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3 n° 9 - septembre 2000 LATITUDES ESTUDOS/ÉTUDES Descobrimento do Brasil A Armada de 1500 e as Singularidades de Arribada na Escala do Atlântico Sul Fernando Lourenço Fernandes 1. Introdução: Cabral desvia o rumo da esquadra Como é sabido, amofinada por um chuvaceiro e ventos de sudeste, a frota de Pedro Álvares Cabral, depois de avistar o Monte Pascoal e rumar para a costa brasileira, diri- giu-se para o norte em busca de um ponto abrigado. De como isto foi feito, os estudos de Jaime Cortesão (Cabral e as Origens do Brasil, 1944) e Max Justo Guedes ( O Descobrimento do Brasil, 1989, reedição) dão conta e se completam destacando o segun- do, magistralmente, o roteiro da sin- gradura até a frota lançar ferros na proximidade da Coroa Vermelha. Compulsando as plotagens nos mapas de Max Guedes e a aproxi- mação de quem vem numa rota batida para a Índia, conduzindo uma frota de comércio pejada de riquezas para serem cambiadas no destino por especiarias, conhecen- do o regime de monções existentes no Índico e as arduras que lhe espe- ravam num longo trajeto ainda a ser vencido - sem contar as pesadas res- ponsabilidades diante do rei e de seus comandados na frota - revela- se estranho tenha Cabral guinado a 120 milhas da costa em demanda de terra, quando não minguasse, no dizer de Pero Vaz Caminha em sua carta a el-Rei de Portugal, D. Manuel I, suprimentos de água e lenha necessários a longa travessia do Atlântico Sul. Mais ainda estranho, quando as conhecidas instruções de Vasco da Gama, implicavam dever a esqua- dra, ao alcançar as ilhas de Santiago ou de S. Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde, dispor de uma autonomia (suprimentos de bordo) de quatro meses para atingir a agua- da de S. Brás (Mossel Bay), 200 mil- has náuticas acima do Cabo da Boa Esperança. Justificar-se-ia um des- vio de rota nestas condições? A linha de arribada, de seu turno, forma um ângulo infletido com o da singradura, quase inver- tendo o rumo. A frota desvia o curso para o norte, na procura de abrigo contra os ventos de sudeste. Podia fazê-lo , também, descendo a costa, pois o vento soprando “francamen- te de leste” permitiria à esquadra Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro Óleo de Oscar Pereira da Silva (1867-1939)

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DE

SDescobrimento do BrasilA Armada de 1500 e as Singularidades de Arribada na Escala do Atlântico Sul

Fernando Lourenço Fernandes

1. Introdução: Cabral desviao rumo da esquadra

Como é sabido, amofinada porum chuvaceiro e ventos de sudeste,a frota de Pedro Álvares Cabral,depois de avistar o Monte Pascoal erumar para a costa brasileira, diri-giu-se para o norte em busca de umponto abrigado. De como isto foifeito, os estudos de Jaime Cortesão(Cabral e as Origens do Brasil, 1944)e Max Justo Guedes ( O Descobrimentodo Brasil, 1989, reedição) dão contae se completam destacando o segun-do, magistralmente, o roteiro da sin-gradura até a frota lançar ferros naproximidade da Coroa Vermelha.

Compulsando as plotagens nosmapas de Max Guedes e a aproxi-mação de quem vem numa rotabatida para a Índia, conduzindouma frota de comércio pejada deriquezas para serem cambiadas nodestino por especiarias, conhecen-do o regime de monções existentesno Índico e as arduras que lhe espe-ravam num longo trajeto ainda a servencido - sem contar as pesadas res-ponsabilidades diante do rei e de

seus comandados na frota - revela-se estranho tenha Cabral guinado a120 milhas da costa em demandade terra, quando não minguasse,no dizer de Pero Vaz Caminha emsua carta a el-Rei de Portugal, D.Manuel I, suprimentos de água elenha necessários a longa travessiado Atlântico Sul.

Mais ainda estranho, quando asconhecidas instruções de Vasco daGama, implicavam dever a esqua-dra, ao alcançar as ilhas de Santiagoou de S. Nicolau, no arquipélagode Cabo Verde, dispor de umaautonomia (suprimentos de bordo)de quatro meses para atingir a agua-da de S. Brás (Mossel Bay), 200 mil-has náuticas acima do Cabo da BoaEsperança. Justificar-se-ia um des-vio de rota nestas condições?

