AASS: Pelas cartas, me parece que ela já chegou a ficar 3 meses lá.

LMGD: Não acredito que Carlos ficasse três meses sem ela, não. Não, isso

não acredito.

LMGD: O que eu me lembro é que o Pedro levou lá [na casa de Dolores e

Carlos] um amigo, esse Andrés, que esteve aqui, que mora na Suíça, que é

músico; e aí ele viu uma cabeça de santo que tem lá na casa do Pedro, que era

dela, e ela o fez acreditar, possivelmente brincando com o Pedro, que sabia da

história, que era uma peça do Aleijadinho. E o cara ficou fascinado, porque,

mesmo sendo muito jovem e da Argentina, ele sabia quem era o Aleijadinho.

Dolores, convincentemente, enganou ele. Eu acho que ela deve ter dado umas

piscadas de olho pro Pedro.

46

Refere-se ao gigante do poema “Didática”, de CDA.

Page 119: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

119

AASS: Você via Dolores lendo?

LMGD: Olha, talvez, um pouco. O jornal, certamente. Palavras-cruzadas,

certamente. Eu tenho o livro dela Les fleurs du mal, numa edição pequenininha,

muito bonita, assinado por ela. Eu acho que ela sabia francês. E ela lia os livros

do Carlos, certamente. Sim, eu não sei o que ela lia. Pena que mamãe não

está aqui. Também não sei que ideias políticas ela tinha. Não sei. Eu não diria

que seria de esquerda, mas o que o Edmílson Caminha diz é verdade. Ela

devia ter em mente ideias de justiça, de justiça social e tudo, apesar de que ela

vinha de uma geração que estava muito próxima da Lei Áurea, de 88, de

maneira que uns vestígios devem ter ficado, sobre negros e brancos, aquela

coisa toda. Mas era uma pessoa com sentido de justiça. Isso, sim. O que não

sei é se ela seguia o Carlos. O Carlos, por exemplo, teve um período de

esquerda e tal, acompanhou o comunismo. Não sei se Dolores... Não sei se ela

era um ser politizado. No fundo, mamãe também não era muito, nem papai que

foi até deputado e tudo. A política não era uma coisa essencial, não fazia parte,

digamos, da conversa na mesa, com as crianças, pelo menos.

AASS: E a relação entre mãe e filha?

LMGD: Havia certa tensão. Carlos e mamãe tinham um mundo à parte, que era

um mundo literário, coisa deles dois. Dolores aí não entrava muito. Mas o que

você pergunta ao Edmílson [Caminha] sobre a participação dela na obra do

Carlos certamente não era só de caráter prático a importância. Em primeiro

lugar, já que falamos de caráter prático, ela era a única que podia entrar no

escritório do Carlos, quando ele estava escrevendo crônicas, de manhã. Isso

era três vezes, por semana [na época do JB]. Ela entrava com um café, uma

laranjada, um pedaço de queijo, alguma coisa, para entregar a ele. Ou seja, ela

era uma esposa que se ocupava do marido... Ele, um dia, me disse que não

sabia fazer um café. Ela se ocupou da casa. Eu acredito que, na questão dos

móveis e tudo mais, era ela quem decidia: se colocava, onde, inclusive os

quadros, é possível que fosse ela. O Carlos gostava dos quadros que Portinari

tinha dado a ele e tal, mas eu acho que a questão estética possivelmente

Page 120: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

120

ficasse por conta dela. Talvez, o Carlos comprasse, ela tivesse dito “compra

esse sofá, ou isso ou aquilo”, mas eu tenho a impressão de que -como era o

caso da mamãe, em casa- era ela quem ordenava. O Carlos não era um sujeito

prático. Agora, ele, no escritório dele, sim, ele tinha uma foto da Cecília

Meireles, do pai dele, a chave, isso deve ter sido ele que colocou. Ela se

ocupava da casa, das empregadas e de toda a parte prática que o Carlos não

tinha a menor ideia.

AASS: Ela dava o suporte a ele...

LMGD: Sim, mas o que eu estava para te dizer é que havia muito mais do que

isso. Ela foi a mulher dele por tantos anos e, mesmo ele tendo sido infiel

como parece que foi, ele nunca se separou e eles chegaram a viver tempos em

que as pessoas já se separavam, de maneira que podia ter passado pela

cabeça dele ou dela. De fato, meus pais se separaram, mas eu acho que o

Carlos escolheu ela pra mulher dele e porque era a mulher adequada pra ele e

acho que ele não teria se encontrado bem sem ela. E se ele gostava de outra

ou de outras, não teriam sido certamente para viver com ele. E, ao parecer, ela

terminou aceitando as coisas como elas foram. Eu não sei muito bem se é

verdade, mas eu tenho em mente que alguém me disse duas coisas: uma, que,

em algum momento de briga, pelas raparigas e tal, ela teria quebrado o braço

dele com um vaso que lhe jogou em cima. E outra é que ela teria dito a ele:

“tudo bem, mas não te dou mais nenhum filho.”

AASS: E aquelas lembranças que ela tinha de Mar de Espanha, da infância

dela?

LMGD: Não sei bem de que família era, socialmente. Acho que menos que a

família do Carlos. Mamãe ia passar férias com qual família?

AASS: Com a família de Dolores

Page 121: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

121

LMGD: Ah, é? Ela [Dolores] nos contava que, em dias de chuva forte, as

crianças ficavam com medo e se ajoelhavam no chão, de mãos dadas, e

ficavam assim, como aqueles, que avançam e recuam o corpo, no muro das

lamentações: “São Jerônimo, Santa Bárbara, São Jerônimo, Santa Bárbara,

São Jerônimo, Santa Bárbara”. E eu sei essa história de que ela teria sido uma

das primeiras mulheres a trabalhar, senão a primeira a trabalhar fora de casa.

Ela foi enfermeira, durante a primeira Guerra Mundial, ou trabalhou numa

fábrica de sapatos. Isso eu não sei direito.

AASS: E a questão da idade dela...

LMGD: Bom, há documentos dela, com várias idades, todas menores ou

iguais do que a do Carlos, porque, na época, não pegava bem que a mulher se

casasse com um homem mais novo. Mas parece que, uma vez, lá nos anos 80,

o Carlos conta numa carta - a gente pode procurá-la -, ele conta,dizia, que a

acompanhou ao médico; a coisa era séria e o Carlos conta algo assim

como que “essa mulher, que, durante tantos anos, guardou esse segredo, com

toda a dignidade, disse pro médico, firme, a verdadeira idade dela”. A

conclusão, segundo a mamãe - e eu acredito nela - é que ela é de 1900.

AASS: E aquele caso engraçado que você me contou sobre a vidraça?

LMGD: Bom, ela abria a casa, lá para as 5:30 da manhã; já começava a

colocar o feijão de molho e acho que, às 7, a casa já estava fechada, de novo.

Certo dia, cedo, uns operários estavam fazendo a limpeza do prédio, do lado

de fora. Estavam pendurados nos andaimes, ela apareceu e disse: “ô, moço,

toma muito cuidado, não vai quebrar meu vidro!” E eles: “não, dona, fique

tranquila.” E, depois, ela atacou, de novo: “toma cuidado com meu vidro, não

vai quebrar, não!”. Tantas vezes ela fez isso que, afinal, os caras se

atrapalharam e acabaram quebrando a vidraça dela. E ela disse: “Ah, tá vendo!

Eu disse que vocês iam quebrar, eu disse!”.

