alfredode sousa o desenvolvimento económico e social...

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Alfredo de Sousa O desenvolvimento económico e social português: reflexão crítica A tecnologia constitui um factor de desen- volvimento, mas é preciso entender como ac- tua nos países em vias de desenvolvimento e não produtores de tecnologia, A estrutura dos poderes de decisão comanda a formação dos preços e a repartição do rendimento. Esta in- flui no perfil da procura global, que, por seu turno, condiciona, com o progresso tecnoló- gico, a estrutura dos investimentos. As for- mas de poupança determinam a repartição do património, e esta, juntamente com a estru- tura dos poderes de negociação, comanda a repartição do rendimento. O estabelecimento de capitais estrangeiros na economia portu- guesa pode modificar a parte da apropriação nacional do produto criado. Deste esquema integrado de explicação dos mecanismos eco- nómicos, resultam algumas sugestões para a definição de uma política nacional de desen- volvimento. INTRODUÇÃO A história do desenvolvimento económico e social português desde o após-guerra ainda está por fazer, apesar das valiosas con- tribuições que já foram publicadas. Mas percebe-se, pelo que já se conhece, que esse desenvolvimento não se processou, nem se pro- cessa, sem suscitar problemas graves, muitos dos quais esperam solução. Sente-se também que o ritmo de crescimento da economia N. da R. — Devidamente autorizado pela Direcção do Gabinete, o Autor publicou, em Abril de 1969, num vespertino de Lisboa, uma versão resumida e dividida em três artigos, do presente estudo.

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Alfredode

SousaO desenvolvimentoeconómico e socialportuguês:reflexão crítica

A tecnologia constitui um factor de desen-volvimento, mas é preciso entender como ac-tua nos países em vias de desenvolvimento enão produtores de tecnologia, A estrutura dospoderes de decisão comanda a formação dospreços e a repartição do rendimento. Esta in-flui no perfil da procura global, que, por seuturno, condiciona, com o progresso tecnoló-gico, a estrutura dos investimentos. As for-mas de poupança determinam a repartição dopatrimónio, e esta, juntamente com a estru-tura dos poderes de negociação, comanda arepartição do rendimento. O estabelecimentode capitais estrangeiros na economia portu-guesa pode modificar a parte da apropriaçãonacional do produto criado. Deste esquemaintegrado de explicação dos mecanismos eco-nómicos, resultam algumas sugestões para adefinição de uma política nacional de desen-volvimento.

INTRODUÇÃO

A história do desenvolvimento económico e social portuguêsdesde o após-guerra ainda está por fazer, apesar das valiosas con-tribuições que já foram publicadas. Mas percebe-se, pelo que já seconhece, que esse desenvolvimento não se processou, nem se pro-cessa, sem suscitar problemas graves, muitos dos quais esperamsolução. Sente-se também que o ritmo de crescimento da economia

N. da R. — Devidamente autorizado pela Direcção do Gabinete, o Autorpublicou, em Abril de 1969, num vespertino de Lisboa, uma versão resumidae dividida em três artigos, do presente estudo.

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portuguesa e a forma de evolução social do país não são satisfa-tórios. Por exemplo, se continuarmos no ritmo actual, a diferençade rendimentos entre os portugueses e os habitantes dos paíseseuropeus mais avançados (diferença que hoje se situa entre 30 a40 contos por ano e por habitante) aumentará, alargando-se ofosso que nos separa.

Em parte por insuficiência de debate claro desses problemas,a nossa reflexão sobre a política económica e social tem sido,porém, prejudicada de duas maneiras.

A primeira resulta de que o hábito— que é muito corrente —de se avaliarem o nível e as taxas de desenvolvimento dos países edos sectores através do indicador sintético que é o produto (nacio-nal ou sectorial) nos leva a encarar centralmente o estudo do de-senvolvimento económico sob o ângulo da produção. Como primeiraaproximação técnica e pedagógica, esse enfoque é aceitável. Masé insuficiente quando se pretende estudar uma situação concreta,visando a proposição de medidas de política económica e social.Para isto é necessário tentar explicitar os mecanismos sócio-eco-nómicos concretos e tentar responder às seguintes questões: comofuncionam esses mecanismos e quais são os factores dinâmicos queos comandam? Ê esta a técnica de abordagem que ultimamentetem caracterizado o estudo dos problemas reais dos países emvias de desenvolvimento. Um exemplo notável é o livro recentede um economista de língua portuguesa: o Prof. Celso FURTADO \onde frutuosas lições podem ser colhidas.

A segunda deriva do facto de que, no desejo de resolver osproblemas postos, recorre-se muito frequentemente ao empréstimode soluções adoptadas pelos países europeus mais evoluídos, semprocurar estudar esses problemas e as respectivas soluções demaneira integrada à luz das condições locais e da sua posição nomecanismo económico-sooial-político nacional. Ora, apesar de ser-mos um país de cultura europeia, caracterizamo-nos não só por umcerto afastamento geográfico das nações centro-europeias, mastambém por diferenças de mentalidade e de estruturas sociais,económicas e políticas, além de estarmos dominados pelo espinhosoproblema ultramarino.

Como o tempo urge, pois os problemas se acumulam, impõe-seportanto uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os meca-nismos da nossa evolução nacional, e impõe-se igualmente que essareflexão dê lugar a um debate público, mesmo com risco de «cho-car» aqueles para quem o nevoeiro é o estado de tempo ideal paracontemplar a nossa paisagem económico-social. O silêncio pru-

i Celso FURTADO, Um projecto para o Brasil, Rio de Janeiro, Sa-ga, 1968.

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dente consideramo-lo infinitamente mais grave. Contribuir para oesclarecimento dos problemas da nossa sociedade parece-nos, pois,obra positiva.

Propomo-nos por ora levar a cabo a nossa contribuição paraa reflexão e o debate dos nossos problemas em três capítulos. Noprimeiro apresenta-se um esquema de explicação da importânciado progresso tecnológico induzido no processo de desenvolvimentoe de transformação estruturais que esse processo provoca, mos-trando ainda a sua dependência do exterior. No segundo, conside-ram-se a formação dos poderes de decisão e as suas consequênciassobre o próprio mecanismo interno que em grande parte comandao processo de desenvolvimento, nomeadamente no que respeita àdistribuição do rendimento e ao perfil da procura. No terceiro,alinham-se algumas considerações sobre a importância dos inves-timentos em geral, estrangeiros em particular. Apontam-se final-mente, a concluir, algumas sugestões. O leitor atento compreenderáque adoptámos, como hipótese de trabalho, aquela que se nos afi-gura, dadas as actuais características da sociedade portuguesa, amais provável, ou seja: que o sistema económico português conti-nuará a basear-se na apropriação privada da parte mais substan-cial dos factores de produção.

O PROCESSO DO DESENVOLVIMENTO:MECANISMOS INTERNOS E DEPENDÊNCIA DO EXTERIOR

1. Desde o após-guerra que os economistas atribuem impor-tância cada vez mais pronunciada à tecnologia, enquanto factorde desenvolvimento. Vários estudos empíricos mostram que atecnologia, qualquer que seja a sua manifestação operacional(equipamento, organização, produtos, aptidão técnica dos traba-lhadores, etc.) explica, por vezes, mais de 50 % do crescimentodo rendimento nacional de um número considerável de países.A tecnologia aparece, assim, como um factor estratégico privile-giado.

Mas é claro que não basta reconhecer que o progresso tecno-lógico é importante. É preciso ver em que condições e sob que for-mas ele se manifesta e quais são os seus efeitos.

2. O progresso tecnológico não é mais do que a aplicação àsactividades económicas e administrativas dos conhecimentos cien-tíficos e das técnicas de organização. Isto quer dizer que o pro-

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gresso tecnológico depende, não só das estruturas económicas, mastambém (e há quem diga: principalmente) das estruturas sociais,institucionais, culturais e psicológicas de cada país.

Nos países evoluídos, em virtude do elevado nível médio daeducação técnica e da pesquisa científ ica aí praticadas, o progressotecnológico constitui um processo endógeno de criação. Os grandesrecursos (em homens e material) consagrados à pesquisa de basee à pesquisa aplicada, juntamente com as solicitações das activida-des económicas e dos governos (nomeadamente no plano militar eespacial) suscitam o aparecimento das inovações tecnológicas.A larga formação técnica a todos os níveis, proporcionando umalinguagem e uma mentalidade técnicas, facilita a apreensão e adifusão das inovações tecnológicas e a sua aplicação ao aparelhoprodutivo. O progresso tecnológico é, pois, auto-gerador dinâmicode riqueza e de desenvolvimento. Aliás, são os países mais ricosque consagram maiores somas aos «investimentos intelectuais»(educação geral e pesquisa) 2. Por exemplo, das 140 inovações tec-nológicas que se traduziram em aplicações práticas no mundoocidenital desde 1945, 84 (ou seja 60 %) tiveram origem nos Esta-dos-Unidos; este país dispende na pesquisa de base e aplicadacerca de 3,5% do seu rendimento nacional (a percentagem maisalta do rendimento mais elevado do mundo), mantendo um corpode 700 mil pesquisadores.