A linha de arribada, de seuturno, forma um ângulo infletidocom o da singradura, quase inver-tendo o rumo. A frota desvia o cursopara o norte, na procura de abrigocontra os ventos de sudeste. Podiafazê-lo , também, descendo a costa,pois o vento soprando “francamen-te de leste” permitiria à esquadra

Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto SeguroÓleo de Oscar Pereira da Silva (1867-1939)

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navegar em qualquer das duas dire-ções, conforme lhe conviesse.

Os esquifes e batéis (embarca-ções auxiliares levadas a bordo)seguem nessa busca, a reboque,amarrados às popas das embarca-ções que vão abrindo caminho,atentas, em mar toldado por agua-ceiros “num dos mais perigosos tre-chos da costa do Brasil” como acen-tuou Max Guedes. Não escolhem orumo sul - natural desdobramentode quem segue nessa direção - e selivram, oportunamente, no momen-to e pontos certos, de perigosíssi-mos obstáculos, a começar pelosrecifes Itacolomis.

Superando um sem-número dearmadilhas plantadas naquela costapela natureza, na forma de baixios,parceis, recifes, obstáculos coralí-neos e outras tantas formações sub-mersas, as caravelas acham final-mente o boqueirão da baía Cabrália,deitando ferros na angra protegidapela Coroa Vermelha. O restante daflotilha ancora um pouco mais aolargo, em águas calmas de onze bra-

ças. No dia seguinte, metem-setodas as embarcações para dentro.

Não poderia Cabral ter encon-trado lugar melhor. Era o local certopara aportar com segurança e tran-qüilidade.

Realmente, não havia outro comas características de adequação:ancoradouro protegido, mesmo comventos de sudeste, mar semprecalmo e murmurante na linha daareia. Na verdade, um remansosobalneário para refresco demareantes onde, de quebra, desem-boca - manso e cristalino - um ria-cho esplendoroso de águas frescas:o Mutari.

O exame, de seu turno, da rotana costa baiana, revelará outras tan-tas singularidades.

2. As caravelas passamdireto pela barra do rio

Buranhém

Às 8 horas da manhã, poucomais ou menos, de 24 de abril de

1500, a esquadra que fundeara aolargo do rio do Frade, em seu pri-meiro contato com a terra brasilei-ra, suspendeu ferros tomando adireção norte em procura de umporto para abrigo e refresco, acha-do ao final da tarde, quase ao anoi-tecer, na baía Cabrália.

Essa rota de demanda foi nave-gada a uma prudente velocidade de3 nós, ou seja, de 3 milhas maríti-mas p/hora. Dessa forma, levou aflotilha cerca de 10 horas para ir doFrade à Coroa Vermelha, sem parar.

As caravelas seguiam encostadasao litoral, dentro do possível,tomando as cautelas de sondageme verificação. Safas para “descobrir”e levantar não apenas os obstáculosmas as características da costa,eram a vanguarda das frotas, esmiu-çando os litorais, boqueirões, ensea-das e penetrando barras.

Aqui surge um ponto muitocurioso e também passado desaper-cebido aos estudiosos. Como pode-riam as caravelas, farejadoras delitorais, intrépidas e marinheiras,pilotadas por gente experimentadís-sima nesse mister - uma delas aindacom o reforço de Afonso Lopes,piloto do próprio Cabral - subir acosta a 3 nós, atentas e perscruta-doras à procura de um porto, varara barra do rio Buranhém (onde hojese encontra a cidade de PortoSeguro) ultrapassando-a, sem deladar conta?

