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ESTUDOS/ÉTUDES 3 n° 3 - juillet 98 LATITUDES P oder-se-à falar dos temas obcessivos de uma socieda- de, tal como o fazemos, auto- rizados por Freud e Jung, dos temas obcessivos dos criadores, plásticos ou literários ? 1 . Parece bem que sim, embora tais obcessões se apresen- tem de maneira quase sempre confusa. No caso dos países ameri- canos, pensa-se geralmente que a sua grande preocupação assenta no estatuto da escravatura e na sua abolição. O carácter quase sempre tardio das operações de abolição (em Cuba em 1886, no Brasil em 1888), sublinha a importância da banalização da ideia e da prática da escravatura. Não, o que mais preocupa as sociedades caracterizadas por uma minoria branca e uma maioria negra, é o estatuto dos mulatos, os quais introduzem nas sociedades doentiamente brancas, o mal estar provocado pela associação entre o sangue “puro” dos brancos e o sangue “impuro”, quando não “mal- dito” dos negros. A produção literá- ria fornece os elementos suficientes para verificarmos a importância deste fantasma obcessivo 2 . A violência da situação aparece em algumas obras essenciais, como se verifica no caso de Euclides da Cunha, que salienta o facto de os mulatos não serem uma invenção brasileira. Mais ainda : nem serão, na demonstração de Euclides, sim- plesmente americanos, dado que os mulatos, no caso brasileiro, teriam sido inventados pelos portu- gueses, mas na Metrópole. Ou seja, o mulato só abusivamente pode ser considerado uma criação america- na, pois foi levado pelos coloniza- dores europeus, que o tinham inventado na Europa 3 . Nas sociedades americanas onde os brancos, europeus ou já americanos, são minoritários, verifi- ca-se uma grande incerteza no que diz respeito ao estatuto dos mula- tos, os quais tem sempre um pai ou uma mãe brancos e, por isso mesmo, parentes brancos. Tais mulatos não são sempre rejeitados pelos pais, muito pelo contrário : na documentação portuguesa veri- fica-se que os pais brancos se rebe- laram em S. Tomé, já no século XV, contra a maneira como eram trata- dos os filhos mulatos, considerados escravos 4 . A decisão da Corte alterou não só o estatuto dos mulatos, que foram transferidos para o espaço e os direitos dos homens livres, mas também, embora um pouco mais tarde, das suas mães, que foram libertadas, podendo exercer a pro- fissão de regateiras 5 . Estas decisões da Corte lisboeta repetiram-se em muitos lugares da colonização por- tuguesa, permitindo que os mula- tos pudessem ascender a alguns cargos públicos. Todavia, como não podia deixar de ser, o alargamento do processo colonizador, acompan- hado pelo aumento tanto do núme- ro de brancos, como do número de mulatos, provocou crispações vio- lentas, que levaram na prática social à redução dos direitos dos mulatos. No plano estritamente literário, verificamos que os africanos se revelam nas literaturas peninsu- lares, já bastante cedo, numa canti- ga de mal dizer do rei Afonso X, o Sábio 6 . Se bem que, no plano bra- sileiro, tenhamos sobretudo de considerar a produção poética de Gregório de Matos e dos seus con- temporâneos do Século XVII, que fizeram das mulheres de cor, e sobretudo da mulatas, os agentes específicos da sexualidade portu- guesa. A sociedade da Bahia onde viveu Gregório de Matos, é deter- minada pelos excessos sexuais, e genealógicos, permitidos pela coha- bitação entre os diferentes grupos somáticos que caracterizam a cria- ção do Brasil. Esta problemática foi-se refor- çando à medida que prosseguia a ocupação do territorio, tendo-se agravado a partir do momento em que, já no século XVIII, se registou o formidável fluxo urbano verifica- do em Minas Gerais, em conse- Branqueamento e Morenização na Literatura Brasileira (1881-1976) Alfredo Margarido

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3n° 3 - juillet 98LLAATTIITTUUDDEESS

Poder-se-à falar dos temasobcessivos de uma socieda-de, tal como o fazemos, auto-

rizados por Freud e Jung, dos temasobcessivos dos criadores, plásticosou literários ?1. Parece bem que sim,embora tais obcessões se apresen-tem de maneira quase sempreconfusa. No caso dos países ameri-canos, pensa-se geralmente que asua grande preocupação assenta noestatuto da escravatura e na suaabolição. O carácter quase sempretardio das operações de abolição(em Cuba em 1886, no Brasil em1888), sublinha a importância dabanalização da ideia e da práticada escravatura.

Não, o que mais preocupa associedades caracterizadas por umaminoria branca e uma maiorianegra, é o estatuto dos mulatos, osquais introduzem nas sociedadesdoentiamente brancas, o mal estarprovocado pela associação entre osangue “puro” dos brancos e osangue “impuro”, quando não “mal-dito” dos negros. A produção literá-ria fornece os elementos suficientespara verificarmos a importânciadeste fantasma obcessivo2.

A violência da situação apareceem algumas obras essenciais, comose verifica no caso de Euclides daCunha, que salienta o facto de osmulatos não serem uma invençãobrasileira. Mais ainda : nem serão,na demonstração de Euclides, sim-plesmente americanos, dado queos mulatos, no caso brasileiro,teriam sido inventados pelos portu-gueses, mas na Metrópole. Ou seja,o mulato só abusivamente pode serconsiderado uma criação america-na, pois foi levado pelos coloniza-dores europeus, que o tinhaminventado na Europa3.

Nas sociedades americanasonde os brancos, europeus ou jáamericanos, são minoritários, verifi-ca-se uma grande incerteza no quediz respeito ao estatuto dos mula-tos, os quais tem sempre um pai ouuma mãe brancos e, por issomesmo, parentes brancos. Tais

mulatos não são sempre rejeitadospelos pais, muito pelo contrário :na documentação portuguesa veri-fica-se que os pais brancos se rebe-laram em S. Tomé, já no século XV,contra a maneira como eram trata-dos os filhos mulatos, consideradosescravos4.

A decisão da Corte alterou nãosó o estatuto dos mulatos, queforam transferidos para o espaço eos direitos dos homens livres, mastambém, embora um pouco maistarde, das suas mães, que foramlibertadas, podendo exercer a pro-fissão de regateiras5. Estas decisõesda Corte lisboeta repetiram-se emmuitos lugares da colonização por-tuguesa, permitindo que os mula-tos pudessem ascender a algunscargos públicos. Todavia, como nãopodia deixar de ser, o alargamentodo processo colonizador, acompan-hado pelo aumento tanto do núme-ro de brancos, como do número demulatos, provocou crispações vio-lentas, que levaram na prática socialà redução dos direitos dos mulatos.

No plano estritamente literário,verificamos que os africanos serevelam nas literaturas peninsu-lares, já bastante cedo, numa canti-ga de mal dizer do rei Afonso X, oSábio6. Se bem que, no plano bra-sileiro, tenhamos sobretudo deconsiderar a produção poética deGregório de Matos e dos seus con-temporâneos do Século XVII, quefizeram das mulheres de cor, esobretudo da mulatas, os agentesespecíficos da sexualidade portu-guesa. A sociedade da Bahia ondeviveu Gregório de Matos, é deter-minada pelos excessos sexuais, egenealógicos, permitidos pela coha-bitação entre os diferentes grupossomáticos que caracterizam a cria-ção do Brasil.

Esta problemática foi-se refor-çando à medida que prosseguia aocupação do territorio, tendo-seagravado a partir do momento emque, já no século XVIII, se registouo formidável fluxo urbano verifica-do em Minas Gerais, em conse-

Branqueamento e Morenizaçãona Literatura Brasileira (1881-1976)

Alfredo Margarido

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lência da escravatu-ra !

No quadro cro-nológico que nosinteressa, que vai de1881 a 1976, avultasobretudo a impor-tação das teses bana-lizadas pelo Dr. PaulBroca, que tiveramcomo expoente má-ximo, no Brasil, oDr. Nina Rodrigues,que ficou conhecidona história da psi-quiatria do Brasil eda Europa como o“Broca brasileiro”,tendo também alcan-çado uma sólidareputação europeia.As suas operaçõescientíficas permiti-ram-lhe definir oscaracteres psiquiá-tricos tanto dos afri-canos, como sobre-tudo dos mulatos.Estas teses foramrapidamente trans-feridas do campoestritamente científi-co para o terreno

literário, tendo esta desqualificaçãopsiquiátrica dos mulatos alcançadoo seu ponto mais elevado em OsSertões , de Euclides da Cunha8.

Deve contudo sublinhar-se queeste tema obcessivo começara a sertratado já no século XIX, sendo cer-tamente o romance de AluísioAzevedo, O Mulato , publicado em1881, ainda em plena vigência daescravatura, que nem sequer foraabalada pela legislação que, desde1831, procurava modificar e anularprogressivamente a prática daescravatura, sem todavia o conse-guir9. Seleccionei também uma obramista, que tanto traduz o esforçode discípulo dos geógrafos fran-ceses, de Montesquieu a Vidal dela Blache, como se faz eco das tesesde Gobineau e até já de Vacher deLapouge : refiro-me naturalmente aOs Sertões , de Euclides da Cunha,obra aparecida em 1905. Tambémescolhi uma das grandes obras damodernidade, o Macunaíma deMário de Andrade, de 1928, namedida em que a narrativa domulato paulista põe em evidênciao facto de o princípio da metamor-fose ser a característica principial

quência da actividade mineira,como sublinham alguns autores,mas sobretudo André João Antonil7.Se o campo, devido ao isolamentoobrigatório dos engenhos, permitiamanter fronteiras bastante rígidasentre os diferentes grupos raciais,já o mesmo se não verificava nascidades mineiras, situação que, porsua vez, contribuiu para a ascensãosocial dos mulatos.