Page 122: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

122

Lembro-me da primeira vez que o ônibus espacial aterrissou – antes os

americanos amerissavam, com paraquedas; e os russos, também com

paraquedas, caiam na Sibéria. Nunca tinha havido uma nave espacial que

pousasse como um avião. Era o primeiro pouso e seria televisionado para o

mundo todo. Estávamos todos assistindo, Pedro, ela (já bem velhinha) e eu; aí

o telefone toca e ela diz: “ô, moço, não vê que estamos assistindo ao homem

espacial!” E desligou o telefone na cara do sujeito.

Uma história que eu me lembro da minha infância é a seguinte. Eu devia ter

uns quatro anos, lá na calle Arroyo, desci e encontrei na calçada um envelope,

com um monte de dinheiro, acho que eram 400 pesos, que devia ser muito

dinheiro, nos anos 50 e poucos, 57 por aí. Aí, subi e me disseram que era da

vovó. Pode ter sido, porque era muito dinheiro e eu não tinha condição de

mexer com essa quantidade, ou porque, de fato, era dela, coisa de provinciana

que guardava dinheiro num envelope... pode ter sido dela. Ela escondia

dinheiro e parece que, depois de morta, foram encontradas denominações que

já não tinham mais valor. E o Carlos a chamava de Dolares, porque ela

comprava dólares. Mas essa coisa de esconder dinheiro, como algo

compulsivo, assim, deve ter sido já da velhice avançada, porque ela já,

segundo a mamãe, nos últimos tempos da vida da mamãe, ou seja, já com 86,

87, às vezes Dolores já achava que era a própria mãe dela. Eu discutia com a

mamãe e dizia que eu via a Dolores completamente lúcida, mas é possível que

ela tivesse umas escorregadas, sim. Bom, depois ela foi ficando mais e mais

”em órbita”, até o momento em que não reconhecia ninguém. E foi triste porque

terminou numa cama e, nos últimos meses, sendo alimentada com uma sonda

pelo nariz. Uma condição de vida muito precária, ao ponto que, de vez em

quando, ela caía e ligavam as enfermeiras, acompanhantes ou quem quer que

estivesse lá; e nós a levávamos para a clínica; davam uns pontos na cabeça

dela e aí o médico nos dizia: “não vamos interná-la, porque, se não, ela vai

viver mais nesse estado e, claro, não queremos isso...” De fato, quando ela

morreu, foi um alívio, sobretudo para ela.Certamente, mais para ela do que

para nós. O Edmílson te disse bem. Ela estava condenada ao nada.

AASS: Com Manolo, ela se dava muito bem...

Page 123: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

123

LMGD: Ela gostava muito do papai e ele gostava muito dela; havia uma

simpatia recíproca, um carinho. E o papai, depois de separado da mamãe,

quando as coisas se acertaram – havia já passado a raiva que, num primeiro

momento, Dolores teve –, quando vinha ao Brasil, eles mandavam um

telegrama pra ele, dizendo “fique conosco”. E é bem possível que, como nos

tempos do casamento, eles cedessem até o quarto pro papai. Eu não tenho

dúvida.

AASS: Dolores gostava de tomar uísque, não é?

LMGD: Esses foram hábitos que papai incorporou na família Drummond. Ele

incorporou o uísque, a cervejinha, o vinho e certas culinárias, “los fiambres”,

essas coisas que o papai gostava (e ainda gosta). Porque, digamos, eles eram

moderados. Era uma comida saudável, mas sem muito brilho. E o papai

incorporou alguns pequenos prazeres desse tipo, que foram (bem) aceitos. Eu

cheguei a ver até o Carlos alto de álcool, no último ano novo que passamos

juntos, se não me engano, de 86 pra 87. Ele deve ter começado com a cerveja,

talvez tenha havido um vinho na mesa. Não, talvez uísque e uma cerveja, no

jantar, e um champanhe e ele ficou meio bêbado. A gente saiu. Fomos à praia.

E eu ia atrás dele, intuindo que ele ia cair, e todo mundo viu que ele estava

bêbado, ao ponto que ele atravessou, meia noite e meia, devia ser, atravessou

a Rainha Elizabeth, passando a Bulhões de Carvalho, atravessou ela correndo,

no meio de um trânsito infernal e caiu na rua. Mamãe deu um grito, ficou

desesperada, mas ele se levantou, continuou correndo e nada aconteceu. E os

automóveis passavam a 80, 100 por hora. Mamãe ficou tão aborrecida que,

quando voltamos da praia, chateada, ela foi embora com o Otávio [Alvarenga].

Aí, o Carlos, lá pelas 3 da manhã, estando eu na copa, chegou e me disse: “sei

que eu estava um pouco alto, mas tudo estava sob controle”. Na verdade, não

creio que estivesse tão sob controle... Ele estava andando, assim, vacilante,

meio claudicante. Eu estava atrás dele, sentindo que ele ia cair a qualquer

momento.

Page 124: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

124

Quando Dolores morreu, uma senhora negra, dona Maria, que trabalhava no

quinto andar e ia lá em casa – era amiga das empregadas, conversava comigo,

com Dolores –, quando Dolores morreu, dizia, a dona Maria chegou para

aquele quadro do Portinari, o retrato bonito de um negro, olhou pro Pedro e pra

mim e disse: “Agora, que sua avó morreu, eu queria tanto ficar com esse negro

aqui. Ele é tão bonito!”

Tem um retrato da Dolores, feito por Ismailovitch. Você podia usá-lo. Ele fez

um quadro do Carlos, que talvez esteja com a Lygia47 ou com uma irmã da

Lygia, agora que ela morreu, e um da Dolores. Muito bonito. Você pode usar

ele. É raro. Ninguém conhece.

AASS: Você acha o meu trabalho pertinente?

LMGD: Não vi teu trabalho. Eu acho que a ideia é boa. A ideia é um pouco

audaciosa, mas está bem. Me chama a atenção que pra um curso de Letras...

Mas está bom. Por que não? Por que tem que ser o escritor, sempre, né?

AASS: Ele não se faz sozinho, não é?

LMGD: Não. Ela deu o suporte prático, para que tudo acontecesse. E, além do

mais, o carinho, a filha, e o filho, que morreu prematuramente, o que viveu

meia hora, né? A vida inteira. Apesar das coisas, foi um casal bem constituído,

um típico casal da época, de classe média. Havia essas desavenças, essas

coisas que, hoje em dia, não seriam toleradas por uma mulher, nem por um

marido, enfim, mas era assim mesmo o tempo deles. Foi assim. Nunca se

separaram, nem creio que tenham cogitado sequer essa ideia e, de fato,

quando papai e mamãe se separaram, pra vovó deve ter sido uma coisa

chocante, porque ela, num primeiro momento, passou a não falar mais com o

papai. Inclusive, eles se cruzaram, na Avenida Santa Fe, um dia aí qualquer, e

ela fingiu estar olhando pra outro lado. Mas isso, por sorte, rapidamente se

recompôs, sobretudo porque a relação entre papai e mamãe foi muito

47

Mulher com quem o Carlos se relacionou por mais de 30 anos.

Page 125: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

125

amistosa, depois. Eles até viajavam, iam pra Europa e tal, de maneira que o

Carlos e a vovó48 viram que o papai continuava sendo o bom pai de sempre e

que mamãe e papai se precisavam, para terminar de criar os filhos, e ficaram

amigos. De fato, mamãe, no leito de morte, sempre dizia que o homem bom

que ela tinha conhecido era o papai.

AASS: Dolores, antes de se casar, era uma mulher independente já, não?

LMGD: Não sei se independente. Eu sei que ela teria trabalhado, fora de casa.

É possível. É possível que tivesse uma vida não muito usual pra uma moça da

época, de 20 anos, naquele tempo. Carlos a conheceu no ano 20 e se casaram

em 25. E ela já trabalhava, etc. E o Carlos nem sequer era independente.