O mais interessante é que emlitoral perigoso e desconhecido,gente tão boa de mar deixasse pas-sar essa barra - que por outro ladonão era protegida dos ventos de SE,não possuia um rio cristalino paraaguada e, ainda por cima, rasa - efosse achar em rota direta o pontocerto, fundo e de excelente aguada.Caminha nada fala sobre demorasou atrasos no percurso. A frotalevanta para o norte às 8 horas echega quase ao pôr-do-sol, dandomargem (numa hora não das maisadequadas) para as caravelas, atin-gindo a baía Cabrália, entrarem dire-to na enseada da Coroa Vermelha.Saliente-se, então, a inconsistênciafática de não terem os violadoresde uma costa desconhecida, sendoexperimentados como eram, idosondar aquela barra e o seu inter-

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ior. Se isto houvesse ocorrido, a der-rota até a baia Cabrália teria se alon-gado no tempo, impedindo a arri-bada ao pôr-do-sol naquele porto.

O que aconteceu então? Nãoteriam, como é lógico, deixado varara entrada do Buranhém com umrecife linear apontando por cente-nas de metros o boqueirão. Poroutro lado, não teriam porquê, des-conhecendo a costa, desprezar deplano um porto que se abria à fren-te da armada.

É interessante examinar as des-crições de Ernest Mouchez sobre acosta nas cercanias do Buranhém,dos indicadores claros da presençade um fundeadouro, do comporta-mento da linha de recifes protegen-do a barra e das condições de anco-ragem e segurança naquela bacia.

O navegador, astrônomo e hidró-grafo francês, destacando ser oporto desprotegido dos ventos desudeste e os riscos de uma lufadadessa origem para embarcações poi-tadas naquele leito, salienta igual-mente que tal perigo é remoto, emdecorrência de que temporais pesa-dos são muito raros nessa costa eque nas piores estações, quandoventos de SO sopram em junho,julho e agosto, assim mesmo são depequena duração e raramente muitofortes.

Transcende do estudo deMouchez que os portugueses, emcosta desconhecida, trocaram umbom porto (ou pelo menos razoá-vel), por um excelente, e isto semconhecer os condicionalismos físi-cos daquele litoral.

Cabral e seus pilotos teriam des-coberto, numa enorme faixa de 240léguas (cerca de 1.440 km) de costabrasileira, um dos seis portos segu-ros para veleiros, portos estes, comodisse Mouchez, onde podem comtoda a segurança abrigar-se grandesembarcações. Começando no norte,estes portos naturais são: Morro deSão Paulo, Camamu, baía Cabrália,Abrolhos, Búzios e o de Cabo Frio.Quando os veleiros, em abril de1500, infletem para a terra, dianteda inspiradora visão do MontePascoal, ficam apenas a 26 milhasde um desses portos seguros.

Como se o pressentissem,tomam o rumo certo do norte,

safam-se de arriscar as proas nosItacolomis, varam - sem se deter -a barra do Buranhém e jogam fer-ros na baía Cabrália, às últimas luzesdo dia 24 de abril de 1500.

A Carta de Pero Vaz de Caminhadescreve essa chegada, despojandoa navegação de expectativas, emba-raços, demoras ou sequer, cautelas.Parece quase narrar uma regata. “E,velejando nós pela costa, acharamos ditos navios pequenos, obra dedez léguas do sítio donde tínhamoslevantado ferro, um recife com umbom porto la dentro, muito bom emuito seguro, com mui larga entra-da. E meteram-se dentro e amaina-ram. As naus arribaram sobre ele; eum pouco antes do sol-posto amai-naram também, obra de uma léguado recife e ancoraram em onze bra-ças”.

Aí acontece algo estranho, denovo. “E estando Afonso Lopes,nosso piloto, em um daquelesnavios pequenos, por mandado doCapitão, (...) meteu-se logo noesquife a sondar o porto dentro”.Um angra desconhecida, como élógico, sonda-se antes e não depoisde se adentrá-la, ainda mais ao pôr-do-sol.

Entretanto, novas singularidadesirão ocorrer, já agora na estadia doancoradouro.

O exame de situação da para-gem na baía Cabrália implica, neces-sariamente, uma análise das iniciati-vas de vistoria e de primeirodesembarque tomadas pelos nave-

gadores. Assunto tratado de manei-ra mais ou menos corrida pela gran-de maioria dos historiadores, écomum encontrá-lo conformado aosexatos limites da narrativa deCaminha e, em decorrência, care-cendo de um exame crítico de natu-reza comparativa com outros episó-dios de contato e vistoria de litoraispelos portugueses, em relação aospersonagens e às práticas adotadasno abeiramento.