As medidas tomadas pelaspotências europeias para impedirprimeiro o tráfico negreiro, e abo-lir, depois, a escravatura, provoca-ram emoção e protestos num Brasilque dependia da força de trabalhoafricana para assegurar o funciona-mento da sua agricultura industrial.Não admira por isso que os rarosteóricos portugueses e sobretudobrasileiros se empenhem em im-portar e banalizar as teses dos ana-tomistas que pareciam “provar” ainferioridade congenital, física emental, dos africanos ou dos ame-ricanos. De Peter Camper a Borisde Saint Vincent, multiplicam-se asteses “provando” a animalidade decertos grupos humanos, que sópodiam ser utilizados graças à vio-

da criação física do brasileiro, resul-tado da multiplicidade das relaçõesgenésicas entre os diferentes gru-pos humanos. E encerrarei estabreve incursão num domíniosempre delicado e polémico, coma análise de alguns dos pontos cru-ciais do romance que JosuéMontello consagrou à história dosafro-brasileiros de S. Luís doMaranhão, e aparecido em 1976.De resto, como verifiquei depois,esta selecção permite um círculocurioso, na medida em que o pri-meiro romance considerado pro-vém de uma experiência maranhen-se, tal como acontece com o último.

A liquidação física do mulato

A trama da história de AluísioAzevedo parece das mais simples :um comerciante português mantémrelações sexuais com uma escravanegra, relação da qual nasce ummulato claro, Raymundo. Por mortedo pai, este é educado em Portugal,onde frequentou a Universidade deCoimbra, tendo obtido a licenciatu-ra em direito, que o transforma umdas raros “doutores” que contavaentão a sociedade brasileira, maiscaracterizada pelos comerciantes epelos proprietários rurais. AluísioAzevedo não podia deixar de lem-brar que o estereótipo portuguêsda beleza masculina assentava nosolhos azuis e nos cabelos loiros10.

É também verdade que, aqui eali, sem nenhuma intenção etnoló-gica, Aluísio de Azevedo lembraalguns costumes singulares dasociedade portuguesa e branca,como o facto de as senhoras doMaranhão possuírem “dentes trian-gulares, truncados a navalha, comobárbaramente faziam dantes” essassenhoras “criadas em fazenda”. Estamarca de enselvajamento, que nãopode deixar de evocar as práticasde alguns grupos africanos, querefazem os dentes, em função denormas estéticas e religiosas africa-nas, não pode deixar de sugeriruma certa ambiguidade nas rela-ções entre os europeus e os africa-nos, na medida em que se manifes-ta uma certa tendência para aafricanização da sociedade colo-nial.

Deve contudo registar-se umadificuldade na construção do roman-ce, já que a estratégia romanesca

A marcha dos “Sem Terra” - foto : Jeanne Charpenel

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de Aluísio de Azevedo é simples :um dia desembarca em S. Luís doMaranhão um jovem licenciado emdireito, regressado da Europa apósanos de estudos e de viagens, quepretende apenas acertar contas comseu tio, antes de se instalar no Riode Janeiro. Este jovem licenciado,Raymundo, não sabe que é mulato,e ninguém lho tinha dito até então.Aluísio de Azevedo age como se asociedade portuguesa não fosseracista e não estigmatizasse as coresda pele. Tal não era então, nemdepois, verdade. Podemos vê-lo notratamente que foi dado emCoimbra ao brasileiro do Rio deJaneiro, Gonçalves Crespo, comolembra muito oportunamente, numtexto consagrado a Eça de Queiroz,João Penha11.

Compreende-se a estratégia doromancista : o jovem licenciado queintroduz na sociedade colonialmaranhense, ainda amplamentedominada pelos portugueses, nãopossui a menor experiência dasrelações sociais da sua região deorigem. O seu comportamentorepete os movimentos, as escolhas,os juízos que entretanto apurarasobretudo em Coimbra e naEuropa. Também se compreende aintenção filantrópica de AluisioAzevedo; os mulatos educados naEuropa, longe do vocabulário racis-ta do Brasil, e em particular de S.Luís do Maranhão, adquirem oshábitos dos europeus, quer dizerdos brancos, a ponto de não poderser deles separados.

Não sem que, atrás das costasde Raymundo, e como não podiadeixar de ser, a sociedade da normabranca, procurasse pôr a claro dascondições de nascimento deRaymundo, chave indispensável àarrumação dos caracteres somáti-cos do jovem licenciado. Não hánada que mais incomode umasociedade centrada sobre si mesma,sem a menor relação com o mundo,salvo a comercial, do que a incer-teza quanto ao estatuto de um dosseus membros, sobretuo quandoeste dispõe de diplomas universitá-rios que o tornam inevitavelmentediferente.

Como não podia deixar de ser,o elemento que faz explodir a situa-ção é determinado pelas mulheres,que continuam a ser o sal da terr-ra. O tio de Raymundo tem umafilha, a qual, como prima carnal,

deve encarregar-se do bem estar doprimo. A jovem Ana Rosa é branca,mas ignora o estatuto somático doprimo, na medida em que a famílianão está interessada em dar aconhecer a condição de mulato deRaymundo. Todavia os caracteresfísicos e intelectuais do jovem agemde maneira decidida junto da primaque se apaixona :

“Entontecia de pensar mele. Ohibridismo daquela figura, em quea distinção e a fidalguia do portese harmonizavam caprichosamentecom a rude e orgulhosa franquezade um selvagem, produzia-lhe narazão o efeito de um vinho forte,mas de uma doçura irresistível etraidora; ficava estonteada ...”12.

Arrastada pela violência dapaixão, até certo ponto enganadapelo silêncio observado a respeitodo estatuto somático de Raymundo,Ana Rosa inverte os termos clássi-cos da operação romântica dapaixão : não é o mulato que, movi-do pelo mecanismo genésico dosselvagens deseja a mulher branca,mas sim a mulher branca que nãopode furtar-se à sedução do “híbri-do”. Estamos perante um dos ele-mentos mais significátivos de umaoperação romanesca que não hesi-ta em denunciar, embora apoiando-se na trama metafórica da ficção, aviolência da exclusão que pesasobre os mulatos. Mas, ao mesmotempo, Aluísio de Azevedo sublin-ha o excesso de sedução dos “híbri-dos”, assim responsabilizados depôr em perigo a “paz dos lares”.

A narrativa de Aluísio de Azevedo

precipita-se : Ana Rosa invade oquarto do primo, se bem queRaymundo procure pôr termo àsvisitas clandestinas da prima. Masesta desarma-o : “é porque o amomuito, entende ?”, abraçando-o ebeijando-o13. Raymundo é arrasta-do pela espiral da paixão da prima,e procura regularizar a situaçãopela única via conhecida : o casa-mento. O tio, que todavia manifes-ta uma sólida amizade pelo sobrin-ho, recusa-lhe a mão de Ana Rosa,embora sejam necessárias maisalgumas peripécias, que aqui nosinteressam pouco, para lhe dizerclaramente a situação : “recusei-lhea mão de minha filha, porque osenhor é ... é filho duma escrava ...- Eu ? ! - O senhor é um homemde cor ! ... Infelizmente esta é a ver-dade”14.

Conhecendo bem as regras dacomédia da arte, Aluísio de Azevedohá muito informara o leitor da situa-ção, pelo que este se interessasobretudo pela maneira como vãoser resolvidos os problemas essen-ciais : a relação Raymundo/AnaRosa, mas sobretudo a relaçãoRaymundo/sociedade branca. Oestado de choque é descrito demaneira sintética : “Mulato ! E euque nunca pensara em semelhantecoisa !”15. Aluísio de Azevedo criadesta maneira a tensão máxima : arevelação inesperada altera demaneira substancial o lugar socialdo jovem Raymundo, embora nãomodifique os sentimentos de AnaRosa, que obriga Raymundo a des-florá-la16.

Fortaleza, Praia - foto Jeanne Charpenel

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É de maneira decidida queAluísio de Azevedo prossegue nasua tarefa de inverter a importâncianormativa dos estereótipos, sociaisou literários : o agente activo destainfracção sexual, não é o mulato,mas sim a jovem branca, educadano respeito pelas regras sociais doseu grupo. Esta situação perturba omundo restrito dos brancos, poisque o pai de Ana Rosa pensavacasá-la com o seu empregado Dias,de maneira a assegurar duas ope-rações : a reprodução da família, ea conservação e até o alargamentoda actividade comercial.

O romancista não pode deixarde engravidar Ana Rosa, na medidaem que a ordem lógica dos aconte-cimentos, que começa com apaixão, a sedução, a desfloração,exigia a gravidês, ponto extremodesta operação que não permite amínima dúvida : na sociedadecaracterizada pela hegemonia dosbrancos, é à mulher branca quecabe a responsabilidade da sub-versão das regras. Em todo o casoesta gravidez, que só pode ser nor-malizada pela via do casamento,assinala o ponto da ruptura entre o

mulato Raymundoe a sociedade bran-ca. Esta, representa-da pelo empregadoDias, mas tambémpelo cónego Diogo,que fora inimigo dopai de Raymundo,não pode consentirna normalização dasituação pela viado casamento.

É a mão de Dias,armada pelo cóne-go Diogo, que dis-para o tiro de re-vólver que abateRaymundo : o mula-to que prevaricarade maneira tãograve, deixando-seseduzir pela primabranca, é assim eli-minado do númerodos vivos, libertan-do a sociedade deuma anomalia queassentava em pilaresreconhecíveis : mu-lato rico, licencia-do na Europa, des-tinado a casar coma branca que já está

grávida das suas obras ! Trata-se deuma catadupa de infracções, quedenunciam o carácter perigosodeste homem que não sabe estarno seu lugar, e que adopta os com-portamentos dos brancos, como sefosse um deles.

A operação de limpeza não estáainda terminada, pois que, face aocadáver de Raymundo, Ana Rosaaborta. Esta operação é indispensá-vel, já que se trata de despojar ajovem brasileira de qualquer marcada sexualidade do mulato. O fetoque carregava no ventre era a provanão só do pecado, mas sobretudoda relação diabólica com um mula-to. E podia até ser que este filhofosse mais escuro do que o pai,pondo em evidência, de maneiraescandalosa, a relação pecaminosada mãe branca com o mulato.Aluísio de Azevedo denuncia assim,com uma crueldade denunciadora,a brutalidade das relações raciaisque impedem a criação de umacomunidade brasileira homogénea.

