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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – FAED CURSO DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM HISTÓRIA ALEXANDRE PEDRO DE MEDEIROS FRAGMENTOS DE ARTE ENGAJADA E RESISTÊNCIA NO BRASIL: O TRABALHO DE CLAUDIO TOZZI (1964-1968) FLORIANÓPOLIS, SC 2013

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Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Bacharelado e Licenciatura em História do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED), da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em História.Orientador: Rafael Rosa HagemeyerData da defesa: 28/6/2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – FAED CURSO DE BACHARELADO E LICENCIATURA EM HISTÓRIA

ALEXANDRE PEDRO DE MEDEIROS

FRAGMENTOS DE ARTE ENGAJADA E RESISTÊNCIA NO BRASIL:

O TRABALHO DE CLAUDIO TOZZI (1964-1968)

FLORIANÓPOLIS, SC 2013

 

ALEXANDRE PEDRO DE MEDEIROS

FRAGMENTOS DE ARTE ENGAJADA E RESISTÊNCIA NO BRASIL:

O TRABALHO DE CLAUDIO TOZZI (1964-1968)

Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Bacharelado e Licenciatura em História do Centro de Ciências Humanas e da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em História.

Orientador: Prof. Dr. Rafael Rosa Hagemeyer

FLORIANÓPOLIS, SC 2013

 

ALEXANDRE PEDRO DE MEDEIROS

FRAGMENTOS DE ARTE ENGAJADA E RESISTÊNCIA NO BRASIL:

O TRABALHO DE CLAUDIO TOZZI (1964-1968)

Trabalho de Conclusão apresentado ao curso de Bacharelado e Licenciatura em História do Centro de Ciências Humanas e da Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em História.

Banca Examinadora

Orientador: __________________________________________________________ (Prof. Dr. Rafael Rosa Hagemeyer) Universidade do Estado de Santa Catarina Membro: ____________________________________________________________ (Prof. Dr. Reinaldo Lindolfo Lohn) Universidade do Estado de Santa Catarina Membro: ____________________________________________________________ (Profa. Dra. Rosângela Miranda Cherem) Universidade do Estado de Santa Catarina

Florianópolis, SC (28/06/2013)

 

Para o Gustavo, sempre presente

 

AGRADECIMENTOS

Este Trabalho de Conclusão de Curso, resultado maior de perseverante,

aprofundada e paciente pesquisa, não poderia existir sem a assistência direta ou

indireta de várias pessoas e instituições, às quais gostaria de agradecer.

Agradeço ao Claudio Tozzi por ter inspirado este trabalho, bem como por sua

atenção marcada por disponibilidade e simpatia em responder ao meu contato,

conceder uma entrevista e doar 3 livros que estavam esgotados sobre seu trabalho.

Agradeço ao meu orientador Rafael Hagemeyer pela interlocução sempre

humorada, auspiciosa e produtiva nesta e em outras empreitadas.

Agradeço aos professores do Curso de História da UDESC pela formação

docente e de pesquisador, matriz de meu conhecimento, a qual sempre pautada na

ética, responsabilidade e profissionalismo.

Agradeço às professoras Anita Koneski (CEART-UDESC) e Viviane Borges

(FAED-UDESC) e ao professor Gustavo Motta (ECA-USP) pela interlocução sempre

profícua no decorrer da elaboração deste e de outros trabalhos.

Agradeço à professora Rosângela Cherem (PPGAV-CEART-UDESC) e ao

professor Reinaldo Lohn (PPGH-FAED-UDESC) pela interlocução e pelo aceite em

compor a banca examinadora deste trabalho.

Agradeço ao Programa Institucional de Iniciação Científica (PROBIC) da

UDESC por ter me auxiliado por 2 anos com uma bolsa, que indiretamente a este

trabalho, possibilitou-me construir um pensamento de pesquisador sempre disposto

a reavaliar minha produção e seu alcance na sociedade.

Agradeço aos meus pais Clélia e Pedro e demais familiares pela formação

educacional que me proporcionaram, sem a qual eu jamais chegaria onde hoje estou.

Agradeço aos amigos de universidade e de vida: Antonio Nakazima Junior,

Flávio Gentil, Iara Perin e Mariane Martins pela amizade marcada por bom humor,

inteligência e interlocução intelectual, possibilitando alguns dos melhores momentos

vividos por mim nestes últimos 4 anos.

Agradeço imensamente ao meu companheiro Gustavo Cambraia Giraldes por

sua elegância, leveza e paciência que me inspiraram em todo o processo de

elaboração deste trabalho. Também peço desculpas a ele por aquele fim de semana

que não fui a Gaspar, porque eu precisava escrever este TCC.

 

“A arte não era só um objeto de você contemplar, não era mais uma pintura de cavalete, mas era uma pintura trabalhada mesmo com as tintas que se utilizavam para pintar placas, dos meios de comunicação de massa. Enfim, era uma linguagem bastante revolucionária em termos de você trabalhar com uma técnica quase que muito simples, mas com uma força muito grande, não é?” (Claudio Tozzi)

 

RESUMO

MEDEIROS, Alexandre Pedro de. Fragmentos de arte engajada e resistência no Brasil: o trabalho de Claudio Tozzi (1964-1968). 2013. 112 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em História) – Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

A crise instalada com o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 impulsionou a transformação do campo cultural em local, por excelência, de resistência ao regime militar até a edição, em 1968, do Ato Institucional nº 5. Neste período, atuou uma vanguarda que colocava em pauta a necessidade de articulação entre arte e política. Esquematizada por Hélio Oiticica em 1967, esta vanguarda estava comprometida com a criação de novos objetos, assim, superando a estrutura do cavalete e as convenções da arte contemplativa entendida como burguesa. Tal estratégia se resumiria em uma vontade de atuação do artista na sociedade, o qual desde seu trabalho colaboraria na tarefa conscientizadora de oposição à ditadura militar a partir de proposições de arte pública. Neste sentido, o artista visual paulistano Claudio Tozzi desenvolveu no período 1964-1968 uma poética engajada, segundo a qual fabricou trabalhos comprometidos em problematizar a realidade política e social do Brasil. Este Trabalho de Conclusão de Curso tem como principal objetivo analisar como esta tomada de posição de resistência por Tozzi frente aos problemas políticos, sociais e estéticos significava nas obras. Neste período, o artista inspirado em Marcel Duchamp e na Arte Pop desenvolveu uma operação de apropriação racional ou intencional de imagens e objetos, a qual deslocava os elementos apropriados a fim de subverter sua significação original, porém, guardando o vestígio da referência, em prol de um discurso formado pela relação desses itens no trabalho construído. Deste modo, a partir dos trabalhos USA e abUSA (1966), Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional (1967) e de três painéis do ambiente Bandido da Luz Vermelha (1967), são analisados aqui os possíveis sentidos interpretados na apreensão entre o anseio e o “resultado” das obras de Tozzi. Assim, buscar-se-á na perspectiva de uma História relacional da Arte, na qual é imprescindível a compreensão do diálogo estabelecido entre fenômenos artísticos e fenômenos políticos, sociais, econômicos, entre outros, a apreensão dos sentidos expostos pela interpretação histórica. Nesta via, são interpretadas nos trabalhos de Tozzi: críticas ao golpe de 1964 que instalou um regime autoritário contra o qual era necessário se manifestar; ao apoio estadunidense a esse golpe e à repressão das manifestações de resistência; ao governo do general-presidente Castello Branco de forma irônica pela contestação do caráter de salvaguarda da democracia nacional imposto pelos militares, bem como, a partir da apropriação de personagens e temas preexistentes, o artista propunha narrativas referentes às mitologias urbanas, à marginalidade em São Paulo, à liberação sexual e às conquistas de atuação política e social pelas mulheres.

Palavras-chave: História da Arte Brasileira Contemporânea. Ditadura Militar Brasileira (1964-1968). Resistência Cultural. Artes Visuais e Política. Claudio Tozzi.

 

ABSTRACT

MEDEIROS, Alexandre Pedro de. Fragments of engaged art and resistance in Brazil: Claudio Tozzi’s work (1964-1968). 2013. 112 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em História) – Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

The crisis installed by the civil-military coup d’État on March 31, 1964, stimulated the transformation of the cultural field into a place, by excellence, of resistance to the military regime until the expedition, in 1968, of the 5 Institutional Act. In this period, a vanguard that put in question the necessity of articulation between art and politics acted out". Organized by Helio Oiticica in 1967, this vanguard was engaged in the creation of new objects, thereby, overcoming the easel structure and the contemplative art conventions understood as bourgeois. That strategy would be resumed in an artist's acting will in the society, which through its work would collaborate in the conscientizing task of opposition to the military dictatorship through public art propositions. In this sense, the visual artist from Sao Paulo Claudio Tozzi developed between 1964 to 1968 a engaged poetics, through which made works engaged in problematizing the politic and social realities in Brazil. This Graduation Conclusion Work has as its main objective to analyze how this position of resistance assumed by Tozzi against the political, social and aesthetic problems meant in his artworks. In this period, the artist inspired in Marcel Duchamp and in Pop Art developed an operation of rational or intentional appropriation of images and objects, which dislocated the appropriate elements to subvert its original meaning, yet, keeping the reference trace, towards a reasoning constructed by the relation of these items in the built work. Thus, through the artworks USA e abUSA (1966), Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional (1967) and three panels from Bandido da Luz Vermelha (1967) ambient, the possible meanings interpreted in the seizure between the intention and the “result” of Tozzi’s works are analyzed. Therefore, it will be searched in the perspective of an Art relational History, in which it is indispensable the comprehension of the established dialogue between artistic phenomena and political, social, economic ones, among other things, the apprehension of the senses exposed by historical interpretation. Thereby, it is interpreted in Tozzi’s work: criticisms to the 1964 coup that installed an authoritarian regime against which it was necessary to manifest; to the american support to this coup and to the repression of the resistance manifestations; to Castello Branco’s general-president government in an ironic way by the contestation of the safeguard feature from the national democracy imposed by the military, as well as, from the appropriation of preexisting characters and themes, the artist proposed narratives regarding urban mythologies, Sao Paulo marginality, sexual liberation and the political and social action achievements by women.

Keywords: History of Contemporary Brazilian Art. Brazilian Military Dictatorship (1964-1968). Cultural Resistance. Visual Arts and Politics. Claudio Tozzi.

 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 REVOLUÇÃO NA ARTE: ARTE E POLÍTICA NO BRASIL DOS ANOS 1960 ..... 19 3 FRAGMENTOS DE TOZZI: ARTE COMO RESISTÊNCIA ................................... 39 4 IMAGENS ALEGÓRICAS, ARTES PERIFÉRICAS: O BANDIDO NAS ARTES .. 66 5 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 83 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 85 APÊNDICES .............................................................................................................. 91 ANEXO .................................................................................................................... 112

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho é o resultado maior de uma perseverante, aprofundada e

paciente pesquisa, deste modo, creio ser conveniente expor como cheguei a

perceber a necessidade de escrever sobre a arte engajada, a resistência cultural e o

trabalho do artista visual Claudio Tozzi no Brasil no período de 1964 a 1968.

Inicialmente, desde os estudos em História da Arte que realizei no Ensino

Médio até as extensas leituras na universidade, desenvolvi um interesse em

compreender como as artes visuais relacionavam-se com o mundo, a realidade

social e política, e como isso interferia na criação artística. Como é de se supor, o

próximo passo seria a descoberta de uma ampla rede de artistas e intérpretes

(historiadores, críticos, filósofos etc.) interessados na articulação entre arte e política.

Além disso, ao longo dos estudos, fui nutrindo um interesse especial pelos trabalhos

figurativos dos anos 1960, principalmente os ligados à Arte Pop estadunidense.

Assim, certo dia, lembrando-me que o Brasil vivera uma ditadura militar

iniciada em 1964, perguntei-me o que os artistas estavam fazendo neste momento,

que no Brasil era ao mesmo tempo libertador e opressivo. Após algumas pesquisas

na internet e em livros eu tinha algumas respostas, as quais não me deixaram muito

satisfeito na época, por tratarem mais de música, cinema e teatro do que

propriamente das “artes plásticas”, como eram chamadas na época. É certo que eu

tinha encontrado muitas informações sobre Hélio Oiticica, Lygia Clark e Pape,

considerados os expoentes de uma arte de vanguarda na década de 1960, porém,

parecia-me que havia muito mais, e realmente tinha.

Então, aliei meu interesse à figuração e à Arte Pop com a vontade de

descobrir artistas que tinham sido influenciados por ela. Com isto encontrei uma

ampla rede que, no Brasil dos anos 1960, desenvolveu-se principalmente de 1963 a

1968. Havia o trabalho de Rubens Gerchman, Wesley Duke Lee, Antonio Dias,

Marcello Nitsche, entre outros. E ali estava também o trabalho de Claudio Tozzi,

com o qual desenvolvi uma afinidade quase que instantânea. Talvez porque fosse

ele o artista que mais tinha se aproximado da Arte Pop (OLIVEIRA, 1993, p. 221).

Deste modo, fui entrando em contato com obras que eram muito marcadas

por uma força comunicativa direta – utilizando setas, imagens de personagens

conhecidos da política nacional e cores primárias – a qual fui descobrindo que

estava diretamente conectada a uma articulação entre arte e política. Não por acaso,

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Claudio, que era estudante de Arquitetura da Universidade de São Paulo e

participante do movimento estudantil, realizaria uma arte engajada, comprometida

com a problematização da realidade social e política e resistente ao regime militar.

Este era em meados de 2012 o quadro da pesquisa que resultaria neste trabalho.

A partir disto, no período transcorrido de um ano, li de livros clássicos de

História da Arte a manuais de guerrilha urbana, produzi fichamentos, assisti a filmes

da época e a documentários históricos, frequentei aulas de Estética, Teoria, História

e Crítica de Arte, conversei com muita gente e até entrevistei Claudio Tozzi. Toda

esta experiência compõe, sem dúvida, o teor deste trabalho.

Eu, enfim, percorria um problema de pesquisa: como que, a partir da posição

de artista engajado, Tozzi fabricava trabalhos marcados por esse engajamento? Ou

melhor, como essa tomada de posição frente aos problemas políticos, sociais e

estéticos marcou suas obras. Com isso, evidente que eu deveria tomar algumas

precauções teórico-metodológicas.

Sendo assim, utilizo este espaço da introdução para confiar ao leitor – neste

caso, especificamente, os membros de uma banca examinadora (constituída por

historiadores), amigos e talvez colegas de área interessados no tema – um conjunto

de informações que, em minha ânsia de ser compreendido, disponibilizo para

conhecimento antes da leitura do trabalho propriamente dito. Isto é, uma série de

advertências que indicam de onde o autor fala, talvez já (se) apoiando (em) suas

preferências teórico-metodológicas. Neste sentido, inicio esta caminhada de escrita

advertindo aos que, por ventura, decidiram ler o trabalho, sobre os estudos

empreendidos pelas disciplinas históricas da área fenomênica da arte.