Já foram destacados os fatosinsólitos ocorridos no pequeno tra-jeto marítimo de 24 de abril, fazen-do mesmo admitir disponibilidadesde informação maiores do que seriade supor em principiantes dapedranceira costa meridional baia-na. Estaria aí inscrita a hipótese deconhecimentos insuspeitados quese associam ao elenco de tantosoutros episódios intrigantes dalonga jornada dos descobrimentosportugueses.

Peculiaridades, como foi dito,serão notadas igualmente durante operíodo no ancoradouro, decalcan-do contradições comportamentais esuscitando novas dúvidas e indaga-ções. Por duas vezes, uma no riodo Frade e a outra no porto seguro- nesta última acompanhado porBartolomeu Dias - foi NicolauCoelho designado para as mano-bras precursoras de contatos napraia, em uma terra desconhecida,recém descoberta. É sempre elequem vai participar dos primeirosdesembarques. A partir desse posi-

“Nau Capitânia de Cabral” - Óleo de Oscar Pereira da Silva (1867-1939)

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cionamento a frota movimenta-seou não. No caso do rio do Frade,desaferrando e demandando N, embusca de “alguma abrigada e bompouso”.

Nicolau Coelho é o navegadorexperimentado, comandante dacaravela Bérrio na flotilha de Vascoda Gama, sendo assim um dos “des-cobridores da Índia”. É o que “embar-ca infatigavelmente a cada armada”,lembrou Jaime Cortesão e no regres-so da Índia “vem adiante anunciara nova do descobrimento”.

Mal saído da jornada, longa eperigosa, embarca seis mesesdepois na frota de Cabral para,quase em seguida, capitanear a nauFaial na armada que, em 1503,Afonso e Francisco de Albuquerquecumpriram tantas façanhas. Foi suaderradeira missão, ficando no mar.

Em todas as viagens desempen-ha sempre, este comandante, algu-mas das missões mais arriscadas.Confirma-se no perfil traçado peloshistoriadores da marinharia, a des-crição do lidador, do que vai nafrente, do ponta-de-lança. Nos doisdesembarques em praias brasileiras,Nicolau Coelho empregou o batel enão o esquife. Teria isto algum signi-ficado especial ?

A resposta, certamente, é posi-tiva. Em primeiro lugar, é precisoconceituar o papel náutico de cadauma dessas duas embarcaçõesmenores.

O batel era embarcação bemmais possante e marinheira do queo esquife. Ao batel era dado o ser-

viço auxiliar do navio, na carga edescarga e na aguada, utilizando-seigualmente como força de apoiotático em combate. Era empregadoem solenidades e em dias de festana condução das autoridades debordo, militares, civis e religiosas.Tanto arvorava em vela, como des-locava-se a remos.

O batel viajava dentro dos velei-ros, algumas vezes, como nas cara-velas, atravessado de um bordo aoutro, quilha para cima, emborcadoentre o mastro grande e a proa.Raramente vinha a reboque - comoaconteceu entre o Frade e a CoroaVermelha - a não ser em trajetos decruzeiro.

3. A certeza de uma recepção pacífica

Como fez nos primeiros conta-tos com a costa brasileira, NicolauCoelho explorou o rio da Misericórdia,litoral de Moçambique, em um batelà procura de aguada no itinerárioda viagem de Vasco da Gama. Saiu,porém, nesse trajeto em missãoarmada, artilhado com dois berços(canhonetes) e vinte e quatro tripu-lantes (dez marinheiros para remose doze homens com bestas, ocapitão e um piloto mouro), cobrin-do-se a embarcação com um toldopara proteger contra setas (princi-palmente as conhecidas e temidaservadas, as flechas com veneno) depossíveis antagonistas. O batelpoderia, aliás, receber ainda mais

artilharia do que a provida nestaocasião.

Nos navios seguia também umbote, o esquife, para quatro a seisremadores, utilizado nos serviçosmenores em portos e fundeadou-ros.

Empregando o batel, dispunhamos tripulantes de recurso muito maisadequado para a vistoria da área doque o bote, ampliando considera-velmente as condições de seguran-ça no deslocamento e garantindoum raio de investigação a qualquerponto da baía Cabrália. Todavia, deque maneira avançam os batéis - umde Coelho e outro de BartolomeuDias - nas águas tranqüilas do anco-radouro? É praia estranha, com gen-tio armado, mas o conceito demanobra é totalmente diferente doadotado em Moçambique.