Nos países insuficientemente evoluídos, o progresso tecnoló-gico constitui uma resultante das modificações da procura, fre-quentemente da procura externa, ou seja: é um progresso tecnoló-gico induzido. Reduzindo a explicação do mecanismo a termossimples, ele apresenta-se do seguinte modo nos países menos evo-luídos. O aumento da procura externa dá lugar a maior produçãona agricultura e na indústria do país. Como, em geral, as instala-ções e o equipamento passam a ter utilização mais intensa, e comopossivelmente o número de dias de trabalho efectivo dos traba-lhadores aumenta, a produtividade por trabalhador eleva-se. Estesacréscimos de produtividade geram novos rendimentos, que setraduzem, em maior ou menor medida, em aumentos do poder-de--compra do conjunto dos consumidores do país. Por sua vez, aexpansão do meroado interno, conjugada com a da procura exte-rior, cria condições de mercado (uma procura suficiente) propíciasà expansão das actividades existentes ou à criação de novas acti-vidades, incluindo a daquelas cuja produção se substitui às impor-tações. Esta expansão da produção do país gera novos acréscimosde rendimentos, portanto do poder de compra, e também da pou-

2 Dos 20 países que compõem a OCDE, Portugal é aquele que consa-grava, em 1965, a mais baixa percentagem (1,44 %) do seu produto nacionalbruto à educação. Os países escandinavos consagravam cerca de 6% e osdo Mercado Comum à vista de 5%, assim como os Estados Unidos (5,27%).Fonte: OCDE.

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pança; o consequente alargamento do mercado suscita a expansãoda produção, e assim sucessivamente,

Ê evidente que a expansão da produção não pode fazer-sesem a compra de novo equipamento e a construção de novas infra--estruturas. Ora, como o progresso tecnológico se concretiza ope-racionalmente na evolução qualitativa do novo equipamento (ei>.a necessária qualificação técnica do trabalhador que o maneja),e como a maioria do novo equipamento requerido e a sua técnicade utilização são importadas, é desta forma que o progresso tec-nológico se difunde concretamente nos países menos evoluídos,ou seja: através das importações de equipamentos e de conheci-mentos e formação técnica (literatura científica e técnica, e tam-bém formação de pessoal no exterior).

Os efeitos dos novos investimentos são expaosionistas, poiscomo o novo equipamento é cada vez mais aperfeiçoado, a sua pro-dutividade é maior, tanto directamente, como indirectamente porvirtude das novas qualificações que a sua maior tecnicidade exigedos trabalhadores que o utilizam). Por outro lado, a intensidadede equipamento tende a aumentar, o que, dado o ritmo de amortiza-ções assaz elevado que acompanha a aceleração dos investimentos,provoca o rejuvenescimento do parque industrial e, portanto, au-menta, também por esta via, a produtividade média do capitaltécnico em uso e dos trabalhadores que o utilizam. Por exemplo,em Portugal, segundo dados do INE, a intensidade de equipamentopor trabalhador na indústria manufactureira aumentou de 57%entre 1953 e 1965, e , no mesmo período, a média da idade docapital técnico baixou para menos de metade; simultaneamente,ainda nos mesmos anos, a produtividade média por trabalhador(produto industrial a dividir pelo número de trabalhadores da in-dústria) aumentou de 126'%.

3. O processo de desenvolvimento económico não se revelaapenas pelo crescimento do rendimento e do consequente poder decompra. Implica também importantes transformações estruturais.

Nos países que ainda não atingiram a «maturidade industrial»,o progresso tecnológico surge e difunde-se principalmente naindústria, que é, aliás, onde se constitue uma maior acumulação deequipamento por trabalhador. Na agricultura, as inovações tecno-lógicas penetram e difundem-se mais dificilmente, não só devidoa natureza das actividades agrícolas (processos orgânicos e fac-tores climáticos naturais), como também porque a agriculturaconstitui uma actividade historicamente tradicional, que ofereceresiistênoiajs sociais e culturais às modificações; a sociedade ruralé normalmente conservadora. Compreende-se, por outro lado, queé mais fácil adoptar nas novas unidades de produção o equipamentoindustrial dos países avançados do que remodelar eficientementeas estruturas institucionais e produtiva® existentes na agricultura.

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Ligado a esta diferença de ritmos de difusão do progressotecnológico, verifica-se um outro movimento no processo do desen-volvimento. Ã medida que o rendimento se eleva, as compras daspessoas dirigem-se cada vez mais para os produtos industriais»cuja qualidade melhora e cujo número aumenta, justamente comoefeito da evolução da tecnologia. Desta forma, como a procura dosprodutos industriais (e dos serviços: educação, saúde, divertimen-tos, etc.) aumenta muito mais rapidamente do que a procura dosprodutos agrícolas não transformados, e apesar da maior produ-tividade do trabalho industrial, a percentagem dos trabalhadores;ocupados na agricultura diminui.

Acontece até que nos países que começaram a sua industria-lização bastante tarde, como é o caso de Portugal, as estruturasrurais contêm numerosos agentes válidos cuja real produtividadeé próxima de zero, por só aparentemente estarem ocupados emexplorações de tipo familiar ou patriarcal. Com efeito, desde hácerca de um século que os constantes progressos da medicina per-mitiram um crescimento intensivo da população, mas a agriculturanão pode oferecer suficientes empregos reais às novas gerações,uma vez que era difícil encontrar novas terras cultiváveis (o queexplica, em grande parte, os movimentos migratórios dos séculospassado e presente). Por seu turno, o nosso regime sucessóriotradicional permitiu que a propriedade se dividisse por herançassucessivas, criando-se, assim, minifúndios tecnicamente absurdos,que ocupam improdutivamente razoável quantidade de mão-de--obra. Nas explorações de tipo patriarcal, a subsistência dos laçosde responsabilidade do «senhor» para com os seus «sujeitos» e ainércia técnica, fazem com que empregos marginais subsistam semqualquer incidência real sobre a produção. Desta forma, a elimi-nação profissional desta mão-de-obra não diminui o produto agrí-cola.

É o que acontece efectivamente em Portugal, onde o produtoagrícola se tem mantido mais ou menos constante, mau grado aeliminação anual de cerca de 20 000 empregos na agricultura; ostrabalhadores agrícolas, que ainda em 1950 representavam 50 %dos trabalhadores poirtugueses, em 1967 constituíam apenas 33,5 %,enquanto que a percentagem dos trabalhadores na indústria passoude 25% para 36%.

A passagem desta fracção de mão-de-obra subocupada naagricultura para as actividades industriais com níveis de produti-vidade mais elevados tem por sua vez três consequências. A pri-meira é que o produto total do país aumenta com a modificaçãoestrutural da população activa. A segunda é que a menor ofertade mão-de-obra na agricultura (ou, o que é o mesmo, a maior difi-culdade em encontrar pessoal), faz com que os salários agrícolassubam, o que representa um estímulo para a racionalização e amecanização das tarefas agrícolas — tendendo, em suma, a induzir

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o progresso tecnológico —, pois a máquina só substitue o trabalhoanimai (do homem e do gado) quando este se toma mais caroque o trabalho mecânico por unidade de produto produzido. A ter-ceira é que a população vai deixando de ser predominantementerural para ser cada vez mais de tipo urbano, dado que as activida-des industriais se localizam preferentemente nas zonas urbanasou urbanizam as zonas rurais. Esta transformação provoca neces-sariamente modificações socio-culturais: novos tipos de relaçõessociais mais individualistas e menos solidárias; novos tipos derelações económicas de base monetária; atitudes e comportamen-tos menos conformistas e mais aptos à reivindicação social. Comose vê, o desenvolvimento económico acarreta modificações não sóeconómicas, mas também sociais e políticas.