A História da Arte é vista como a disciplina histórica por excelência, imbuída

de explicar os fenômenos artísticos ao longo do tempo e que, no decorrer de seu

desenvolvimento, enquanto especialidade, se transformou em reduto de intelectuais

que não poucas vezes desprezam, contraditoriamente, o caráter de investigação

histórica da História da Arte. Pois a história da arte é, antes de tudo, história e,

enquanto tal, não deve apenas efetuar uma leitura de um trabalho artístico, pois

esse é o papel do crítico, mas sim, construir uma interpretação de sentido histórico

da arte em sua linguagem própria que é a narração enquanto discurso. “Para lá do

aparente”, utilizando a expressão do professor Alberto Cipiniuk (2003, p. 30), a

história da arte deve se ocupar da explicação dos fenômenos artísticos a partir da

identificação de relações das quais eles são produtos, relações essas que não

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dizem respeito tão-somente ao campo artístico, sendo “preciso recorrer a muitos

outros fenômenos absolutamente heterogêneos” (ARGAN, 2005, p. 32-33), mas

também aos campos de ressonância cultural a eles relacionados: político, social,

econômico, educacional, entre outros.

Nesta via, o historiador e crítico de arte italiano Giulio Carlo Argan, em um

ensaio publicado em 1969, de extrema lucidez e contribuição teórica à disciplina

história da arte, expõe, segundo Paulo Sergio Duarte (2008, p. 23-25), “a mais

adequada visão de história a ser aplicada ao campo da arte […] absolutamente atual

e capaz de dar conta dos fenômenos contemporâneos”. O autor nos oferece, de

início, a seguinte advertência: “o que [nós, historiadores da arte] avaliamos não é um

tipo de obra, mas um tipo de processo, uma maneira de relacionar-se” (ARGAN,

2005, p. 22). A partir disso, parece ser uma obviedade, mas faz-se mister ressaltar

que a obra de arte enquanto artefato cultural de produção humana é sempre

resultado de um conjunto de relações, sendo assim, nunca é um fato isolado, mas

sim um produto de uma realidade social.

Por isso, defendo uma História relacional da Arte, que “procura situar a obra

considerando, além dos aspectos ou valores estéticos que lhes são específicos,

outros como os econômicos e sociais” (CIPINIUK, 2003, p. 31), afinal, os tais valores

estéticos não são entidades metafísicas estáticas como alguns pensam, mas

discursos produzidos em contextos históricos específicos e que fazem sentido

enquanto situados nesse. Dito de modo mais desenvolvido, no cerne dessa questão

residem dois históricos problemas referentes ao campo específico da história da arte.

Primeiramente, de acordo com Argan (2005, p. 35), em um certo momento –

aquele do sopro inicial da história da arte – e, além dele, pensou-se a história da arte

como história política, sendo essa compreendida como “A” história da civilização e,

por isso, do poder e do progresso. Pois bem, poderíamos antes de tudo, criticar a

noção do historiador italiano de história política como história do progresso que

justificaria as relações entre autoridade e poder. Já há algum tempo e de modo mais

acirrado nas últimas décadas, a história política é história das relações de poder e,

não necessariamente, é justificada pelo progresso, mas interpretada na presença

dos movimentos de diferentes atores políticos, não apenas a autoridade, mas,

inclusive – e nas últimas décadas principalmente –, aqueles a quem se

convencionou chamar de “excluídos da história”, isto é, excluídos daquela história

política criticada por Argan. Deste modo, por pensar o movimento da história da arte

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como cíclico e não como progressivo, o autor a concebe como “história da cultura,

mas de uma cultura sui generis, estruturada e dirigida pelo empenho operativo de

um trabalho a ser executado de maneira a ter valor de exemplar” (ARGAN, 2005, p.

67) e, nessa via, concebe o âmbito da cultura como toda vivência, isto é, experiência,

que se for de um tempo passado é virtualidade aberta no tempo presente.

Em segundo lugar, articulando-se ao pensamento elaborado acima, pois se

cultura é experiência e as experiências passadas tornam-se memória que a qualquer

momento pode ser ativada pelo exercício de imaginação, o qual é processado pelo

homem que produz obras de arte, então, arte é fazer e o artista é um homo faber. A

partir disso, vale lembrar que a consciência que concebe a obra de arte, a

consciência do artista, é construída das relações do artista com o meio em que vive,

seus desejos pessoais, suas ideias sobre arte, seus conhecimentos técnicos, entre

outras coisas, que se convertem em poética, a qual “é um determinado gosto

convertido em programa de arte, onde por gosto se entende toda a espiritualidade

de uma época ou de uma pessoa tornada expectativa de arte” (PAREYSON, 1997, p.

17), dito de outro modo, citando Lionello Venturi, Argan (2005, p. 29) diz que “gosto”:

compreende as idéias sobre a arte e as preferências artísticas, os conhecimentos técnicos, os modos convencionais de representação, as normas ou as tradições iconográficas e, até mesmo, certas predileções estilísticas geralmente comuns aos artistas do mesmo círculo cultural.

Sendo assim, a poética media o processo estrutural de construção do objeto artístico,

mas não o define, pois é somente tradução do gosto do artista em normas e

operações que servem de guia ao fazer.

Neste sentido, como arte não é tão-somente executar um projeto previamente

idealizado, após revisar as três definições tradicionais de arte; como fazer, conhecer

ou exprimir, o filósofo valdostano Luigi Pareyson defende seu pensamento de arte

como formatividade, pois “arte é também invenção […] é um tal fazer que, enquanto

faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” (PAREYSON, 1997, p. 25-26, grifos do

autor). Assim, execução e invenção decorrem pari passu e dão lugar à obra de arte

original que, para Pareyson, são as características da forma e logo, “a atividade

artística consiste propriamente no ‘formar’, isto é, exatamente num executar,

produzir e realizar, que é, ao mesmo tempo, inventar, figurar, descobrir”

(PAREYSON, 1997, p. 26). Enfim, em outras palavras, a arte também é

conhecimento, porque ensina maneiras novas de ver a realidade e expressa-se,

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enquanto é forma, como organismo vivo que se organizou e vive por conta própria a

partir da compressão e do compêndio das experiências culturais “na unidade de um

objeto para oferecer-se simultaneamente, como um todo, à percepção” (ARGAN,

2005, p. 30).

Por outro lado, se o objeto artístico, uma vez lançado ao rio da vida, oferece-

-se à percepção, assinalo os referenciais dos quais parto a fim de construir uma

interpretação histórica consciente e coerente acerca do trabalho de Claudio Tozzi.

Deste modo, a partir do eixo hermenêutico, pretendo interpretar as obras do

artista expondo seus possíveis sentidos, considerando estes como apreensão entre

o anseio e o “resultado”, e construídos pela operação de quem busca fundá-los

(CAUQUELIN, 2005, p. 94-96). Os hermeneutas concebem a obra de arte como

organismo vivo, unidade estruturada em si mesma que contém a universalidade na

unidade, o qual está sempre aí aberto, em expansão, convidando-nos a jogar com

ele. Para Gadamer, a obra como jogo indica sua condição de participação, daquele

que vai jogar junto (GADAMER, 1985, p. 39), isto é, o sentido não habita o trabalho

artístico, mas ele se dá a partir do diálogo no movimento do jogo. Pois a

interpretação é processo infinito, aliás, fundado na obra que sempre está por

terminar que, segundo Luigi Pareyson,

[…] ocorre quando se instaura uma simpatia, uma congenialidade, uma sintonia, um encontro entre um dos infinitos aspectos da forma e um dos infinitos pontos de vista da pessoa: interpretar significa conseguir sintonizar toda a realidade de uma forma através da feliz adequação entre um dos seus aspectos e a perspectiva pessoal de quem a olha. (PAREYSON, 1997, p. 226, grifo meu)

A crítica a este pensamento poderia caracterizá-lo enquanto subjetivista e

relativista, contudo, é preciso lembrar que o mundo (sentido), que surge com a obra

no jogo, é linguagem. É pela linguagem que fazemos surgir o mundo (CAUQUELIN,

2005, p. 101). Ainda assim objeções podem ser feitas à congenialidade de Pareyson

como condição de penetração na obra a fim de desvelá-la, pois se poderia cair na

perdição do sentido aparente, entretanto, ressalto que é aí, na apreensão entre o

anseio e o “resultado”, que pode entrar a contribuição da história. Já disse que a

hermenêutica está preocupada em interpretar as possibilidades semânticas da obra

de arte, logo rejeita a redutibilidade da obra a um “a priori”, como se houvesse uma

verdade única que estaria oculta e se revelaria na interpretação. Assim, a história,

ao traçar uma genealogia, convida-nos a compreender a complexidade do que é a

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obra. Tal genealogia nos auxilia “a re-situar a obra – cujas determinações extra-

-artísticas podem assim ser compreendidas –, a reconstruir uma parte dos

elementos que serviram para sua elaboração” (CAUQUELIN, 2005, p. 112).

Creio que ao leitor – se informado na História da Arte contemporânea

brasileira – tenha saltado a aproximação desta proposta com as proposições da

vanguarda brasileira dos anos 1960, esquematizada por Hélio Oiticica, em 1967,

como “Nova Objetividade”. Aí, no limite, a interpretação como participação,

interpenetração, vivência, é a própria obra. Arte é diálogo, condição de abertura e

também de ambiguidade, de uma infinidade de significados, não atribuídos à

primeira vista e que convivem na forma-significante que tem a obra. Para Umberto

Eco, “tal ambiguidade se torna – nas poéticas contemporâneas – uma das

finalidades explícitas da obra” (ECO, 2008, p. 22). Esta questão, como veremos,

apresentar-se-á nos trabalhos de Tozzi que analisarei nos capítulos 2 e 3, os quais

utilizam a ironia e a paródia como formas de expressão, típicas do processo de

apropriação de objetos e desvio de significado pelo discurso efetuado pelo artista.

Assim, como mencionarei várias vezes ao longo deste trabalho a palavra obra, que

fique explícita minha apropriação do conceito de “obra aberta” de Eco, no sentido de

uma abertura à participação-criação da obra (em seu sentido) pelo público, diferente

de um convencionalismo contemplativo da arte.

Esta questão, em sintonia com as proposições de Giulio Argan, as quais

esbocei acima, conduz-nos a interpretar a obra de arte não como reflexo de seu

contexto, mas como um jogo, um diálogo fundado na relação entre artista e mundo,

como afirmou Pierre Francastel, que a arte nos diz mais sobre os anseios e modos

de pensar do grupo social no qual está inserido o artista do que sobre os

acontecimentos ou contexto no qual esse grupo existe (FRANCASTEL, 2011, p. 17).

Ora, este esboço teórico deve ser compreendido como guia na escrita deste

trabalho, não caracterizando necessariamente uma “prisão teórica”, mas sim uma

lente dentre as possíveis com as quais os historiadores interpretam os fenômenos

artísticos no tempo.

A partir das premissas do que concebo ser uma história relacional da arte,

neste trabalho pretendo traçar uma interpretação histórica sobre os significados, os

quais produzidos através das tramas construídas entre apropriações e

frequentações da vanguarda brasileira, em trabalhos do artista visual paulistano

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Claudio Tozzi, mais especificamente no período logo após ao golpe civil-militar de

1964, que instalou um regime militar no Brasil, até a edição do AI-5 em 1968.

Aliás, qualquer pesquisador que estuda o período compreendido entre 1964 e

1985 no Brasil, depara-se com a querela terminológica acerca do golpe

empreendido em 31 de março de 1964 e da ditadura instalada em seguida. Deste

modo, assumo neste debate a seguinte posição: o golpe foi arquitetado por militares

autoritários, setores liberais e tecnoburocratas civis contra as propostas de reformas

de base de João Goulart, que possibilita a interpretação de que foi “’essencialmente

político’” (SOARES, 1994, p. 45 apud FICO, 2004, p. 54, grifo do autor) –

condensando assim a defesa dos interesses de capital internacional e associado dos

empresários articulada às motivações dos militares golpistas: caos administrativo e

desordem política, o receio de se instalar o comunismo no país e os atentados

cometidos à hierarquia e disciplina militares (FICO, 2004, p. 53-54). Deste modo,

houve um movimento frequentado por civis e militares que encaminhou o golpe, que

me faz optar pela interpretação de que a derrubada de Jango foi um golpe civil-

militar. Contudo, estando os “chefes da revolução” no poder, isto é, os militares – no

golpe prevaleceu a atuação dos militares – uma série de cisões entre civis e

militares ocorreriam, principalmente após o Ato Institucional nº 2, quando o general-

presidente Castello Branco adia a eleição presidencial e estende seu mandato,

causando descontentamento e afastamento dos setores liberais. Neste momento, o

que fora um golpe civil-militar tornava-se um regime militar. A questão ainda seria

acirrada em 1967, quando se decretara a Lei de Segurança Nacional que impôs a

Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra a toda a sociedade

brasileira, ou seja, militarizando a sociedade civil. Com o Ato Institucional nº 5 no

final de 1968, que declarava o fechamento do Congresso Nacional, e todas as

atrocidades cometidas neste período, ratificava-se a ideia de que aquilo era uma

ditadura militar (FICO, 2004, p. 52).

Nesta via, destaco neste trabalho a produção do artista visual paulistano

nascido Claudio José Tozzi, em 7 de outubro de 1944, o qual de 1964 a 1969 se

graduou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

(FAU-USP). Seus primeiros trabalhos estão vinculados a sua carreira de artista

gráfico, como o cartaz vencedor para o XI Salão Paulista de Arte Moderna, realizado

em 1963. Com o ingresso na USP, foi muito influenciado por um círculo de

intelectuais engajados na transformação social, como os professores Sérgio Ferro e

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Flávio Império e o físico e teórico de arte Mário Schenberg, sua produção se acirra e

alcança tons de comprometimento político a partir da incorporação de imagens da

natureza moderna inventada pela experiência de vida na cidade: imagens

circulantes no cotidiano dos meios de comunicação de massa (KIYOMURA;

GIOVANNETTI, 2005, p. 23).