Não há berços, bestas, toldos,nada que transpareça receio graveou desconfiança de armadilha. Acerteza aparente de uma recepçãohospitaleira é bem evidenciada, poisseguem para a terra dois capitãesno batel de Nicolau Coelho e, porordem de Cabral - como se fosseum repórter em busca das primei-ras impressões e novidades -embarca o cronista do evento, PeroVaz de Caminha.

Não há preocupações de enviarapenas gente menos importante nahierarquia de bordo. Os batéistomam o rumo da praia dos Lençóisem flecha, direto sobre a desembo-cadura do rio Mutari, conduzindobarris para o ressuprimento de águapotável, Caminha é suficientementeclaro na descrição do episódio.

Convém repetir que, em 25 deabril, os navios estavam ancoradosno ponto mais conveniente da baíaCabrália, os lados do sul, ao abrigoda Coroa Vermelha, tendo à mão oMutari. Seria este rio o comutadorda ação de fundeio naquele ponto,diante da informação de Caminhaconformando o bordejo da costa àprocura de aguada e lenha?

Parece bastante aceitável que aresposta seja afirmativa. Proteçãocontra os ventos de SE, já se sabeque o ancoradouro oferecia, masno momento já não seria tão impor-tante. As caravelas entram direto nofundeadouro ao anoitecer, sem a

Cruz moderna junto do local onde se disse a segunda missa no Brasil

sondagem prévia, mas as naus dor-mem fora, ao desabrigo, portanto,da Coroa Vermelha a qual protege-ria contra os ventos SE, se voltas-sem a soprar. Dos três fatores,salientados por Max Justo Guedes,da busca de um bom porto pararefresco, aguada e embarque delenha, o Mutari é o elemento queconsolida a vantagem do fundea-mento na enseada.

Entretanto, qualquer dos tripu-lantes o procurou no dia 24 deabril. Afonso Lopes monta em umesquife (o bote para pequenos des-locamentos) e “vai sondar o portodentro” ao anoitecer. Logo já nãohaveria mais luz do dia, limitandoa missão a período muito escasso.Além do mais, a visada de terraseria contra o sol. Baixo no hori-zonte. Não haveria muita coisa adistinguir, a não ser, como apontouCaminha, os vultos dos “homensda terra” que na praia andavammuitos.

Assim, não parece indiscutívelque tenha o piloto Lopes alcança-do a praia, mesmo saindo de umadas caravelas que ancoravam a umadistância, provavelmente, inferior auma milha da areia. O bote deveter realizado evoluções em distân-cia segura em relação à praia, poisos silvícolas que o navegador recol-heu, conduzindo-os para bordo danau-capitânia onde foi realizada arecepção do alto comando da frota,encontravam-se no mar, naquiloque Caminha chamou de almadia,na realidade, uma tosca jangada detrês paus atados entre si.

O ponto de partida da narrativadestes acontecimentos está centra-do na missão de sondar, o quenada indica outra coisa do quedeterminar a profundidade do mar,o que é perfeitamente condizentecom o personagem da ação (umpiloto), com o meio utilizado (oesquife), com o local (proximidadedas caravelas) e, ainda que em ter-mos, com a hora do evento. Éadmissível, então, concluir queAfonso Lopes não tenha ido à praia,limitando-se à missão tipicamentemarinheira de medir as funduras daenseada (no dia seguinte iriamentrar as naus) e já quase sem luz,ao ver nas proximidades a dupla

de silvícolas, aproveitasse a opor-tunidade para retê-los e levá-los abordo, o que não implica, obriga-toriamente, violência física.