Do ponto de vista literário,sente-se perfeitamente o peso dalição de Emile Zola, fazendo doescritor um dos agentes da morali-

zação social, política e religiosa dasociedade. O cónego Diogo, quenão só não respeita o voto de cas-tidade, mas é um dos mais violen-tos racistas da sociedade maran-hense, não hesita em armar a mãode Diogo, para liquidar o jovemRaymundo. A Igreja é por isso apre-sentada como uma das forças quetornam possível a violência doracismo brasileiro, mais particular-mente no que se refere às relaçõescom os mulatos. Não é apenas nosEstados Unidos que os negros mor-rem devido às suas relações comas brancas, o Brasil do Século XIXnão hesita perante a necessidadede liquidar os homens de cor queaceitam correr o risco de manterrelações sexuais com as brancas.

Aluísio de Azevedo concluipondo em evidência a maneiracomo a sociedade branca é capazde superar estas situações difíceisou delicadas : seis anos depois, emmeados de Fevereiro, “havia umapartida no Clube Familiar”, sendo “o par festejado” formado pelo “Diase a Ana Rosa, casados havia quatroanos”17. O trabalho do luto de AnaRosa exigira dois anos, esgotadosos quais a sociedade familiar, assimcomo a sociedade branca, puderaproceder à recomposição harmóni-ca da situação, devolvendo AnaRosa aos homens brancos e àsexualidade normal, que lhe deuos filhos brasileiros, encarregadosde assegurar a preservação da raçabranca.

Não encontramos neste roman-ce a menor preocupação com osafricanos, os quais sabiam manter-se nos seus lugares, sem incomo-dar mais do que o normal os pro-prietários brancos. Nem, no romance,se põe muito em evidência a possi-bilidade da abolição da escravatu-ra, embora se estivesse já em 1881,a sete anos do “decreto áureo”. Oque incomoda e perturba a socie-dade branca brasileira provém dosmulatos, sobretudo quando recon-hecidos e defendidos pelos paisbrancos. Raymundo fora educadocomo branco, e como branco secomporta : é aí que reside a seuimenso pecado de orgulho, que aassociação entre a igreja e o comér-cio ajuda a extirpar da face da terra.

Veremos mais adiante que esteromance recusa toda e qualquersolução genésica do problema dasraças. Muito pelo contrário : Aluísio

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Mercado, Brasília - foto Jeanne Charpenel

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essa denúncia, Euclides não hesitaem recorrer ao vocabulário da psi-quiatria, naturalmente importadode França, como já fizera anterior-mente Nina Rodrigues, entre outros.

Voltamos por isso a encontrar,embora abrigado por outro voca-bulário e até por uma estrutura daescrita que se furta, na aparência, àforça da metáfora, a mesma preo-cupação : o Brasil é vítima da mes-tiçagem. O escritor, que se empen-ha em definir as diferentescaracterísticas dos grupos quepovoam o Brasil, repete constante-mente a importância das divisões,que opõem a costa ao sertão, onorte ao sul. Mas, acima de tudo,deve levar-se em linha de conta anecessidade de pôr em evidência apatologia do mestiço : “de sorte queo mestiço - traço de união entre asraças ; breve existência individualem que se comprimem esforçosseculares - é, quase sempre, umdesiquilíbrado. Fouille compara-os,de um modo geral, aos histéricos.Mas o desiquilíbrio nervoso, em talcaso, é incurável, não há terapêuti-ca para este embater de tendênciasantagónicas, de raças repentina-mente aproximadas, fundidas numorganismo isolado”21.

Uma vez mais a preocupaçãoprincipal de Euclides da Cunha nãoreside na diversidade dos grupos,pois está concentrada na necessi-dade de pôr em evidência o carác-ter irracional, quando não simples-mente selvagem do mestiço. Leitorconstante da produção psiquiátricafrancesa, Euclides da Cunha não

viais, haveria o mulato, ao passoque no sertão se encontraria essen-cialmente o curiboca.

Euclides, como já foi lembrado,manifesta uma repulsa evidentepela mestiçagem que seria não umacriação brasileira, mas sim uma prá-tica portuguesa : “assim a génesisdo mulato teve uma sede fora donosso país. A primeira mestiçagemcom o africano operou-se na metró-pole”19. O ressentimento é eviden-te, pois Euclides, não só denunciaa colonização portuguesa, comoera então corrente na intelligentsiabrasileira, mas põe a nu o pecadomais significativo : seria aos portu-gueses reinóis que devia ser atri-buída a responsabilidade da cria-ção dos mulatos. Euclides nãoduvida da falta de qualidades dosmulatos, mesmo se reconhece serimpossível utilizar, para definir asituação brasileira, a “lei antropoló-gica de Broca”20.

No capítulo intitulado a “Génesisdos jagunços” Euclides acumula asdenúncias da mestiçagem : “a mis-tura de raças mui diversas é, namaioria dos casos, prejudicial”, eacrescenta quase na mesma fraseque “a mestiçagem extremada é umretrocesso”. Se existe uma intençãono texto de Euclides da Cunha, estanão parece residir apenas nas infor-mações e nas análises respeitantesa Canudos e a António Conselheiro,pois assenta ela na necessidade dedenunciar os mulatos, considera-dos responsáveis por um certo desi-quilíbrio na própria estruturação danação brasileira. Para levar a cabo

de Azevedo põe em cena a situa-ção insustentável dos mulatos,sobretudo daqueles que, protegi-dos pelas famílias brancas, podemdispor de fortunas consideráveisque os tornam não só iguais, masmuitas vezes superiores aos bran-cos. No romance de Aluisío deAzevedo, só existe uma solução,que os brancos encaram e execu-tam com a maior tranquilidade : aliquidação física desses rebentosperigosos, de maneira a eliminaros “híbridos”, que associam as duasraças mais presentes na elaboraçãodo Brasil.

A patologização de Os Sertões

A associação directa e constanteentre Euclides da Cunha e AntónioConselheiro impede uma leituradescomprometida de um texto fun-damental para a compreensão daspreocupações brasileiras nos anosfinais do século XIX, princípiosdeste ainda século XX. Ora Euclidesda Cunha preocupa-se com a terrae o homem, de maneira a pôr emevidência a “complexidade do pro-blema etnológico do Brasil”, queconsiste na verdade na perturbaçãoperante o que parece ser uma evi-dência redutora : “não temos uni-dade de raça. Não a teremos, tal-vez, nunca”18. De resto, o Brasil sópode ser definido por duas formasde mestiçagem : no litoral, modifi-cado pela banalização dos cana-

São Paulo “Painel” - foto Jeanne Charpenel

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podia deixar de prestar atenção àlição de Charcot, que lhe fornecesenão o termo, pelo menos a fun-ção da histeria na explicação doscomportamentos individuais. Tal éuma das constantes da reflexão deEuclides da Cunha, que, do seuponto de vista, explica o carácterincompleto da nação brasileira,mais desservida do que servida pelamultiplicação dos mestiços.

É por esta via que se explica aurgência de encontrar a origem dosmulatos, que só podem ter sidoinventados pelos portugueses, masnão no Brasil, como mais tardepodia pensar Gilberto Freyre, massim na própria Metrópole. A tarefagenésica, nitidamente condenadapor Euclides da Cunha, não podiaser atribuída aos brasileiros, maiscapazes de compreender os per-igos dos hibridismos - para recor-rer ao vocabulário de AluísioAzevedo - do que os portugueses,colonizadores sem nenhuma capa-cidade de compreensão dos pró-prios fenómenos que desenca-deiam. Esta operação possui deresto dois suportes : o primeiro sub-linha o carácter veleitário da orga-nização social portuguesa, que sedeixa arrastar para a mestiçagemsem a menor preocupação no quese refere aos resultados; o segundorejeita de maneira violenta toda equalquer operação tendente a tor-nar compreensível e aceitável amestiçagem.

Não deixa de ser curioso verifi-car a maneira pugnaz como se acu-sam os portugueses de terem sidoos criadores dos mulatos. Podiaesperar-se que um autor gabado

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pelo seu “rigor”, fosse capaz desaber que tal não podia ser verda-de. Mas Euclides da Cunha estálonge de ser um autor rigoroso,arrastado sempre pela necessidadede provar o carácter indiscutíveldas suas teses. Por isso não hesitaem reforçar a sua denúncia : “e omestiço - mulato, mamaluco oucafuz - menos que um intermediá-rio; é um decaído, sem a energiafísica dos ascendentes selvagens,sem a altitude intelectual dos ances-trais superiores. Contrastando coma fecundidade que acaso possua,ele revela casos de hibridez moralextraordinários : espíritos fulgu-rantes, às vezes, mas frágeis, irre-quietos, inconstantes, deslumbran-do um momento e extinguindo-seprestes, feridos pela fatalidade dasleis biológicas, chumbados aoplano inferior da raça menos favo-recida”22.

O campo “científico” de Euclidestorna-se mais claro, já que o híbri-do resulta de uma combinatóriaanómala, pois associa os “ascen-dentes selvagens” e os “ancestraissuperiores”. E não se pode esperarque semelhante combinatória per-mita que o “híbrido” possa ascen-der, pois as leis biológicas - jamaisexplicadas, como convém - o“chumbam” ao plano inferior daraça menos favorecida, quer dizerda mais selvagem. Compreende-seentão melhor o sentido do discursode Euclides, que, neste campo,marca um notável retrocesso emrelação à demonstração de Aluísiode Azevedo : este mostra que nãohá nada que o mulato não possaaprender, quando lhe são ofereci-

das condições em tudo idênticas àsque habitualmente são reservadasaos brancos; Euclides parte doprincípio exactamente inverso :sejam quais forem essas condições,o mulato não poderá escapar à vio-lência das “leis biológicas”.