A utilização de um atualizado vocabulário pop como proposição de resistência

cultural ao regime autoritário é característica de vários artistas visuais brasileiros,

como Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro e Antonio Dias, contudo, no jovem

artista Claudio Tozzi – pois não podemos perder de vista que na ocasião do golpe

ele tinha 19 anos – podemos encontrar nitidamente o desejo da vanguarda de

incorporação de tendências internacionais articulado a uma linguagem crítica e a

utilização de novas técnicas e novos materiais (considerados inferiores pelo círculo

tradicional da arte) para fabricação dos trabalhos, assim como a apropriação de

elementos de uma iconografia urbana que, naquele momento, atingiam uma posição

de crítica ao establishment autoritário nos primeiros anos do governo militar.

Entretanto, mesmo com inúmeros trabalhos artísticos relacionados à

retomada da figuração na arte brasileira, à resistência cultural à ditadura militar e às

apropriações da Arte Pop, a produção de Claudio Tozzi no período 1964-1968 é

raramente citada em livros de história da arte brasileira contemporânea e, quando

aparece, é apenas lembrada pela bandeira Guevara usada por Hélio Oiticica em

1968. Porém, os estudos precursores, iniciados em 1989 pelo museólogo Fábio

Magalhães, com a publicação de “Obra em construção: 25 anos de trabalho de

Claudio Tozzi”, bem como pelo crítico de arte Jacob Klintowitz, com “O Universo

construído da Arte”, estabelecem, pode-se dizer, os primeiros trabalhos de

interpretação da obra de Tozzi em perspectiva histórica. Deste modo, tornaram-se o

discurso oficial sobre o trabalho do artista.

Contudo, estudos mais recentes, de 2005, dos jornalistas Leila Kiyomura e

Bruno Giovannetti, que apresentam um espectro de discursos de artistas, críticos,

historiadores, amigos e do próprio Claudio sobre a obra do artista, têm mais em

comum com a minha proposta, a qual é interpretar a rede de relações estabelecidas

pelo artista com seu tempo (de 1964 a 1968) e as pessoas e ideias que frequentou,

através da análise de diferentes discursos construídos sobre o artista e sua obra.

Tendo em vista essa escassez de interpretações críticas e históricas sobre o

trabalho de Claudio Tozzi, compartilho a dificuldade de criar uma interpretação que

  17

dê conta de identificar e explicar o conjunto de relações estabelecidas que

resultaram em obras de arte engajada e, ao mesmo tempo, desejo que meu trabalho

possa suscitar novas problemáticas para a pesquisa histórica dos trabalhos do

artista visual paulistano.

Diante desta empreitada e suas dificuldades – divergências de informações

contidas em livros e em páginas eletrônicas da internet, raríssimas informações

sobre o processo criador dos trabalhos que eu tinha destacado na pesquisa e falta

de informações referentes à localização das obras atualmente – contatei Claudio

Tozzi através de e-mail, ao que ele respondeu e prontamente se disponibilizou para

conceder entrevista. Neste processo segui as sugestões da pesquisadora do Centro

de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação

Getúlio Vargas (Cpdoc/FGV), Verena Alberti, que indica a elaboração de um roteiro

individual de entrevista cruzando as questões decorridas da pesquisa sobre o tema

com os resultados de pesquisa biográfica (ALBERTI, 2005, p. 92).

Pois bem, no caso de minha pesquisa o tema e a biografia se confundiam,

pois tomavam como problema a produção de um artista. Então, elaborei diretamente

um roteiro contendo 27 itens a serem perguntados a Tozzi (ver Apêndice A), o qual

enviei por e-mail ao artista com um semana de antecedência à entrevista. Esta foi

realizada no dia 6 de dezembro de 2012 no ateliê do artista no bairro do Sumaré, em

São Paulo, e teve duração de aproximadamente 53 minutos. Claudio respondeu

prontamente e com riqueza de detalhes todas as minhas perguntas, além de –

finalizada a sessão e assinado o termo de autorização para uso da entrevista neste

trabalho – ter me mostrado alguns trabalhos que estava separando para enviar a

Tate Modern de Londres por ocasião de uma exposição internacional de Arte Pop.

Em seguida, efetuei a passagem da entrevista em formato oral para o escrito,

também conforme sugestões de Verena Alberti, seguindo os processos de

transcrição, conferência da transcrição e copidesque (ALBERTI, 2005, p. 173-229).

Atualmente a entrevista com folha de rosto, ficha técnica e sumário totalizando 20

páginas encontra-se disponível para consulta a qualquer pesquisador interessado no

tema (ver Apêndice B).

Apesar de não aprofundar ao longo deste trabalho questões referentes à

História Oral, gostaria de ressaltar que o uso consciente de trechos da entrevista

concedida por Claudio Tozzi parte do princípio que,

  18

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é um sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (BOSI, 1983, p. 17)

A fim de ordenar conceitualmente o trabalho, resolvi dividí-lo em três capítulos,

nos quais interpreto algumas obras escolhidas especificamente a partir da “grade

teórico-metodológica” delineada acima.

O capítulo 1, intitulado Revolução na arte: arte e política no Brasil dos anos

1960, anseia preparar o leitor para defrontar com as análises referentes, sobretudo,

aos trabalhos desenvolvidos por Claudio Tozzi no período de 1964 a 1968. Um

panorama da articulação de arte e política no Brasil dos anos 1960, não pretende

ser nem um manual – que ofereceria um programa tautológico de ação, nem um

detalhamento extensivo de quem, como e porquê propôs e/ou fez essa articulação.

Entretanto, minha proposta é a de averiguar algumas proposições e ações

emblemáticas que influenciaram Tozzi em sua atividade artística e política. Trata-se,

portanto, de esboçar uma genealogia do engajamento do artista paulistano através

da elaboração de um guia teórico e histórico que dê conta de perceber as

frequentações, que ocorreram direta ou indiretamente, operados por Tozzi, assim

como os posicionamentos teóricos e metodológicos assumidos em minha escrita

dessa narrativa histórica.

O capítulo 2, intitulado Fragmentos de Tozzi: arte como resistência, abre a

exposição das interpretações históricas efetuadas sobre os trabalhos selecionados

de Claudio Tozzi, especificamente aqueles que miravam atuar como resistência à

ditadura militar. Neste sentido, são analisadas duas obras em relação com o mundo

que as rodeiam a fim de percebermos as apropriações e frequentações efetuadas

pelo artista visual na construção de seus trabalhos.

O capítulo 3, intitulado Imagens alegóricas, artes periféricas: o bandido nas

artes, analisa as relações intertextuais entre Bandido da Luz Vermelha, de 1967, e

outros trabalhos artísticos contemporâneos a esse ambiente de Tozzi. Assim, a

partir de um tom ensaístico, traço as apropriações e frequentações operadas pelo

artista paulistano com a Arte Pop de New York pelo trabalho de Roy Lichtenstein,

com as proposições “marginais” de Hélio Oiticica e com os filmes O Bandido da Luz

Vermelha, de Rogério Sganzerla, e Pierrot le fou, de Jean-Luc Godard.

  19

2 REVOLUÇÃO NA ARTE: ARTE E POLÍTICA NO BRASIL DOS ANOS 1960

Atualmente, é praticamente um senso comum caracterizar os anos 1960

como marcados por um ímpeto revolucionário, o qual se estende em vários sentidos

e com significados diversos aos níveis político, econômico, cultural, pessoal, entre

outros. Tanto que é possível observarmos o apogeu desse clima com les

événements de 68 promovidos por estudantes e trabalhadores franceses, bem como,

com a Primavera de Praga, as manifestações estadunidenses contra a guerra no

Vietnã ou ainda com os hippies e a contracultura.

Contudo, o maio de 68, como é conhecido, guarda relações com projetos de

ação no mundo – produtos e produtores de ressonância que, por vezes, passam

despercebidos. Na tentativa de compreender esse movimento politizado, concordo

com a afirmação de Marcelo Ridenti: “na década de 1960, a utopia que ganhava

corações e mentes era a revolução” (RIDENTI, 2000, p. 44, grifo meu). Porém,

convém nos perguntarmos: que espécie de utopia é a revolução?

Primeiramente, é preciso destacar o caráter de movimento da revolução, de

inquietação, de desejo de mudança frente aos valores hegemônicos. Mas como

poderiam os artistas a partir de seu fazer específico – a fabricação de objetos

estéticos, participar da revolução?

Eu proponho, a fim de construir uma resposta coerente a essa questão,

observar como o filósofo francês Mikel Dufrenne examinou as possibilidades de

relações da arte com a política. Vale lembrar que os acontecimentos do maio de 68

francês, dos quais como professor na Universidade de Nanterre participou ao lado

dos estudantes, marcaram profundamente uma mudança no pensamento do filósofo.

Inicialmente, questionando-nos sobre a atitude que poderia assumir um artista na

sociedade, é possível constatar que ele pode tomar posição de indiferença a uma

situação ou de recusa. Analisando mais de perto uma posição de recusa, podemos

examinar que essa pode gerar um desejo de mudança que talvez desague em

engajamento político do artista, cogitando que, para Mikel Dufrenne:

É política toda ação que exerce um impacto no campo social sobre a vida social. E esse impacto é suficiente para que uma ação que não implica um engajamento deliberado se encontre objetivamente engajada à sua revelia: muitas ações que se crêem ou se pretendem neutras são, apesar disso, políticas. (DUFRENNE, 1976, p. 290-291 apud FIGURELLI, 2007, p. 148)

  20

Portanto, o filósofo defende uma ação política em campo expandido, o que é

visto com positividade a partir de um engajamento à gauche, de uma politização à

esquerda que é só o que interessa para o destino da arte, estando implícito nesse

projeto “uma certa recusa do iníquo, de tudo o que triunfa, menospreza, oprime,

desnatura, uma certa amizade com o mundo, uma certa exigência de liberdade, um

certo gosto pela dança e por tudo que ela tem de generoso e de despreocupado”

(DUFRENNE, 1974, p. 12 apud AMARAL, 2003, p. 8). Pensando na realidade

brasileira dos anos 1960, tal consideração faz lembrar a definição de esquerda,

aproximando-se da utilizada por Jacob Gorender, empregada por Marcelo Ridenti

como “forças políticas críticas da ordem capitalista estabelecida, identificadas com

as lutas dos trabalhadores pela transformação social” (RIDENTI, 2000, p. 17, nota 1).

Ora, se o engajamento político do artista no sentido de produzir uma arte

comprometida com a transformação social faz sentido é porque

O artista tem conhecimento de que detém um certo estatuto, que desempenha – ou fazem-no desempenhar – um papel, que não pode acreditar na neutralidade da arte a menos que ignore o destino das obras a partir do momento em que entram no circuito comercial, e talvez mesmo sua gênese, quando ele pensa só estar seguindo sua fantasia ou só obedecendo a seu apelo. Então ele se sente responsável, não apenas pela obra que cria, mas pelo uso que dela é feito, os efeitos por ela produzidos. Perdida a inocência, denunciando o álibi: não faço política, é necessário que ele tome partido, e não apenas como cidadão, mas como artista e, portanto, sem renunciar a sê-lo. (DUFRENNE, 1974 apud AMARAL, 2003, p. 14).

Nesta via, sugiro, a partir de Dufrenne, como possibilidade de articulação

entre arte e política, a utopia, o pensamento utópico. Para além de uma querela

filológica, o filósofo defende uma utopia que ocorre no tempo da história como

“pensamento do possível que se anuncia no real e nele encontra um começo de

realização” (DUFRENNE, 1974, p. 175 apud FIGURELLI, 2007, p. 153). Sendo

assim, o discurso utópico se efetiva no engajamento que desagua em ação. Deste

modo, ressalto que, na leitura de Dufrenne, a utopia, como inquietação sobre o real,

conduz à ação sobre ele a fim de lutar contra a ideologia, a qual é qualificada como

discurso hegemônico, aquele que justifica e mantém a dominação sobre os

oprimidos (DUFRENNE, 2007, p. 151). Portanto, diferentemente dos discursos do

saber-poder,

A utopia não procura convencer pessoas indiferentes à força de argumentos ou seduzi-las à força de artifícios; ela se dirige àqueles que, no mesmo lugar, partilham da mesma experiência; àqueles que consentem porque co--

  21

-sentem; e ela não lhes dirige sua palavra, ela é sua palavra. (DUFRENNE, 1974, p. 199 apud FIGURELLI, 2007, p. 153)

Pautado, então, na vivência, o lugar por excelência de verificação do discurso

utópico é na práxis, tendo como ação imediata o efeito de discurso revolucionário.

Como característica do processo reflexivo de produção de conhecimento,

objeções sempre são lançadas, principalmente em um tema tão complexo como

esse de arte e política. Em suma, a principal objeção que se faz à ideia de

politização do artista é que ele condicionaria seu trabalho à política, preocupando-se

mais em transmitir um conteúdo, o que na tese dos iludidos defensores da arte pela

arte deformaria o próprio caráter estético da obra de arte. Entretanto, a arte, assim

como a política, são formas de cultura, donde a consideração sobre a relação entre

elas requer uma problematização histórica da produção cultural como

produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, relativa a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação de sentido. (CANCLINI, 1982, p. 29)

Desses fenômenos, a arte é um dos níveis mais significativos, logo fazendo

parte da esfera cultural que é o “terreno onde política, poder e dominação são

mediados” (ESCOSTEGUY, 2001, p. 14 apud NAPOLITANO, 2011b, p. 26).

Resumindo, voltamos à questão da (não) neutralidade da arte, pois o seu campo

específico de atuação está conectado a outros, cabendo aí ao artista tomar uma

posição frente à mediação que exerce entre arte, sociedade e política.

Posicionando-se como artista engajado, se empenhará “em prol de uma causa

ampla, coletiva e ancorada em ‘imperativo moral e ético’ que acaba desembocando

na política, mas não parte dela” (NAPOLITANO, 2011b, p. 29). Isto é, como diz Luigi

Pareyson,

Trata-se então de fins não a serem perseguidos com a arte mas a serem conseguidos na arte: está em jogo não uma subordinação da arte a um fim social, mas a assunção de tal fim na própria arte; não que a arte consiga ser arte se o alcançar, mas a arte o alcança porque conseguiu ser arte. A esta dupla e oposta possibilidade encontram-se expostas as poéticas, que podem prescrever ao artista a difusão de determinadas idéias religiosas, ou políticas, ou filosóficas em determinados ambientes, ou classes, ou povos, ou nações; e podem fazê-lo legitimamente, enquanto, de per si, auspiciam não a subordinação instrumental da arte àqueles fins, mas o advento de uma arte inspirada naqueles princípios e no desejo de difundi-los. (PAREYSON, 1997, p. 120-121)

  22

Partindo, então, de um caráter que não destrói a preocupação estética, ou

ainda, que não transforma seu trabalho em mero veículo de proposições políticas, o

artista engajado não tem a política como ponto de partida, mas sim como ponto de

chegada, a partir de sua atuação como cidadão no mundo. “Em suma: em vez de

politizar a arte, estetizar a política” (FIGURELLI, 2007, p. 155).