4. Um rio invisível

A missão encerrava-se com aspossibilidades da luz do dia, atra-cando o bote na nau-capitânia jánoite feita. Na manhã de sábado,com toda a frota descansando naenseada, partem para a terra NicolauCoelho e Bartolomeu Dias, condu-zindo os dois índios, o degredadoAfonso Ribeiro e Pero Vaz deCaminha. Para quem está fundeadoao largo do ancoradouro a vista émagnífica. O sol das latitudes tropi-cais que acompanhou a esquadrapor esse “mar de longo”, acentua ocolorido das águas e contrasta ainfindável linha do areal com osornamentos da topografia que mar-geiam a costa. O mar de Cabrália,de um verde esmeralda, é tranqüi-lo, a brisa constante e a reverbera-ção intensa. Entretanto, o rio Mutarinão é visível de qualquer pontodessa corda em que o arco é a praiados Lençóis.

Um observador plantado na pró-pria orla do ilhéu da Coroa Vermelhanão conseguirá, a olho desarmado,identificar a presença do curso d’á-gua. A não ser que se esteja muitoperto, vindo do mar e praticamenteem cima de desaguadouro, o mansoe cristalino riacho, confundindo-secom a paisagem do imenso areal,mantém-se protegido, indevassado.É inútil tentar divisá-lo.

Da ponta da Coroa Vermelha,ou mesmo do outeiro de Santa Cruzde Cabrália, na outra ponta do arco,o Mutari esconde-se, esbatido napaisagem de areia.

De que posição, portanto,teriam os navegantes tomadoconhecimento do rio, para terempartido na manhã de 25 de abril,direto à praia, ao Mutari, já condu-zindo barris. A narrativa deCaminha concorda inteiramentecom a realidade topográfica, poissendo a praia chã e o leito raso,espraiado na embocadura, nãohaveria como pensar em adentrá-locom os batéis.

Caminha informa claramente:“Então se começaram de chegar

muitos (índios). Entravam pelabeira do mar para os batéis, até quemais não podiam, traziam cabaçosde água, e tomavam alguns barrisque nós levávamos; enchiam-nosde água e traziam-nos aos batéis”.Cumpre estranhar que os índios,habitantes do paleolítico, tivessemsuficiente familiaridade com barrispara, interpretando a morfologia,soubessem da destinação. Os bran-cos e seus petrechos deveriam sertão desconhecidos para o silvíco-las, quanto estes para os visitantes.

Além do episódio dos tupini-quins conhecedores da utilidadedas pipas de madeira e das neces-sidades dos navios, os marinheiros,de seu turno, sabiam de uma agua-da praticamente incógnita, em umaenseada desconhecida.

No dia seguinte, Domingo, foirezada a primeira missa, ainda nasareias espraiadas do ilhéu.

5. Carpinteiros fazem umacruz de madeira verde

Um outro acontecimento singu-lar é o da cruz fincada na praia.

Na Segunda-feira, inicia-se esseepisódio que também encerracuriosas, para não dizer estranhas,peculiaridades: a cruz da 2ª missa.Nesse dia foram mandados paraterra dois carpinteiros com a missãode preparar uma grande cruz, der-rubando para tanto uma árvore.

As revelações corográficas dePero Vaz de Caminha indicam estara parte florestada da enseada ao suldo Mutari, local para onde se diri-giram os carpinteiros. Em termosfabris quer dizer que os operários,para realizarem a obra, necessita-ram penetrar na floresta, escolheruma árvore adequada, derrubá-la,trazê-la à praia, descascá-la, talvezcortá-la em pranchas ou barrotes,chanfrar os engastes e arestas para,finalmente, montá-la e cravá-la (ouatá-la com cordas ou estais). Tudoisto em madeira verde.

Começaram na Segunda-feira,27 e no dia 30 de abril já estavapronta, encostada a uma árvore“junto com o rio”, ou seja à mar-

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gem direita da desembocadura emcotovelo do Mutari.

Por que fazer uma grande cruzde madeira verde, por isto mesmode difícil manipulação carpinteira eque não poderia durar em face daausência de amadurecimento dolenho?

Durante a primeira viagem deVasco da Gama à Índia ocorreu umepisódio de construção e erguimen-to de cruz. Entretanto, ali, empre-garam a madeira adequada aoslavores da carpintaria e à durabili-dade da peça a ser exposta aotempo. Na angra haviam desfeito anau que levava mantimentos,sobrando, portanto, madeira.Entretanto, havia “mato grande”nas proximidades do ancoradourodo litoral sul africano. Na baíaCabrália, embora não tendo ocorri-do desmanches, poderiam ter utili-zado sobressalentes das embarca-ções.