Dependia do pai. Possivelmente, ele tenha pedido para ela parar de trabalhar,

essas coisas próprias da época. Eu acho que ela era uma pessoa com

inquietações.

AASS: Era religiosa?

LMGD: Eu acho que ninguém mais era religioso. Todos eles tiveram religião na

sua infância e depois, digamos, vestigialmente, talvez, como os brasileiros, de

uma maneira um pouco supersticiosa. Não sei. Ela gostava de santos barrocos.

Mais por estética, porque eram bonitos. A casa dela tinha objetos bonitos.

Mesas antigas, esses santos. Uma virgem catalogada. Era uma pessoa

também que se dedicava muito a questões de culinária. Pra nós, fazia bolos,

doces e tal. Ela, entre outras coisas, foi dona de casa. Fazia roupas para netos

e pro marido. E pro marido, até as cuecas. Ela fazia na Singer dela. Era legal,

quando ela abria a mala e apareciam os presentes. Quando chegávamos aqui,

em dezembro, tinha o presente de chegada e o presente de natal.

Eles levavam uma vida simples, horário para almoço e jantar. Uma comida

simples, mineira. Tinha o angu do Carlos, que ele dizia que era bom, porque,

como não tinha gosto, nunca estava ruim. Couve, um bifinho, ovo. E ela dava a

48

Vale observar a forma carinhosa que os netos usam para se referir a Dolores. Com o avô, usavam (e usam) o primeiro nome.

Page 126: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

126

ele um copo de leite, depois do almoço. Tinha o copo da Dolores, na geladeira,

coberto com o pratinho, que era para o copo estar sempre geladinho. Era o

copo dela, pra beber água. Aos domingos, ela não fazia jantar, mas fazia uns

sanduichinhos. Pegava o pão de forma, tirava as beiras e colocava um

presuntinho e mais alguma coisa, enrolava tudo isso num pano de prato úmido,

deixava na geladeira, e ficava bom; vinha acompanhado por uma laranjada ou

alguma coisa que ela preparasse.

A Dolores falava espanhol, mais que o Carlos. Ela se aventurava. Eu me

lembro que, em vez de dizer Borges, ela dizia Jorges. Ela era mais audaciosa

que o Carlos, que devia ter certo pudor. O Carlos falava em castelhano

imitando o papai, o que era muito engraçado.

Page 127: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

127

Com Edmílson Caminha (e-mail, 10.12.2013) Escritor, jornalista e professor de literatura brasileira, Edmílson Caminha

nasceu em Fortaleza (CE). Foi, durante 22 anos, consultor legislativo da

Câmara dos Deputados, em Brasília (DF). A amizade com Carlos Drummond

de Andrade e Dona Dolores, que por diversas vezes o receberam no

apartamento da Rua Conselheiro Lafaiete, estendeu-se a Maria Julieta, a

Manuel Graña Etcheverry e aos filhos Carlos Manuel, Luis Mauricio e Pedro

Augusto. Entre os livros que publicou, destacam-se "Drummond, a lição do

poeta" (2002) e "Em memória de Drummond" (2012).

AASS: Socialmente, como você definiria o jeito de Dolores? (Cordial, amável,

gentil, conversadora/lacônica, simpática, etc.?)

EC: Era, sim, cordial, amável, gentil, não muito simpática (devido à timidez,

acho), e, também por consequência, de poucas palavras. Quando, em janeiro

de 1984, minha mulher (Ana Maria) e eu visitamos o casal no apartamento da

Conselheiro Lafaiete, ela quase não falou, limitando-se a acompanhar nossa

conversa com Carlos. Se tivesse, porém, de destacar-lhe uma só virtude,

escolheria a discrição. Mais do que tudo, pareceu-me discreta, ciente da

condição de esposa de um grande escritor, um poeta importante, uma

celebridade, pode-se dizer.

AASS: Lembra-se do que Ana Maria e você conversaram com ela? Diria que,

na presença do Carlos, ela participava menos da conversa com vocês?

EC: Como já disse, ela praticamente não se manifestou: à minha direita, no

aconchegante sofá da sala de visitas, mais ouviu do que falou, atenta à longa

entrevista que o poeta me concedeu. Talvez, na intimidade da família, sem a

presença de estranhos, ela se sentisse mais à vontade para participar das

conversas, para dizer o que pensava.

AASS: Na sua opinião, do ponto de vista prático, qual foi a contribuição de

Dolores para o trabalho literário do Carlos? Como conhecedor da obra de CDA,

Page 128: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

128

de que modo você diria que essa convivência, de mais de 60 anos, se refletiu

na obra dele?

EC: Tenho a certeza de que Dolores foi fundamental na vida de Carlos, como o

porto seguro de que ele necessitava, como ser humano e como artista.

Sabiamente, ela o compreendia nos seus múltiplos papéis – de marido, de

escritor e de homem que nunca perdeu a capacidade de amar. Inteligente que

era, sabia dos relacionamentos extraconjugais de Carlos, mas optou por

suportá-los, em nome da sobrevivência da família e da relação minimamente

harmoniosa que deve prevalecer entre marido e mulher. Não tenho dúvida de

que uma separação teria sido fatal para Drummond, pela ausência da pax

domestica sem a qual não conseguiria viver nem escrever. Assim, a

convivência com Dolores refletiu-se na obra de Carlos (não apenas pelo

equilíbrio emocional que lhe proporcionava, como acabo de dizer), mas

explicitamente, também, nos poemas em que faz alusão direta à companheira

de toda uma vida. Namorador impenitente (o que só depõe em favor dele...),

Drummond não teria conseguido viver sem Dolores.

AASS: Qual a sua impressão geral sobre Dolores? (Era uma dona de casa,

uma “esposa de poeta”?)

EC: Era muitas: mãe dedicada, avó compreensiva, dona de casa eficiente,

amiga prestimosa, mas também, e de maneira especial, esposa de poeta,

cumpridora, como já afirmei, do papel de coadjuvante de um homem público,

de um escritor permanentemente assediado pela imprensa e pelo público.

Assim, discreta e silenciosamente, soube viver à sombra do marido.

AASS: O que diria de Dolores em relação às mulheres do tempo dela?

Politicamente, você acha que Dolores pensava como o Carlos?

EC: Ao mesmo tempo em que me pareceu uma típica representante da

geração brasileira a que pertencia – de mulheres educadas para o matrimônio

(e para a submissão ao marido), para a maternidade e para os afazeres

Page 129: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

129

domésticos –, Dolores também se punha à frente do seu tempo. Segundo me

contou o neto Pedro Augusto, foi das primeiras mulheres a trabalhar fora de

casa, em Belo Horizonte, sob os olhos de uma sociedade conservadora, plena

de discriminações e de preconceitos. Quanto à política, não faço ideia,

sinceramente, das opiniões de Dolores. Creio que, assim como Carlos, era

defensora da dignidade humana, das liberdades individuais, do direito que

todos os homens e mulheres têm à vida, à saúde, à educação, ao trabalho e à

cidadania plena.

Muitos anos depois daquele 1984, voltei a ver Dolores, quando subi ao

apartamento 701 da Conselheiro Lafaiete, ao encontro de Pedro. Levou-me ao

quarto em que vivia a avó, aos cuidados de uma enfermeira. “Vovó, quem está

aqui é um amigo do Carlos, o Edmílson, que veio visitá-la...” Ela não disse

palavra, alheia a tudo e a todos, sequestrada de si mesma pelo mal que lança

o doente no abismo da solidão e do nada. Preferia não tê-la visto assim, e

guardar-lhe a memória da mulher pequenina, discreta e reservada, sem a qual

Drummond não teria sido quem foi.