Deste modo, é possível observar que, a partir de um engajamento à esquerda,

o artista faz de seu trabalho uma experiência de liberdade, questão que repercute no

que disse o historiador e crítico de arte Giulio Argan, “a história da arte não está

ligada à história do poder ou da autoridade, mas, através da história do trabalho, à

da liberdade” (ARGAN, 2005, p. 40). O artista, assim, parte de uma posição de

trabalho não-alienante, oposta à realidade do trabalhador que “vendeu sua força de

trabalho ao capital, por lhe faltarem os meios materiais para a produção de uma

mercadoria” (MARX, 1996, p. 475), transformando-se a partir de um processo que

mutila o trabalhador em trabalhador parcial, o qual se aperfeiçoa em uma função

exclusiva e a repete continuamente (MARX, 1996, p. 456). Ora, se na divisão do

trabalho assalariado, o trabalhador não possui o que produz e causa alienação da

própria atividade realizada, então, esse processo não engloba o artista, pois ele

possui consciência do processo de produção de sua obra – apesar de que, com a

arte contemporânea, isso vem se diluindo e mesmo já se tenha incutido o regime de

divisão do trabalho em ateliês, além da utilização de materiais como tintas, pincéis,

espátulas e outras ferramentas que tenham sido produzidas pela indústria e

compradas pelo artista – e não está condicionado a nenhum outro fim que não seja

o estético, o de produzir um trabalho artístico. Trata-se, portanto, de um

engajamento no qual o artista, a partir de sua posição de trabalhador não-alienado,

insere-se na luta pela tomada de consciência dos trabalhadores em prol da mudança

do mundo.

Como já foi citado acima, a utopia que marcou a década de 1960 foi a

revolução. Neste espectro, os artistas do período nos diversos segmentos; música,

cinema, teatro, literatura e artes plásticas, empreenderam lutas políticas e culturais,

que foram compreendidas por Marcelo Ridenti a partir da tese de “utopia

revolucionária romântica […] [que] valorizava acima de tudo a vontade de

transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, num processo de

construção do homem novo” (RIDENTI, 2000, p. 24, grifo do autor). Contudo,

versões diferentes desse romantismo apareceram no Brasil ao longo da década,

  23

mesmo antes e depois do golpe civil-militar de 1964, o qual se configurou como uma

ruptura no pensamento utópico-revolucionário de esquerda. Portanto, a partir de

uma aproximação da definição de Dufrenne sobre utopia com a tese de “utopia

revolucionária romântica” de Ridenti, é possível dizer que, assim, o conceito de

utopia é deslocado. No calor dos acontecimentos dos anos 1960, a utopia, como

sociedade imaginária ideal – projeto irrealizável de uma sociedade equilibrada e

pacífica –, dá lugar a um projeto do possível que pretende atuar no espaço-tempo

humano, envolvendo aqueles que se engajam nesse projeto a intervir com ações na

realidade questionada. Talvez aqui o pensamento utópico já adiantaria a questão

referente ao horizonte de expectativa na pós-modernidade: não mais o sentido

teleológico do progresso apesar de tudo, mas uma possibilidade de futuro melhor,

possível a partir de intervenções no presente que, porém, não nos dão garantias se

a empreitada se realizará, causando um desconforto que pode desaguar em

proposições radicais de conformados ou inconformados, sobreviventes de um

mundo no qual impera a tensão das incongruências: sucesso/fracasso,

crucial/irrelevante, central/periférico, global/local.

Neste sentido, uma problemática que estaria presente em praticamente todo o

pensamento intelectual e artístico do período é a consideração do popular.

Característica da fase nacionalista do popular é a experiência do Centro Popular de

Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que integrou, de certa

forma, o programa de reformas de base de João Goulart, na tarefa de desenvolver

uma consciência popular que serviria de alicerce à libertação nacional. Atuantes no

período 1961-1964, os CPCs guardavam em seu projeto político-cultural a herança

do nacional-popular lido pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) que se resumia em

levar a arte ao povo a partir do caminho da arte popular revolucionária, a qual

objetivava restituir ao povo a posse de si mesmo e tomar posição de sujeito da

história (AMARAL, 2003, p. 322).

A primeira sistematização teórica cepecista é de Carlos Estevam Martins, que

em 1962 escreveu o “Anteprojeto do Manifesto do CPC”, no qual anunciava, na ótica

de “arte popular revolucionária”, a supremacia do conteúdo na obra de arte,

destacando que “a qualidade essencial do artista brasileiro, em nosso tempo, é a de

tomar consciência da necessidade e da urgência da revolução brasileira e tanto da

necessidade quanto da urgência” (MARTINS, 1979 apud AMARAL, 2003, p. 323).

Nesta via, o que importa é a força de comunicação da arte enquanto canal

  24

transmissor, que seria reiterada por Ferreira Gullar – presidente do CPC do Rio de

Janeiro após Carlos Estevam Martins – em “Cultura posta em questão”, ensaio/livro

terminado no início de 1963 e publicado às vésperas do golpe civil-militar de 1964:

A tese dos “comprometidos”, que já está esboçada na análise da primeira tese, consiste em afirmar, não apenas o caráter ideológico da obra de arte, como a necessidade que ela atue como veículo de conscientização do público. Essa posição implica uma atitude consciente, da parte do autor, com respeito à realização da obra e a seu significado: pode-se dizer que o autor “comprometido” parte de uma visão dentro da qual a realidade se dá explicada e seu propósito é transmitir, menos uma perplexidade, do que uma consciência. (GULLAR, 2002, p. 44, grifo do autor)

Portanto, na visão do CPC, a possibilidade de articulação entre arte e política

é uma necessidade no sentido de conscientização do povo frente aos problemas

que enfrenta. Todavia, essa tarefa de desalienação e de libertação nacional

marcada por uma utopia de identidade nacional genuinamente popular seria em

pouco tempo criticada como “pedagogia política” que se explicitava em obras que

pretendiam conscientizar as massas. Como nos diz o historiador Marcos Napolitano:

[…] essa postura, por mais que se tentasse, não conseguia resolver o velho dilema da aliança entre intelectual e povo: o primeiro, ao falar pelo segundo, construía seu discurso por meio de um conjunto de representações simbólicas que tendiam a desconsiderar as possíveis características do povo “real”, em todas as suas contradições. (NAPOLITANO, 2008, p. 52)

Logo, essa proposta de arte engajada se fundava em certo potencial

autoritário sobre o povo ao ser tratado como “massa inerte, inculta, despolitizada […],

cuja consciência política precisava ser despertada” (ROUANET, 1988, p. 3 apud

RIDENTI, 2000, p. 31). Enfim, de maneira frustrante, a atuação dos artistas se

efetivava quase que absolutamente apenas em seu meio social imediato, o público

estudantil (lembro que o CPC atuava sob a égide da UNE). As experiências de

ampliar o circuito pelo qual a arte engajada passava, como os espetáculos de rua ou

em porta de fábrica, se configuravam como saídas precárias e não materializavam a

popularidade que o CPC objetivava. Deste modo, apesar de eficaz no meio

estudantil, a experiência do CPC não atingia o seu público-alvo, assim,

caracterizando uma impotência de romper as fronteiras desse meio (NAPOLITANO,

2001, p. 106).

Nesta via, saliento também que, apesar de uma preocupação com as artes

plásticas enunciada, por exemplo, por Ferreira Gullar em seu “Cultura posta em

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questão”, a experiência do CPC marcaria, sobretudo, as três artes de espetáculo: o

teatro, o cinema e a música. Tal predomínio marcava a influência direta que o

Movimento de Cultura Popular (MCP), fundado em Recife e ligado à Secretaria de

Educação do município na gestão de Miguel Arraes, tivera sobre o CPC, pois nas

ações da organização pernambucana prevalecia o teatro por sua característica de

relação com o coletivo (AMARAL, 2003, p. 317), donde se poderia atingir em maior

expressão a “ingênua consciência” do povo. Em depoimento contido no filme

Tropicália, de Marcelo Machado, Tom Zé, que participou do CPC da Bahia, reitera o

caráter didático-conscientizador cepecista: “CPC era a classe universitária reunida

pra fazer arte para as outras escolas, pra manter vivo o espírito de confrontação com

o capitalismo” (TROPICÁLIA, 2012). Esta hegemonia estaria pautada também na

própria circulação da obra de artes plásticas, a qual estava intimamente ligada aos

grupos de elite, tanto porque o artista plástico não se preocupava em estabelecer

uma relação com o grande público. Grosso modo, esta é a crítica de Ferreira Gullar

à situação da pintura e da escultura no Brasil em 1963, a qual o levaria a dizer que:

Em condições normais, se o artista plástico dependesse do público para sobreviver, morreria de fome. Quem o sustenta, portanto, é aquela minoria abastada que aprendeu a lição da burguesia européia do século XIX. Compra suas obras, porque, no futuro, elas valerão muito. Logo, compra-as, na maioria dos casos, não por entendê-las, não por amá-las, mas porque comprá-las é um bom investimento, e porque é sinal de cultura gostar-se de obras de arte audaciosas… Então, para quem fala o artista plástico de hoje? Se não é para o público, se não é para a crítica, se não é para os seus compradores – é para ninguém. Queira ele ou não, tenha ele ou não o que dizer, o seu papel na sociedade capitalista atual é quase que apenas criar um pretexto para especulações e investimentos não-produtivos. (GULLAR, 2002, p. 80)

Apesar da análise um tanto apressada do poeta maranhense – se pensarmos

na ruptura neoconcreta que se iniciara com a I Exposição Neoconcreta em 1959, no

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), da qual o próprio Ferreira

Gullar participou, que exaltava uma ideia orgânica de arte, “da obra como uma trama

de relacionamentos complexos com o espectador” (RIBEIRO, 2003, p. 125) – não

era infundada a interpretação de que os artistas plásticos em sua maioria produziam

obras de caráter contemplativo que circulavam no mercado elitista de arte. Todavia,

como já citei acima, alguns artistas se movimentavam a fim de em suas

experimentações estéticas, incluir o público como participador, agente propulsor de

sentido na obra de arte. Obviamente, refiro-me aos trabalhos de Lygia Clark,

  26

inicialmente com os Bichos, de 1960, e de Hélio Oiticica, desde o início dos anos

1960, com Penetráveis, Bólides e Parangolés, que marcaram uma passagem do

moderno ao contemporâneo a partir de investigações da questão sensorial,

chamando o público, a partir da atuação corporal, a participar como elemento

constituinte da obra (DUARTE, 2008, p. 53-58). Portanto, eu acredito ser importante

pensarmos tais proposições em seu aspecto revolucionário, não apenas no campo

artístico, mas também no político, isto é, permeando os exercícios de liberdade.

Com o advento do golpe civil-militar de 31 de março de 1964, instalou-se um

sentimento de derrota na esquerda brasileira. Assim, a equação político-cultural do

CPC, na qual consciência social (ideologia) subordinava-se ao ser social (condições

materiais), era invertida, a consciência social era então priorizada na luta contra a

ditadura, pois o fim da política nacionalista reformista de Jango e o autoritarismo

político-institucional instalado pelos militares golpistas questionavam as posições da

esquerda, principalmente aquela ligada ao PCB (NAPOLITANO, 2008, p. 49). Deste

modo, no momento logo após ao golpe notou-se um inchaço da esfera cultural,

“supervalorizada, inclusive, porque era, bem ou mal, o único espaço de atuação da

esquerda derrotada” (NAPOLITANO, 2011a, p. 43). Foi esse inchaço que, por

exemplo, permitiu a Roberto Schwarz lançar sua célebre frase sobre o período 1964-

-1969: “Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no

país […] [que] Assinala, além de luta, um compromisso” (SCHWARZ, 2005, p. 8,

grifo do autor). Uma hegemonia que se fundava agora em uma produção cultural

autônoma que era cada vez mais atraída ao mercado de bens simbólicos, até

porque os elos da arte engajada com o povo tinham sido cortados com o

fechamento de organizações e espaços culturais como o CPC da UNE.

De fato, desde 1963 alguns artistas brasileiros frequentavam novos territórios

artísticos, os quais tendiam a um realismo diferente daquele enunciado pelo CPC,

distinto de um programa praticamente socialista de elevar o nível cultural do povo a

partir de um realismo embutido de traços regionalistas que invocava os estereótipos

do homem simples e da luta de classes. Aos poucos se difundiam no Brasil as novas

tendências figurativas europeias, pois

Ao iniciar os anos 60, a figura emergia de forma tão freqüente que o fenômeno de uma nova figuração ficou patente. Dessa vez, diferente da anterior, ou seja, não representativa, mas alusiva, expressiva, podendo ter caráter fantástico ou grotesco, passando rapidamente da condição de uma figuração representativa de estados subjetivos, sentimentais, para uma

  27

figuração vinculada à imagem do significado proposto pelo artista, que se abria a uma percepção do mundo atual da paisagem urbana, das imagens que povoam seu cotidiano. Configurava-se uma tomada de consciência de uma geração sobre o estado da sociedade e da civilização, abordando uma problemática mais crítica e subversiva, uma arte polêmica que dava possibilidades da colocação de compromissos morais e políticos ante a realidade. (ALVARADO, 1999, p. 13)

Neste momento, a “nova figuração” – termo criado pelo crítico Michel Ragon,

em 1961, para indicar uma retomada da figura entre pintores parisienses (RIBEIRO,

2003, p. 126), aportava na Galeria Relevo, em 1964, no Rio de Janeiro, com artistas

parisienses relacionados a Mythologies Quotidiennes na exposição “Nova Figuração

da Escola de Paris”. Organizada pela marchande e crítica de arte Ceres Franco,

essa mostra marcou fundamentalmente o contato de artistas brasileiros com a neo-

figuração francesa antes mesmo de eles terem estabelecido uma relação mais direta

com a Arte Pop inglesa e estadunidense (OLIVEIRA, 1994, p. 156).

Em São Paulo, um ano após a fundação do Museu de Arte Contemporânea

da Universidade de São Paulo (MAC-USP), isto é, em 1964, o historiador da arte

Walter Zanini, então diretor da instituição, trazia a mostra do grupo Phases,

constituído por artistas surrealistas dissidentes da linha revolucionária e histórica de

André Breton. A exposição, tendo em torno de 200 obras de mais de 50 artistas, foi

a primeira de nível internacional a investir nas pesquisas recentes sobre a imagem

naquele momento. Além disso, a capital paulista sediava a Bienal de São Paulo, que

apenas em sua nona edição, em 1967, reuniria maior concentração de trabalhos

relacionados às novas figurações, predominando os exemplares de Arte Pop

estadunidense no “Ambiente USA: 1957-1967” (RIBEIRO, 2003, p. 126).