4. No entanto, é conveniente insistir em que, nos países emvias de desenvolvimento, principalmente quando o mercado é pe-queno— em termos de população total e de rendimento por ca-beça —, a expansão cumulativa da produção é altamente dependentedo dinamismo da procura externa, sob dois aspectos: o da criaçãode rendimentos suplementares e o da obtenção das divisas neces-sárias à importação de equipamento. Ê este o caso de Portugal,para o qual a expansão da procura externa de bens e serviços — emconsequência do dinamismo expansionista das economias euro-peias— tem, não só ajudado, juntamente com remessas de emi-grantes e as receitas do turismo, a manter uma razoável capaci-dade de impoirtação, como gerado acréscimos do poder de comprainterno* É fácil ver que uma crise prolongada na Europa teriaefeitos catastróficos no desenvolvimento português, porquanto setraduziria por menores exportações, desemprego e retorno deemigrantes e queda do turismo; a recente crise francesa testemu-nha-o. O facto de 60 % das nossas exportações se dirigirem paraa Europa, de certamente cerca de 500 mil portugueses trabalharemDOS países europeus, dá bem a medida da dependência da nossaeconomia. Somos realmente tributários da expansão da Europa.

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A ESTRUTURA DOS PODERES DE DECISÃO E O DINAMISMODA MARCHA DO DESENVOLVIMENTO

1. No capítulo anterior analisaram-se o mecanismo internodo processo de desenvolvimento, o seu grau de dependência doexterior e algumas transformações estruturais que ele provoca.Comvém analisar agora a estrutura dos poderes de decisão e osseus efeitos.

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Devido à crescente complexidade dos processos produtivos, adimensão técnica mínima dos estabelecimentos produtores tendea aumentar, o que envolve frequentemente capitais financeirosimportantes. Por outro lado, como a tecnologia evolui rapidamente,o equipamento ainda em bom estado de conservação física podetornar-se tecnologicamente obsoleto e não competitivo3, por nãoproduzir produtos da qualidade requerida no mercado ou utilizarmatérias-primas cujos preços relativos são elevados. Assim, se aprodução das empresas se dirige para mercados concorrenciais— nomeadamente para ai exportação —, a compra e a amortizaçãodo novo equipamento exigem o seu uso intensivo, produções emlargas quantidades assaz estandardizadas e amplas disponibilida-des financeiras; quer dizer, torna-se necessário que as firmas al-cancem dimensão suficiente para fazer face a todas essas exigên-cias. Acresce que a conveniência de reduzir os riscos das flutua-ções conjunturais dos diversos mercados conduz as firmas a diver-sificarem as suas actividades horizontalmente (por criação oupor absorção), além de mediante integração vertical. Como con-sequência, as firmas tendem a aumentar a sua dimensão económico--financeira e a agruparem-se, formando «trusts» ou conglomeradosque frequentemente integram bancos e outras empresas financei-ras. Tende-se, pois, em Portugal como nos outros países, à forma-ção de mercados onde, do lado da oferta, há algumas grandes fir-mas que dominam, e, por vezes, umas quantas pequenas firmasque repartem o resto do mercado. Ê o que habitualmente se chamaum mercado de oligopólio.

Mas o alargamento da dimensão das firmas ou o seu agrupa-mento, não só assegura maior capacidade económica e financeira,como conduz também ao aumento do poder de negociação, isto é,ao aumento do seu poder relativo face aos concorrentes, face aoEstado e, certamente, face aos consumidores, que não só são«manejados» pela publicidade, como suportam as altas de preçosdesde que a sua procura monetária aumente um pouco mais. Comefeito, num tal sistema de mercado, os preços tendem a ser fixadospor acordo tácito ou explícito entre as grandes firmas ou impostospela firma-«leader», frequentemente a partir do custo de produçãoda unidade de prodíução menos eficiente. Muitas vezes ainda, pre-ços elevados formam-se ao abrigo de protecções aduaneiras, queem primeira intenção se destinariam a proteger a produção nacio-nal da concorrência estrangeira. No caso português, o condiciona-mento industrial não deixa de favorecer a formação de preços es-tabelecidos fora do jogo da concorrência. Do mesmo modo, aestrutura insuficientemente concorrencial da indústria portuguesa

3 Mesmo que não haja concorrência na qualidade do produto fabricado,o equipamento mais antigo pode tornar-se não-rentável, devido a eventuaisaltas de salários.

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constitui um factor explicativo do processo inflacionista actual,pela super-repercussão, sobre os preços, das altas de salários4, edos bens intermediários importados.

Porém, o poder de negociação das grandes firmas não seexerce apenas em relação aos concorrentes, aos consumidores eao Estado. Produz efeitos na discussão das remunerações do factortrabalho, quer ela se faça por via de negociação colectiva, querpor contrato individual. Quando os detentores ou administradoresdos capitais encontram um poder de negociação reduzido ou nuloda parte dos sindicatos e quando a oferta da mão-de-obra é abun-dante, é provável que a repartição dos frutos do progresso tecno-lógico se faça a seu favor. É o caso de Portugal, onde os saláriosreais (deduzida portanto a desvalorização da moeda) aumentarampouco até 1961, ano em que começou a manifestar-se uma relativaescassez de mão-de-obra. Só então é que os salários subiram umpouco mais depressa: a taxa de crescimento anual do salário realna indústria foi, com efeito, de 4 % até 1960-61 e de 6,1 %depois dessa data até 1965. Se, porém, tivermos em conta que onúmero médio de dias de trabalho anuais tem aumentado (224 em1953; 296 em 1965), constata-se que o salário médio diário apenasaumentou de 2,1 % por ano, em termos reais, entre 1953 e 1965.Verifica-se, pois, como era de prever, que na repartição do produto,a maior percentagem cabe ao capital: 52 %, enquanto que apenas48 % cabem a remuneração do factor trabalho, mesmo contandocom os altos salários do pessoal técnico5.

Nalguns sectores o desequilíbrio é ainda mais acentuado. Parao conjunto da economia, estima-se que a percentagem do trabalhono rendimento nacional deve oscilar à volta de 55 %. É uma dasrepartições de rendimento mais caracterizadamente pró-capita-listas da Europa6.

Mais significativamente ainda, verifica-se que, enquanto oproduto industrial aumentou de 8,5% por ano entre 1953 e 1965,a parte distribuída ao factor trabalho aumentou apenas de 6,2 %(1,7 % de aumento do número de trabalhadores + 4,5 % de au-mento de salários, segundo dados do INE e áo Fundo de Desen-volvimento da Mão-de-Obra). Isto significa que a parte relativado trabalho se tem deteriorado. A tendência é inversa na maioriados outros países europeus.

4 Não havendo sindicatos reivindicativos e activos, as altas de preçosconstituem um meio eficiente de reduzir o custo real da mão-de-obra, peloaumento da produtividade em termos monetários.

s Odete E. CARVALHO — «A Repartição Pessoal do Rendimento emPortugal» in Análise Social, n.° 19, 1967.

e Cfr. E. DENISON — How the growth rates differ — Brooklins Insti-tution — Washington, 1967.

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2 . Do exposto derivam duas consequências.A primeira é que o sistema de decisões, que resulta dos po-

deres de negociação relativos, privilegia o capital na repartiçãodos frutos do progresso tecnológico. O poder económico cumu-lativo que daí deriva favorece, por seu turno, o poder de nego-ciação em relação aos outros agentes económicos, com repercus-sões sobre os preços. Deste modo, as firmas privadas exercem,de facto funções de direito público, porque, ao poderem imporpreços acima dos que vigorariam em regime de maior concor-rência, e ao poderem pagar salários mais baixos que os que sin-dicatos mais activos reclamariam, estão praticamente a cobrarum «imposto» que é pago pela colectividade. Recolhem, assim,uma parte da poupança da colectividade, que é eventualmenteutilizada sob a forma de auto-financiamento das firmas. Certo éque a colectividade tem de poupar para financiar os investimen-tos que o seu desenvolvimento requer; mas o problema põe-seao nível do controle do sistema de decisões, do seu balanceamentopor outros poderes e da finalidade pretendida. Dada a importânciae as repercussões em cadeia das decisões de investimento e depolítica comercial dos grandes «trusts» e conglomerados, susci-ta-se actualmente em muitos países, principalmente nos EstadosPnidos, a questão de saber se será aceitável para um país queessas decisões dependam da vontade privada, sem que a comu-nidade política nada tenha a dizer sobre elas.

A segunda consequência diz respeito à formação do perfilda procura, e é de extrema importância.

Quando, nas economias pouco desenvolvidas, uma parte ra-zoável da população vive ao nível da substistência ou apenas dispõede rendimentos baixos, logo que há um aumento do poder-de-com-pra real esses consumidores tendem a satisfazer necessidades deconsumo elementares (de alimentação, de vestuário e alojamento),,isto é: de bens e serviços que podem ser perfeitamente atendidospela produção nacional; em geral, a importação de bens estran-geiros é mínima. Em contrapartida, os consumidores que já dis-punham de altos rendimentos, quando o seu rendimento aumenta,tendem a consumir bens mais elaborados (que, por via de regra,são importados) ou a consumir serviços em escala sumptuária,agindo frequentemente em consequência de um desejo de imi-tação dos tipos de consumo verificados nos países evoluídos, quea difusão da informação (leituras, cinema, viagens, etc.) fazconhecer.