Como esquecer que esta “mon-tagem” teórica visa sobretudo pôrem evidência uma teoria biológicado enselvajamento dos mulatos,que não permite que estes homensestejam em condições de se liber-tar de um jugo que os domina, sejamquais forem as circunstâncias : “ equando avulta não são raros oscasos - capaz de grandes generali-zações ou de associar as mais com-plexas relações abstractas, todoesse vigor mental repousa (salvan-te os casos excepcionais cujo des-taque justifica o conceito) sobreuma moralidade rudimentar, emque se pressente o automatismoimpulsivo das raças inferiores”23.Continuamos pois no quadro dateoria do enselvajamento geral, quenão pode oferecer nenhuma esca-patória aos mulatos, pois Euclidesda Cunha prefere proceder ao cui-dadoso inventário das condiçõesmenorativas que derivam da estru-tura específica das “raças infe-riores”. Sobretudo, verificamos queEuclides não hesita em procederao enselvajamento da nação brasi-leira, já que, do ponto de vista dademografia, são os “selvagens” quedominam !

Esta violência denunciadora,que se abriga sob a capa do rigorcientífico, não esgotou ainda a suaviolência tóxica, já que o mestiçoaparece também como um “intru-so” : “não lutou; não é uma inte-gração de esforços; é alguma coisade dispersivo e dissolvente; surge,de repente, sem caracteres pró-prios, oscilando entre influxosopostos de legados discordes. Atendência à regressão às raçasmatrizes caracteriza a sua instabili-dade. É a tendência instintiva a umasituação de equilíbrio. As leis natu-rais pelo próprio jogo parecemextinguir, a pouco e pouco, o pro-duto anómalo que as viola, afogan-do-o nas próprias fontes gerado-ras”24.

O enselvajamento do mulatonão é mais do que a aplicação deregras biológicas que o homem nãopode discutir, nem pôr em causa,sendo, como é, mais vítima do que

Negros Caçadores regressando á cidade - Gravuras retiradas de Ferdinand Denis, Brésil, col. l’Univers, Firmin Didot, 1837.

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agente capaz de controlar os ele-mentos que manipula ou que põeem movimento. O que mais impor-ta, nesta acumulação de argumen-tos destinados a provar a inevitabi-lidade da situação, é salientar atensão entre os dois elementos quepermitem a mestiçagem. Se bemque, em todos os textos de Euclidesda Cunha, se manifeste um clarodesprezo pelos negros, que não sãomais do que selvagens, e umadenúncia do carácter mais do quetíbio dos mulatos : a histeria expli-ca não só a irregularidade do com-portamento, mas serve tanbém para“feminizar” a própria estrutura dosmulatos. Pois não é a histeria, noquadro nosológico de Charcot, umadoença exclusiva das mulheres ?

Todavia Euclides da Cunha,como de resto a sociedade brasilei-ra, não pode permitir uma leituratão enselvajante, pelo que acres-centa algumas passagens que ante-cipam largamente sobre os trabal-hos de Frantz Fanon : “O mulatodespreza então, irresistívelmente, onegro e procura com uma tenaci-dade ansiosíssima cruzamentos queapaguem na sua pele o estigma dafronte escurecida ; o mamaluco faz-se o bandeirante inexorível, preci-pitando-se, ferozmente, sobre ascabildas aterradas ...”25. Hoje con-hecemos infinitamente melhor oprocesso, e estamos em condiçõesde definir o próprio percurso daalienação, já que em Peau noire,masques blancs, o Dr. Frantz Fanonrevelou a violência do mecanismoda alienação, que raras vezes écompreendido e denunciado. Osmulatos aspiram à branquização,salienta Euclides da Cunha. Mas,longe de fazer desta constataçãouma espécie de lei do comporta-mento social brasileiro, Euclides daCunha, fiel à sua diabolização dosmulatos, dos pretos e dos africanosem geral, salienta o que não seriamais do que uma tentativa de selavar da negrura da pele.

A sociologia nascente, que toda-via Euclides conhece, não o ajudaa recompor a sua análise, que rece-be os influxos da tradição normati-va da sociedade branca das cidades.Euclides da Cunha denuncia comuma veemência inegualável, tudo oque possa servir para desvalorizaro africano, entendido aqui apenascomo “selvagem”. O que lhe per-mite acrescentar : “esta tendência

(para a branquização) é expressiva.Reata, de algum modo, a sériecontínua da evolução, que a mesti-çagem partira. A raça superiortorna-se o objectivo remoto paraonde tendem os mestiços deprimi-dos e estes, procurando-a, obede-cem ao próprio instinto de conser-vação e de defesa. É que sãoinvioláveis as leis do desenvolvi-mento das espécies; e se toda asubtileza dos missionários tem sidoimpotente para afeiçoar o espíritodo selvagem às mais simplesconcepções de um estado mentalsuperior ; se não há esforços queconsigam do africano, entregue àsolicitude dos melhores mestres, oaproximar-se sequer do nível inte-lectual médio do indo-europeu -porque todo o homem é antes detudo uma integração de esforçosda raça a que pertence e o seu cére-bro uma herança - como compreen-der-se a normalidade do tipo antro-pológico que aparece, deimproviso, enfeixando tendênciastão opostas ?”26.

Não seria difícil acrescentar maiscitações, mostrando que, paraEuclides da Cunha, o enselvajamen-to do africano aparece como umdado definitivo,pois se verifica quenem sequer os mis-sionários, essesespecialistas daliquidação das reli-giões dos Outros,foram capazes delhes impor a com-preensão dasregras da doutrinacristã, quer dizercatólica. O facto dea relação do mula-to com os seus paisse orientar de ma-neira preferencialpara a fracção sel-vagem, não fazmais do que refor-çar os termos emque pode ser enun-ciada a necessida-de de excluir osmulatos da socie-dade brasileira nor-mal : tendo rejeita-do, devido às leisespecíficas da mes-tiçagem, o pa-rentesco preferen-cial com os

brancos, os mulatos estão conde-nados a manter no corpo e no espí-rito, no presente como no futuro,as regras do enselvajamento. Ouseja : não se pode acreditar nas apa-rências, e não pode haver mulatonão enselvajado.

Não é difícil compreender a pre-ocupação destes teóricos, atentos aosautores que multiplicam as “provas”da inferioridade das raças não bran-cas. Euclides da Cunha fornece umacurta lista : Wilhelm Lund, Morton,Frederico Hartt, Meyer, Trajanode Moura, Nott, Gordon, Broca,Glumpowicz ... Outros há, quecompletam a panóplia dos autores,europeus e americanos, empenha-dos em construir e justificar a pirâ-mide racial, que só podia provar asuperioridade intangível do homembranco. Voltamos a encontrar a per-turbação brasileira perante o mula-to, que não só é portador de 50 %de sangue branco, mas descendede pessoas que conhecemos, comas quais mantemos relações, e queseria difícil remeter bruscamentepara a selvajaria. Todavia, na análi-se de Euclides, o primeiro movi-mento de valorização da selvajaria,reside na escolha das parceiras

Capitão do Mato - gravura

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sexuais, já que o enselvajamentocomeça pelo sexo, antes de setransformar num dos milhões demulatos que desqualificam, na ópti-ca de Euclides da Cunha e dos seusamigos, a própria nação brasileira.

Para denunciar a parte enselva-jada dos mulatos, Euclides daCunha mobiliza a “ciência” queparece mais favorável à análise eao diagnóstico, sabendo-se que asociedade brasileira corre um per-igo bastante mortal, se houver asso-ciação entre mulatos e pretos. Talsituação parece impossível namedida em que os mulatos nãopodem furtar-se ao peso dosvalores do grupo superior que osleva a procurar, por todos os meios,“melhorar a raça”. Se é certo queEuclides da Cunha não recorre aesta expressão, todavia ainda hojecorrente em muitas regiões brasi-leiras, não deixa ele de a ter pre-sente, quando salienta a conflituali-dade entre os mulatos e os pretos,que leva os primeiros a procurarmanter relações apertadas com osbrancos. É esta a conjunção favorá-vel, que deve impedir o completoenselvajamento do Brasil.

Se bem que se registem outraspossibilidades, entre as quais avul-ta a oposição entre a mestiçagemdo litoral e a do sertão : “ao invésda inversão extravagante que seobserva nas cidades do litoral, onde

funções altamente complexas seopõem a orgãos mal constituídos,comprimindo-os e atrofiando-osantes do pleno desenvolvimento -nos sertões a integridade orgânicado mestiço desponta inteiriça erobusta, imune de estranhas mes-clas, capaz de evolver, diferencian-do-se, acomodando-se a novos emais altos destinos, porque é a sóli-da base física do desenvolvimentomoral ulterior”27. O retrato negati-vo está assim completo, permitindoque o leitor possa dar-se conta davastidão da ameaça que pesa sobrea nação brasileira, ameaçada pelasvagas do enselvajamento, a que sóos europeus e os mestiços do sertãopoderão fazer face.

Se Aluísio de Azevedo quiseramostrar de maneira irrefragável, aqualidade natural do mulato, quepodia ser educado de maneira com-pletamente europeia, a ponto depoder ignorar a sua própria origem,nem dela desconfiando, Euclidesda Cunha representa outra correnteque recusa toda e qualquer simpa-tia pelo mulato, cujo sistema ner-voso constitui uma constante amea-ça para o seu equilíbrio e, somadoem milhares e milhares de exem-plares, representa uma ameaçaainda maior para a própria estabili-dade da nação brasileira. As aná-lises de Euclides da Cunha nãodeixam a menor incerteza : ou oBrasil se liberta do peso excessivodo enselvajamento, ou, no caso detal ser impossível, deve considerar-se uma nação em via de perdição.Não se trata de uma mera conside-ração pessimista, mas sim do resul-tado de um diagnóstico, cujo rigordepende das teorias norte-america-nas e europeias banalizadas essen-cialmente pelos psiquiatras e pelosanatomistas, especialistas da cra-neometria criada por Paul Broca.

De resto, Euclides não hesita emrejeitar certas técnicas da análiseantropológica, como as “fantasiaspsico-geométricas”, tal como recu-sa medir o “ângulo facial”, ou tra-çar a “norma verticalis dos jagun-ços”28, mas tal não o impede dedenunciar ou a violência do ensel-vajamento, ou a “fealdade típicados fracos” que caracterizaria o“sertanejo”. Importa pouco, na medi-da em que o mulato não conseguelibertar-se da armadilha da suahistória genética, pondo em perigoa estrutura brasileira. Se em Aloísio

de Azevedo o mulato perturbavavigorosamente as relações entrebrancos e pretos, podendo contu-do alcançar o controlo dos elemen-tos civilizados, tal não é o caso nasanálises propostas por Euclides daCunha. Mas a patologização domulato, não faz mais do que refor-çar a inquietação racial brasileira,que sonha com uma branquizaçãoque, como se poder ler nas entre-linhas de Os Sertões , os brasileirosjamais poderão alcançar de manei-ra completa.