Entrementes, a cruz de Cabralficara pronta, presumivelmente eno mais tardar, no dia 30 de abril.Foi deixada na praia, sem guarda,para no dia seguinte ser transporta-da para o outro lado do rio, ondeseria chantada.

Por que essa cruz, depois depronta não poderia ser erguidanaquela mesmo local, desde que atradição informa ter sido construídapara a celebração da missa? Se eraassim, tanto fazia colocá-la de umlado ou do outro da boca do Mutari.Cabral, que já estivera em terrahomenageando a cruz (e levandotodos os acompanhantes a oscula-rem o símbolo cristão - na Quinta-feira, 30 de abril) só determina olocal de erguê-la, para melhor servista, nos momentos antecedentesà cerimônia, quando desembarcouno outro lado da praia, no dia 1ºde maio de 1500. “Ali assinalou oCapitão o lugar, onde fizessem acova para chantar”. É aí que acon-tece algo um tanto difícil de enten-der, embora se tratasse de homensmedievais do apagar das luzes doséculo XV, com formas próprias depensar, de reflexão, de raciocínio.

Causando provavelmente umenorme e inesperado desconfortoaos presentes - que deviam estarvestidos e paramentados de acordo

com os ditames para o ato litúrgicosolene - resolve ir buscar a cruzonde se encontrava (“abaixo do rio”ou seja, do outro lado da margemdo Mutari ). “Dali, continua a nar-rativa de Caminha, a trouxemoscom esses religiosos e sacerdotesdiante cantando, em maneira deprocissão”. “Passamos o rio (comágua pela coxa), ao longo da praiae fomo-la pôr onde havia de ficar,que será do rio obra de dois tirosde besta” - trezentos metros, aproxi-madamente.

Mas por que alçá-la a trezentosmetros da embocadura e não aduzentos, por exemplo. Além domais, tratava-se de uma cruz quenão iria durar grande coisa, emrazão de ter sido elaborada emmadeira verde, absolutamentecontra-indicada para trabalhos decarpintaria. É razoável supor que,para a missa, tenha sido escolhidaapenas uma parcela dos tripulantese a totalidade cristã dos passagei-ros (havia, até mesmo, guzaratesindianos a bordo). Considerando alotação dos bateis e dos botes ouesquifes, é aceitável um cálculo emtorno de 350 pessoas, admitindoque não teria sido feita, na ocasião,mais do que uma viagem à terra.

Esse número estimado de parti-cipantes seria mais do que suficien-te para transladar a cruz, enorme epesada, sugerindo o revezamentodos condutores, na distância pre-tendida, levando-se em conta oseventuais ralentamentos e esforçosprovocados pela marcha em solofofo de areia, o cruzamento do riocom água pela braga e a necessi-dade de manter o andamento, otom solene e o fluir contínuo quedeveriam revestir a procissão.

Não parece provável que a cruztenha sido confeccionada à guisade marco de posse, tout court. Osmarcos, a julgar pelas amostrasespalhadas em tantos lugares docircuito Atlântico-Índico, e em par-ticular pelas deixadas no Brasil,eram pequenos. Erguidos, não des-pontavam do solo altura maior doque a de um homem. O que estálevantado na praça fronteira à igre-ja da cidade de Porto Seguro, é depouco mais de metro e meio, se tal.A cruz, de seu turno, era grande,

“enorme”, visível à distância e nãoconfundível, pelo próprio feitio,com as coisas da natureza.

É preciso considerar que os inte-grantes da frota não poderiam,sequer, julgar da durabilidade domadeirame empregado na cruz, emuma terra de natureza ignota. Essefator seria de suficiente importân-cia para definir um substituto paraa pedra, o tipo de marco que, pelasua essência, se identifica com aperpetuidade. Diante disto, fazerum marco de posse com madeiraderrubada aleatoriamente e, aindapor cima, verde, não faz condizero meio com os fins.

Insista-se na lembrança de quea cruz não foi erguida na respecti-va área de construção, mas dooutro lado do rio, em um pontoadrede escolhido por Cabral e nãopelos padres ou por Frei Henriquede Coimbra, o capelão da frota.Assim, a cruz não foi para a missa,mas a missa para a cruz.