De uma maneira ou outra, a elevação do rendimento modi-fica a composição ou perfil da procura. Mas é sobretudo a repar-tição do rendimento que comanda estas modificações qualitativasda procura.

Se a repartição do rendimento favorece as classes de mais

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altos rendimentos, os acréscimos de despesa dirigem-se para acompra de bens mais elaborados com incidências sobre a importa-ção, uma vez que, como as classes privilegiadas constituem umaminoria estatística, o mercado que elas formam para cada umdos bens (cujo número, aliás, aumenta e se diversifica) não ésuficiente para introduzir o aparecimento de uma produção nacio-nal ; ou então essa produção faz-se a custos de produção elevados.Se, pelo contrário, a repartição do rendimento favorece as classescom menor poder-de-compra, o acréscimo da procura dirige-separa os tipos de consumo qualitativamente modestos, que podemser satisfeitos pela produção nacional, pois, embora sendo poucoelevados os consumos individuais, eles multiplicam-se pelo grandenúmero de consumidores. Quer dizer que, na primeira hipótese,o perfil da procura traduz uma estrutura deformada da procuraglobal que, por sua vez, conduz a uma estrutura de produção quepode ser também deformada. Na segunda hipótese, abrem-se me-lhores perspectivas à produção nacional. Evidentemente que au-mentos bruscos dos rendimentos das classes mais pobres podemconduzir, a curto prazo, a consumos «irracionais» (ainda sãorecordadas as anedotas dos volframistas). O essencial, porém,é considerar a evolução a longo prazo.

3. Simplesmente: a orientação consentida na repartição dorendimento e, portanto, na formação do perfil da procura, temainda repercussões sobre a própria natureza dos investimentosque essa procura pode induzir.

De uma maneira geral, existe uma correlação positiva entreo nível de rendimento das diferentes classes e o nível tecnológicodos tipos de bens manufacturados consumidos por essas classes.Quer dizer: as classes de rendimentos mais baixos consomemtipos de bens manufacturados cujo nível da técnica de fabricoexigido para a sua produção é mais baixo comparativamente aonível exigido para a produção dos tipos de bens consumidos pelasclasses de mais altos rendimentos. Estas consomem com maiorintensidade e frequência bens duradoiros e qualitativamente maisrefinados, que exigem um nível tecnológico de produção maiselevado do que os de consumo corrente. À medida que o rendi-mento e, portanto, o poder de compra globais aumentam, o con-sumo destes bens tende a difundir-se e a generalizar-se. Mas asclasses de mais altos rendimentos tendem também a consumirbens cada vez mais refinados ou sofisticados, a fim de manteremuma estrutura de consumos que continui a diferenciá-las social-mente das classes de rendimentos maiis baixos. Assim, se a re-partição do rendimento favorece as classes de mais altos rendi-mentos, a composição da qualidade tecnológica dos bens procura-dos altera-se, com tendência para consumos de bens manufactu-rados («gadgets» electrónicos, sistemas de dimatização, meios de

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transporte cada vez mais luxuosos e mais modernos, etc), frutosdos últimos avanços da tecnologia e da moda no campo dos bensde consumo. Se a repajrtição do rendimento favorece as classesde mais baixos rendimentos, os tipos de consumos que eram ca-racterísticos das classes mais abastadas tendem a difundir-sepor efeito de imitação; o nível tecnológico médio dos bens manu-facturados de consumo tende também a elevacr-se, mas produz-semais acentuadamente uma difusão dos que já eram consumidose menos acentuadamente a introdução de novos bens refinados.

Por outro lado, existe igualmente uma correlação positivaentre o nível tecnológico dos bens manufacturados de consumoe a intensidade capitalística (quantidade de capital-equipamentopor trabalhador empregado) exigida pela técnica de fabrico neces-sária à sua produção. Portanto, se a procura (comandada peladistribuição do rendimento) se orienta para a difusão dos tiposde consumo já conhecidos, e se os empresários respondem atravésde investimentos convenientes, a composição dos investimentostende a ser menos intensamente capitalística do que o seria sea repartição do rendimento fizesse acentuar relativamente a pro-cura de bens mais refinados... isto, se os investimentos necessá-rios se verificarem. Mas como nesta segunda hipótese (repartiçãodo rendimento favorecendo as classes mais ricas) o mercado assimformado é, como se disse atrás, diminuto em países pequenos,serão normalmente as importações de bens caros que aumentarão.

Desta maneirai se vê que uma repartição de rendimento quefavoreça as classes mais pobres tende a induzir a eclosão de in-vestimentos relativamente menos capitalísticos. Ê o que se poderiachamar investimentos do tipo difusão e não de inovação.

Por sua vez, aparece claro que, para um mesmo nível deinvestimento, o emprego aumenta mais rapidamente com os in-vestimentos do tipo difusão do que com investimentos do tipo ino-vação, e que a pressão sobre as importações será certamente me-nor, pois, ou se importa menos bens de consumo caros, ou seimporta equipamento menos custoso, isto é, poupa-se o recursomais raro, que é o capital, nos países pouco evoluídos. E se oemprego aumenta mais rapidamente, então a parte do rendimentocriado que vai para os assalariado® tende a aumentar, o mercadointerno alarga-se, e o processo (repartição do rendimento-perfilda procura-composição capitalística dos investimentos-aumentorelativo do emprego-repartição do rendimento) torna-se cumula-tivo. Assim se vê que a estrutura dos poderes de decisão, a suaforça contratual social e a consequente repartição do rendimentotêm efeitos importantes sobre a própria dinâmica do desenvolvi-mento económico e social.

No caso português, a desequilibradíssima repartição do ren-dimento nacional, tanto funcional como pessoal, não pode deixarde ter efeitos perniciosos sobre o desenvolvimento a longo prazo

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do País. Escreve-se facilmente, e facilmente se esquece, que oconjunto dos trabalhadores dispõe dfe menos de metade da riquezacriada pelo trabalho nacional. Mas talvez seja mais impressivococnstatar que, em 1965, cerca de 57 % dos empregados por contade outrem na Indústria e nos Serviços, ganhavam menos de 12contos anuais, e que cerca de 76 % do conjunto dos trabalhado-res portugueses não pagavam imposto profissional, isto é, ganha-vam menos de 18 contos por ano 7. Sabendo que o salário fornecemais de 90 % do rendimento disponível pelo trabalhador, tem-seuma ideia dos níveis de pobreza ou do baixíssimo poder decompra da maior parte da população portuguesa. Quando se dizque o mercado constituído pelos nove milhões de portuguesesequivale ao de 2,5 milhões de habitantes da Europa industriali-zada, ainda se sobre-avaliam as potencialidades actuais do nossomercado, pois que o poder de compra está muito concentrado nasfamílias que dispõem de rendimentos superiores a 60 contos anuais(apenas menos de 3 % das que fazem declarações de impostocomplementar) e sobretudo nas 12 ou 15 mil famílias que decla-ram rendimentos superiores a 200 contos por ano8. O resto dapopulação tem poder de compra muito baixo ou apenas de subsis-tência elementar. Não surpreende, pois, que o conjunto da popu-lação portuguesa tenha, na Europa, um dos consumos mais baixosde automóveis (21 por 1000 habitantes; 33 na Espanha; 240 naSuécia), telefones (60 por mil habitantes; 95 na Espajnha; 450na Suécia), televisores, electricidade, alojamento, etc. Os indi-víduos com poder de compra suficiente formam um mercado dema-siado pequeno, o que faz com que certos produtos por eles con-sumidos sejam importados, ou, se produzidos interiormente, osejam a custos muito elevados e, portanto, fora do alcance dagrande maioria dos portugueses9. As classes mais ricas não con-somem muito maiores quantidades do mesmo produto — salvoalojamento—-, mas diversificam os seus sumptuários. Compreen-de-se, assim, que o mercado nacional seja ainda muito pobre elimitado.

4. Todavia, estas limitação e inadequação do perfil da pro-cura podem ser mascaradas à observação corrente à dos própriosespecialistas... que em geral vivem nas cidades. Na verdade, énas cidades (sobretudo em Lásboa e Porto) que vivem os técnicose tecnocratas que constituem um grupo social altamente privile-

7 Odete E. CARVALHO, op. cit..s Quaisquer que sejam as correcções realistas a introduzir para anular

os erros ou ter em conta a evolução, os contrastes permanecerão gritantes.9 Conhecendo ainda que o salário médio nos países europeus mais avan-

çados é cerca de 3 a 4 vezes superior aos praticados em Portugal, o fenó-meno da emigração maciça encontra boa explicação.