Contudo, viria do teatro e da música popular a reação mais decisiva ao

regime militar instalado em abril de 1964. O espetáculo “Opinião”, escrito por

Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, e protagonizado por Nara

Leão, Zé Keti e João do Vale, estreou em 11 de dezembro de 1964 e guardava uma

herança cepecista/pecebista de frente única aliada em prol da defesa da nação, bem

como buscava desenvolver uma comunicação popular. Assim, “Opinião” marcou

uma resposta cultural e política da esquerda derrotada no golpe e a revisão do

debate em torno do nacional-popular (NAPOLITANO, 2008, p. 51-52). Vale lembrar

que na lógica nacionalista-popular do governo de João Goulart a configuração do

nacional dava-se pelo popular, por exemplo, como disse Ferreira Gullar em seu

“Cultura posta em questão”, de 1963: “A cultura popular tem caráter eminentemente

  28

nacional e mesmo nacionalista” (GULLAR, 2002, p. 29). Contudo, com o golpe civil-

-militar de 1964, abriu-se uma discussão na perspectiva de pensar os problemas

socioculturais no aspecto mais popular do que nacional, reduzindo a amplitude da

frente única nacionalista e apostando mais no popular – não como consciência

ingênua, a fim da construção de uma resistência ao regime militar. Deste modo, o

colapso do nacional-popular significava também a falência de uma esquerda

nacionalista e anti-imperialista, a qual nutria um sentimento que, para Caetano

Veloso, admirador do cinema e da canção estadunidense, soava como algo raso

(TROPICÁLIA, 2012). Daí surgiria uma esquerda ampla, congregando, entre outros,

dissidentes do PCB, partido que inevitavelmente sofrera um racha com o golpe

desfechado pelos militares. Então,

Com o movimento de 64, interrompendo-se a deriva “progressista” por onde parecia ingressar o processo político brasileiro, é criada uma situação até certo ponto paradoxal: o país, encaminhado pelos trilhos modernos e selvagens da industrialização dependente, encontra suas elites cultas fortemente marcadas por uma disposição que, em sentido amplo, poderíamos dizer “de esquerda”. O campo intelectual poderá desempenhar então, nessas condições, ainda que de forma não homogênea, um papel de “foco de resistência” à implantação do projeto representado pelo movimento militar. (HOLLANDA & GONÇALVES, 1986, p. 20-21)

Traduzida para as artes visuais, a proposta de resistência ocorreria pelo

diálogo crítico com a realidade sociocultural brasileira nas obras, das quais o

espectador era chamado a participar, rompendo-se o tendão meramente

contemplativo da arte.

Concomitantemente a uma meditação sobre a crise do nacional-popular com

a ruptura do golpe de 1964, que estimulou um processo de autonomia de

intelectuais e artistas frente às disposições partidárias fragilizadas, os artistas

lançaram mão de novas investigações em seus ateliês, articulando novas

concepções de arte ao contato com a realidade política e social. Claudio Tozzi, em

entrevista concedida a mim em dezembro de 2012, resumiu bem como se deu tal

ruptura nas artes visuais:

Quer dizer, a arte não era só um objeto de você contemplar, não era mais uma pintura de cavalete, mas era uma pintura trabalhada mesmo com as tintas que se utilizavam para pintar placas, dos meios de comunicação de massa. Enfim, era uma [silêncio] linguagem bastante revolucionária em termos de você trabalhar com uma técnica quase que muito simples, mas com uma força muito grande, não é? (TOZZI, 2012, p. 5)

  29

Isto é, ao mesmo tempo em que buscavam romper o tendão contemplativo da

arte – associado a um embrionário mercado de arte brasileiro restrito às elites, os

artistas buscaram assumir uma posição de aproximação entre arte e vida a partir da

postura participativa, deles em relação à realidade e do público em relação às obras.

Deste modo, uma nova “utopia revolucionária romântica” era construída. A

partir da crítica ao nacional-popular cepecista, agora, acirrada pela fratura causada

pela implantação do regime militar, a utopia que despontava era a de uma

vanguarda brasileira elaborada como estratégia de uma arte engajada (REIS, 2006,

p. 22). Um dos primeiros artistas a endossar um programa de vanguarda foi

Waldemar Cordeiro, reconhecido por alguns como “papa do concretismo naquele

período” (depoimento de Sérgio Ferro apud RIDENTI, 2000, p. 179). Em artigo

publicado na revista “HABITAT” nº 77, de 1964, Cordeiro atento às novas

configurações do campo artístico a níveis internacional e nacional, assumia uma

“Nova Figuração” não representativa em termos convencionais ou simbólicos, mas

como uma intencionalidade a partir de um realismo histórico construído na

linguagem da arte contemporânea que apresentaria a realidade (CORDEIRO, 1978,

p. 53). Assim, não casualmente, a posição do artista, no quadro do colapso do

nacional-popular, é de uma crise da representação. De certo modo, a vanguarda que

se anunciava continha em si uma crítica ao modelo cepecista de “arte popular

revolucionária”, a qual desaguava em um figurativismo mecânico, e intencionava

uma ação de intervenção direta no real. Neste sentido,

O novo conceito proposto pela vanguarda rejeita a ideia de uma arte como representação. Enquanto produtora de uma realidade específica, a arte renuncia a traduzir em figuras realidades alheias ao seu próprio universo. O real já se encontra implicitamente contido na obra de arte vanguardista, na qualidade de opção sobre o uso dos materiais que a história oferece, e que podem ser valores, mitos, instrumentos técnicos, etc., sempre tomados como possibilidades da forma e não como referentes de alusões simbólicas. (SAMPAIO, 1993, p. 8)

No período em que vigorou esta vanguarda, aproximadamente de 1964 a

1968, quando “boa parte dos artistas brasileiros pretendia, ao fazer arte, estar

fazendo política” (ARANTES, 1986, p. 69), seu pensamento utópico consistia em

concentrar, em uma síntese dialética, as contradições de um país subdesenvolvido:

o nacional e o internacional, o artesanal e o industrial, o avançado e o precário, o

nordeste e o sudeste, a cultura popular e a cultura de massa. A partir de Marcelo

Ridenti, pode-se pensar que a crítica efetuada pelo meio artístico à realidade social

  30

e política brasileira é ressonância do trauma ético-cultural e político-moral (RIDENTI,

2000, p. 53) advindo da instalação de um regime militar que, além de castrar as

liberdades individuais, incentivava e acelerava o desenvolvimento de uma sociedade

de consumo no Brasil e, por conseguinte, de uma cultura de massa. Este processo

de repressão e incentivo pelo Estado autoritário das ações relacionadas à esfera

cultural, consolidando um mercado de bens de consumo cultural (ORTIZ, 1994, p.

113-116), pode ser chamado de modernização conservadora, pois tende à

manipulação das vidas e dos meios de comunicação de massa para fins autoritários

em nome da segurança nacional. É possível dizer ainda que foi do combate a um

outro discurso – o discurso autoritário dos militares golpistas que pretendiam

“eliminar o comunismo, a ‘subversão’, a corrupção etc. que impediriam a caminhada

do Brasil rumo ao seu destino de ‘país do futuro’” (FICO, 2004, p. 36), que o discurso

utópico revolucionário de vanguarda teve seu apogeu, visando, assim, ao combate

pela via da resistência.

Este clima de “cisão fáustica” – expressão utilizada por Marshall Berman para

caracterizar um desencanto dos intelectuais frente às contradições do capitalismo e

do mundo moderno – culminou na cultura de vanguarda de países do Terceiro

Mundo em “visões, ações e criações revolucionárias” (BERMAN, 2007, p. 57)

marcadas pela identidade “subdesenvolvida”. Logo, não seria casual que Hélio

Oiticica, ao sistematizar o estado da arte de vanguarda brasileira, proferisse como

seu lema: “DA ADVERSIDADE VIVEMOS!” (OITICICA, 2006, p. 168).

No panorama da resistência, a primeira manifestação das artes visuais após o

golpe civil-militar de 1964 foi, segundo muitos críticos – Ferreira Gullar, Mário

Pedrosa e Frederico Morais, por exemplo (REIS, 2005, p. 81) – a exposição “Opinião

65” que, de agosto a setembro de 1965, ocorreu no MAM-RJ. Inspirando-se no show

“Opinião” (citado anteriormente) do ano anterior, a marchande e crítica Ceres Franco

e o marchand Jean Boghici, proprietário da Galeria Relevo, reuniram artistas

brasileiros e internacionais que, de certo modo, desenvolviam trabalhos próximos

marcados pela figuração e por experimentações de participação do público. Para o

historiador da arte e curador Paulo Reis: “o nome da exposição evocava as urgentes

opiniões da classe artística ao regime então instalado, a uma nova configuração da

arte brasileira […] e também aquela possibilidade geral dos cidadãos em externar

opiniões” (REIS, 2005, p. 82).

  31

A esta urgência de externar opiniões sobre o regime militar instaurado, Mário

Pedrosa, um dos críticos mais influentes do período, em artigo de 1966 intitulado

“Opinião… Opinião… Opinião”, chamaria de “calor comunicativo social da mostra,

sobretudo da jovem equipe brasileira” (PEDROSA, 2007, p. 101). Esta força de

comunicação foi gerada, naquele momento, pela apropriação de personagens da

realidade social e política transformados em mitologias que geralmente se

relacionavam ao universo urbano: o General, a Miss, o bandido, o desaparecido, o

desempregado, entre outros. Assim, lembro, a partir de Roland Barthes, a atualidade

do mito na sociedade/cultura de consumo, na qual sua função é naturalizar o

histórico, destruir quaisquer lembranças de sua produção, deste modo, efetivando

sua definição semiológica enquanto “fala despolitizada” (BARTHES, 2009, p. 235,

grifo do autor).

Portanto, os meios de comunicação de massa são tomados como os locais

por excelência que despolitizam uma forma/personagem já conhecida, que neste

momento se junta ao rol das mitologias da sociedade capitalista. Descaracteriza-se

o conteúdo humano da representação, associando-a a um tipo que possui

propriedades a serem consumidas. No entanto, a tarefa dos artistas visuais que se

apropriam dos mitos contemporâneos é a contramão dessa operação de

despolitização das pessoas – quando Rubens Gerchman pinta um desaparecido, ele

quer enfatizar tanto o caráter político e social do desaparecimento (novamente um

sequestro operado pela ditadura?) quanto o caráter despolitizador/mistificador dos

meios de comunicação de massa, percebendo-o como não apenas mais um que

aparece no jornal juntamente com tantos outros. Além disso, os materiais e técnicas

tradicionais de produção artística eram substituídos ou atuavam em conjunto com

materiais precários, refugos e tintas de base plástica. Vale ressaltar também que foi

em “Opinião 65” que Hélio Oiticica apresentou seus parangolés, os quais acionavam

uma participação corporal-vivencial do público e rompiam com a definição tradicional

de obra em sua apresentação material, pois nem era a capa-parangolé a obra/objeto

e nem era o corpo um suporte dessa obra. Esta desmaterialização que marcaria a

arte contemporânea, em Oiticica aparecia enquanto proposição de vivência. Vestir o

parangolé, enquanto vivência, é que era a obra.

Nesta via, despontavam atitudes de negação da instituição Arte e seus

lugares-comuns, que tendiam a propor uma antiarte. Esta nova percepção do objeto

artístico aliada a novas formas de criação artística fez Mário Pedrosa, em artigo de

  32

1966 intitulado “Crise do condicionamento artístico”, afirmar que nesse momento de

crise do mundo, do homem e da arte, os artistas brasileiros já não estavam mais

pautados pelos parâmetros da arte moderna e, assim, sugeriu: “chamai a isso de

arte pós-moderna, para significar a diferença” (PEDROSA, 2007, p. 92).

Assim, em dezembro de 1965, inspirado na experiência carioca de “Opinião

65”, Waldemar Cordeiro em conjunto com os artistas-arquitetos Sérgio Ferro e Flávio

Império, organizou em São Paulo, na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP),

a exposição “Propostas 65”. A mostra que contou com 48 artistas atuantes no Brasil,

pretendia “fazer um inventário do ‘realismo atual do Brasil’ não apenas por meio da

apresentação de obras, mas também de sessões de debates com o público”

(COUTO, 2012, p. 74). Surgia, então, mais uma força, agora vinda de São Paulo, a

engrossar o caldo em torno da discussão da vanguarda.

Deste debate surgiu o texto de Mário Schenberg, “Um novo realismo”, no qual

o crítico afirmava que com as exposições “Opinião 65” e “Propostas 65”, assim como,

com a premiação de Wesley Duke Lee em Tóquio e de Antonio Dias e Roberto

Magalhães em Paris, havia aparecido um novo realismo na arte brasileira. Ressalto

que para Schenberg essa novidade estaria relacionada a um novo humanismo

democrático e social, que trouxe para as artes visuais a incorporação de materiais

precários e a despreocupação com o requinte artesanal. Neste sentido,

aproximando-se de Sérgio Ferro, Schenberg via o novo realismo como “uma forma

de arte participante” (SCHENBERG, 1978, p. 62), a qual se desdobraria a outros

campos que não apenas o artístico, podendo, assim, ser uma “arma” para a

conscientização nacional a partir de um posicionamento contrário à ideologia

autoritária (REIS, 2006, p. 40). Sendo assim, o maior mérito histórico do CPC, o

alerta da necessidade de uma arte engajada, manifestava-se em 1965 como utopia

revolucionária do futuro, visando a construção de um homem novo crítico da utopia

autoritária e da modernização conservadora imposta com base nela.

No ano seguinte, a experiência seria repetida e “Opinião 66” e “Propostas 66”

ocorreriam. O vigor que “Opinião” parecia ter perdido abundou em “Propostas 66”,

retomando-se a questão (sempre presente neste momento) de uma arte de

vanguarda. Tal preocupação, beirando uma mania, expressava-se na organização

em temas da exposição no dia 12 de dezembro, na qual no item “2 – PROPOSTA”

do “TEMA 1 – CONCEITUAÇÃO DA ARTE NAS CONDIÇÕES HISTÓRICAS

  33

ATUAIS DO BRASIL” podemos ver uma série de seções (3.1, 3.1.1, 3.1.1.1…)

dedicada à arte de vanguarda (ver Anexo A).