O princípio da metamorfose emMacunaíma

Os especialistas da literaturabrasileira têm tido alguma dificul-dade em classificar o Macunaímade Mário de Andrade, dificuldadeacrescida pela maneira como o pró-prio autor descreve a sua persona-gem, apresentada como sendo “ oherói sem nenhum carácter”, tendocontudo Augusto Meyer encontra-do maneira de descobrir uma formaclassificatória inteiramente adequa-da, ao salientar que este “livro nãocabe em nenhuma classificação”.Não se deve esquecer a genealogiabrasileira e cosmopolita deste livro,que não podemos excluir de umcerto número de preocupaçõespaulistas associadas à necessidadede rever os “mitos” brasileiros, demaneria a que o Brasil dispusesseenfim de uma panóplia de mitosespecificamente brasileiros. Tal pro-jecto já fora iniciado, em S. Paulo,por Monteiro Lobato, que consa-grara um inquérito à figura do saci,que Renato da Silva Queiroz consi-dera com sendo o único mito autên-ticamente brasileiro.

Todavia esta genealogia brasi-leira seria pouco satisfatória, se nãoentroncasse na corrente dos moder-nismos europeus e americanos, queprocuram varrer o sarro dos dife-rentes passados estéticos europeus,graças por um lado a Karl Marx epelo outro a Sigmund Freud : o pri-meiro criara a teoria das classes,propondo a inevitabilidade doafrontamento entre capitalistas etrabalhadores, ao passo que osegundo descobrira os vastos plai-nos do inconsciente, alterando parasempre a própria explicação dosvalores internos do homem. Osautores brasileiros não podiam,

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sobretudo em S. Paulo, furtar-se aestas propostas, pelo que a Semanade Arte Moderna, assim como omovimento antropofágico, nãopodem ocultar o seu feroz anti-por-tuguesismo, claramente visível noManifesto antropofágico de Oswaldde Andrade, nem a sua capacidadede proceder à revisão dos sistemasmíticos brasileiros29.

Não interessa aqui procederuma vez mais ao inventário dos tex-tos antropológicos alemães que ser-viram de suporte à invenção deMário de Andrade : não parece quesemelhante tarefa nos possa escla-recer, a não ser num plano estrita-mente antropológico, que não éaquele que nos preocupa. Seja qualfor a violência da carnavalização,Mário de Andrade não pode furtar-se, nem o deseja, de resto, à neces-sidade de fornecer uma visãoenglobante dos espaços brasileiros.Macunaíma sai da floresta amazó-nica, para proceder a uma opera-ção capaz de definir a gramáticafísica e social do Brasil. Macunaímapossui uma origem particular asso-ciada a características físicas singu-lares : “no fundo do mato-virgem,nasceu Macunaíma, herói de nossagente. Era preto retinto e filho domedo da noite”30.

O mundo brasileiro começa pelarevelação do carácter nocturno daprópria negridão, que precedemuito ligeiramente a erupção doencarnado : “nem bem seis mesespassaram e a Mãe do Mato pariuum filho encarnado, do qual nas-ceu o guaraná”31. Estamos peranteuma lenta revelação das cores doshomens, embora a primazia nãopossa ser recusada a este “pretoretinto”, cujo parentesco com anoite e o seu medo, se mantemvivíssimo. Na escrita de Mário deAndrade este inventário dos carac-teres somáticos sublinha a impor-tância da preocupação brasileiracom o corpo e com as diferençasdos caracteres físicos : se o escritorpaulista mobiliza a selva amazóni-ca, é no sentido em que ela podefornecer a explicação da origem doBrasil e dos brasileiros. Eis, por essarazão, as duas cores fundadoras, opreto retinto e o encarnado.

Macunaíma percorre o Brasil, enas suas andanças assegura a tran-sição do sertão para S. Paulo, acidade inevitável. Mas como che-gar a S. Paulo quando se é preto

retinto ? O peso dos fantasmas deMário de Andrade, não podia consen-tir que o seu herói pudesse chegarno estado de pretidão a uma cida-de como S. Paulo, que só podeaceitar epidermes não apenas bran-cas, mas alvíssimas. Assim se justi-fica a necessidade do princípio dametamorfose, rapidamente aplica-do, quando o herói decide tomarbanho : “mas a água era encantadaporque aquele buraco de lapa eramarca do pèzão do Sumé, dotempo em que andava pregando oEvangelho de Jesus prá indiada bra-sileira. Quando o herói saíu dobanho estava branco louro e deolhos azuizinhos, água lavara o pre-tume dele. E ninguém seria capazmais de indicar nele um filho datribu retinta dos Tapanhumas”32.

Como pôr essa evidência emdúvida ? Mas já sabíamos, pelomenos a partir de Aluísio Azevedo,que a combinatória branco/cabelo,louro/olhos azuis, fornecia o este-reótipo do autêntico branco.Semelhante estereótipo resulta dospróprios portugueses, que sempreconsideraram as peles trigueiras,ou morenas, como amplamenteinferiores às brancas, ao mesmotempo que davam aos olhos claros,azúis, verdes, amarelos, um estatu-to singular, que não deixa de lem-brar algumas reflexões de Aristóteles.Mário de Andrade não podia esca-par à necessidade de introduzir naprópria sociedade brasileira umbranco alvíssimo, cuja genealogia oremetia para a selva amazónica.

Este pretume não é a preturaafricana, mas sim a pretura dosíndios de pele mais escura. Esta

observação é necessária, na medi-da em que se regista a presença dediferentes gamas de pretura, massó a dos índios pode, graças à rela-ção que possui com a própria terraamericana, ser a pretura convenien-te, primeiro por resultar da própriarelação do homem com a terra, emsegundo lugar por se tratar de umpretume que, seja qual for a suaviolência, está destinado a ser sub-stituído pela cor branca. Este bran-queamento não é normal, pois sópode explicar-se pela via singulardo milagre : este, por sua vez, nãopode repetir-se, como explica aprópria escrita de Mário de Andrade.Jiguê, ao dar-se conta da operação,que permitira o branqueamento deMacunaíma, não hesita, se atirando“na marca do pèzão do Sumé”.

Os resultados não são tão exal-tantes como no caso de Macunaíma,por razões que têm a ver com a pri-meira operação de lavagem e liqui-dação do pretume : “porém a águajá estava suja da negrura do heróie por mais que Jiguê esfregassefeito maluco atirando água paratodos os lados só conseguiu ficarda cor do bronze novo”. Situaçãocontristante, que força Macunaímaa intervir, falando pela primeira vezdo seu lugar de branco, pois sentiudó, o que o levou a procurar conso-lar Jiguê : “olha, mano Jiguê; bran-co você ficou não, porém pretumefoi-se e antes fanhoso que semnariz”33.

A operação de lavagem sublin-ha a importância da metamorfose,assim como a sua própria hierar-quização, em função do valor pri-macial que permite definir o lugar

Negros Cangueíros - gravura

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que cabe a cada um. Ao apropriar-se da cor branca, Macunaíma nãopode continuar a ser o herói semcarácter, como Mário de Andradeinsiste em qualificá-lo : o herói bran-co é o único autêntico herói dacidade paulista, e por consequên-cia da própria cultura brasileira. Oscompanheiros de Macunaíma terãode contentar-se com lavagensincompletas : depois de Jiguê, seráa vez de Maanape levar a cabo estaoperação indispensável. Contudo,os resultados serão ainda maisdesalentadores :

“Maanape então é que se foilavar, mas Jiguê esborrifara toda aágua encantada pra fora da cova.Tinha só um bocado lá no fundo, eMaanape conseguiu molhar só apalma dos pés e das mãos. Por issoficou negro bem filho da tribo dosTapanhumas. Só que as palmas dasmãos e dos pés dele são vermelhaspor terem se limpado na águasanta”. Não será difícil encontrarnesta operação a presença de umgrande número de explicações míti-cas das diferenças somáticas, quesão a primazia física e social doshomens de pele clara. Podíamosdizer, com Frantz Fanon, queencontramos neste mecanismo aexplicação da estrutura da aliena-ção, tal como ela continua a fun-cionar nos países onde as diferen-ças somáticas serviram de base ede pretexto para construir as for-mas de dominação.

“Não se avexe, mano Maanape,não se avexe não, mais sofreunosso tio Judas !” Como a relaçãodo texto com as estratificaçõessociais o exigia, quem toma a pala-

vra, quem distribui as frases desti-nadas a tornar suportável o insu-portável é o branco. Macunaíma,graças à maneira como age e apro-veita as condições naturais, consegueservir-se da metamorfose paraadquirir a estrutura somática quelhe permite ser superior. É por issoa ele que cabe a tarefa delicada dedizer aos outros, que não puderamalcançar o resultado esperado dametamorfose, que devem aceitar asua nova condição. No fundo, trata-se de uma maneira muito literáriade ensinar os inferiores a saberestar no seu lugar, como sempreexigiu a sociedade brasileira.

Como é que o mano, que come-ça a sê-lo menos, a partir do mo-mento em que a sua metamorfosedá um resultado menos sedutor,poderá não se avexar ? É contudoesse o resultado que Macunaímaquer suscitar, tanto mais que a com-plementaridade dos três manosparece realmente adquirida : “Eestava lindíssimo no Sol da Lapa,os três manos um louro um vermel-ho outro negro, de pé erguidos enus”34. Situação singular, que reve-la os resultados da grande opera-ção consentida pela água conserva-da na marca do pèzão do Sumé,sem permitir a menor dúvida noque se refere à violência das modi-ficações somáticas entretanto ope-radas. Como se as epidermes brasi-leiras não pudessem ser senão umacriação dos próprios brasileiros,decididos a lutar contre o excessode pretume. Como, de resto, jásabemos.

Poderá haver alguma dúvidaquanto à intenção geral deste texto ?