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giado10, devido à limitação maltusiana da oferta de diplomadosuniversitários no mercado de trabalho *. Este grupo social, colo-cado em postos superiores das administrações pública e privada,dispõe de influência considerável que lhe confere sensível poderde negociação; partilha o poder de decisão dos proprietários docapital e a riqueza criada. Os seus hábitos e possibilidades de con-sumo fazem alinhar os seus componentes com as classes médiasou mais ricas, pois os seus vencimentos são de 4 a 15 vezes maisaltos que o salário médio.

Como a maioria dos detentores de capitais, da alta adminis-tração e dos quadros técnicos vive geralmente nas cidades, sur-gem assim, em áreas geográficas limitadas, grupos cujo poderde compra é muitíssimo superior ao do resto da população, ecujos perfis de consumo diferem sensivelmente dos da massa,criando mercado para bens ou serviços que não têm consumofora dessas áreas privilegiadas. As actividades mais modernasou pelo menos as sedes das empresas mais importantes locali-zam-se nesas zonas limitadas junto das sedes do poder político,e podendo os seus dirigentes e quadros usufruiir dos serviços ofe-recidos pelas aglomerações urbanas. Estas circunstâncias, e asmaiores oportunidades de mais altos lucros, conduzem à multipli-cação dos serviços e à necessidade de mão-de-obra mais qualifi-cada profissionalmente ou educacionalmente, que vencem em mé-dia salários bastante mais altos do que nas outras áreas ouzonas do país, menos desenvolvidas. Assim, mesmo ao nível doassalariado não técnico superior, há ruptura de salário e situaçãoentre o que habita as grandes cidades ou seus arredores e o quehabita as zonas pouco urbanizadas ou rurais, quer dizer, emsuma, que, em Portugal como nos demais países onde a políticasalarial e regional é deficiente, os desequilíbrios sociais acumu-lam-̂ se e sobrepõem-se aos desequilíbrios regionais.

Por seu turno, os desequilíbrios regionais tendem a agra-var-se ainda mais, se existirem simultaneamente um movimentoinflacionista e uma política anti-inflacionista que procure blo-quear os preços dos produtos agrícolas, pois neste caso há umasubvenção líquida das zonas rurais em favor das zonas urbanas,pelo jogo das modificações dos preços relativos, ou, o mesmo é

10 A propósito da «classe dos diplomados» cf. n/ trabalho «A evolução-da sociedade portuguesa e a «classe dos diplomados», in A. 8., 22-23-24.

* O recente aumento de vencimentos do funcionalismo público obe-deceu justamente a critérios de empresário capitalista. Foram substancial-mente aumentados os vencimentos do pessoal mais escasso no mercado (ostécnicos superiores) e pouco aquelas categorias de pessoal cuja oferta é maisabundante. O valor absoluto das diferenças no leque de salários alargou-se,e o poder de compra distribuído agravou a repartição desigual. A estruturale mercado descrita acima não fez mais do que se acentuar.

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dizer, pela deterioração dos termos de troca entre as produçõesagrícolas e as produções industriais e de serviços.

Em Portugal, o fenómeno dos desequilíbrios internos começoujá a ser objecto de estudo. Sabe-se que, por exemplo, os quadrossuperiores da administração privada auferem um rendimento seisvezes superior, em média, ao salário médio dos operários, o queconstitui uma das desigualdades mais fortes da Europa. Sabe-seainda que mais de 60 % dos engenheiros e médicos se concentramnas zonas de Lisboa e do Porto. Calculou-se que, no conjunto daindústria portuguesa, os diplomados e quadros superiores que aítrabalham recebem 40 % do total dos salários, embora represen-tem menos de 10% do pessoal trabalhador. Os estudos publica-dos pelo INII e pela Fundação Gulbenkian mostram que os dese-quilíbrios são profundos entre as diferentes regiões do Conti-nente. Os salários médios no distrito de Lisboa são de cerca de2 vezes superiores aos praticados nos distritos de Braga, Porta-legre e Viseu, e cerca de 20% mais elevados do que os regis-tados nos distritos de Porto e Setúbal. O exame das taxas decrescimento dos salários por distritos não permite concluir queessas diferenças se atenuem: entre 1953 e 1966, «upenas três dis-tritos (dos dezoito) registaram taxas de crescimento dos salá-rios agrícolas ligeiramente mais altas que a de Lisboa; seis regis-taram-tfias nos salários das actividades não^agrícolas. Por outrolado, é sintomático do profundo desequilíbrio regional e da con-centração bipolar, constatar que 70 % do equipamento produtivoindustrial se localizam em Lisboa, Porto e Setúbal (com nítidopredomínio de Lisboa), assim como 68 % do pessoal empregadona indústria e 66 % do produto industrialn. A produtividade mé-dia do trabalhador da indústria na zona de Lisboa é cerca de3 vezes superior à do trabalhador do distrito de Bragança. Naszonas do interior (nomeadamente Trás-os-Montes e Beira), a agri-cultura pobre predomina e a população jovem emigra para ascidades e para o exterior do país. No Alentejo, a média das idadesda população é cada vez mais elevada, pois os jovens emigrame a natalidade restringe-se. Como já se apontou, cerca de 20 miltrabalhadores deixam todos os anos a agricultura. Entre nós têmsido feitas tímidas tentativas para «lançar» o desenvolvimentoregional ou fórmulas equivalentes. Mas é evidente que não émuito viável um desenvolvimento «regionalizado», se as regiõesou as municipalidades não dispuserem de certa autonomia de deci-são e de recursos (incluindo a capacidade de se endividarem pelocrédito).

ii Dados referentes a 1964 (Inquérito Industrial, INE). Ê provável que,desde então, o fenómeno de concentração se tenha agravado.

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5. Mercados internos exíguos, social e especialmente desequi-librados, são característica comum dos países pouco evoluídos.Assim, os mercados externos revestem-se de especial importância,principalmente para os pequenos países.

Na verdade, o produto nacional de um país depende, como élógico, do volume e da qualidade do que esse país consegue pro-duzir. A produção, por sua vez, depende do poder-de-compra in-terno e da capacidade para exportar. Daqui se deduz: primeiro,que é importante criar mercado interno pelo menos para as produ-ções destinadas a satisfazer as necessidades elementares da maiorparte da população — e nestes termos adquire toda a sua impor-tância a política de repartição do rendimento—; segundo, que énecessário aos pequenos países lançarem-<se numa política decididade exportações, através da integração nas correntes comerciaisinternacionais. Doutra forma, a exiguidade do mercado internopara certos produtos de consumo menos corrente não permitiráproduções em escala suf icienite para adopção de técnicas modernasde produção estandardizada. A conquista de mercados externospressupõe, no entanto, capacidade tecnológica, não só em equipa-mento, mas ainda em pessoal técnico qualificado, e, por via deregra, a especialização em certos ramos de produção nos quais seconseguem especiais condições de competividade. Os pequenospaíses europeus mais evoluídos caracterizam-se, com efeito, poruma integração pronunciada nas correntes comerciais internacio-nais: em 1966, na Holanda (12,5 milhões de habitantes) as expor-tações atingem 32% do seu produto nacional; na Bélgica-Luxem-burgo (10 milhões de habitantes) ias exportações atingem 36%;na Suécia (7,8 milhões de habitantes) atingem 22%. Todos estespaíses contam com um rendimento por habitante superior aoportuguês em cerca de 3 a 5 vezes.

Nos países pouco evoluídos, que se caracterizam por falta detécnica de produção e de organização (compreendendo aqui os ser-viços comerciais), a produção de benis mais elaborados destina-senormalmente a substituir a importação desses mesmos bens. Istoé, limita-se ao mercado interno e a copiar, em maior ou menormedida, as técnicas de produção estrangeiras, adaptando-as, sepossível, à pequena escala nacional e eventualmente ao factode se dispor de mão-de-obra barata. As exportações são constituí-das essencialmente por produtos naturais incorporando pouco tra-balho nacional. Como a produção capaz de se exportar é poucodiversificada e como o mercado dos produtos naturais ou poucoelaborados tem um mercado com taxa de expansão pouco elevadacomparativamente, a inserção dos pequenos países pouco evoluí-dos nas correntes comerciais é menor que a dos pequenos paísesmais evoluídos. Em Portugal, também em 1966, as exportaçõesatingiram apenas 16 % do produto nacional, apesar de nos colo-carmos no vigésimo lugar entre os 21 países da OCDE quanto ao

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rendimento por habitante. Notemos ainda aue a nossa balançacomercial se apresenta muito desequilibrada, pois exportamosapenas % do que importamos. Apesar de tudo, as exportações sãovitais para sectores como vinhos, conservas, têxteis, cortiça e con-centrados, por exemplo. É bem de ver que a expansão do rendi-mento nacibnal requer uma polítioa comercial «agressiva», e põe oproblema da nossa integração naj economia europeia.