Page 130: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

130

Com Manuel Graña Etcheverry (gravação, 11/11/2013; transcrição e tradução de AASS) Nascido em Córdoba, Argentina, em 1915. Advogado, deputado nacional aos

30 anos, filólogo e escritor. Há mais de 60 anos traduz e publica a poesia

brasileira.

MGE: Dolores cuidava muito do tempo do Carlos. Assim, por exemplo, quando

alguém o chamava, por telefone, ela sempre dizia: “Carlos não está. Está

viajando, ainda que já se soubesse que Carlos não gostava de viajar. Desse

modo, ela preservava o tempo dele, de maneira que ele podia trabalhar

tranquilo sem interrupções. Evidentemente, Carlos atendia pouco a Dolores, de

maneira que, quando fui... Eu gostava de levá-la pra passear, muitas vezes

sozinho, eu com ela; a levava de carro. Ela gostava muito de ver as pontes e

os túneis novos que eram construídos no Rio. Assim, uma vez, vimos como se

filma a queda de um automóvel desde uma altura até o mar. Um filme que se

chamava algo assim como Diamantes... Diamantes a gogó. O certo é que eu,

nesse sentido, fiz muito pela satisfação de Dolores. Ela não se animava a sair

nunca sozinha, sem Carlos, e Carlos não podia atendê-la, porque estava em

seus escritos. Eu, nesse sentido, tenho gosto de dizer, de tê-la entretido

bastante. Uma vez, inclusive, quando eu fazia pequenas viagens, podia ir com

Dolores e assim a levei a Ouro Preto, onde estava Pedro, e saímos do hotel e

ela passou a noite em frio, porque não conseguiu fechar a janela, não tinha

força e, além disso, não animou a me chamar, nem a alguém que pudesse

ajudá-la. Saímos com ela, de manhã, para caminhar e... quando nós vivíamos

já na Rua Arroyo, ela, um dia, estava gripada, doente, resfriada e eu lhe

preparei uma bebida que consistia em vinho fervido com açúcar e canela e com

um pouco de conhaque. Quando já estava bem espesso, isso lhe faria suar

toda a noite, ia lhe fazer bem, ela estava na sua cama e eu me sentei ao lado

dela, para lhe dar o líquido e não sei que diabos fiz que entornou no peito da

pobre Dolores. Um dia, me ocorreu, não sei por que diabos, eu tinha pescado

esses moluscos que se tiram as pernas no mar, e me ocorreu fazê-los,

cozinhá-los, na casa de Dolores, e Dolores ficou furiosa, porque disse que eu

havia bagunçado a cozinha toda. Eu fiquei com raiva, querendo voltar pra

Page 131: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

131

Buenos Aires. Outra coisa mais que podia dizer dela... Quando eu me separei

de Maria Julieta, eu também era um pouco inocente, porque pensei que o fato

de que eu me separasse não afetava o resto da família, como, em definitiva,

não afetou, mais tarde. Mas aí estávamos na Rua Santa Fé e, quando ela me

viu, virou a cara, eu fiquei profundamente ferido, mas, depois, pouco a pouco,

ainda que Maria Julieta e eu estivéssemos separados, éramos amigos e muito

ligados, de tal modo que Carlos fazia questão de que, se eu fosse ao Rio, tinha

que me hospedar na casa dele.

Dolores, como Carlos, todas as semanas escrevia uma carta a Maria Julieta e

era sempre a Juju, filhinha e Manolo. Tinha uma letra muito clara e boa.

AASS: Como Dolores pode ter contribuído para a obra de CDA?

MGE: Cuidando do tempo dele. Ela não escrevia, mas cuidava do que ele

escrevia. É curioso porque Carlos só fez um poema para Dolores. Dolores era

muito econômica e, como na época, havia inflação, no Brasil, sempre que ela

podia trocar “cruzeiros” por dólares, ia fazendo sua economia, comprando

dólares. E Carlos se divertia com isso, que não lhe importava, ainda que fosse

muito econômico. Não chamava Dolores de Dolores, senão Dolares. Dolores

tinha uma vida perfeitamente normal, mesmo que tivesse... Parece-me que

Carlos não foi um marido muito fiel, não. Mas o que passou entre eles não

transcendeu, de maneira que, se houve problemas entre o casal, te digo que

não chegava até nós, mas Maria Julieta se deu conta das cosas que Carlos

fazia e o repreendia. Carlos ficava envergonhado, sem dizer absolutamente

nada. Aguentava a repreensão, que Maria Julieta defendia a mãe, nesse

sentido. Dolores se preocupava muito por Maria Julieta. Sempre que havia

algum viajante de Rio pra Buenos Aires, ela mandava algo, mandava comida,

objetos, louças, vestidos, uma quantidade de coisas. Preocupava-se muito com

o cuidado das crianças.

AASS: Como era a relação de Maria Julieta com Dolores?

Page 132: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

132

MGE: Parece-me que Maria Julieta foi um pouco injusta com Dolores.

Evidentemente, Maria Julieta preferia o pai e não a mãe. Parece-me que isso

era visível. Nós, muitas vezes, comentamos isso de que ela cuidava mais de

Carlos. Que eu saiba, Dolores nunca fez críticas literárias a Carlos, isso o fazia

Maria Julieta e eventualmente eu também o fiz. Dolores era muito afetuosa,

nunca a vi repreendendo nem a Carlos, nem a Maria Julieta.

Page 133: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

133

CARTAS

¿Qué mejor modelo de autobiografía se puede concebir que el conjunto de cartas que uno ha escrito y enviado a destinatarios diversos, mujeres, parientes, viejos amigos, en situaciones y estados de ánimos distintos?

Ricardo Piglia, Respiración artificial

Page 134: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

134

Rio, 13 maio 1950.

Minha mulherzinha distante:

Talvez pela sugestão da intensa vida social que V. está levando em

Córdoba, vou por minha vez ensaiando os passos no mundanismo. Hoje à

noite, jantarei em casa dos Gondim de Oliveira, da direção do “Cruzeiro”, em

companhia de outros ilustres intelectuais, para tratar da fundação de uma

revista infantil que a dona da casa financiará. A direção da revista caberá a

Lucia Machado, e há grandes projetos e esperanças49. O que houver contarei a

V. Pela manhã, fui ver a defesa da tese de Afonso Arinos, na Faculdade

Nacional de Direito. Examinador: Casasanta, Sampaio Dória, Valadão e outros.

Verdadeira sessão de tortura, em que os examinadores, vestidos de preto

como abutres, dão bicadas na carne do candidato, o qual se senta num local

parecido com o banco dos réus. O suplício durou 5 horas, e o Afonso Arinos

saiu-se bastante bem, apesar de ter passado a noite em claro, de nervosia. A

nosso lado entre as espectadoras, Hannah tinha as mãos geladas e pensava

em quebrar a cara dos examinadores. O resultado só se saberá depois de

examinados (ou torturados) outros candidatos, entre os quais o Aguinaldo

Costa.

Gostei muito de receber ontem uma carta de V. e outra hoje. É uma boa

medida esta sua, de não esquecer o companheiro distante. Ontem à noite a

Rádio do Ministério transmitiu o conto do túmulo e da flor, e achei a irradiação

bem boa, chegando às vezes rir como se tratasse de coisa feita por outra

pessoa e que achasse engraçada. Tive que fazer um bocado de força durante

o dia para que meus admiradores da Rádio, ao apresentar o conto, não

falassem na pedra do caminho; eles achavam isso indispensável, mas afinal

desistiram.