E não será o seu herói Macunaíma,não o herói sem nenhum carácter,mas sim o herói que permite super-ar a violência do sertão e da flores-ta, condição indispensável para queo “branco” seja possível ? O textode Mário de Andrade está por issocentrado, como os dois autores quejá considerámos, no problema dasdiferenças somáticas do Brasil, quederivam de uma espécie de milagre,que legitima a própria substânciada hierarquia. O milagre brasileiroreside por isso na capacidade decriação das formas físicas que for-necem a trama somática do própriopaís, sem jamais esquecer de consi-derar o laço natural entre cada umdos grupos e a própria natureza :Mário de Andrade dessocializa adiferença, transferindo-a por umlado para o domínio do milagre,tornando-a por isso natural e mira-culosa. A referência a Judas adqui-re nesse contexto uma amplitudesingular, por ser ele a vera imagemdo traidor : não será Macunaímaaquele que trai o sonho brasileiroda igualdade, reforçando tão pro-fundamente a importância da pelebranca ?

Poderíamos acompanhar as mui-tas peripécias do romance, masparece-nos possível renunciar aessa tarefa sublinhando o pontocrucial do texto : o aparecimentodo mundo brasileiro, que deverecrutar na vasta floresta amazóni-ca os seus alimentos míticos, assimcomo os corpos dos homens encar-regados de inventar e de manter oBrasil. A força principal reside porisso na cohabitação de formas apa-rentemente incongruentes, se bemque o tecido principal esteja con-centrado nas criações dos homens: as materiais, das quais as cidadessão o elemento principal, e entreelas a mais reveladora continuarásempre a ser S. Paulo, assim comoas psíquicas : as diferenças somáti-cas devem ser entendidas numaespécie de quadro fisiognomónico,que permite que cada um, vendo-se, possa conhecer o seu lugar, eque vendo os outros, possa darconta da maneira como a socieda-de se hierarquizou.

Não será conveniente reter opróprio mecanismo que Mário deAndrade analisa, e que lhe servepara explicar a famosa operação dalavagem do pretume ? Parece quenão podemos escapar a essa situa-

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Guaranis civilizados - gravura

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ção : pois não há inicialmente trêsirmãos originários do mesmo mato,que se vão diferenciar devido aoritmo com que cada um deles reageà identificação da marca do pèzãodo Sumé ? Ou seja, não sendo a corda pele o resultado de uma opera-ção “natural”, devemos considerá-la como traduzindo as pulsõesinternas de cada um. O branco éde facto irmão do preto, mas estenão dispoe das qualidades físicasdo primeiro, o que quer dizer, naorganização de Mário de Andrade,que também não terá as suas quali-dades. Nem o seu poder.

É por isso que o tema geral dametamorfose, sem o qual não seriapossível explicar nem os lugares,nem as funções de cada um, o queseria mais grave do que o caos,constitui a grande descoberta dosurbanos. Só aqueles que rompemcom o mato, podem ser capazes delevar a cabo a operação fundamen-tal que os fará outros, assegurandoao mesmo tempo a transformaçãogeral do Brasil. A intervenção deMacunaíma procura essencialmenteimpedir o ressentimento, que haviade criar formas violentas de confli-tualidade e de ruptura. Tudo seorganiza em função da exaltaçãodo estereótipo, importado dos por-tugueses, ou antes dos europeusem geral, que faz da tríade somáti-ca (branco, louro, azul), o suporteda própria civilazação : o esforçode Macunaíma arranca-o ao pretu-me amazónico, para o sagrar coma brancura urbana.

Assim o homem brasileiro poderáafirmar a sua identidade, semcontudo repelir os seus manos, ape-nas reduzidos às suas condições dehomens de cor, que não consegui-ram dispor da água milagrosa quelhes teria permitido ser tão brancoscomo Macunaíma : os quarentamacacos do Brasil podem espiar emorrer de inveja, só desta maneirase pode compreender que a boametamorfose é aquela que assegu-ra ou reforça o branqueamento.

O reforço da metamorfose dolado dos africanos

Para completar esta curtaincursão num domínio que tantopreocupa a sociedade brasileira,escolhi mais um romance que seinstala nas dobras africanas de S.

Luís do Maranhão, região tão vio-lentamente ocupada pelos portu-gueses. Josué Montello conta, noprefácio, a espécie de pressenti-mento que o abalou entrando numadas salas da recente Universidadedo Maranhão, onde ocupou o cargo,merecido, de Magnífico Reitor : foranessa sala que, no século XIX, D.Ana Rosa Ribeiro matara algunsmoleques ao seu serviço. Esta ope-ração reforçou o que não podedeixar de ser o sentimeto de quan-tos se instalam numa cidade comoS. Luís : a dureza das hierarquiasraciais não pode ser dissimulada,como em geral se verifica no Brasil,sob a capa demasiado pobre da hie-rarquia social.

O projecto de Josué Montellopertence à modernidade americanae talvez até africana ou antilhesa :restabelecer as genealogias, demaneira a permitir que os afro-ame-ricanos possam recuperar as rela-ções com o continente africano.Esta operação pertence, mesmo sealgo indirectamente, ao vasto campodo parentesco e dos espíritos :sabendo nós que os espíritos dosafricanos mortos não desaparecem,nem se dissolvem na natureza,mantém-se eles presentes no espa-ço e nas relações com os vivos :qualquer cerimónia de posse numdos terreiros africanos do Brasil,permite a evocação, a identifica-ção, a recuperação e o diálogo comos espíritos. Ora não há espíritossem parentesco, pelo que a genea-logia é um dos elementos maismobilizadores da tradição africana.

Nem todos os brasileiros, mesmoos pais de santo, mesmo as mães

de santo, podem levar a cabo aoperação que permitiu que o bahia-no Deoscoredes Santos pudesseidentificar a família que seu avôdeixara no Daomé, quando entra-ra, como escravo, no porão de umnavio negreiro, que o desembarca-ra num dos portos da costa brasi-leira. O que não impede que mil-hares, ou talvez até milhões debrasileiros, possam sonhar comessa recuperação do parentesco. Acontra-partida reside naqueles quedesejam sobretudo ocultar as suasorigens africanas, a isso levadospela pressão social que consideraas marcas negras como enselvaja-doras.

Josué Montello assenta por issoo seu projecto na análise das condi-ções em que alguns escravos pude-ram organizar a sua existência,como escravos, primeiro, depoiscomo homens e mulheres livres. Acidade e o campo de S. Luís doMaranhão prestam-se admirável-mente a essa tarefa, tão violenta foia relação existente entre senhorese escravos, quer na cidade, querno campo. Do nosso ponto de vista,apenas nos interessam os capítulosonde a questão da mestiçagem, edo branqueamento, ou do seu in-verso, a negrificação, podem inter-vir e decidir as escolhas dos dife-rentes grupos, representados porpersonagens típicas.

Cedo o romance enuncia apressão exercida sobre as pessoaspela violência da escravatura : ajovem filha do Dr. Lustosa decidelançar um olhar apaixonado para ojovem escravo Damião, filho deJulião que, para não ser torturado

Habitantes de Minas - gravura

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pelo patrão, preferira, após ter sidocapturado no quilombo que cons-truíra, lançar-se ao rio para ser des-pedaçado pelas piranhas. A filhado Dr. Lustosa resolve o complexode Electra adoptando comporta-mentos que não podem deixar deser sentidos como uma agressão,denunciando as relações sexuaiscom o escravo Damião - que nãopassam de uma ficção -, do queteria resultado uma gravidez :

“Eu agora sou mãe, pai. Meufilho não vai ser branco, nem preto.Vai ser moreninho. Bem morenin-ho. (..) Sei, pai. Damião me disseque nosso filho vai ser parecidocom ele. Mas menos escurinho. Eudisse que se fosse escurinho, nãofazia mal”35.

Josué Montello banaliza o recur-so de um termo que, no mundo delíngua portuguesa, serviu, comocontinua a servir, para atenuar assituações de mulatismo : o more-no, o moreninho, com a sua varian-te feminina, reduz - ou procurareduzir - a importância da ligaçãocom o africano, com o preto. Écerto que, neste caso, a relaçãopai/filha revela a sua violência, namedida em que a sexualidadereprodutora das filhas coloca ospais brancos perante situações cujaviolência só pode ser resolvida pelamorte dos dois intervenientes, masainda mais pela morte do homem.É de resto o que decide o Dr.Lustosa, que quer castrar o escravoDamião, o que não consegue, ful-minado por um ataque cardio-vas-cular que o faz cair morto aos pésdo escravo em via de ser supliciado.

Damião casara com a filha do

padre Tracajá, que o pai reconhe-cera, embora tivesse posto termo àligação com a mãe da rapariga. Alonga lista da descendência deDamião modifica os caracteressomáticos destes jovens brasileiros,permitindo que os avós pretos pos-sam contar com netos, bisnetos eaté trinetos cada vez mais claros,provocando sempre a surpresa dosbrancos perante estas situações denítido escândalo genealógico36.Benigna, que apresenta o trineto aDamião, esclarece os elementosfísicos que caracterizam a criança :“tem tua cara, meu filho. Até o narizchato é teu. Olha a testa. Tambémé tua. E esse beicinho espichado.Tudo teu. É mais para branco doque para preto : moreninho comoum bom brasileiro”37.

A frase central é realmente a queassocia uma determinada estruturasomática à nacionalidade brasileira.O brasileiro não é o que recusa oua brancura ou a pretura, mas simaquele graças ao qual se processaa síntese que supera a própriacondição do mulato. Daí a impor-tância desta constatação, que recu-sa a violência provinda da hege-monia de uma única cor, e maisparticularmente do branco. O queJosué Montello injecta no campoliterário, com abertura para umateoria explicativa das condições físi-cas que caracterizam os brasileiros,é certamente a necessidade de res-tringir a violência da hegemonia dobranco. Tudo se passa como se amaioria demográfica do Brasil,representada pelo pretos e seusdescendentes, decidisse não elimi-nar os pais e avós brancos, mas sim

dissolvê-los nestes novos corposmoreninhos , os únicos veros bra-sileiros.

