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Alguns aspectos suburbanos e rurais do município de São Paulo, no século XIX.
Apresentação
O trabalho que apresentamos se fundamenta em pesquisa para um doutorado em
História Econômica, pela FFLCH-USP. Ao longo da pesquisa, tentamos mapear como se deu
a ocupação dos subúrbios e zonas rurais do município de São Paulo e a formação do padrão
periférico de urbanização1, entre os séculos XIX e XX.
Autores e fontes consultados indicam um processo de ocupação que transcende o
crescimento do triângulo central, por meio do aparecimento de áreas de concentração suburbana
independentes do crescimento da área central da cidade2.
Em nossa hipótese, a ocupação das áreas suburbanas e rurais do município fomentou
um conjunto de atividades econômicas como agricultura, pecuária e extrativismo que não estão
devidamente documentadas pela historiografia da cidade, mas que são fundamentais para o
processo de metropolização que acometeu São Paulo no decorrer do século XX.
Objetivos e fontes
Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar alguns aspectos da ocupação dos subúrbios
de São Paulo a partir da análise de um conjunto de fontes: os relatos de alguns viajantes que
passaram por São Paulo ao longo do século XIX.
Trabalharemos com fontes consagradas pela historiografia e acessíveis nas bibliotecas,
por reconhecermos a importância destes materiais para a compreensão de como o território
paulistano foi partilhado, antes inclusive, da formação do processo de estocagem de terras para
a especulação urbana.
Do ponto de vista da pesquisa mais abrangente, em nosso doutorado, a ocupação dos
subúrbios e zonas rurais de São Paulo nos interessa por alguns motivos. Primeiro, acreditamos
que o processo de urbanização e metropolização ganha uma melhor compreensão a partir do
momento em que se entende como se deu o parcelamento destes espaços no decorrer do século
XIX.
1 MARICATO, E. (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. PP. 57-63. 2 WILHEIM, Jorge. São Paulo Metrópole 65. P. 32. MEYER, Regina Maria Prosperi; GROSTEINS, Marta Dora;
BIDERMAN, Ciro. São Paulo metrópole. PP. 34 - 35.
Segundo, para reconhecer como se estabeleceu a produção de gêneros de alimentação,
fundamentais para o abastecimento dos habitantes da cidade, no momento em que se iniciou a
industrialização na cidade e se deu a formação de seu operariado.
Terceiro, vinculado ao objetivo anterior, permite mapear a transição de uma economia
de subsistência para uma economia de mercado. Quarto, tentar estabelecer ou compreender
como se deu a formação do processo de estocagem de terras para a especulação imobiliária3.
Para isso, temos pesquisado diversas fontes, como relatórios dos presidentes da Câmara
Municipal, prefeitos e outras autoridades, relatos de viajantes, registros iconográficos e
periódicos.
Entretanto, para este trabalho, por questão de espaço, buscaremos apresentar e
problematizar como alguns dos viajantes que passaram por São Paulo no século XIX descrevem
sua paisagem suburbana e rural.
Testemunhos acerca dos subúrbios paulistanos em meados do século XIX
Pedro Corrêa do Lago, em Iconografia Paulistana do Século XIX, indica que apenas em
1807, um estrangeiro conseguiu autorização para viajar até São Paulo4.
Trata-se de John Mawe, que esteve na cidade nos meses subsequentes. Seus registros
apresentam uma opinião bem crítica em relação ao que visualizava, tanto no trato da produção,
quanto no estilo de moradia dos habitantes5. Tão importante quanto sua visão crítica é a
descrição que nos legou acerca de como se dava a ocupação de um lote. Segundo o autor
“A terra é cedida em grandes lotes, para o devido cultivo; é fácil supor que o valor
destes lotes depende, mais ou menos, da sua situação. Assim, o primeiro objetivo do lavrador
é encontrar terreno disponível mais próximo possível de uma grande cidade; em segundo lugar,
de boas estradas e rios navegáveis. Uma vez fixado o local, recorre ao governador do distrito,
que envia os funcionários competentes para demarcar o terreno, geralmente uma légua e meia
quadrada, às vezes mais. O lavrador então adquire o maior número de negros que puder e
inicia o trabalho, construindo habitações para eles e si próprio, que são, em geral, choupanas
3 GROSTEIN, Marta D. A cidade clandestina. Os ritos e os mitos. PP. 55. 4 LAGO, Pedro Corrêa do. Iconografia Paulistana do século XIX. P. 12. 5 Idem. PP. 67 – 68.
miseráveis, apoiadas em quatro estacas, comumente chamadas ranchos. Ordena aos negros
que abatam as árvores e limpem o mato rasteiro que cobre o terreno, na área que julga
necessária... Quando já plantada quantidade suficiente para o consumo da fazenda, o dono, se
é bastante rico, arranja meios de cultivar a cana e preparar o açúcar”6.