É bem verdade que desde ostempos de D. Afonso V havia o cos-tume de marcar com cruzes demadeira as terras descobertas, pro-cedimento analisado por JaimeCortesão ao comentar o episódioda chantada na costa brasileira. Apartir de Diogo Cão, os portuguesespassaram a adotar o marco depedra, embora na viagem de Vascoda Gama voltasse a aparecer a sina-lização do modo antigo, acrescidaao padrão de cantaria, ambos erigi-dos na baía de S. Braz. Concluiu oautor citado, comparando os ele-mentos de circunstância igualmen-te presentes naqueles dois eventos,o da África e o da baía Cabrália,que a finalidade das cruzes era ade assinalar o ponto de aguada, tor-nando-o bem mais visível do mar.

O horizonte da linha costeira,em Cabrália, é parcialmente alto,quando visto por observador pos-tado no mar ou por quem estiverfundeado na altura do ilhéu daCoroa Vermelha.

O primeiro plano é tomado peloareal enorme e, dessa perspectiva,raso, muito embora apresente umnatural e suave caimento na dire-ção do mar. Logo a seguir, consti-tuindo como uma plataforma preci-samente delimitadora da linha da

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praia, o terreno se ergue a uns doismetros de altura e continua, acaça-pado, pela costa a dentro, até irbater de encontro as primeiras falé-sias espalhadas, irregularmente,pelo interior. Muito mais adiante,fechando o horizonte, situam-seelevações maiores sob o perfil debrumosas serranias, caracterizandoo lado esquerdo do cenário costei-ro.

O curso d’água do Mutari, inde-vassável para esse observador,situa-se na orla baixa da direita,nada indicando sua tranqüila pre-sença. Como se pode imaginar,qualquer objeto de porte alto colo-cado nesse ponto da praia (à direi-ta do observador) e sobrelevado naplataforma delimitadora do areal,seria muito mais destacável contrao horizonte do que se fixado ao sulda embocadura do Mutari, ou seja,“abaixo do rio” e onde existia arvo-redo florestado.

Deste modo, pode-se dizer quea inspeção local da topografiaconfirma a hipótese segundo a qualo chantamento da cruz obedeceu ànecessidade de sinalização do Mutariem face - saliente-se, agora - da difí-cil localização do riacho na rever-berante continuidade da praia dosLençóis. Assim, com uma cruz demadeira verde, assinalava-se a pre-sença do Mutari, tornando-o maisdistinguível para quem vem do mar,pelo aproveitamento do fundobaixo do horizonte naquele sítio.

Isto encerra, porém, um aparen-te contradição. Se o rio Mutari erade difícil localização, carecendo desinalização, propósito do erguimen-to da cruz, como foi achado rapi-damente pelos oficiais de Cabral?Logicamente, essa cruz de madeiraverde, repita-se, de madeira verde,não assinalaria para os que ali esta-vam, mas para os que pouco depoisali viriam. João da Nova logoseguiu a rota brasileira de Cabral.E o curioso: como saber quealguém o vai seguir, de imediato, aum lugar ignoto que acabou de sedescobrir?

Pelas aparências, Cabral pareciasaber �

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Rota da frota de Pedro Álvares Cabral entre Lisboa e o Brasil

L’auteur, qui connaît bien la géo-graphie de la côte brésilienne,entend dans cet article montrer avecminutie les conditions de l’arrivéede la flotte de Pedro Álvares Cabralen terre brésilienne en prenant leparti de la connaissance préalablede cette terre par le navigateur (sujetcontreversé). Il commence par sou-ligner qu’en arrivant la flotte amanœuvré pour s’abriter dans uneembouchure protégée, la baieCabrália, montrant ainsi une bonneconnaissance de toute la côte. Les

marins et capitaines qui débarquentà terre ne craignent pas d’être atta-qués, et refont le plein d’eau dansune rivière dont ils semblent déjàconnaître la localisation.

L’érection d’une grande croix debois vert, fabriquée sur place parles marins de Cabral, et servant àsignaler la rivière Mutari, lieu propi-ce à l’aguada (au plein d’eau),devient pour l’historien, un autreindice du fait que Cabral avait unepré-connaisance de la terre brési-lienne.

Résumé en français