49

No dia 4 de junho de 1950, Carlos escreve, em seu diário, já citado: “Almoço em casa dos Gondim de Oliveira, da revista Cruzeiro. Projeto de criação de uma revista moderna, dirigida por Lúcia Machado de Almeida. Sinto o interesse de ganhar a vida fora do círculo paternalista da burocracia. Mas a dona de casa mantém comigo uma conversa de caráter moral e religioso que me deixa pensativo. Acho que não será propriamente do meu gênero fazer uma revista assim.”

Page 135: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

135

E nossa querida Bruxinha, como vai depois da confirmação do bebê?

Está suficientemente compenetrada? Não era preciso dizer que V. está fazendo

tricô para o futuro neto, pois V. havia de fazê-lo mesmo sem essa expectativa.

E de saúde – tudo bem? Responda-me se está necessitando de um suprimento

financeiro, para que eu dê um jeito. Muitos abraços a Manolo, merci pelos

retratinhos de Bernardo (os negativos que mandei revelar seguirão depois do

dia 18) e a ternura profunda do seu velho e nostálgico

Carlos

Page 136: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

136

Rio, 16 agosto 1956.

Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu

romance e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho

companheiro? Ou aderiste aos programas sociais do casal Graña, e todo

tempo é pouco para as parties?

Um punhado de notícias: Estamos sem leite, sem açúcar, com pouco

pão e alguma água. O governo, de braços cruzados, espera que a situação se

normalize sem aumento de preço. – Fui à casa de Capanema pelo aniversário;

reunião melancólica de poucos amigos do ex- leader. – Coisica- ***, vista em

casa de Aníbal, tem uma cara estranhíssima de freira espanhola, e deixou-se

ficar sentada no escritório, enquanto a nova geração se esbaldava. – Manir, de

passagem pelo Rio, telefonou. – O maestro *** ofereceu-me em embrulho de

presente, o seu método de piano encadernado. As 50 crônicas deram-me um

telegrama misterioso de Araxá, assinado “Niopaulo”, que acabei identificando

como Niomar e Paulo. Vou fazer um texto para um calendário da Ford, sobre

um domingo no Rio, e mais 6 legendas de estampas, por 10 mil cruzeiros, que

tal?

Nada de S. Paulo em matéria de livros. Continuo aguardando instruções

sobre os já chegados. Guilherme Figueiredo vai para aí, mas em setembro.

Espero V. no fim do mês? Abraços e afetos para Bruxinha, Manolo, Toto e

Abissa (está aqui o quadro de Reis Jr., à espera de portador). A saudade (meio

triste, por falta de notícias) do teu

Carlos

Page 137: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

137

Baires – 20.8.56

Está terminando sua paz, Carlos. A viajante já prepara a mochila para o

regresso: Dia 1° de setembro, sábado, pela Cruzeiro do Sul. O almoço será a

bordo e a aterrissagem será às 3 horas, mais ou menos. V. se queixa da falta

de cartas e elas têm ido bem frequentemente. Agora, não as ponho mais nos

buzones50: Vou à agencia de Esmeralda com Charcas. – Hoje, cedinho, lá

estive para deixar duas cartas com desenhos para V. e para Seu Reis,

presentes de Carlos Manuel. O garoto está desenhando febrilmente e eu, que

sou sua fã número 1, fico encantada com os debuxos do pintorzinho. Veja só

como é extraordinário “A Arca de Noé”. Faz tudo com uma rapidez atômica.

Hoje, no Jardim da Infância, vai começar a aprender a ler e a escrever, coisas

de sua maior ambição. – O irmãozinho está em casa, resfriado, e com uma

pontinha de febre. – Já lhe contei como foi recheada a semana passada com

cinco feriados: circo, cinemas, teatros, museus, parques, etc. – Estou

horrorizada com a miséria carioca. Quando vim, fiz um sortimento muito grande.

Sempre precavida como a formiga da fábula... Enfim, tenhamos fé em Deus e

no nosso grande general. A temperatura está ótima e os agasalhos são quase

dispensáveis. Maria Julieta continua dando milhões de aulas no Centro. Tola

como alguém que conheço a longos anos. Não adianta falar, nem lhe mostrar o

espelho. À parte de tanto trabalho tem uma vida bem agitada – doméstica e

social. Agora, com o fato de ela ter que cuidar dos meninos todas as manhãs e

duas tardes por semana, ela está bem mais perto deles e resolve muito bem e

com mais paciência e humanidade todos os problemas infantis. E tudo segue o

ritmo habitual sereno e agradável. Manolo está bem e muito preocupado com

os quilos a mais que adquiriu, libertando-se do fumo. Trabalha pela manhã e à

tarde e vai ao golf, aos sábados e domingos. – Espero que os honorários da

Ford sejam fraternalmente repartidos. Que tal?

Os Graña lhe enviam carinhos e saudades e eu o meu longínquo abraço.

Dolores

50

Plural de “buzón”, caixa colocada em lugares públicos, onde as pessoas depositam suas correspondências.

Page 138: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

138

Baires – 4.VIII.57

Carlos querido:

Outro dia chegou sua boa e noticiosa carta. Deus queira que tudo corra

bem aí: V. com saúde, pensando na gente e a casa em ordem.

O povinho portenho vai muito bem. Todos saudáveis e sempre com

saudade de V.

Carlos Manuel, quinta-feira, tirou o primeiro dente. O outro já estava

grandão, atrás. Dei um puxãozinho e pronto. Sem sangue e sem choro. À noite,

pôs o dente numa almofada para “El Rei Ratón51” vir buscá-lo para o castelo

encantado. O rei veio e deixou os pesos, como se usa na terra. O garoto

quando, manhãzinha, encontrou as cinco notinhas novinhas ficou deslumbrado

e dava gritos de alegria.

Quarta-feira houve a festa de aniversário do filho de Fernando. À tarde

para as crianças; à noite para os pais. Uma reunião muito agradável, com

quase todo o mundo da Embaixada.

Khachaturian52 , ontem, no Colón, regeu suas próprias composições,

comum sucesso extraordinário.

Conte-me de V., da sua vidinha, de seus trabalhos e da casa. Convém

dizer a Clair para ter muito cuidado quando lavar os cristais, limpar os armários

e encerar a casa. Não retirar nem a televisão, nem a vitrola do escritório e

colocar mesinhas em pé e não deitadas, como ela tem feito.

Os Graña sempre ativos em trabalhos e em sociedade. Os meninos

saíram agora, 10 ½ horas, com Catalina. Foram à festa de aniversário do irmão

da Babá e só regressarão logo à noite. Saíram loucos de prazer cada um

levando cuidadosamente seu regalo53 para o aniversariante.

O frio de quinta-feira, 1,8 abaixo de zero foi uma coisa horrível. Que

ardor e que dureza nos pés, santo Deus!

Hoje, à noite, jantar num bodegón e sexta-feira os Graña recebem, num

jantar americano, vários casais amigos, em homenagem aos Guirand, que

seguem para a Europa, dia 11. 51

Trata-se da lenda do “Ratoncito Pérez”. Quando a uma criança lhe caía um dente, este era jogado no telhado, levado pelo “Rey Ratón” e trocado por algumas moedas. 52

Compositor armênio do século XIX. 53

Em português, significa “presente”.

Page 139: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

139

Todos lhe enviam carinhos. O meu é o maior e a minha saudade

também é muito grande.

Sua de sempre

Dolores

Page 140: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

140

23.VIII.58

Carlos:

Este bilhete ligeiro é para dizer-lhe que o voo foi tranquilo e a

aterrissagem à hora exata.

A família Graña compareceu ao aeroporto alegre e bem disposta. Os

garotos estavam encantados e os presentes foram recebidos debaixo da maior

alegria. Os olhos de C.M. ao receber o relógio brilhavam de uma maneira rara.

Abissa ficou tão emocionado que se pôs triste com o presente fechado na

mãozinha direita. Ambos estão ótimos; Maria Julieta e Manolo também.