Outro viajante que passou por São Paulo nas primeiras décadas do século XIX foi Daniel
Kidder. Seus relatos nos interessam por aspectos diferentes em relação aos de Mawe, porque o
autor teve a oportunidade de visitar a fazenda de uma das famílias mais ricas de São Paulo nas
primeiras décadas do século XIX. Em seus relatos, informa que a família possuía outras
propriedades, com escravos, animais de montaria e trabalho, além de produção de diversos
itens7. Assim, por meio da descrição de Kidder, podemos apontar aspectos econômicos e sociais
de uma fazenda nas áreas rurais de São Paulo, como as evidências da existência de populações
escravas e senzalas nas áreas rurais de São Paulo nas décadas que antecedem a abolição da
escravidão, que possivelmente deram origem a alguns dos bairros paulistanos da atualidade.
Em viagem realizada em 1818, entre Santos e Cuiabá, o oficial de engenharia Luiz
D’Alincourt passou por São Paulo e estabeleceu um precioso registro acerca dos subúrbios da
cidade, publicado pela primeira vez em 1825.
“Está a cidade de S. Paulo debaixo de um sol sereno, 350 braças acima da superfície
do Oceano; o clima é excelente, o terreno fertilíssimo; produz em grande cópia as canas de
açúcar; é muito próprio em diversos lugares, para a plantação de trigo; abunda em milho, e
toda a quantidade de legumes; muitas frutas da Europa, e outras diversas, e preciosas
produções. O açúcar forma o principal ramo de exportação; e, além de todos os mais gêneros
que mencionei tratando do Comércio de Santos, não de deve omitir a extração das bestas
muares para muitas Províncias, o que faz um ramo assaz lucroso; assim como o gado que sai
para a Côrte. É a cidade cercada de quintas, ou chácaras, que embelezam seus subúrbios; é
muito farta d’águas, e as do Rio Tamandoateí são excelentes.”8
O relato do viajante português sugere que a ocupação dos subúrbios por chácaras e
fazendas era o padrão do entorno da cidade já na década de 1810. Os três relatos apresentados
6 MAWE, J. Viagens ao interior do Brasil. PP. 66 – 67. 7 KIDDER, D. P. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do sul do Brasil. PP. 212. 8 D’ALINCOURT, L. Viagem do pôrto de Santos à cidade de Cuiabá. P. 34.
quando combinados nos permitem sugerir a existência de um determinado padrão de ocupação
marcado pela presença de fazendas e escravos, assim como abundante produção agropastoril.
A presença de estrangeiros nas áreas suburbanas e rurais
A presença de germânicos na cidade de São Paulo, ao longo do século XIX, está bem
documentada. Paulo Cursino de Moura afirmou que “o empreendimento alemão, em terras
paulistanas, tomou vulto extraordinário. Em tudo e por tudo. Em todos os ramos de atividade”9.
Nosso memorialista chama a atenção para a presença germânica nas atividades comerciais,
indicando o pioneirismo de Theodor Wille na exportação do café da província de São Paulo
para a Europa10, e industriais, indicando o pioneirismo de Gustav Sydow a partir da instalação
de uma serraria a vapor11.
Entretanto, a presença germânica não se restringiu aos espaços urbanos. Ela também se
deu nas áreas rurais e suburbanas de São Paulo, como atestam alguns dos viajantes que
passaram por São Paulo.
Em 1858, o médico de origem germânica Robert Avé-Lallemant visitou a cidade de São
Paulo, visita que lhe permitiu a publicação de um interessante relato acerca da presença de
imigrantes de origem germânica do entorno de São Paulo.
Em seu registro, chama-nos a atenção a existência de pequenos povoados pobres que
apresentam aspectos de pousada. Seus habitantes vivem exclusivamente do trânsito de
tropeiros, na região próxima ao topo da Serra do Mar12. Um pouco adiante, em seu caminho,
afirma que a qualidade do solo para a agricultura melhora, o que permite encontrar no entorno
do vilarejo de São Bernardo, descrito pelo autor como lugarejo pobre, algumas plantações de
chá13.