Ressalto que, no programa desta neovanguarda brasileira, a arte engajada

não reduziria o trabalho dos artistas a instrumentos de conscientização nacional e de

transformação social, mas expressaria as próprias contradições do trabalho artístico

em uma sociedade de consumo/cultura de massa/ditadura militar. Havia muitos

motivos para, nos anos 1960, principalmente, ser decretada a morte da arte (e do

artista), quando a arte moderna falira. Porém, contrariando um quadro apocalíptico,

a arte transformou-se em outra coisa, em arte contemporânea ou “arte pós-

-moderna” (se preferirmos a ideia de Mário Pedrosa). Em uma cultura de massa

marcada pelo efêmero e pelo culto à obsolescência, o trabalho do artista, produtor

de obras de valor único e exemplar, não teria lugar, assim como, em uma sociedade

que vivia sob a castração da liberdade de expressão criativa.

Neste sentido, no texto “A Arte na Sociedade Unidimensional”, de 1967,

Herbert Marcuse interpreta de modo otimista um novo devir da arte. Para o filósofo

alemão, a morte da arte significava a morte de uma linguagem tradicional que lhe

parecia incapaz de comunicar o mundo contemporâneo, principalmente as

manifestações da juventude rebelde que colocavam em pauta a linguagem artística

como linguagem revolucionária (MARCUSE, 2000, p. 259). Pois se a arte, através

da faculdade cognitiva da imaginação, guarda sua afinidade com a liberdade, em

uma realidade em que o sentido e a ordem são impostas pelos meios de repressão,

“as artes por si mesmas assumem uma posição política: a posição do protesto, da

repulsa e da recusa” (MARCUSE, 2000, p. 262).

Portanto, como dito anteriormente quando falava de Mikel Dufrenne, o artista

acaba desembocando na política em um momento de “quase fusão entre política e

cultura” (RIDENTI, 2000, p. 55), bem como se engaja a partir de uma revolução no

seu próprio modo de fazer arte, a qual estaria relacionada organicamente a um

engajamento político. Isto é,

Na obra de arte orgânica, os conteúdos político-morais que o autor deseja expressar estão necessariamente subordinados à organicidade do todo. Significa que esses conteúdos (queira-o ou não o autor) se tornam partes justamente do todo da obra para cuja constituição contribuem. A obra engajada só pode ser bem-sucedida quando o próprio engajamento é o princípio unificador que a perpassa (inclusive em sua forma). (BÜRGER, 2008, 176)

  34

Deste modo, no trabalho do artista da dita neovanguarda, há uma tensão

entre a experimentação estética e a crítica social e política que se resolve, ou pelo

menos deveria, na obra de arte. De certa forma, foi neste clima que, já em

“Propostas 66”, Hélio Oiticica afirmaria que a tendência específica da vanguarda

brasileira naquele momento era a busca de uma “nova objetividade”, o que no ano

posterior desaguaria na exposição organizada pelo artista no MAM-RJ.

Não seria exagerado dizer que “Nova Objetividade Brasileira”, ocorrida em

abril de 1967, formularia a síntese do programa da arte de vanguarda iniciado com

“Opinião 65”, assim como fecharia um ciclo analítico da arte brasileira dita pós-

-moderna (PEDROSA, 2007, p. 92). Ressalto que, não casualmente, as exposições

nesse período tomaram uma grande importância pois, com o fechamento das

organizações culturais após o golpe de 1964, elas foram trazidas “para o próprio

cerne do processo de construção poética do experimentalismo dos anos 60, ligado

quase sempre à construção e criação de novos espaços” (REIS, 2005, p. 166).

Neste sentido, as apropriações efetuadas pelos artistas brasileiros das tendências

figurativas ou não-figurativas as mais diversas possíveis – Novo Realismo, Nova

Figuração, Arte Pop, Realismo Mágico, entre outros, encontravam-se contempladas

no “Esquema geral da Nova Objetividade”, de autoria de Hélio Oiticica que, em seu

início, dizia:

Nova Objetividade seria a formulação de um estado da arte brasileira de vanguarda atual, cujas principais características são: 1: vontade construtiva geral; 2: tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro do cavalete; 3: participação do espectador (corporal, táctil, visual, semântica etc.); 4: abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5: tendência para proposições coletivas e conseqüente abolição dos “ismos” característicos da primeira metade do século na arte de hoje (tendência esta que pode ser englobada no conceito de “arte pós- -moderna” de Mário Pedrosa); 6: ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte. (OITICICA, 2006, p. 154)

Isto é, como se das adversidades vividas – a ditadura militar, a castração, o

medo, o subdesenvolvimento – os artistas fizessem seus trabalhos que, para citar

uma artista que neste clima de conflito estava em Paris, amiga de Oiticica, Lygia

Clark, incidiam “numa mudança radical do mundo em vez de ser somente uma

interpretação do mesmo” (FIGUEIREDO, 1996, p. 59, grifo do autor).

Vale ressaltar que a expressão Nova Objetividade é criação da vanguarda

alemã dos anos 1920 à época do Expressionismo. Após a Primeira Grande Guerra,

  35

observou-se uma ascendente politização dos artistas que, como os arquitetos

Gropius e Mendelson, entre 1918 e 1920, reuniram-se inicialmente no

Novembergroupe tomando posição contrária ao nazismo em formação. Porém, o

grupo brevemente foi dissolvido pelos nazistas, levando à criação da Neue

Sachlichkeit (Nova Objetividade), sintoma do desespero de artistas como Grosz e

Beckmann em superar o romantismo alemão e adaptar a ideia expressionista às

novas precisões construtivas, tentando elaborar uma arte mais simples mesmo que

no fim não tenham se sucedido bem. No limite dessa experiência há a escola

Bauhaus, a qual continua o curso (ainda ligada ao Expressionismo), porém, expõe-

-se com um anseio construtivo na arte muito forte que desaguava em uma

integração da arte na sociedade (MORAIS, 1975, p. 92).

Não casualmente, a vontade construtiva elaborada a partir da participação da

arte na sociedade, seria vocação em comum de ambas proposições de arte de

vanguarda, tanto no Brasil de 1965-1967 – que expressaria “a arte como arquitetura

de uma sociedade livre” (MARCUSE, 2000, p. 270), quanto na Alemanha dos anos

1920. Curiosamente, as experiências brasileira e alemã também guardam

semelhanças quanto ao cerceamento da liberdade – ditadura militar e Terceiro Reich

ou Alemanha nazista, respectivamente, lembrando que a Bauhaus foi fechada em

1933, logo após a ascensão de Adolf Hitler do Partido Nacional Socialista Alemão

dos Trabalhadores (NSDAP) ao poder (ARGAN, 1992, p. 269).

O debate em torno da posição ética tomada pelo artista e da participação do

público na obra de arte se alarga e invade até o território restrito da Bienal de São

Paulo, especificamente em sua nona edição em 1967. Esta exposição contou com

uma grande concentração de trabalhos ligados às novas figurações e principalmente

à Arte Pop estadunidense, a qual praticamente tomava conta do “Ambiente USA:

1957-1967”. Não obstante, um filme de curta-metragem produzido sobre a IX Bienal,

intitulado emblematicamente como “Arte Pública”, apresentava o sucesso de público

e a proposições de artistas brasileiros como Wesley Duke Lee, Antonio Dias, Glauco

Rodrigues, Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Carlos Vergara, Hélio Oiticica,

Lygia Clark e outros. Os títulos que abrem e fecham o vídeo denunciam a

ressonância da vanguarda na exposição. Logo no início temos: “Na longa marcha da

cultura, a função da vanguarda é demarcar o caminho que leva ao futuro” (ARTE,

1967), que pode ser lido como um grande sintoma da utopia revolucionária de

vanguarda, projetando-se na práxis a fim de construir um novo futuro e um novo

  36

homem. Porém, mais crítico que isso seria a seguinte afirmação que fecha o vídeo:

“A Arte Pública é uma convocação geral para a união de todos em tôrno dos temas

primordiais da cultura e da liberdade” (ARTE, 1967).

Deste modo, se estas afirmações libertárias em um vídeo expositivo de um

evento oficial como a Bienal de São Paulo foram possíveis, é porque o ano de 1967

deflagrou uma “popularidade” da arte engajada. O Brasil vivia um clima intenso de

esquerda, porém, este acontecimento cultural contrastava com o regime militar cada

vez mais instalado na realidade política e social brasileira (NAPOLITANO, 2008, p.

59). O ano de 1967 marcou ainda uma série de fenômenos jurídico-políticos como a

promulgação de nova Constituição, a qual entrou em vigor em 15 de março de 1967

com a posse do presidente Costa e Silva, a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança

Nacional, que legalizavam o discurso autoritário do regime militar no Brasil.

Este ainda seria um ano decisivo para a esquerda, que se dividia entre

aqueles que defendiam a luta política ou a luta armada contra a ditadura. Neste

sentido, o PCB vinha perdendo cada vez mais quadros para novas entidades

clandestinas que surgiam no calor do espírito romântico da revolução pela via da

guerrilha, como a Ação Libertadora Nacional (ALN), que, sob liderança do dissidente

comunista Carlos Marighella, defendia a supremacia da ação sobre a teoria

(RIDENTI, 2000, p. 166). Não por acaso, com seu programa de vanguarda

guerrilheira do povo, a ALN atrairia, dentre as organizações clandestinas, o maior

número de artistas, incluídos aí Sérgio Ferro, Antônio Benetazzo e mesmo Claudio

Tozzi (RIDENTI, 2000, p. 180; TOZZI, 2012, p. 5).

Entretanto, para a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, apesar do

desejo de romper com o isolamento e de buscar formas de comunicação com um

público maior, nas artes visuais, contrastando com o teatro, o cinema e a música

popular, a relação com o coletivo teria ocorrido de maneira frouxa, daí “o político

tocaria o artista plástico ‘de leve’” (AMARAL, 2003, p. 329). Seguindo sua análise de

1968, presente no artigo “Dos carimbos à bolha”, percebe-se que Amaral duvidava

muito de uma arte pública tal como ela se propunha: “Que significa isso, ‘arte

pública’? Só porque sai à praça de Ipanema ou pela Avenida Brasil, é arte pública?”

(AMARAL, 1982, p. 147). Contudo, vê que nos anos 1960 surge um rol de trabalhos

artísticos que se voltam para o espaço público, tendo a “cidade com suporte”, mas

que se limitavam a comentar a realidade política e social, falhando na direção de

uma desmistificação e deselitização do campo artístico.

  37

Porém, esse ceticismo de Aracy Amaral vem aos poucos, com as pesquisas

historiográficas mais recentes de Paulo Reis e Artur Freitas, sendo questionado e

confrontado com as proposições engajadas de vários artistas engajados na tarefa da

resistência cultural, sobretudo com a formulação da vanguarda que seria nomeada

por Hélio Oiticica como “Nova Objetividade”. Apesar do aspecto lúdico-dionisíaco

que salta aos olhos dos trabalhos, no contexto de uma ditadura militar, isso se

transformava mesmo em luta pela libertação dos sujeitos castrados pelo

autoritarismo, pois compunha exercícios de uma nova percepção (crítica) frente à

realidade acompanhada por uma nova objetividade orientada na proposição de

vivências e na participação do público.

No decorrer de 1967 e, principalmente, em 1968, as manifestações de arte

pública ou arte na rua aumentavam. Em São Paulo, a exposição de bandeiras, em

1967, de Nelson Leirner e Flávio Motta. No Rio de Janeiro, a Festa das Bandeiras,

em janeiro, e a I Feira de Arte, em agosto de 1968. “Um mês de arte pública”,

promovido pelo “Diário de Notícias” e organizado por Frederico de Morais no Parque

do Flamengo, seria o mais importante evento neste sentido. Exposições de artistas

de vanguarda ao ar livre, aulas para crianças, oficinas de arte a pessoas leigas,

indicavam o apogeu da função social do artista como propositor em sua busca da

participação/vivência do público. “Apocalipopótese”, liderada por Hélio Oiticica, em

sua convulsão dadaísta de acontecimentos simultâneos sem lógica explícita,

indicava tanto o ponto máximo da Nova Objetividade, quanto um tom profético e de

premonição do apocalipse da vanguarda: o clima era tenso e alegre, bem como de

comunidade e violência (MORAIS, 1975, p. 99). Com o fim de 1968 vinha a ruptura,

o Ato Institucional nº 5 (AI-5) anunciando a marginalidade da vanguarda, a censura e

o exílio. Restava aos artistas a aceitação do autoritarismo a partir da autocensura, o

inconformismo através do êxodo para o exterior, o engajamento pela inserção na

contra-arte ou arte-guerrilha, ou ainda, no caso de artistas que pegaram em armas,

segundo Jacob Gorender, pela “imersão geral na luta armada” (RIDENTI, 2000, p.

41). Neste processo, Claudio Tozzi seguiu por uma via diferente: aderiu de certo

modo à autocensura e modificou sua poética, porém, continuou seguindo com uma

proposição política que, a partir de 1969, com o aprofundamento de sua

preocupação formal – como podemos ver a partir da série “Astronautas”, não mais

se mostrava explicitamente como em seus trabalhos do período de 1964 a 1968.

  38

Talvez pela incipiência de uma comunicação em sua forma mais pública, a

resistência dos artistas visuais, “longe de constituir um espaço político fechado e

isolado do seu oposto” (NAPOLITANO, 2011a, p. 21), não tenha ficado tão evidente

como a dos músicos, por exemplo, que se apresentavam em programas televisivos

como o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, os quais atraíam

multidões em suas plateias – contrastando com o público telespectador restrito –

repletas de jovens que participavam ora aplaudindo, ora vaiando.

Contudo, saliento que este trabalho se insere na perspectiva de uma crítica

ao ceticismo à resistência dos artistas visuais no período de 1964 a 1968,

concentrando-se principalmente a partir de 1965. Neste intuito, os dois capítulos que

seguem são exercícios de interpretação histórica do trabalho do artista visual

Claudio Tozzi nesse período, o qual, perceber-se-á em seguida, conectava-se às

proposições da neovanguarda brasileira e mesmo estava inserido nessa. Tozzi

participou como artista engajado da revolução na arte, a qual buscava a

transformação da arte e da sociedade através de uma estetização da política – como

proposta na leitura de Mikel Dufrenne, Luigi Pareyson e Marcos Napolitano. Era a

partir de sua posição como artista de vanguarda que as proposições críticas eram

elaboradas: apropriando-se de manchetes de jornais em um momento ou das

mitologias urbanas, como o bandido da luz vermelha, em outro, a fim de participar

da realidade na obra, intervindo na realidade social e propondo soluções para ela.