O dia está morno e cheio de sol e o apartamento muito acolhedor.

Todos lhe enviam muitas saudades.

Deus queira que seus achaques estejam terminados.

Um grande abraço de

Dolores

Page 141: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

141

Rio, 13 de março 1960.

Dolores querida:

espero que a estas horas uma carta de V. esteja cruzando os ares para

me contar como foi a viagem e dando notícias daí. É tão grande o silêncio da

casa e tão vazia anda ela, que só uma cartinha boa poderá animá-la. Conte-me

como vai o nosso povinho e como é a cara do jovem Pedro; também quero

saber se os olhos e o reumatismo vão melhorando.

Eu nada fiz até agora de especial, e me limitei a pôr em ordem as

gavetas e estantes. Ainda vejo e ouço os dois capetinhas trançando pela casa

e lembro o que há de bom na presença de crianças. Tem caído uma chuva

tristonha, as ancilas se portam com discrição, e nada há mais a registrar. Só

uma notícia triste e que me chocou extremamente: Portinari e Maria se

desquitando54. Parece que a petição já entrou em juízo, e que a indefectível

Pomina deu notícia na sua seção. Rodrigo, a par do assunto, disse-me que o

motivo da separação foi o João Cândido55, que ao completar 21 anos, mandou

procuração para se casar com uma jovem carioca. Maria se opunha

energicamente a isso, enquanto o Candinho seria mais tolerante. Comentando

o caso, Rodrigo me ponderou que a situação de Maria é mais triste que a de

Portinari; este ainda tem os irmãos que lhe são devotados, enquanto ela ficará

sem marido e sem filho. É realmente uma coisa de amargurar a gente.

Quando V. volta? Gostaria que não demorasse, para recomeçar logo o

tratamento e fazer companhia ao velho rabugento mas que lhe quer um grande

bem, e que lhe manda um beijo com toda a ternura.

Carlos

54

Segundo o Museu Casa de Portinari, “após 30 anos de casamento, Portinari separa-se de Maria, que, assumindo mais que o papel de esposa, ajudava-lhe com os problemas do cotidiano, deixando-o livre para dedicar mais tempo ao seu trabalho. Mesmo separados, Maria continua a prestar-lhe assistência.” Para mais informações, ver: http://museucasadeportinari.org.br/candido-portinari/linha-do-tempo/de-1958-a-1962 55

Filho do casal Portinari.

Page 142: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

142

17-III-60

Carlos, my dear

Hoje, chegaram suas cartas. Todos aqui vão bem e saudosos de V.

Pedrinho56, o assunto da temporada, está gordinho e esperto, com seus

olhos claros e seu cabelo cor de cenoura. Ontem começou com um novo

horário – comida de 4 em 4 horas, cinco vezes ao dia. Sai todas as manhãs à

praça e dorme bem às noites.

Toto já recomeçou a vida escolar. Agora sai mais tarde e volta mais cedo.

Está muito entusiasmado com os novos livros e a nova professora.

Abissa 57 , que recebera o irmãozinho com encantos especiais, de

repente se pôs agressivo, ameaçando de bater no pobrinho. Vivia dentro do

carrinho e usando tudo que era dele. Afinal, confessou ao Pai que “tudo agora

é para o Pedro e ninguém me liga mais.” Hoje, está mais acessível, depois da

conversa que Manolo e Bruxinha58 tiveram com ele.

Quanto às brigas***. Por determinação materna, enérgica e prepotente, as

prebendas e as pancadas acabaram-se por encanto, graças a Deus, as

revistas passam pelas quatro mãos, sem protesto.

Fiquei sofrida com o caso Portinari, devia esperar isto de todo casal,

mas este tão amigo, tão eles mesmos.

Marcarei minha ida na próxima semana e logo lhe comunicarei.

E V. como vai? Está trabalhando muito? E as crônicas?

Um abraço de nós seis. O coração inteirinho da sua

Dolores

56

O terceiro neto de Dolores. 57

Apelido do segundo neto, Luis Mauricio. 58

Apelido que os pais colocaram em Maria Julieta.

Page 143: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

143

7.VII.63

Querido Carlos:

Fiquei verdadeiramente comovida com o poema de Abgar. Que coisa

linda, hein?

O seu gesto carinhoso com a família do 6° andar também me pôs

orgulhosa do marido cavalheiresco que me tocou.

Pedrinho já está bem, graças a Deus. Esteve dez dias com febre, foi

uma gripe muito forte. E nesses dias da doença do garotinho nossas andanças

tiveram uma trégua.

Sexta-feira, foi o ato cívico dos escolares do país, comemorando o nove

de julho59. Foi antecipado pela semana de férias que vem agora. Uma coisa

simples e rápida. Terminou com a oração de C.M. Estava muito bem feitinho o

trabalho e o diretor gostou bastante. O garoto foi treinado no colégio e em casa.

Falava claro, alto e pausadamente. Mas na hora, o pobre falou baixo e

depressa. Claro que foi muito aplaudido, principalmente pelos colegas de turma

que não cessavam de aplaudi-lo. O pior foi quando fomos cumprimentar o

orador. O professor elogiou como sendo um ótimo aluno, “pena que dissesse

tão depressa o discurso”. Isto bastou para mortificar o pobre menino. Tentamos

convencê-lo de que estava tudo muito bem, quando ele nos disse: “Eu tinha a

impressão que estava sonhando alto, e estava com muita vergonha, no

sonho...”

O puchero 60 de ontem estava muito bom e muito bem. 6 casais

brasileiros e mais a Sra. Dolega. O apartamento está uma beleza com sua

nova decoração. O tapete da sala de jantar, comprado no turco, onde comprei

os meus, é uma coisa linda. Persa antigo, rosado com *** floridos dos lados e

em toda a volta, mede 3x4 e custou apenas 300.00 em nossa moeda. Foi uma

compra excelente que Bruxinha fez.

Hoje, é um dia morto pelas eleições61: tudo fechado.

59

Data em que se comemora a proclamação de Independência da Argentina. 60

Prato à base de carne, cenoura, batata, cebola, milho, linguiça, repolho e ovos. 61

O vencedor dessas eleições foi Arturo Illia, da Unión Cívica Radical del Pueblo (UCRP), também derrocado por um golpe militar, em 1966.

Page 144: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

144

Amanhã, a grande festa a bordo, com um programa cuidadosamente

escolhido. Caviar russo, vinhos franceses e grandes prazeres para os

convidados.

Gostei de ver a sua sociabilidade, recebendo os poucos amigos.

Continue, meu caro.

A temperatura tem estado agradável. Com o termômetro tangenciando

os 20°.

Já lhe disse que os dois fardos com as compras seguiram sexta-feira

pelo Loide. Não conseguimos saber o nome e o endereço do comandante.

Logo que o tenha lhe direi.

Os castiçais já estão prontos, só faltam as cúpulas que mandei fazer de

pergaminho. As armações irão comigo.

A medida do pote de vidro é para a florista preparar umas flores secas

para colocar dentro. É de um efeito lindo, imitando os enfeites da era vitoriana.

Quero ver mais algumas coisinhas, se o dinheiro der.

E V. como vai de saúde? E os trabalhos, as saídas e o ministério

doméstico?

Dê saudades a Pitu, Maria e Ruth.

Todos mandam abraços para V.

Um beijo e todo coração de sua

Dolores

Page 145: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

145

Meu querido Carloca tão distante.

Ontem, foi o início da festa de aniversário de Luis Mauricio, com seu

telegrama chegando cedinho. Manhãzinha, foi o café com bolo e uma vela

enorme, ao som de “Parabéns a V.” Houve um almoço na sala nobre, com a

presença de Tia Mary. Sábado a reunião de 12 amigos, com lanche e

brincadeiras.