Outro fator a nos chamar a atenção é a presença de alemães no planalto paulista em
atividades não urbanas. Ainda nas proximidades da Serra do Mar, deparou-se com uma alemã
que trabalhava com hospedagem de viajantes. Em São Paulo, esteve em contato com um alemão
de nome Ablass, que mantinha uma plantação a cerca de uma milha da cidade de São Paulo,
9 MOURA, P. C. São Paulo de outrora (evocações da metrópole). PP. 281-282 10 Idem. P. 282. 11 Idem. P. 286. 12 AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (1858). P. 329. 13 Idem. P. 331.
em propriedade de meia milha quadrada, formada por pastagens para a criação de gado, pomar
com macieiras, pereiras, ameixeiras, pessegueiros, laranjeiras, romãzeiras e cafeeiros.
Aparentemente, a atividade principal da propriedade era a produção de chá, de onde a
família obtinha boa fortuna. Avé-Lallemant afirma que a família chegava a obter 4000 táleres
(moeda prussiana da época). Cultivavam, também, hortaliças alemãs (o autor não diz quais
eram), ervas para sopa, cenouras, nabos e batatas14.
O autor não apresenta um relato acerca do caminho que percorreu para chegar à
propriedade de seu compatriota alemão, exceto por afirmar que se tratava de um caminho
bonito. Entretanto, afirma que a propriedade ficava cerca de duas milhas distantes de Santo
Amaro, o que nos permite pensar que a plantação ficava adiante da região sul da cidade.
Johann Jacob von Tschudi era ministro suíço remetido ao Brasil para resolver os
problemas decorrentes do sistema de parceria e foi outro viajante que passou por São Paulo.
Em 1860, quando esteve pela segunda vez em São Paulo, descreveu a presença de judeus
alsacianos nas rotas de viagem pelo Brasil, definindo-os como de hábitos inoportunos e
molestos, impertinentes, de vestes relaxadas e com linguagem e sotaques que variavam entre o
francês e o idioma judeu-alemão, este último pronunciado quando não eram observados por
alemães15.
Em seus relatos, indica ter se hospedado em um pequeno hotel, com instalações
medíocres segundo o autor, que pertencia à uma família de origem alemã, que algum tempo
antes mantivera um albergue na estrada entre Santos e São Paulo16. Possivelmente, tratava-se
da mesma família indicada por Avá-Lallemant.
Tschudi afirmava que em 1860, a presença alemã em São Paulo era numerosa. O autor
descreve como se deu a formação da colônia alemã em Santo Amaro por prussianos-renanos,
entre 1827 e 1828, em um total de 149 famílias, com total de 926 indivíduos.
Segundo seu depoimento, o grupo se subdividiu em ao menos duas ocasiões. A primeira,
permitiu a fundação de uma nova colônia no Paraná e o estabelecimento de alemães em
14 Idem. P. 335. 15 TSCHUDI, J.J. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. P. 123. 16 Idem. P. 124.
Itanhaém e em Cubatão. A segunda teria ocorrido por razões religiosas, com os católicos
permanecendo em Santo Amaro e os protestantes em Itapecerica.
Os alemães católicos que permaneceram em Santo Amaro receberam lotes de 400 braças
quadradas, além de ajuda em dinheiro do governo, animais (os valores dos animais deveriam
ser restituídos ao governo em quatro anos) e isenção de impostos. Os protestantes adquiriram
uma sesmaria que pertencia aos jesuítas perto de Itapecerica e por meio do trabalho agrícola,
asseguraram o desenvolvimento vagaroso e seguro da colônia17.
Evidência de coexistência entre imigrantes e escravos nos subúrbios e áreas rurais.
Os dois memorialistas de origem germânica que citamos anteriormente, visitaram São
Paulo em decorrência dos interesses despertados pelo sistema de parceria entre os fazendeiros
do interior de São Paulo e imigrantes germânicos. Suas passagens por São Paulo foram
ocasionais e não eram o objetivo central de suas viagens, voltadas para o interior e áreas onde
o sistema de parceria gerava grandes polêmicas e problemas para os germânicos, que quando
podiam, fugiam para São Paulo18.
Entretanto, outro aspecto marcante do depoimento de Avé-Lallemant é a coexistência
entre trabalho escravo e trabalho de imigrantes em fazendas das áreas suburbanas de São Paulo.