6, Estes desequilíbrios tão profundos, não só recobrem si-tuações socialmente injustas, como se revelam elas mesmas comoobstáculos ao desenvolvimento do país. A estrutura da repartiçãodo rendimento e a evolução do perfil da procura devem ser con-sideradas atentamente, como aspectos fundamentais da estratégiado desenvolvimento económico e social; a dinâmica do investimentoe a absorção do progresso tecnológico nos esquemas produtivosconcretos estão fortemente dependentes dos níveis de salários, darepartição funcional, pessoal e espacial do rendimento. Os planosde fomento portugueses baseando-se em projecções mais ou menos«decisionais» da produção e de uma procura demasiado agregada,apresentam um carácter «tecnologista» e encontram-se, pois, ex-cessivamente limitados na sua capacidade para indicar uma estra-tégia coerente e operacional de acção e uma adequada política derendimentos. A ausência de um poder sindical suficientementeforte e esclarecido nas discussões do plano constitui um handicapmuito grande, dificilmente compensável pela boa vontade e «es-pírito social» dos técnicos planificadores. Acrescente-se, subli-nhe-se e repita-se que uma adequada política de rendimentos nãoé apenas um imperativo social; constitui também condição técnicade desenvolvimento. Ê bem possível que, além do mais, uma reno-vação dos esquemas teóricos do pensamento económico e do res-pectivo ensino12 seja, entre nós, necessária nesta matéria.

mA POUPANÇA E O INVESTIMENTO

Nos capítulos precedentes, consideraram-se o mecanismo doprocesso de desenvolvimento português, a sua dependência do ex-terior, as suas consequências sobre a estrutura sócio-económicae dos poderes de decisão, bem como sobre o dinamismo e orienta-

12 A consideração do perfil da procura no processo de desenvolvimentoé um ponto de vista algo novo na análise económica contemporânea. O en-sino nas nossas Faculdades de Economia depende ainda muito das orientaçõesneo-clássicas tipo Samuelson, na teoria de base, e neo-keyneslanas na polí-tica económica, que consideram quase sempre as variáveis micro «estan-dardizadas» representativas, ou então as variáveis macro «uniformemente»agregadas.

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çao do próprio desenvolvimento. Acentuou-se igualmente a impor-tância dos mercados externos para a expansão da nossa economia.

Mas a expansão da produção não pode fazer-se sem inves-timentos, o que nos leva a reflectir sobre dois aspectos: a) a for-mação e captação das poupanças; 6) a aplicação em investimentosdos capitais disponíveis.

.1. Para que a prodtição de um país aumente, são necessáriosavultados investimentos, tanto materiais (equipamentos e insta-lações), como imateriais (educação e formação científica e téc-nica). Ora, quanto mais ricos são os países mais investem, poistêm maiores disponibilidades! financeiras. Porém, o volume dosinvestimentos não depende somente do nível de rendimento porhabitante. Depende ainda da vontade e capacidade de investir dosempresários da cada país. A «vontade de investir» é função dasperspectivas de lucros e, portanto, da taxa de expansão do mer-cado e da segurança que oferecem os investimentos. A «capaci-dade de investir» decorre do conhecimento dos mercados e daaptidão para organizar os factores de produção. Nos países poucoevoluídos, como o conhecimento dos mercados é reduzido (insu-ficiência de estudos estatísticos sobre os mercados internos e ser-viços comerciais exteriores deficientes) e pode existir o medo demutações políticas ou de insegurança da moeda, os detentoresde capitais (sobretudo os pequenos e médios) preferem por vezesaplicar esses capitais no sector imobiliário (o que devido às mais--valias e consequentes altas de custos não é muito produtivo doponto.de vista nacional) ou tentam fazer sair para o estrangeiroo seu dinheiro. Neste domínio, como se sabe, o caso mais escan-daloso é o dos Xeicados «petroleiros» do Médio Oriente. Mas emPortugal isto também acontece, embora em menor medida. Porexemplo: uma parte — dificilmente avaliável com exactidão — dosempréstimos portugueses lançados no mercado dos euro-dólares(empréstimos do Estado e de empresas: Sacor e Telefones) sãocobertos por dinheiro português previamente emigrado para oestrangeiro. Sabe^se, por outro lado, que uma boa parte das pe-quenas e médias poupanças interiores e das exteriores enviadaspelos emigrados nos territórios africanos e no estrangeiro) sãoaplicadas no sector imobiliário (urbano e rural), pois o mercadode títulos é diminuto, pouco difundido e pouco aberto. Essa orien-tação dos pequenos capitais individuais dos emigrantes tendecumulativamente a perpetuar a absurda divisão da propriedadeagrícola produtiva nalgumas regiões do país18.

13 Como já notamos em artigo anterior (A. 8., n.° 20-21) os emi-grantes aplicam muito frequentemente, as suas pequenas poupanças, quevão formando no estrangeiro, em propriedades rústicas, pois querem retornarà «terra» usufruindo já o estatuto social de proprietário, que é a mostra

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Por estas razões, a percentagem do total dos investimentosem relação ao rendimento nacional é bastante baixa nos paísespouco desenvolvidos, o que limita a sua taxa de crescimento eco-nómico. Assim acontece em Portugal, onde a percentagem (que setem situado entre 15 e 19%) do rendimento nacional aplicada eminvestimento (formação bruta de capital fixo) é a mais baixa dospaíses europeus: para os cinco pequenos países europeus citadosno capítulo anterior, essa percentagem oscila em torno dos 25 %,e em alguns casos atinge mais de 30 %. Como o nosso rendimentopor cabeça é também o mais baixo, resulta que o volume de inves-timentos por habitante (à volta de 2,6 contos, em 1967) é mui-tíssimo -ulterior ao dos outros países (entre d e 10 vezes). Se onível de investimento nacional não aumenta e não se orientamais eficazmente, vê-se mal como poderemos sair da cauda dopelotão europeu.

2. Nos países pouco evoluídos, o investimento público, emoutros sectores que não o das infra-estruturas, adquire, pois, umafunção importantíssima, na medida em que supre as insuficiênciasdo investimento privado nacional. Mas, a não ser que se adoptemesquemas socialistas, o investimento público nunca poderá com-pensar completamente as insuficiências do investimento privado.Neste contexto, a criação de incitamentos e de condições propíciasao investimento, bem como a formação de outros tipos de pou-pança — além das poupanças pública e privada voluntária— e asua captação, devem ser consideradas como muito importantes.Uma dessas formas, quando não se quer ou se não pode recorrerà poupança forçada, é a poupança institucional ou contratual: osaumentos de salários e de remunerações em geral poderiam seracompanhados de aumentos de descontos para a constituição defundos de reforma e de seguros contra acidentes, e simultanea-mente poderiam ser criadas condições e estímulos (por exemplo:exonerações fiscais, prémios, etc.) para a constituição de segurosde vida, pensões, etc. privados, Nos países mais evoluídos, fundosdesta natureza são fonte valiosa da poupança nacional. Simples-mente, sobretudo no primeiro caso, a gestão dos fundos criadospor descontos nos vencimentos ou remunerações directos ou indi-rectos deve ser confiada estritamente aos interessados, isto é, aostrabalhadores, que os colocariam no mercado de capitais em con-corrência com os bancos e outros fornecedores de fundos, e,portanto, gozando das mesmas possibilidades de remuneração.Em Portugal, os fundos da Previdência constituem também fonte

sensível do sucesso. Isto faz com que o valor mercantil da propriedade sejamuito superior ao seu valor económico (soma de rendimentos actualizados),pelo menos em algumas regiões do País. Mudam os actores sociais, mas arepresentação é a mesma, e as estruturas não mudam.

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razoável da poupaíiéâ nacional — %5>% etn Í96514. Nâo estomoà,porém, persuadidos de que se possa defender o princípio de osinteressados permanecerem alheios à gestão destes fundos, aqual se encontra confiada, de maneira mais ou menos directa, aoMinistério das Corporações e Previdência Social.

Outra modalidade que poderia ser encarada é a da participa-ção institucional dos trabalhadores nos lucros e no capital dasempresas em que trabalham. Para os países pouco evoluídos, talmétodo revestiria um triplo interesse: estímulo a produtividadedos trabalhadores, segurança económica e estabilidade profissionaldos trabalhadores, e possibilidades de formação de poupança emtodos os níveis de rendimento. As modalidades concretas podemser várias e deveriam ser amplamente versadas e discutidas. Emtodo o caso, o seu interesse é evidente, pois, além do mais, essaparticipação pode constituir um meio eficaz de «democratizar» ocapital e a riqueza do país. Em Portugal, com excepção de rarasiniciativas privadas, nada existe neste domínio.