O tempo aqui é que está muito camarada, com um sol aconchegante e

uma temperatura de 22°.

Tenho saído sempre com Bruxinha – de manhã e a tarde, pela cidade e

pelos antiquários.

V. conseguiu fazer o pagamento das ações do Belgo Mineiro? Já recebi

os 105.000 cruzeiros, convertidos a pesos, que já estão sendo gastos.

Um cisco no olho direito de Carlos Manuel foi retirado, logo, no Hospital

Alemão. Estava incomodando demais ao pobrezinho.

Agora, me conte de V. – de sua saúde, do trabalho, da casa, da vida. E

Lita tem olhado direito tudo? Como foi a ida da passadeira?

Ando muito bem de saúde: gripe, olhos e tudo mais curado.

Todos aqui vão bem e mandam saudades a V.

Um beijo e todo o amor de sua

Dolores

27.VIII.64

Page 146: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

146

16/9/65

Carloca muito amado.

Semana calma, com carta chegada ontem. Manolo foi a Concepción e a

Córdoba. Saiu domingo, à tarde, e chegou hoje tarde da noite. – Pedro

novamente com a garganta tomada, pobrezinho. Hoje, tem médico para

resolver o problema – se opera ou não as amígdalas. Logo, irei à Cruzeiro para

marcar minha viagem. Esta Cia. e a Varig fizeram um convênio e mudaram

todos os horários. Vejamos qual o dia da semana que tem Convair para o Rio.

Falo logo, em seguida. – Fiz a primeira compra e fiquei reduzida a zero. Uma

peça boa, que, certamente, V. vai gostar: uma Sta Rita, peça de catálogo, que a

acompanha. O tapete ficará para a próxima “estação de águas”. O que vimos

com as medidas mais ou menos, Bukaro, bonito mesmo. Saía pela bagatela de

400 dólares. Bruxinha me empresta, mas não tenho coragem de semelhante

investimento! E foi o mais barato. Aí, talvez custaria o dobro, conforme os que

Gilda adquiriu. – V. como vai? A saúde, o trabalho, a casa e tudo mais? O

quinteto portenho envia saudades a V. – Nem sei por que o dr. Mitchell não

telefonou. Ele foi tão gentil oferecendo os préstimos. E depois ele já esteve

duas vezes aí em casa. Será que ele não vai trazer os copos? Tem um

apartamento pequeno em Figueiredo Magalhães com Copacabana, um prédio

novo. Eu quero muito bem a V. Mando-lhe carinhos, abraços, beijos e todo o

meu coração cheiinho de saudade. Sua de sempre

Dolores

Page 147: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

147

Page 148: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

148

Ver transcrição na página seguinte.

Page 149: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

149

Querido Carlos:

Tudo aqui vai marchando direitinho. Bruxinha vai melhorando, mas se

cansando bastante com as suas idas diárias aos médicos. E ela é quem guia.

Dura, durona.

Sexta-feira, foi um dia horrível para mim. Eu ainda não tinha visto a

cicatriz: ela achava que me deveria mostrar mais tarde, bem mais tarde. De

repente, depois do banho, ela me chamou e, abrindo a toalha, me disse: “Olha,

olha bem!” Nem sei como aguentei. Tudo estava O.K., muito melhor do que eu

esperava. Mas, quando vi o peito mutilado, o mundo desabou sobre mim.

Nunca passei por um momento assim. Mas reagi instantaneamente. “Que tal,

mãe? Que tal, mãe?” “Ótimo?” A voz custou a vir, mas disse logo: “ótimo!”

“assim é que eu gosto de uma mãe durona como V.” Que dor, meu Deus! Que

desgraça! Mas a doente reage perfeitamente, se movimentando, dando ordens,

trabalhando. Aquelas crises depressivas vão escasseando, felizmente. O

cobalto, as massagens, o remédio e os carinhos que recebe de todos muito

contribuem para suas melhoras. Mas sobretudo é a ficha da pobre menina. Tem

feito vida normal, dando ordens telefônicas ao Centro62, olhando a casa e

atendendo as inúmeras chamadas ao telefone. – o resultado do Papa-Nicolau,

só no fim da semana que vem. – Domingo saiu para jantar fora com o amado,

toda linda, linda mesmo, inclusive com os dois peitinhos postiços que arrumou

a última hora. E se sentiu “divina”.

Greta63 perdeu o 3º filhinho, que era mofino e que ela rejeitara. 48 horas

depois da faceta, teve um sétimo. Grande, mas morto. O veterinário chamado

disse que é normal: é que ela teve contato com o gato por duas vezes, e na 2ª

conseguiu se fecundar um ausente. Agora, no apartamento ela e os bichinhos

são os preferidos.

E V. como vai? O trabalho, as andanças? Lemos sua crônica sobre as

professoras. Muito boa. – Manolo tem sido extraordinário. Um beijo e o grande

carinho de Dolores.

26/ VI / 79

62 Dolores refere-se ao Centro de Estudos Brasileiros, mantido pelo Itamarati, em Buenos Aires, instituição onde Maria Julieta dava aulas e que, posteriormente, dirigiu. 63

Gata da família Graña Drummond.

Page 150: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

150

UMA HISTÓRIA EM FRAGMENTOS

Page 151: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

151

DE CARLOS PARA DOLORES

Encontrei-me com seu marido e, embora ele não confessasse, estava com cara

de ter saudades.

Carta de 22 de abril,1950

Depois que V. se mudou do Brasil, o que aconteceu de melhor, para mim, foi a

sua carta.

Carta de 25 de abril, 1950

Mande-me uma carta boa e longa, com muito carinho, o que será um modo de

estar presente.

Carta de 25 de abril, 1950

Aqui, há muitas saudades, Dolores. Vicejam pela casa toda, e eu próprio sou

um canteiro delas.

Carta de 3 de maio, 1950

Os bichinhos iniciaram uma temporada de sono hibernal, e dormem por todos

os cantos da casa; é uma forma de ter saudades.

Carta de 3 de maio, 1950

Sinto muita falta de V., de nossos serões no escritório, de nossos cineminhas e

de nossas rusgas.

Carta de 5 de maio, 1950

E adeus, dona Dolores dos meus pecados e dos meus carinhos.

Carta de 5 de maio, 1950

Page 152: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

152

Eu imaginava que a vida não me reservava mais desses momentos intensos,

em que tudo se transfigura, e o mais íntimo vem à tona, quando de repente

recebo uma notícia que me deixa completamente comovido e bobo.

Carta de 7 de maio, 1950

Venha imediatamente, porque a falta é enorme, e triste a vida do solteirão.

Carta de 7 de maio, 1950

Confio muito no velho tacto de enfermeira, assistente social e grande criatura

humana de minha mulher.

Carta de 10 de maio, 1950

Estamos modorrando por aqui, à espera do seu regresso (V. voltará ainda este

mês? duvido...)

Carta de 10 de maio, 1950

Querida, mande um beijo para seu velho fan e companheiro, para amenizar

este mundo de saudades.

Carta de 10 de maio, 1950

É uma boa medida esta sua, de não esquecer o companheiro distante.

Carta de 13 de maio, 1950

Não era preciso dizer que V. está fazendo tricô para o futuro neto, pois V. havia

de fazê-lo mesmo sem essa expectativa.

Carta de 13 de maio, 1950

Estava tão mal acostumado com as cartas frequentes que, segunda e terça,

vendo o carteiro de mãos vazias, me senti roubado.

Carta de 18 de maio, 1950

Page 153: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

153

Se V. se fizer muito envaidecida com a confissão de que estou com muitas

saudades, então fique.