Em um passeio pelos arredores da Fazenda Morumbi, Avé-Lallemant descreve a presença de
bananais, plantação de chá e bambus na fazenda que pertencia a um certo senhor Rudge. Ao
passear de cavalo um pouco adiante da fazenda Morumbi, o autor foi interceptado por um
alemão que trabalhava como feitor de uma fazenda que pertencia à uma senhora de importante
família da cidade (o autor não menciona nomes).
O feitor alemão lhe entregou um bilhete escrito em português com os seguintes dizeres:
“Senhor X.: Hoje, domingo, o negro F. veio à cidade e não se apresentou a mim. Como ele só
deve sair com a sua licença ou com a minha, queira escrever-me dizendo se deu essa licença
e, como ele não veio a minha casa, mande surrá-lo e marrá-lo ao tronco”19.
17 Idem. PP. 128 – 129. 18 TSCHUDI, J. J. Op. Cit. P. 125. O autor teve que interceder pela libertação de dois colonos suíços que ainda
estavam presos em São Paulo, mesmo depois de terem cumprido o tempo de prisão estipulado para o crime
cometido pelos dois (fugir das fazendas sem indenizar os fazendeiros). 19 AVÉ-LALLEMANT, R. Op. Cit. P. 337.
A brutalidade da ordem chamava a atenção do viajante que a definia por capricho
histérico, sem inquérito ou qualquer formalidade jurídica e serve de testemunho da
coexistência entre escravos e imigrantes nas áreas suburbanas e rurais de São Paulo20.
Considerações finais
A análise dos relatos dos viajantes que passaram por São Paulo no século XIX permite
reconstruir algumas das características do processo de urbanização e ocupação das áreas que
deram origem à região metropolitana de São Paulo.
A participação dos imigrantes e não apenas de trabalhadores brasileiros, descendentes
de escravos ou não, na ocupação das áreas rurais e suburbanas da cidade.
Estes trabalhadores contribuíram para a formação da metrópole tanto como mão-de-obra
para as atividades industriais que se desenvolveram no período, quanto na produção agrícola
que alimentou a população que atuava nas outras áreas.
Os resultados apresentados aqui fazem parte de uma pesquisa mais ampla, que ainda
está em curso. Diversos aspectos indicados ou sugeridos precisam ser aprofundados, como a
presença de imigrantes de outras nacionalidades nas regiões suburbanas e rurais, o convívio
entre imigrantes e escravos e seus descendentes nestas regiões, as áreas por onde os escravos e
ex-escravos puderam se fixar, as áreas ocupadas por colonos, os tipos de lavoura, pastoreio e
extrativismo que estes grupos desenvolveram para seu sustento, parcelamento e distribuição
dos lotes, entre outros.
Entretanto, pelos relatos analisados, podemos indicar a presença de lavouras de cana,
chá, banana e hortaliças em diversas áreas suburbanas, a atuação de grupos germânicos na
agricultura paulistana do século XIX, assim como atestar a presença de senzalas e escravos e
sua coexistência com imigrantes.
Bibliografia
20 Idem. P. 337.
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e São Paulo
(1858). Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980.
D’ALINCOURT, Luiz. Viagem do pôrto de Santos à cidade de Cuiabá. Belo Horizonte/São
Paulo, Itatiaia/Edusp, 1975.
GROSTEIN, Marta D. A cidade clandestina. Os ritos e os mitos. São Paulo, Tese de doutorado
FAU-USP, 1987.
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanência nas Províncias do Sul do Brasil.
Rio de Janeiro e Província de São Paulo. Compreendendo notícias históricas e geográficas do
Império e das diversas províncias. Belo Horizonte / São Paulo, Itatiaia / Edusp, 1980.
LAGO, Pedro Corrêa do. Iconografia Paulistana do século XIX. São Paulo, Capivara, 2003.
MARICATO, E. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo,
Alfa-Ômega, 1982.
MAWE, J. Viagens ao interior do Brasil. Itatiaia/Edusp, Belo Horizonte/São Paulo, 1981.
MEYER, Regina Maria Prosperi; GROSTEINS, Marta Dora; BIDERMAN, Ciro. São Paulo metrópole.
São Paulo, Edusp, 2004.
TSCHUDI, J.J. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte/São
Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980.
WILHEIM, Jorge. São Paulo Metrópole 65. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1965.