De resto Josué Montello não sesatisfaz com esta correcção intro-duzida no sistema explicativo dagénese e da forma dos brasileiros,pois mobiliza outra explicação, quese opõe frontalmente às opçõesluso-tropicalistas. No romance,intervem desde as primeiras pági-nas uma personagem singular, oBarão Atino Celestino do Anjos,barão por “obra e graça do semprelembrado Dom Cosme Bento dasChagas, Imperador, Tutor eDefensor das Liberdades Bem-te-vis, injustamente enforcado peloGoverno de São Luís”38. Ora oBarão tinha elaborado uma teoriapara explicar a evolução da repro-dução dos brasileiros, do ponto devista de um reprodutor preto :

“... e não podia deixar de lem-brar-se do Barão, com a sua famo-sa teoria que só na cama, com orolar do tempo, se resolveria oconflito natural de brancos enegros, no Brasil. Tinha ali maisuma vez a prova, na sua própriafamília. Sua neta mais velha casadacom um mulato; sua bisneta, comum branco, e ali estava seu trineto,moreninho claro, bem brasileiro.Apagara-se nele, é certo, a cornegra, de que ele, seu trisavô, tantose orgulhava. Mas também se vieradiluindo, de uma geração paraoutra, o ressentimento do cativeiro.Daí a mais algum tempo, ninguémlembraria, com um travo de rancor,que, em sua pátria, durante trêsséculos, tinham existido senhores eescravos, brancos e pretos”39.

Esta situação pessoal, que faziade Damião o patriarca de uma famí-lia com numerosas ramificações,onde se passava pouco a pouco domais escuro ao mais claro, permiteque, por meio da reflexão confiadaa Damião, intervenha o teóricoJosué Montello : trata-se, atravésdestas operações genésicas, de“apagar a cor negra”. A cor maisvigorosa é a do branco e, sem levaressa situação em linha de conta,Josué Montello repete a lição selec-tiva de Euclides da Cunha, o qualrecuperava o “belo axioma” deGlumpowicz : “todo o elementoétnico forte tende a subordinar aoseu destino o elemento mais fracoante o qual se acha”40. Esta situa-ção sublinha a lógica interna das

Sertanejo em viagem no Piauhy - gravura

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obcessões brasileiras, que procu-ram aumentar a dose de bran-quidão, mesmo aceitando que sub-sista uma fracção de “cor negra”.

A explicação desta situação édada pelo Barão : “eu tenho ummodo muito meu de combater aescravidão. Sempre que posso,papo uma branca, mesmo feia, edeixo um filho na barriga dela. Atéuma afilhada de Donana Jansen eupapei. Por este mundo de meuDeus, devo ter feito, com a forçado meu birro, mais de duzentosmulatos e mulatas, que andam poraí. Esses mulatos e essas mulatasse cruzaram com brancos e bran-cas, e os mestiços que daí nasce-ram são quase brancos como osbrancos de olho azul. Já tenhonetos de pele clara, que dá gostoolhar. Muitos deles nem sabem queeu existo. Mas eu sei que, na ori-gem deles, está a piroca deste pretona babaca de uma branca. Com otempo, é isto que vai acontecer noBrasil : os brancos comem as negras,os negros comem as brancas, e osfilhos destas benditas crepadas irãodesbotando de uma geração paraoutra. Em menos tempo do que sepensa, está saindo um tipo novo,bem brasileiro, que não é maispreto, nem também é branco, e quevai mandar aqui, como hoje man-dam os senhores. E como o preto,todas as vezes que se mistura como branco, se esconde na pele dessebranco, nossos mestiços vão pen-sar que são brancos, e com maisesta novidade : sem ter ódio dosnegros, e até gostando deles. Umbelo dia, vai-se ver, não há maisbranco para mandar em preto, nempreto para ser mandado, e aí aca-bou o cativeiro”41.

A personagem de Josué Montellopodia, na aparência, ser remetidapara o campo teórico de GilbertoFreyre. De facto, e se não quiser-mos interrogar mais profundamen-te o texto, encontramos a explica-ção de Gilberto Freyre, queFlorestan Fernandes não hesita emdesignar como sendo “chulesca”,pois a solução social só podia virda “pica”42. Na verdade a “pica”continua a ser um dos agentes prin-cipais, mas regista-se uma alteraçãodas regras de Freyre : não são osbrancos que se apropriam das mul-heres de cor, mas sim os pretos queengravidam as brancas ! Encon-tramos até, na prosa de Josué

Montello, uma explosão deDamião, rebelando-se contra osapetites sexuais dos brancos : “quetinha a ver quele branco pelintracom a Benigna ? Cuidasse de suasbrancas ! A preta tinha de ser dospretos !”43. Mas trata-se de um desa-bafo circunstancial, que não alteraa maneira pacífica como Damiãoege no sentido de participar na pro-dução dos “moreninhos” brasilei-ros.

A demorada intervenção doBarão deixa entrever demasiada-mente a mão teórica de JosuéMontello, que não exalta jamais acor preta, mas a condena a desbo-tar. A transformação do Brasil sópoderá ser levada a efeito se a vio-lência do pretume for sendo redu-ziza “de uma geração para outra”.Mas, e aqui aparece nova alteraçãodas regras de Gilberto Freyre, nãose trata de maneira alguma de asse-gurar a generalização da produçãode mulatos, mas sim de conseguira dissolução do preto, de tal modoque esta cor seja invisível : sempreque o preto se mistura com o bran-co, “se esconde na pele desse bran-co”, levando os mestiços a pensarque são brancos. Trata-se por issode somar as duas operações : agenésica, física, somada à psicoló-gica, que ilude os mestiços, levan-do-os a acreditar serem inteiramen-te brancos. Nessas condições, ateoria de Josué Montello mostra-sealgo errática, embora, substancial-mente, se trate de criar as condi-ções que permitam a redução dopretume, e a generalização da iden-tidade branca.

Por essa razão, não podemos

considerar este romance comodefendendo de maneira aberta umateoria anti-Gilberto Freyre, na medi-da em que ambos os autores orga-nizam a sua demonstração consi-derando as relações sexuais ereprodutivas dos brancos e dos pre-tos. Mas, como acontece com amaioria dos autores brasileiros,Freyre faz depender a miscegena-ção da intervenção activa dos bran-cos, que dispõem de um acessofacilitado às mulheres de cor, amaioria das quais seria formada porescravas ou por outras depen-dentes. A mulatização seria assimnão só o resultado da relação entreos homens da casa grande e as mul-heres da sanzala, pois traduziriatambém, de maneira impiedosa, aviolência das relações de domina-ção. A branquização é de resto oresultado que sempre se espera : ofilho de Ana Rosa e de Raymundonão podia deixar de ser mais claroque o pai, já suficientemente claro,para poder ser confundido dom osbrancos. O romance de Aluísio deAzevedo não podia deixar de apos-tar na branquização. E se Euclidesda Cunha denuncia o carácter his-térico dos mulatos, deixa contudoentender - como o fará mais tardeOliveira Vianna - a possibilidadede “arianização de alguns dos“mulatos superiores”44. Enfim,Mário de Andrade recusa a menorambiguidade, pois que a água domilagre limpa o pretume deMacunaíma.

É certo que Oliveira Vianna, quenão cabe inteiramente no quadroque definimos por se não tratar deum autor a ficção, permite a intro-

Soldados indios combatendo os Botocudos - gravura

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dução de uma nova situação, queconsiste na possibilidade de ariani-zação dos “mulatos superiores”.Recorro todavia a esta escrita teóri-co-ideológica, por me parecer defi-nir ela muito bem a pulsão subja-cente a este esforço de metamorfose,capaz de transformar os pretos ouem brancos, ou então, em mulatosque teriam absorvido os valoresdos brancos, arianizando-se. Estaoperação permitiria de resto divi-dir os mulatos em dois grupos,sendo o primeiro capaz de se aria-nizar, operação que se revelariaimpossível para outro grupo. Masa soma dos textos e das propostasteóricas, explícitas ou implícitas,não deixa a menor dúvida : o Brasilsofre violentamente perante a exis-tência de uma maioria não branca,pelo que espera sempre que omilagre arraste os pretos paralugares onde uma água milagrosapermita lavar o pretume para darorigem a brasileiros cada vez maisbrancos, cada vez mais loiros, cadavez com olhos azuis mais claros !

1 V. a esse propósito, Charles Mauron,Des métaphores obsédantes au mythepersonnel , Paris, José Corti, 1970.

2 V., por exemplo, MichèleGuicharmaud-Tollis, L’émergence duNoir dans le romain cubain du XIXe

siècle , Paris, L’Harmattan, 1991.3 Euclides da Cunha, Os Sertões (1902),

Porto, Lello, 1983, p. 115-117, capí-tulo consagrado à “Génese do mula-to”.

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4 Alfredo Margarido, “As mulheresOutras nas ilhas atlânticas e na costaocidental africana nos séculos XV aXVII”, in O rosto feminino daexpansão portuguesa, Actas I ,Lisboa, Comissão para a igualdade eos direitos das mulheres, 1995, p.357-374; assim como Isabel CastroHenriques, “Ser escravo em S. Toméno século XVI”, Revista Internacionalde Estudos Africanos , n°s 6-7, 1987,p. 167-178.

5 Id., ibid. Trata-se de uma promoçãosocial importante, fazendo destasmulheres os agentes específicos daalimentação da cidade, cabendo-lhestambém à fixação dos preços.

6 V. Manuel Rodrigues Lapa, Cantigasd’escarnho e de mal dizer dos can-cioneiros medievais galego-portu-gueses , Porto, Editorial Galaxia,Coimbra, 1965.

7 André João Antonil, Cultura e opu-lência do Brasil , (1711), Lisboa, Alfa,1989.

8 Se bem que Os Sertões apreçam naliteratura brasileira mais ligados aCanudos e a António Conselheiro,deve sobretudo considerar-se amaneira como o texto se empenhaem remeter os africanos, e mais par-ticularmente os mulatos, para asmãos dos psiquiatras.

9 A lei de 1831 proibiu que os africa-nos importados a partir desta datapudessem ser considerados escravos :a lei ficou todavia sem aplicação prá-tica, tal como ficou também a de1871 que decretou que os filhos dosescravos nasciam livres ! Este factosublinha a extrema coerência do teci-do capitalista e burocrático doImpério.