3. A alternativa que resta, na ausência de formação sufi-ciente de capital a partir de fontes nacionais, é o recurso maisou menos maciço aos investimentos estrangeiros. Isso acontecerámais provavelmente quando os países pouco evoluídos carecerem,não só de poupança disponível para ser aplicada em investimentos,como também de tecnologia para aplicar capitais disponíveis nossectores mais modernos, cujas produções encontram frequente-mente uma procura em rápida expansão. Então esses países abremas suas portas ou fazem apelo claro aos investidores estrangeirosque vêm estabelecer-se aí sob a forma de constituição de novasempresas ou aquisição e expansão de firmas já existentes.

Todavia, a implantação de firmas estrangeiras tem caracterís-ticas e efeitos próprios, que convém considerar.

Dados os recursos financeiros muito avultados a que podemfazer apelo e o apoio tecnológico de que dispõem, tais empresasestabelecem-se e investem, em geral, nos ramos de actividadesonde a tecnologia é mais avançada em relação à existente no país.O seu mercado não é confinado necessariamente ao mercado na-cional. Frequentemente, as empresas estrangeiras localizadas nospaíses pouco evoluídos, não são mais do que estabelecimentos de

14 Em 1968, dos recursos da Previdência, 72 % foram distribuídos,6% aplicados em formação bruta de capital fixo (rentável?) e 22 % emempréstimos ao sector público e privado. A parte distribuída tem vindoa aumentar. No entanto, pode constituir um erro de facilidade passar doesquema de capitalização para o esquema de repartição integral. Cf. OCDE,Marche de Capitaux, 1968, p. 161).

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produção dependentes de centros de decMo situado® no exterior(mesmo se existe independência jurídica formal). A acção localdo estabelecimento-filial nos países de implantação está, assim,condicionada, senão mesmo determinada, pela estratégia globaldefinida pela casa-mãe, estratégia que pode ter dimensão mundial(Shell, IBM, Krupp, etc). Muitas vezes, esses estabelecimentos têmpor função consumir peças ou produtos não acabados fabricadospor outros estabelecimentos da grande firma, ou produzir peças ouprodutos não acabados que serão exportados para outros estabele-cimeintos. Além de um eventual mercado interessante, o que levaos investidores estrangeiros a investirem num país é sempre aexploração rentável (impostos deduzidos) de um recurso dessepaís: recursos naturais (minerais, agrícolas, florestais,...) ou re-cursos humanos (mão-de-obra barata, relativamente à sua quali-ficação) e/ou ainda a posição geográfica. Em suma, o critério dosinvestidores estrangeiros consiste na combinação de recursos locaisbaratos com a tecnologia evoluída de que eles dispõem.

4. Quando as firmas estrangeiras criam estabelecimentos nospaíses pouco evoluídos com sistemas sócio-económicos que permi-tam o pagamento de baixos salários, a percentagem de apropriaçãopor parte do capital estrangeiro da riqueza criada pode ser alta.Se a instalação é precária por motivos estratégicos, os rendimentosdo capital são transferidos para o exterior (legalmente, ilegalmenteou através de «desnatadeiras»), o que pode onerar a balança depagamentos, a, longo prazo, sobretudo quando as entradas de novoscapitais ou de divisas provenientes da exportação das produçõespróprias não compensam as saídas das receitas desses capitais.Mas pode também acontecer que, ou porque haja limitações detransferências ou porque o mercado (nacional e/ou de exportação)em expansão se torne interessante, as empresas estrangeiras rea-pliquem os seus ganhos sob a forma de auto-financiamento (oumesmo recorrendo ao mercado inferno de capitais), a fim de au-mentar a sua capacidade de produção. Nestes casos, a parte deriqueza que é apropriada pelas filiais dos centros de decisão exte-riores pode aumentar.

Se o processo se acentua, tende a desnacionalizar a economiado país, porque o controle da economia por parte das firmas estran-geiras aumenta e porque os centros de decisão que as comandamsão exteriores e poderosos, face aos centros de decisão nacionais(empresas e Estado), cujo poder de negociação é por vezes infe-rior ao de algumas das colossais firmas inter-territoriais (a Pérsiafez, dolorosamente, a experiência disso mesmo quando MOSSADEGHnacionalizou a A. I. O. C) .

O facto de as firmas com influência estrangeira se estabele-cerem em sectores «de ponta» tem uma dtipla consequência. Posi-tiva, na medida em que exercem efeitos propulsores e de incita-

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mento sobre as empresas nacionais, pela difusão de tecnologia,pelas compras que fazem no mercado nacional e na medida emque empregam pessoal e distribuem rendimentos e, por vezes,pelos «mercados externos» que carreiam através da sua organi-zação comercial no exterior. Eventualmente negativa também, namedida em que, colocadas em sectores estratégicos, podem orientara economia nacional em sentido não conforme aos interesses na-cionais. A dominação estrangeira será tanto mais eficiente, quantomais incidir nas indústrias metalo-mecânicas e químicas, as quaisconstituem os elos mais estratégicos de integração da matriz derelações inter-industriais, ou então nos serviços de exportação,que comandam uma das «portas» do processo produtivo, ou aindano sector bancário, que comanda a formação dos investimentos,isto é, um dos pontos de partida desse processo. Nestes ramos deactividade, a vigilância dos governos deve exercer-se com extremaatenção. Parece que, não se podendo prescindir da contribuiçãoestrangeira, as fórmulas a encarar devem reservar o controle dospoderes de decisão nacionais, seja pela preservação da maioria daparte nacional no capital nacional, seja pelo domínio majoritárioefectivo dos postos de comando, seja pela localização e controleefectivos dos inputs e dos outputs, seja ainda mediante acordosespecíficos sobre decisões respeitantes a determinados aspectos.

Em Portugal, a implantação de capitais estrangeiros, directa-mente ou associados a capitais portugueses, tem-se acentuado apartir de 1960, e a parte do capital industrial detido por estran-geiros tem aumentado sensivelmente sobretudo nos últimos 5 anos.Em mais de 600 empresas localizadas em Portugal, o capital majo-ritário é estrangeiro; o volume de investimentos directos estran-geiros em Portugal duplicou entre 1963 e 1965, e atingia, já nestaaltura, cerca de y% do investimento privado. Este capital investe-se,não somente em sectores tecnologicamente mais avançados (quí-micas, metalo-mecânicas e electrónica), como igualmente em sec-tores mais tradicionais (confecção e construção civil) e até emserviços (turismo), onde os salários dos operários portugueses são3 a 6 vezes inferiores aos dos seus congéneres centro e norte--europeus15.

O crédito estrangeiro privado concedido ao país passou de2,1 milhões de contos em 1964 para 5 milhões em 1968, mas a partedos investimentos directos vem diminuindo de 1966, enquanto ocrédito à importação aumentou enormemente: 7 vezes no quin-quénio; o crédito público temjse mantido mais ou menos estacio-nário. Simplesmente: o que tem aumentado muito firmemente sãoas saídas de capitais privados a título de liquidação e reembolsos:1,3 milhões de contos em 1964 e 3,2 milhões em 1967. Esses encar-

is Xavier PINTADO — «Níveis e Estruturas de Salários Comparados»,in Análise Social, n.o 17, 1967.

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gos, públicos e privados, sobretudo desde 1966, começaram a pesarsensivelmente na nossa balança, pois absorviam em 1966 cerca de19% das divisas obtidas comais nossas exportações para o estran-geiro, e em 1968 absorveram já 26 %, o que não deixa de ser preo-cupante. É questão de perguntar se a expansão das firmas nacionaiscontroladas pelo estrangeiro não se está a processar à custa dofinanciamento dos seus investimentos através de créditos obtidosjunto de financiadores nacionais e sobretudo da banca nacional,junto da qual gozam de certas facilidades pelas garantias e com-pensações (v. g., negócio de cambiais) que oferecem. Neste caso,um dos recursos que as empresas estrangeiras viriam explorarna nossa economia seria justamente um crédito mais barato do queno exterior. Se assim é, tudo se passaria como se nós lhes pagás-semos para nos comprarem. Não parece, contudo, que se possafalar claramente e desde já de dominação estrangeira em Portugal;mas é evidente que o grau de dependência da nossa estruturaindustrial e de alguns serviços (comércio e turismo) tende a au-mentar muito rapidamente. Ora, uma tal dependência e os riscos dedesnacionalização nela implicados só poderão diminuir quando opaís criar condições para o surgimento de tecnologia e de técnicosnacionais capazes, senão de prescindirem da tecnologia estrangeira,ao menos de dialogarem inteligentemente e sem complexos desubordinação com os investidores e técnicos estrangeiros. Isto é,quando o sistema português de educação e de ensino formar técni-cos qualificados em todos os níveis (desde a escola técnica até àformação pós-universitária) e numerosos, capazes de criaremuma tecnologia própria em ramos especializados (o que é vulgarnos pequenos países evoluídos) e de adaptarem às condições nacio-nais as tecnologias desenvolvidas nos países mais avançados16;e quando dizemos tecnologia, estamos a branger também a tecno-logia da organização e da gestão. Até lá, todos os riscos de efeitosnegativos aumentarão progressivamente, podendo os efeitos posi-tivos não os compensar.

w Tem sido essa a política do Japão, que, como se sabe, é o país quedetém o recorde mundial da taxa de crescimento. Após haver copiado e adap-tado a tecnologia estrangeira, começa actualmente a inovar em muitos domí-nios e a lançar-se na batalha da qualidade. A escolarização ao nível primárioé total, e 30% dos jovens que entram na vida activa possuem um diplomade ensino superior.