Por fim, para sanar possíveis dúvidas que possam surgir, o viés deste

trabalho não está pautado em um julgamento de se, e o quanto, Claudio Tozzi

logrou êxito em sua aproximação com o público e se seus trabalhos foram

compreendidos. Os dois capítulos que seguem analisam as proposições do artista

paulistano e suas apropriações de objetos da realidade brasileira, assim como suas

aproximações com outros artistas que se engajaram na revolução na arte e na

transformação social pela via da arte como resistência cultural e política.

  39

3 FRAGMENTOS DE TOZZI: ARTE COMO RESISTÊNCIA

Este capítulo abre a exposição das interpretações históricas efetuadas sobre

os trabalhos selecionados de Claudio Tozzi, especificamente aqueles que miravam

atuar como resistência à ditadura militar. Neste sentido, são analisadas duas obras

em relação com o mundo que as rodeiam a fim de percebermos as apropriações e

frequentações efetuadas pelo artista visual na construção de seus trabalhos.

Em dezembro de 1977 – por ocasião da exposição “Objeto na arte: Brasil

anos ‘60”, sob coordenação e supervisão de Daisy Peccinini de Alvarado, realizada

em 1978 no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado

(FAAP) – em depoimento para o Departamento de Pesquisa e Documentação Arte

Brasileira da FAAP, Claudio Tozzi disse o seguinte:

Uma das características da arte brasileira de vanguarda dos anos ‘60, é a preocupação com o coletivo. Na pintura refletia-se principalmente, a temática social. Os fatos políticos eram narrados pela figura; a obra exigia do espectador, não apenas uma atitude de contemplação, mas tinha o intuito de incitar seu pensamento, levá-lo à reflexão e ao debate (…) (TOZZI, 1978, p. 221)

Tozzi analisava, 10 anos depois, a situação da vanguarda a fim de se inserir

neste contexto e nesta proposição. A relação do artista com uma arte engajada se

inicia com sua entrada na FAU-USP em 1964 onde, por exemplo, frequentou aulas

com Sérgio Ferro no curso de História da Arte, o qual também orientou Claudio com

relação à atuação política (MAGALHÃES, 2007, p. 25), o que desembocaria na

participação de ambos na ALN de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira

(conhecido na entidade clandestina como Toledo). Estabelecia-se uma rede de

frequentações que incluíam desde o ateliê de Sérgio e Flávio Império até o Curso de

Formação de Professores de Desenho do Museu de Arte de São Paulo (MASP), no

qual Flávio Motta integrava os artistas-arquitetos da FAU com os artistas que

utilizavam elementos da Arte Pop em seus trabalhos (OLIVEIRA, 1993, p. 57). Tais

relações com professores, teóricos e críticos marcaram a produção de Tozzi,

principalmente a concepção de Mário Schenberg de “Novo Realismo”, já explicitada

anteriormente, que via surgir no Brasil em 1965 uma arte participante (SCHENBERG,

1978, p. 62), que fora compreendida por Tozzi, em depoimento ao Jornal do Brasil,

como “instrumento para despertar no povo uma conscientização crítica” (GUEVARA,

1967 apud KIYOMURA; GIOVANNETTI, 2005, p. 24).

  40

Como destaquei no capítulo anterior, vários artistas estiveram empenhados

na revolução na arte, a qual previa o engajamento do artista com a transformação

social. Esta questão aparecia, por exemplo, no ideário da vanguarda deste período –

o “Esquema geral da Nova Objetividade”, de Hélio Oiticica, no qual se ressaltava a

vontade de participação do artista na sociedade, assim como seu posicionamento

frente aos problemas sociais, políticos e éticos da realidade brasileira (OITICICA,

2006, p. 154). Nesta via, Claudio Tozzi se apropriou de maneira singular das

análises que circulavam no meio artístico e intelectual do período 1966-1967, as

quais ressoam na formulação de sua poética engajada. Por isso, trago para a

discussão dois trabalhos do artista que foram produzidos sob este calor

comunicativo e de resistência cultural à ditadura militar: USA e abUSA, de 1966, e

Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional, de 1967, fabricados,

segundo Leila Kiyomura e Bruno Giovannetti, “no clima da geração da briga,

[quando] Tozzi deixou-se envolver, cada vez mais, pelos movimentos de massa”

(KIYOMURA; GIOVANNETTI, 2005, p. 23).

Em clima de tensão provocado pela vivência em um Estado autoritário, as

obras operaram como críticas aos acontecimentos recentes – em 1966 e 1967, no

Brasil. Inicialmente, vale destacar que, notadamente Tozzi, ao incorporar elementos

figurativos em seus trabalhos, não abriu mão do legado construtivista advindo do

movimento concreto e da ruptura neoconcreta – bem como de sua formação em

arquitetura – o que era comum entre os artistas englobados na arte de vanguarda

daquele momento (SOARES, 2008, p. 127). Em entrevista, o artista afirma esta

característica em seus primeiros trabalhos: “[…] eles têm uma estrutura construtiva.

Então, cada imagem que eu colocava era dentro de um campo já estruturado, já

trabalhado” (TOZZI, 2012, p. 9). Assim, unia-se ao desejo de revolucionar a

linguagem da arte a resistência a todo tipo de autoritarismo – na arte e na vida

política e social, como disse Claudio em depoimento a Fábio Magalhães,

A década de 1960 é caracterizada por uma grande necessidade de mudanças e rupturas. As artes plásticas se apropriaram de novos conceitos e transformaram sua linguagem. A pop-art, realizada principalmente nos Estados Unidos, preocupava-se mais com a glamourização de imagens de consumo pré-existentes, algo mais próximo à repetição de imagens das prateleiras de um supermercado, à redundância de imagens e ícones imediatamente reconhecíveis. No Brasil, prefiro usar a palavra nova figuração, pois tem uma conotação específica, com um conteúdo referido ao que ocorria no País, ligado à conjuntura da época. Vivíamos uma situação de opressão e repressão sob o regime militar. A pintura era parte da nossa resistência. Como você falou, nossa arte continha um engajamento

  41

ideológico e de luta. Meu trabalho tinha uma preocupação de se aproximar da linguagem dos meios de comunicação de massa e se apropriava de imagens do mundo urbano – sinais de trânsito, histórias em quadrinhos –, mas sempre com a intenção de modificar seu significado, de subverter, de propor uma sintaxe diferente do texto para criar uma nova mensagem. Criar novos objetos. (MAGALHÃES, 2007, p. 20-21, grifo do autor)

Ressalto aqui a apropriação que Tozzi faz de Hélio Oiticica que, em texto

apresentado à exposição “Propostas 66” – considerado o esboço do que viria a ser o

“Esquema geral da Nova Objetividade” –, referia-se ao pioneirismo da vanguarda

brasileira em uma nova fundação do objeto (OITICICA, 1978, p. 70), produto da

superação do quadro de cavalete, e que desembocava na fabricação de objetivos

perceptivos, nos quais se propunham críticas sociais. Já a crítica remetida à Arte

Pop sugere os próprios deslocamentos efetuados pelos artistas brasileiros de

vanguarda dos anos 1960 que, ao se apropriarem dela, contrapunham um caráter

“hot” ao estilo “cool” da pop estadunidense (MORAIS, 1975, p. 97). De menor ou

maior alcance, é incontestável a influência que a Arte Pop teve sobre os artistas

visuais brasileiros a partir de 1964, contudo, as novidades formais e semânticas

conquistadas foram adaptadas às necessidades deles, ampliando-se sua

potencialidade crítica (FERRO, 1967, p. 17 apud OLIVEIRA, 1993, p. 6). Sobre a

influência da pop no trabalho de Tozzi, aprofundarei mais à frente neste capítulo e,

principalmente, no terceiro capítulo deste trabalho.

Deste modo, proponho, inicialmente, debruçarmo-nos sobre uma leitura de

como a obra USA e abUSA (ver Figura 1) apresenta-se enquanto tal. Por isso,

sugiro dividirmos o campo estruturado da obra em três partes. Há uma primeira

porção do trabalho de Tozzi, a qual está situada (politicamente) à esquerda, que é

uma grande seta vermelha posicionada na direção vertical e no sentido de cima para

baixo finalizando em um fragmento de manchete de jornal; ao centro vemos a

imagem em alto contraste de dois militares a postos com suas armas; e à direita

lemos “U$A” em tamanho grande e a expressão “e ab USA…”, menor, divididas por

uma bandeira estadunidense que foi colada diagonalmente. Neste momento nos

perguntamos: como foi possível a elaboração dessa composição por Claudio? O que

significaria esse trabalho em 1966? O que ele nos diz?

Sendo assim, faz-se mister termos em mente que, de acordo com Leila

Kiyomura e Bruno Giovannetti (2005, p. 24), o artista paulistano recriou e procurou

novos conceitos dentro do ambiente político e social brasileiro daquele presente e,

  42

nesse sentido, seus trabalhos serviam como manifesto contra a censura, a ditadura

e a violência.

Figura 1 – Claudio Tozzi, USA e abUSA, 1966. Tinta em massa e acrílico sobre madeira, 33 × 52 cm.

Fonte: KLINTOWITZ, Jacob. Livro ilustrado de arte: Claudio Tozzi: Estruturas do Real. São Paulo: Instituto Olga Kos de Inclusão Cultural, 2012. (Resgatando Cultura, 7). p. 148.

Além disso, com seu “quase […] espírito jornalístico” (MAGALHÃES, 1989, p.

24), Tozzi conferiu destaque a eventos e personagens do cotidiano urbano brasileiro.

Com isso, “ele descobriu nas notícias de jornais uma via para repercutir o seu

trabalho na massa e essa comunicação tinha um impacto, que devolvia este trabalho

como uma notícia nos jornais” (KIYOMURA; GIOVANNETTI, 2005, p. 24), um

movimento que evidencia a proposta do artista de colocar a realidade social em seus

vários aspectos como problema das artes visuais, nas quais captava as vozes e os

ruídos do mundo. Logo, parece que temos algumas pistas a fim de desvelarmos a

utilização de diversos elementos, os quais foram retirados de diferentes lugares e

apropriados na obra: fragmento de jornal, imagem de militares trajando o que lembra

ser um uniforme fascista, bandeira dos EUA, além da seta e das palavras impressas.

Assim, no livro em que propõe leituras de obras de Pablo Picasso, a crítica de

arte Rosalind Krauss (2006) inicia seu percurso analisando alguns trabalhos do

  43

artista produzidos a partir de 1912, quando começa a fazer uso da incorporação de

objetos ditos extra-artísticos nas obras, procedimento típico da colagem. O que

chama a atenção de Rosalind é a utilização de fragmentos de jornais franceses,

principalmente, do “Le Journal”, por Picasso para fabricar suas colagens. Ainda no

prefácio assinado por Lisette Lagnado para o livro, lemos que “o jornal, material

perecível que dura um dia na vida de um cidadão, é confrontado à temporalidade de

um outro sistema, os valores da arte (verdadeiros ou falsos). Dispositivo que

transformou a magia da verdade da fonte em mito” (KRAUSS, 2006, p. 14). Neste

sentido, Krauss, em uma faceta de historiadora das ideias, interroga-se, interroga

outros intelectuais que analisaram obras de Picasso e nos interroga sobre estas

vozes que vêm dos fragmentos e sobre a fala do artista. Para Patricia Leighten,

autora cuja teoria foi problematizada por Rosalind, a escolha e inserção dos recortes

de jornal por Pablo em seus trabalhos não era meramente casual, havia uma opção

(KRAUSS, 2006, p. 52, nota 8), que a crítica desenvolve depois dizendo (e ainda

questionando) que/se Picasso fala através de suas colagens (KRAUSS, 2006, p. 57).

Neste sentido, apropriando-me das discussões efetuadas por Rosalind

referentes à circulação do signo nas obras de Pablo Picasso, pensando que os

recortes atuam tanto no plano visual, assumindo formas físicas na composição da

obra, quanto intencionalmente dobrados, girados e inseridos por seu conteúdo

escrito, creio que é possível utilizarmos esse referencial para analisar a primeira

porção do trabalho de Claudio Tozzi em relação ao todo visual da obra em questão.

Acredito que a inserção de um recorte de “Battaglie Sindacali” (“Batalhas

sindicais”, tradução minha) não foi por acaso. Pois este jornal era editado pela

Confederazione Generale del Lavoro (Confederação Geral do Trabalho – CGL,

tradução minha) (LYTTELTON, 2004, p. 85), a qual, nascida em 1906 agregando

cerca de 700 sindicatos e 250.000 trabalhadores, teve seu membros perseguidos

pelo fascismo, principalmente a partir de 1922 com a tomada do poder por Mussolini,

sendo logo dissolvida (CONFEDERAZIONE, 2009). A violência fascista atacava,

então, o movimento operário e o jornal se punha contra, a partir da manchete que

anunciava: “Manifestate in ogni modo e sotto qualsiasi forma contro il fascismo che

porta alla catastrofe e alla guerra!” (“Manifesta-te em todos os sentidos e sob

qualquer forma contra o fascismo que leva ao desastre e à guerra!”, tradução minha).

Ao que parece, a utilização do recorte seria uma associação da ditadura brasileira

com o fascismo. A seta que aponta e conduz nosso olhar para o fragmento do jornal

  44

atua como um vestígio visual de que aquele que vê a obra deve atentar para o

recorte.

Logo, percebo que ao compreender USA e abUSA como obra de arte

construída a partir de uma poética comprometida politicamente com seu espaço e

tempo, confirmo que “os valores estéticos são categorias históricas e não abstrações

atemporais” (CIPINIUK, 2003, p. 31), definidos também na relação da obra e seu

público. Por isso que, quando Hans-Georg Gadamer retoma a arte em seu sentido

antropológico como jogo, símbolo e festa, e tratando sobre o primeiro, afirma que o

“movimento do jogo significa ao mesmo tempo que o jogar exige sempre aquele que

vai jogar junto” (GADAMER, 1985, p. 39), isto é, também atentar para a

comunicabilidade da obra. Ler o trabalho de Claudio Tozzi como operação visual de

crítica à ditadura militar só é possível se pensarmos que aquele que joga junto é

alguém sensível à realidade brasileira naquele momento – em 1966. Como diria

Mikel Dufrenne, USA e abUSA destina-se àqueles que vivenciam a mesma

experiência de autoritarismo, “àqueles que consentem porque co-sentem”

(DUFRENNE, 1974, p. 199 apud FIGURELLI, 2007, p. 153, grifo do autor). Também

por isso a operação da obra não é meramente representativa, não é uma fala que é

dita pela obra, pois a própria obra é essa fala, a qual não se dirige ao público, mas

sim é a própria palavra desse. Essa seria, a partir da leitura de Gadamer, a

identidade hermenêutica da obra que “consiste justamente em que algo deve ‘ser

compreendido’, que a obra quer ser entendida como algo que ela ‘quer dizer’ ou

‘diz’” (GADAMER, 1985, p. 42), que será recuperado na participação do público.