Carta de 18 de maio, 1950

A casa toda é uma grande saudade de você. A poltrona do escritório, que V.

elegeu para os serões de costura, anda erma e desconsolada. E a gatinha que

providenciei para encher estas férias conjugais não é a mesma coisa, embora

também arranhe às vezes.

Carta sem data

Sou um animal doméstico e só me entendo bem com os velhos afetos. Pode

tomar isto como uma declaração de amor, é.

Carta de 23 de agosto, 1955

Está um frio úmido lá fora, e eu quero me aquecer um pouco em sua

companhia.

Carta de 28 de agosto, 1955

Divirta-se bastante, querida, para suportar depois com paciência a misantropia

deste seu velho companheiro, que vive por aqui roendo as saudades.

Carta de 28 de agosto, 1955

Já me habituei a ser um solitário a dois, e a outra parte da minha solidão me

faz muita falta.

Carta de 4 de setembro, 1955

Aqui não há novidades, só que tudo é um pouco chato na sua ausência.

Carta de 24 de julho, 1956

Fico lembrando nossos serões domésticos, às vezes perturbados por brigas

em torno da T.V., mas afinal de contas de uma rotina tão agradável.

Carta de 28 de julho, 1956

Page 154: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

154

Dolores, onde estás, onde estás que não respondes? Escreves o teu romance

e por isso não tens tempo de mandar algumas linhas para este velho

companheiro?

Carta de 16 de agosto, 1956

Saudades aqui são mato, mas a vida é normal.

Carta de 8 de agosto, 1957

Dolores, sou um bobo que não sei ir ao cinema sozinho.

Carta de 11 de agosto, 1957

Aqui está o seu velho companheiro, a remoer o realejo das saudades – única

notícia que tenho para te dar.

Carta de 16 de agosto, 1957

Esta semana, ofereci-me (em homenagem também a V.) a 5a sinfonia de

Beethoven, pela Filarmônica de Hamburgo, regida por um dr. Joseph Keilberth,

e espero adquirir a 9a para festejar devidamente o seu regresso.

Carta de 18 de agosto, 1957

E V., querida, tem mesmo sentido falta das implicâncias deste seu velho

companheiro, e de nossos serõezinhos tranquilos? Eu tenho V. na lembrança e

fico esperando que este agosto comprido acabe de passar, para que voltemos

a ser um só.

Carta de 18 de agosto, 1957

Li com alegria aquele trecho de sua carta: “amanhã, preparativos para o

regresso”. A folhinha está mesmo reclamando essa providência, e posso

assegurar que V. será recebida com carinho.

Carta de 22 de agosto, 1957

Page 155: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

155

Saudades de uma certa senhora, dona do meu coração, que há um mês, está

longe de mim, e a quem espero com ansiedade abraçar carinhosamente até o

fim de agosto.

Carta de 22 de agosto, 1957

Escrever para V. tem sido uma de minhas raras distrações, na casa vazia e no

dia trivial, em que não acontece nada, além do trabalho miúdo.

Carta de 11 de setembro, 1958

Que bom você estar de volta ao lar brasileiro, onde há um grande vazio difícil

de suportar! Mais uma vez verifiquei que sou homem de solidão a dois, não de

solidão absoluta.

Carta de 21 de setembro, 1958

Saudades, muitas saudades de minha mulherzinha, a quem, com todas as

minhas implicâncias e rabugices de Drummond e de velho, quero um bem

infinito.

Carta de 30 de junho, 1963

Eu, em matéria de doença, tenho apenas a da saudade, no coração vazio.

Carta de 3 de julho, 1963

Há muitas saudades andando por este 7° andar, e o objeto delas é você.

Carta de 11 de julho, 1963

Para você o imenso carinho do seu rabugento mas amoroso velhote, que te

ama por toda a vida.

Carta de 6 de setembro, 1964

Sábado que vem estarei recebendo o meu amor com toda a ternura; talvez

você não me reconheça, tão roxo que estou de saudades!

Carta de 25 de janeiro, 1965

Page 156: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

156

Tenho pensado com muito carinho na boa companheira distante. O beijo de

velha ternura de seu jovem namorado.

Carta de 27 de agosto, 1965

Você já se imaginou esposa de um poeta com nome de rua, ou de uma rua

com nome de poeta?

Carta de 5 de setembro, 1965

Este nosso papinho postal ainda é a melhor maneira de vencer a saudade.

Carta de 10 de setembro, 1965

Neste sétimo andar, a notícia única é a falta de companheira do poeta, que

torna a vida silenciosa e saudosa.

Carta de 27 de setembro, 1967

A gente está sentindo falta de uns serões diante da TV e dos nossos uisquetes.

Companheira de mais de 50 anos não se esquece de uma hora para outra, viu?

Carta de 14 de março, 1978

Você é ainda sempre uma grande companheira humana e dedicada, com

admirável capacidade de ação na hora certa.

Carta de 7 de julho, 1979

Page 157: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

157

DE DOLORES PARA CARLOS

Tenho sentido muitas saudades do meu violeiro.

Carta de 12 de setembro, 1955

Está terminando sua paz, Carlos. A viajante já prepara a mochila para o

regresso.

Carta de 20 de agosto, 1956

Quando vim, fiz um sortimento muito grande. Sempre precavida como a

formiga da fábula...

Carta de 20 de agosto, 1956

Todos lhe enviam carinhos. O meu é o maior e a minha saudade também é

muito grande. Sua de sempre.

Carta de 4 de agosto, 1957

O seu santo nome é citado aqui a granel. Sinto uma grande saudade de V.

Carta de 7 de agosto, 1957

Que delícia V. sentir saudades de sua velha!

Carta de 13 de setembro, 1959

Suas cartas têm causado um grande bem a esta sua companheira.

Carta de 21 de setembro, 1959

Carloca, amado mio: ando com saudades de V. e sentindo falta de nosso

convívio.

Carta de 26 de junho, 1963

Gostei de ver a sua sociabilidade, recebendo os poucos amigos. Continue, meu

caro.

Carta de 7 de julho, 1963

Page 158: Aline Aparecida dos Santos Silva Dolores – um ensaio ... · AGRADECIMENTOS A Pedro Augusto e Luis Mauricio Graña Drummond, pelo apoio que deram a esta pesquisa. Palavras não seriam

158

Chegou agorinha sua carta do dia 5. V. é um amor, é o amor dos amores.

Carta de 12 de julho, 1963

Sou insaciável – sem dinheiro e vendo coisas desvairadamente.

Carta de 12 de julho, 1963

V. fará isto para mim, meu benzinho de candura, amarrado pela cintura?

Carta de 30 de agosto, 1965

Marido muito amado e todo o meu bem querer: o que me importa que V. pese

um pouco mais, um pouco menos. De qualquer forma eu gosto muito de V...

Carta de 5 de setembro, 1965

Veja só o assanhamento de sua velha companheira.

Carta de 5 de setembro, 1965

Eu quero muito bem a V. Mando-lhe carinhos, abraços, beijos e todo o meu

coração cheiinho de saudades.

Carta de 16 de setembro, 1965

De mim, V. tem o coração inteirinho, a grande ternura e todo o carinho.

Carta de 21 de setembro,1965

Tome cuidado com a saúde, durma cedo e trabalhe parcimoniosamente.

Carta de 11 de setembro, 1967

Todos mandam saudades para V. e eu todo o meu amor e o meu melhor

pensamento, para o muñeco ausente e sempre presente.

Carta de 21 de setembro, 1967

Eu, meu velho amigo, dou para V. o meu coração inteirinho, a saudade vasta e

toda a minha ternura.

Carta de outubro, 1967