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CONCLUSÃO

De todo o exposto pode concluir-se que o processo de cresci-mento da economia portuguesa, se deixado à sua tendência actuai,contém endògenajnente mecanismos limitativos, entraves e dis-torsões ao seu dinamismo. Isto é, um certo desenvolvimento temlugar, mas não tão rápido, nem tão equilibrado, nem tão preser-vado de risco-s de desnacionalização, quanto o poderia e deveriaser. Importa, pois, que as decisões dos centros de poder económicosejam mais orientadas de acordo com os interesses da colectivi-dade, de forma que:

— a repartição dos frutos do progresso tecnológico seja maisequilibrada;

— o perfil da procura se torne mais estimulante à criaçãode novas ou de mais vastas actividades orientadas para asua satisfação;

— a economia portuguesa se abra mais claramente à expansãoeuropeia;

— se acentue e oriente devidamente o esforço de investimentonacional.

Porém, isto não é possível sem um exame e debate sobre osmecanismos sociais e económicos e sem a definição de uma políticacoerente, com objectivos explícitos e aceites. Não será fácil pro-ceder a este exame crítico, mas quer-nos parecer que, no casoportuguês, alguns aspectos merecem desde já atenta ponderação eintervenção. Salientamos os seguintes:

a) Aumentar institucional e praticamente o poder de discus-são dos sindicatos operários e rurais, de maneira a equilibrar opoder económico dos detentores de capital. Cremos que o aumentonegociado dos salários reais nos ramos de actividade em que au-mentos da produtividade o permitam ou em que a injustiça sejaflagrante, é a únicai maneiíra de corrigir a tendência para a con-centração da riqueza e, portanto, de evitar a inadequação do perfilda procura. Outra solução seria, como aliás vem sendo, permitirou acentuar a escassez de mão-de-obra no mercado de trabalho queresulta da emigração dei trabalhadores. Mas esta solução conduz aprivar a economia nacional de parte substancial de um dosseus factores principais.

b) Rever e desenvolver as formas de criação e formação dapoupança institucional e reconsiderar as modalidades da sua ges-tão. Deve estar-se consciente de que tirar o melhor proveito dassuas poupanças é um direito dos trabalhadores e não um favorque se lhes concede. O desenvolvimento e a melhor gestão das

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poupanças institucionais, não sô beneficiaria o mercado de capitais,como constitui um imperativo de justiça social. Por outro lado,a reorientação da recolha e da aplicação das poupanças dos emi-grantes no estrangeiro poderá ser tentada mediante a oferta detítulos públicos ou privados (talvez libelados na moeda local) evencendo juro equivalente às obrigações locais.

c) Fazer um esforço no domínio da exportação, para o queacções coordenadas em três planos são necessárias: — organizar aacção conjunta dos produtores-exportadores nacionais em cadau$n dos ramos de actividade, de forma a evitar que a concorrênciaentre eles avilte os preços nos mercados internacionais, como tan-tas vezes acontece; — reorganizar o® serviços comerciais exterioresdo MNE e do FFE, dotando-os de pessoal competente e «agres-sivo»;— tornar efectivas e eficazes as ajudas a exportação, taiscomo o seguro e o crédito à exportação... estando concientes deque as boas intenções não bastam, face às ofensivas organizadasdos concorrentes estrangeiro®.

d) Considerar seriamente as medidas a tomar para aumentaro nível do investimento nacional. Parece que três acções se reve-lam indispensáveis:—reorganizar e expandir o mercado de títu-los como meio de reorientar as pequenas e médias poupanças;criar condições para o fomento e difusão da tecnologia industrialnos ramos em que há probabilidades de capacidade concorrencial(por exemplo: um instituto de tecnologia têxtil, que crie técnicae técnicos; a construção civil e outros ramos também carecemde instituições análogas); — se não for julgado oportuno o aumentosubstancial dos investimentos públicos directos, constituir entida-des autónomas que, com capitais públicos e outros, invistam nosdiferentes sectores ao mesmo título e sob as mesmas condições(incluindo a prossecução de lucros) que as empresas privadas.

e) Rever o condicionamento industrial, com vista ao estabe-lecimento de condições de concorrência mais sãs, que permitam aformação de preços mais concorrenciais e a instalação de unidadestecnologicamente mais progressivas. Simultaneamente, aperfeiçoaros métodos de apreciação financeira e económica das empresas,exigindo-lhes a elaboração de contabilidades claras e estandarti-zadas nas suas grandes linhas, bem como a publicação de balançoscorrectos. A fraude fiscal e o suborno deveriam ser punidos comextrema severidade. Se o abandono de posições oligopolísticas compreços «administrados» não fôr aconselhável, então os eventuaissuper-benefícios que se formam deveriam ser captados peloEstado através do imposto.

/) Considerar que a industrialização não se pode realizar sem

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um mercado interno sufMênte. Neste contexto, uma reformaagrária (no que respeita, tanto às estruturas produtivas, como àsde comercialização) aparece como medida essencial que se nãopoderá iludir (o único meio de evitar medidas de carácter institu-cional será deixar arruinar progressivamente a agricultura, o queé absurdo), a fim de aumentar o poder de compra dais zonas ruraise de obstar às tensões inflacionistas que forçosamente resultarão(mau grado os bloqueamentos de preços) da estagnação da produ-ção agrícola face a uma procura crescente.

g) Reorientar as despesas públicas no sentido de uma maiorprodutividade, evitando em primeiro lugar as despesas sumptuá-rias. A maior produtividade dos funcionários públicos a todos osníveis deveria ser exigida, o que só se tornará possível se a opiniãopública dispuser de possibilidades de crítica justificada e respon-sável. Na reorientação das despesas públicas, um esforço muitosério deve ser feito no domínio da educação, principalmente noque respeita à formação técnica média e à formação pós-universi-tária. A formação e a informação técnicas são condições necessá-rias para a criação de capacidade tecnológica nacional apta aelaborar tecnologia própria ou a adaptar a tecnologia estrangeiraquando necessário.

h) Reformar o sistema de imposição fiscal sobre os rendi-mentos pessoais e seu controle, a fim de criar maiores recursospara os investimentos públicos e se poder redistribuir uma partedo rendimento, assim captado, através de esquemas de protecção epromoção social (nomeadamente, assistência aos mais pobres eaos incapazes; reconversão e formação profissionais). Como seviu, uma política deste tipo impõe-se, não só pela necessidade demaior justiça social, mas ainda como meio de reorientar a procurae favorecer assim o crescimento económico.

i) Tentar orientar e integrar mais completamente os capitaisestrangeiros nos objectivos nacionais. Esta maior exigência nãopode ser confundida com o levantamento de empecilhos burocrá-ticos. A maior exigência recairá principalmente sobre a adminis-tração nacional chamada a provocar e a apreciar inteligentementea implantação de capitais estrangeiros no país, os quais, estejamoscientes, não poderemos dispensar (sobretudo os que importaremtecnologia) nesta fase do crescimento português.

j) Finalmente,, abrir um debate claro e sem ambiguidadessobre as formas de integração económica de Portugal na Europa.A aceitação ou rejeição de qualquer forma de integração constituidecisão demasiado importante para que seja tomada apenas pelaalta administração. Pessoalmente, quer-nos parecer que tal inte-

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gração, a mais ou menos largo prazo, será uma via salutar, senãomesmo a única.

Outros aspectos são importantes, mas estes parecem-nos dosmais urgentes. Sobre eles é imprescindível fazer incidir a reflexãoconstrutiva da sociedade portuguesa.

Abril, 1969.

P. 8. — Algumas medidas tomadas recentemente têm Ido no sentidodas sugestões apresentadas no nosso trabalho, com o que nos congratulamos.(Março de 1970).

JU9