10 Aluísio de Azevedo, O Mulato (1881),Rio de Janeiro, Paris, Livraria Garnier,s. d. (5.a edição). A maranhenseMaria Barbosa lembra-se do marido,“um português fino, de olhos azuis,e cabelos louros” (p. 15).

11 João Penha, Ecos do passado , Porto,

Companhia Portuguesa, Lda., 1914.12 Aluísio de Azevedo, o. c., p. 106.13 Id., ibid., p. 136.14 Id., ibid., p. 240.15 Id., ibid., p. 244.16 Id., ibid., p. 289.17 Id., ibid., p. 355.18 Euclides da Cunha, o. c., p. 90.19 V. nota 3.20 Id., ibid., p. 87.21 Id., ibid., p. 135.22 Id., ibid. 23 Id., ibid. 24 Id., ibid. 25 Id., ibid. 26 Id., ibid. 27 Id., ibid., p. 140.28 Id., ibid.29 Tanto o Manifesto antropofágico

como Macunaíma apareceram em S.Paulo em 1928, posteriores por issoao inquérito de Monteiro Lobatoconsagrado ao saci, assim como àSemana de arte moderna de 1922.

30 Macunaíma, o herói sem nenhumacarácter, Belo Horizonte-Rio deJaneiro, Villa Rica, 1997 (30.a edi-ção), p. 9.Assinale-se um facto singular e peno-so; mau grado estas trinta edições,não há nenhum exemplar naBilioteca Nacional de Lisboa ! Numperíodo em que tanto se batucam alusofonia e o espaço lusófono, eisque um dos grandes textos brasilei-ros não conseguiu, nestes últimossetenta anos, chamar a atenção dosbibliotecários portugueses !

31 Id., ibid., p. 21.32Id., p. 28.33 Id., p. 29. 34 Id., ibid.35 Os Tambores de S. Luís , Rio de

Janeiro, José Olympio, 1975, 2.a edi-ção, 1976, p. 97.

36 A surpresa já existia no século XIX,como prova o caso de Raymundo. Ochoque provem do facto de a estru-tura negra se impor, mau grado a corbranca ou brancoide da criança.

37 O exercício é conhecido “quem saiaos seus não degenera”. Todavia sub-linha-se o paradoxo : parecida como trisavô preto, a criança pende parao branco : p. 479.

38 O. c., p. 12.39 Id., p. 479.40 Euclides da Cunha, o. c., p. 139.41 Josué Montello, o. c., p. 336.42 Florestan Fernandes, Significado do

protesto negro, S. Paulo, CortezEditora, Editora Autores Associados,1989, p. 89.

43 Josué Montello, o. c., p. 349.44 A noção de “arianização”, que por si

só revela a fidelidade ao vocabuláriodo racismo europeu, liga OliveiraVianna a Gobineau e a Vacher deLapouge. V. Oliveira Vianna, Popu-lações meridionais do Brasil (1° volu-me), Niterói, Universidade FederalFluminense, 1987, (1.a edição, 1920,7.a edição), p. 101.

Sinal de retirada - gravura

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Résumé en françaisde l’article d’A. Margarido

sur le statut du mulâtredans la littérature brésilienne

D’emblée l’auteur de cet articlese demande si les créateurs et lesauteurs brésiliens ne sont pasatteints de névrose obsessionnellelorsqu’ils abordent le thème de l’es-clavage et de son abolition ou biencelui, qu’il évoque plus précisé-ment ici, du statut du Mulâtre dansla société brésilienne. Pour ré-pondre à cette interrogation,Alfredo Margarido nous proposequatre exemples à travers la littéra-ture brésilienne, entre 1881 et 1976.Au préalable, il souligne l’influencedes thèses banalisées par PaulBroca, anthropologiste français,relayé au Brésil par Nina Rodrigues.Ces thèses, concernant les carac-tères psychiatriques des Noirs etsurtout des Mulâtres, furent transfé-rées du domaine scientifique versla création littéraire, Os Sertões, deEuclides da Cunha, étant l’exemplele plus flagrant.

Mais, respectant la chronologiede leur parution, le premier ouvra-ge analysé par A. Margarido est OMulato, de Aluísio de Azevedo,paru en 1881, avant même la fin del’esclavage au Brésil. Tout le dramequi surgit dans ce roman vient dufait que Ana Rosa, issue d’unebonne famille blanche, va épouserle jeune Raymundo. En effet, enrentrant de Coimbra, où il vient dese former en droit, il apprend qu’ilest le fils naturel d’une esclave etque malgré sa peau claire et sonéducation à l’européenne , son sta-tut somatique est celui d’unMulâtre. Et cela perturbe la sociétéblanche brésilienne. Alors, AnaRosa doit avorter et Raymundo estéliminé physiquement, pour avoircommis ce péché d’orgueil : secomporter comme un Blanc. Aluísiode Azevedo dénonce donc la bru-talité de ces relations raciales quiempêchent la formation d’une com-munauté brésilienne homogène.

Dans le deuxième exempleabordé, Os Sertões (1902), AlfredoMargarido nous montre que sonauteur, Euclides da Cunha, n’hésitepas à recourir au vocabulaire de lapsychiatrie pour condamner lesMulâtres (“le métissage des diversesraces est, dans la plupart des cas,néfaste”, “le métissage extrême estune régression”). Dans sa Campanha

de Canudos, (sous-titre de OsSertões), E. da Cunha considère queles Mulâtres sont les responsablesd’un certain déséquilibre de lanation brésilienne. Sa principaleobsession est de mettre en éviden-ce le caractère irrationnel, ou toutsimplement sauvage du Métis.

Les coupables de cette situation,selon lui, sont les Portugais, lesinventeurs du métissage dans leurpropre Métropole. Ainsi, nous ex-plique A. Margarido, nous compre-nons mieux le sens du discoursd’Euclides da Cunha, par rapport àcelui d’Aluísio de Azevedo : celui-ci montre qu’il n’y a rien que leMulâtre ne puisse apprendre si onlui offre les mêmes conditions quisont habituellement réservées auxBlancs ; alors que E. da Cunha partdu principe exactement inverse :quelles que soient les conditions, leMulâtre ne pourra pas échapper à laviolence des “lois biologiques”.D’oùsa conclusion inévitable : le Mulâtrecherche à devenir Blanc et cela meten danger la société brésilienne.

Ensuite, Alfredo Margarido tented’aborder le même thème obses-sionnel du “blanchiment” de l’hom-me brésilien à travers l’inclassableMacunaíma, de Mário de Andrade,publié pour la première fois en1928, six ans après la Semaine d’ArtModerne de São Paulo. Selon A.Margarido, l’opération de purifica-tion par l’eau que subissent les per-sonnages de Macunaíma soulignel’importance de la métamorphoseet de leur hiérarchisation dans lasociété brésilienne naissante. Ens’attribuant la couleur blancheMacunaíma ne peut plus continuerà être “le héros sans aucun carac-tère” ; il devient le héros blanc etle seul héros de la ville de SãoPaulo, et par conséquent de la cul-ture brésilienne. Ses compagnonsdevront se contenter d’un “ lavage“ incomplet. Ainsi, il n’est pas diffi-cile, observe A. Margarido, de trou-ver dans cette opération la présen-ce d’un grand nombre d’explicationsmythiques des différences soma-tiques, qui sont la supériorité phy-sique et sociale des hommes à lapeau claire. L’auteur de l’article vaplus loin : Macunaíma n’est-il pascelui qui trahit le rêve brésiliend’égalité, en donnant tant d’impor-tance à la peau blanche ? Tout s’or-ganise en fonction de l’exaltationdu stéréotype et la métamorphose

est pleinement justifiée car elle pri-vilégie le “blanchiment” de l’hom-me brésilien. Pour les autres, les“hommes de couleur”, il reste uneexplication plausible : ils ne serontpas rejetés mais ils devront secontenter de leur condition “d’hom-me de couleur” car ils n’ont pas pubénéficier de l’eau miraculeuse etpurificatrice qui leur aurait permisd’être aussi blancs que Macunaíma.

Enfin, pour conclure son analy-se, A. Margarido choisit encore unroman dont les acteurs/héros sontles Noirs (les “afro-américains”) deSão Luís do Maranhão, région “vio-lemment occupée par les Portugais“.Il s’agit du livre de Josué Montello,Os Tambores de São Luís (1975).Son projet (inscrit dans la moderni-té américaine) est de rétablir lesgénéalogies et de permettre auxAfro-américains de retrouver leursrelations avec le continent africain.Mais il existe une contrepartie dueà la pression sociale et aux préju-gés : beaucoup de Noirs souhaitentsurtout occulter leurs origines afri-caines. Par ailleurs, afin d’atténuerla condition de Mulâtre, JosuéMontello banalise le terme “more-no” (métis à la peau claire), ou sonféminin “morena”, qui sert à rédui-re l’importance de ce lien avecl’Africain, avec le Noir. La théoriede Josué Montello se manifesteaussi par la bouche d’un personna-ge singulier de son roman, le BaronAtino Celestino dos Anjos , se fai-sant le porte-parole des Noirs : “cen’est qu’au lit, et avec le temps, quel’on pourra résoudre le conflit natu-rel des Blanc et des Noirs au Brésil”et, plus loin “…comme le Noir, àchaque fois qu’il se mélange avec leBlanc, il se cache dans la peau dece Blanc, nos Métis vont se croireBlancs, et avec ceci en plus : ils nehaïront pas les Noirs, ils les aime-ront même. Un beau jour, on verra,il n’y aura plus de Blancs pourcommander les Noirs, ni de Noirspour être commandés, et l’esclava-ge n’existera plus”. Mais, pourAlfredo Margarido, aucun douten’est possible : le Brésil souffre pro-fondément face à l’existence d’unemajorité non blanche, et il attendtoujours cette eau miraculeuse quilaverait la noirceur du Noir pourenfin donner naissance à desBrésiliens de plus en plus blancs,de plus en plus blonds, aux yeuxde plus en plus bleu clair !