Além disso, a imagem ao centro atua como ícone, identidade visual, signo

substitutivo que atua como representação do caractere militar, não como correlato

daqueles militares brasileiros responsáveis pelo golpe e atuantes no cenário político

em 1966, mas sim como representante do militar mesmo, no jogo da composição no

interior da obra, porque, “não apenas remete para a significação, mas torna-a

presente: ele representa significação” (GADAMER, 1985, p. 54). Neste sentido,

conferido por mim, esta aparição só faz sentido desta forma, isto é, só transmite a

crítica à ditadura, pois estão articulada a outros elementos na formatividade da obra.

Desta forma, há um primeiro movimento de leitura da obra que nos conduz à

seguinte interpretação: o recorte de jornal e o ícone militar se contrapõem, aliás, os

militares representados ali têm a parte frontal de seus corpos virados em sentido

contrário: eles miram a bandeira dos EUA.

  45

Em pleno momento de Guerra Fria, a esquerda derrotada especulava sobre a

participação estadunidense no golpe civil-militar. A série de três episódios da TV

Brasil intitulada “O dia que durou 21 anos”, de 2011, lançada como filme em 2013,

elabora uma interpretação sobre tal participação a partir de evidências como cartas,

telefonemas e ofícios de Estado. A trama do documentário nos leva a crer que os

EUA não só deram apoio logístico e militar à retirada de João Goulart da presidência,

com intervenção das Forças Armadas estadunidenses, caso o golpe sofresse

resistência – conhecido como “Operação Brother Sam” –, como, a partir da

interferência do embaixador estadunidense Lincoln Gordon, o qual mediava a

“conspiração anticomunista”, financiava o terrorismo e, a partir da “Aliança para o

Progresso”, destinava grandes quantias de dinheiro para os opositores do governo

de Jango (O DIA, 2011). Organizações empresariais, frequentadas por civis e

militares, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto

Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), travavam, a partir de campanha ideológica

em diversas frentes de atuação, “uma ampla campanha de desestabilização” (FICO,

2004, p. 51) do governo Goulart.

Aliás, há um trabalho de Marcello Nitsche, amigo de Claudio Tozzi, que foi

estudante de desenho da FAAP e artista muito influenciado também pela linguagem

crítica da Arte Pop (OLIVEIRA, 1993, p. 223), chamado Aliança para o progresso

(ver Figura 2), de 1965, no qual ironiza a “solidariedade” estadunidense com os

países que participavam do programa de cooperação, caso do Brasil. Para isto,

incorpora elementos da bandeira dos EUA (estrelas brancas em fundo azul e listras

vermelhas) e apropria-se de uma algema que é apresentada prendendo duas mãos

que se apertam. Assim, critica a “Aliança” estadunidense (apertar de mãos) como

um programa que aprisiona a contraparte, tornando-a dependente da vontade

exploratória dos EUA.

Deste modo, é possível lançarmos a seguinte interpretação: a obra opera em

um eixo estruturado em três porções, à direta observamos a entrada em diagonal da

bandeira dos EUA com os dizeres “U$A e ab USA…”, a qual encontra os militares

que estão posicionados ao centro formando uma região que se contrapõe à faixa

esquerda onde a seta vermelha apontaria a manchete do jornal “Battaglie Sindacali”.

Com toda a articulação proposta anteriormente, creio que USA e abUSA pode ser

lida enquanto um manifesto contra a ditadura militar instalada com apoio dos EUA.

Desta forma, o artista apontaria (e por isso não é à toa o uso da seta) a resistência –

  46

“Manifestate in ogni modo e sotto qualsiasi forma contro il fascismo che porta alla

catastrofe e alla guerra!” –, como solução, como luta contra o Estado autoritário

brasileiro. Não por acaso, na obra de Tozzi o cifrão de “U$A” indica os EUA como

potência econômica – líder do lado capitalista que se autoproclama Primeiro Mundo,

bem como, a exploração econômica dos países periféricos do capitalismo, o

Terceiro Mundo, como o Brasil. E essa leitura é ainda mais verossímil a partir da

sentença que a completa “e ab USA…”, pois em latim a preposição “ab” pode

significar a preposição de proveniência em português brasileiro “de”, como algo que

vem “de”, isto é, uma expressão que volta a si mesma: um abuso que vem dos EUA.

Figura 2 – Marcello Nitsche, Aliança para o progresso, 1965. Esmalte sintético sobre duratex e

corrente de ferro, 122 × 80 × 10 cm.

Fonte: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Artes Visuais. São Paulo: Itaú Cultural, 2011. Obras de Marcello Nitsche. Disponível em:<http://www.itaucultural.org.br/bcodeimagens/imagens_

publico/001689006013.jpg>. Acesso em: 9 abr. 2013.

  47

Perguntado sobre esta possível relação, Claudio Tozzi falou que sua crítica

ao “uso e abuso” dos EUA sobre o Brasil tinha maior relação com o apoio

estadunidense à repressão ao movimento estudantil – com o qual ele mantinha

relações, a partir da atuação da Ponto Quatro (TOZZI, 2012, p. 10), que era uma

escola da polícia estadunidense que ensinava aos policiais brasileiros “táticas de

enfrentamento e dispersão de manifestações” (RESISTENCIABR, 2001), assim

como fornecia equipamento para repressão – porretes, por exemplo. Provavelmente,

localiza-se aí a experiência, entre outras, que fez Tozzi associar fascismo e ditadura

militar brasileira a partir de uma ótica do autoritarismo. Segundo Alberto De Bernardi,

é próprio do Estado autoritário, e aí se refere ao fascismo italiano, a organização de

ações armadas que visavam a destruição do “inimigo interno”, bem como do uso de

crescente violência em um ímpeto de destruir física e ideologicamente o espaço

público de atuação política, como as universidades, os sindicatos, os partidos e as

redações de jornais opositores ao regime (DE BERNARDI, 2010, p. 75).

Sendo assim, abre-se uma possibilidade de leitura de USA e abUSA como

polifonia, aquilo que Rosalind Krauss (2006, p. 62) vê acontecer no que ela

caracteriza como circulação do signo em Picasso, ou seja, a disposição de materiais,

os mais diferentes e contraditórios possíveis, vindos de diversos lugares. A polifonia,

neste caso, evidencia as vozes heterogêneas e a sua mistura na obra, acirra a

contaminação entre pessoa e meios de comunicação gerando a ambivalência:

Claudio fala através do jornal e este, por sua vez, fala através de Claudio. O fato de

deslocar os signos de seus lugares até a obra causa o deslocamento de significado

do signo. No caso brasileiro esta operação tem caráter de resistência, de um dizer

não, pois aquilo que é a realidade não é o que se quer, e assim, há o espaço do

pensamento utópico, da apresentação da crítica, do fazer ver o invisível a partir de

uma nova perceptividade revolucionária pautada em uma nova objetividade.

A esta altura, vale retomarmos a questão das colagens realizadas por Pablo

Picasso. Como ressaltado, esse procedimento não é neutro, pois por ele o artista

toma uma posição perante o mundo, introduzindo na obra elementos que não

pertencem ao meio artístico, mas aos meios de comunicação de massa como o

jornal. Próximo a isso, havia Marcel Duchamp e seus “ready-mades”, a partir dos

quais objetos da vida cotidiana eram deslocados ao patamar de obra de arte

estabelecendo uma crítica ao sistema da arte elitista (ENCICLOPÉDIA, 2012).

Contudo, apesar das semelhanças, toda esta operação de apropriações de objetos

  48

mundanos cara aos cubistas e dadaístas nas duas primeiras décadas do século XX,

seria atualizada por Claudio em uma caráter de apropriação mais racionalizada, pois

Para Claudio Tozzi, a apropriação é produto de uma pesquisa sobre um universo de imagens já produzidas e, muitas vezes, já trabalhadas por outros meios de comunicação de massa, como jornais, “outdoor”, sinais urbanos, histórias em quadrinhos, etc. Desta forma, a imagem, uma vez apropriada, passa a conter significados diferentes daqueles que lhe deram origem, sobretudo pelo novo tratamento dado pelo artista. Entretanto, mesmo depois da apropriação e da sua inserção no contexto da obra-de-arte, a imagem mantém ainda seu referencial significativo, ou seja, do seu contexto de origem, revelando, e inclusive acentuando, o caráter de apropriação. (MAGALHÃES, 1989, p. 24)

Sendo assim, Tozzi reinventa o próprio sentido da ação integradora de

componentes objetivos à obra de arte, que tem suas origens na já mencionada

colagem cubista e na prática dadaísta, tanto nos “ready-mades” como no “objet

trouvé” de Kurt Schwitters, os quais tendiam a formas aleatórias de apropriação,

sem necessariamente uma preocupação específica com o objetos produzidos pela

indústria cultural de massa (ARGAN, 1995, p. 76) – a qual seria a problemática

central dos artistas pop ingleses na tarefa de apresentar, a partir de meados dos

anos 1950, a natureza da sociedade de consumo (MCCARTHY, 2002, p. 6). Apesar

do distanciamento conceitual do “objet trouvé”, os trabalhos de Arte Pop de Richard

Hamilton, Robert Rauschenberg e Jasper Johns continham apropriações do que era

considerado o lixo cultural de uma sociedade de massa – os pôsteres publicitários,

as revistas, entre outros –, evidenciando uma aproximação com a ideia de

Schwitters de incorporação de materiais degradados em suas obras. Como exemplo,

pode-se citar um dos primeiros trabalhos associados ao movimento da Arte Pop, que

aliás foi realizado como um pôster e ilustração do catálogo da exposição “This is

Tomorrow” (“Este é o Amanhã”, tradução minha), do Independent Group (um dos

precursores do pop nas artes visuais), em 1956, na Whitechapel Art Gallery de

Londres (MCCARTHY, 2002, p. 6) – O que exatamente torna os lares de hoje tão

diferentes, tão atraentes? (ver Figura 3), de Richard Hamilton.

Entretanto, e é isto que nos interessa em nossa interpretação dos trabalhos

de Claudio Tozzi, na ambiguidade humorada da pop, o lixo cultural era justaposto

aos símbolos permanentes, o que, no limite, levaria à própria transformação de um

em outro e vice-versa, mas referenciados em suas posições originais. Por exemplo,

em USA e abUSA, o artista visual paulistano justapõe por colagem a manchete de

  49

um jornal e a imagem em alto contraste de policiais fascistas, elementos transitórios,

a um símbolo permanente, a bandeira dos EUA. Para o museólogo e crítico Fábio

Magalhães, neste sentido, os objetos gráficos de Tozzi seriam marcados por uma

narrativa de linguagem direta a fim de um “maior poder de comunicação e de

significado junto às massas” (MAGALHÃES, 1989, p. 18). Tal preocupação

aproximaria o artista paulistano das proposições de “Novo Realismo” de Mário

Schenberg e do que seria a “Nova Objetividade” de Hélio Oiticica.

Figura 3 – Richard Hamilton, O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?,

1956. Colagem, 26 × 25 cm.

Fonte: MCCARTHY, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac Naify, 2002. p. 7.

  50

Desta forma, o artista opera com várias vozes que podem ser dos seus

amigos politicamente comprometidos com a causa antiditadura ou dos brasileiros

que sofreram com o Estado autoritário. A disposição dos fragmentos em USA e

abUSA, neste sentido, guarda o sentido de suas proveniências, o “de onde vem”,

“ab” ou “made in”, evidenciando a apropriação racional de Tozzi, apropriando-se

mesmo do texto da manchete de “Battaglie Sindacali” e o identificando de modo

geral à luta de resistência ao autoritarismo, isto é, o que na Itália era a luta contra o

fascismo à luta contra a ditadura militar no Brasil.

Há ainda quem acredite em uma influência de Mimmo Rotella em USA e

abUSA, como Fábio Magalhães, que vê o italiano como um dos precursores da

colagem de cartazes de rua “destacados como fragmentos da iconografia urbana”

(MAGALHÃES, 1989, p. 21). Contudo, apesar de Tozzi e Rotella pensarem o jornal

como um elemento efêmero, porém, crucial da vida urbana, o artista paulistano

recusa o palimpsesto não-intencional do italiano, no qual o cartaz rasgado permite

ver fragmentos de outros cartazes colados por baixo, arranjados de modo aleatório

(ARGAN, 1992, p. 643) – como podemos observar em Marilyn (ver Figura 4). No

trabalho de Claudio não existe arbitrariedade na escolha e disposição dos

fragmentos, pois eles decorrem de uma pesquisa que resulta em indícios de eventos

políticos e sociais, os quais são colados “como pedaços de documentos da

realidade” (MAGALHÃES, 1989, p. 21) no propósito comunicativo crítico da obra.

Deste modo, ressalto as apropriações que Tozzi e outros artistas brasileiros da

época fizeram da teoria da comunicação e da semiologia, que eram muito estudadas.

O artista em destaque aqui sofreria um impacto direto disso, a partir da entrada na

FAU-USP, que no final de 1961 havia reorganizado o currículo para enfatizar o

design e a comunicação visual (OLIVEIRA, 1993, p. 239).

Entretanto, creio que mais do que de Rotella, Tozzi estivesse próximo de

Waldemar Cordeiro, artista concreto influente na década de 1950, mas que em 1963

aproximou-se da teoria da “Obra Aberta” de Umberto Eco e da Arte Pop. Daí surgiria

sua proposta de arte concreta semântica, mais conhecida como “popcreto”,

publicada em dezembro de 1964, no qual defendeu a pesquisa do comportamento

frente aos eventos visíveis marcados por intenção e significação a partir de

contextos histórico-sociais (RIBEIRO, 2003, p. 128). No clima pós-golpe, Cordeiro

produziria Jornal (ver Figura 5), que prontamente incorporava a preocupação de

estimular problematizações de ordem social e política naquele que vê a obra.

  51

Figura 4 – Mimmo Rotella, Marilyn, 1963. Colagem, 190 × 132 cm.

Fonte: ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 644.

  52

Figura 5 – Waldemar Cordeiro, Jornal, 1964. Colagem de jornal sobre papel, 65 × 22,5 cm.

Fonte: COSTA, Cacilda Teixeira da. Aproximações do espírito pop: 1963-1968. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2003. p. 91.

  53

Assim, acentua-se o uso político da colagem de jornal já praticada por

Picasso que, durante 1912 e 1913, esteve preocupado em selecionar fragmentos de

jornais que tratassem a Guerra dos Bálcãs e a situação política e econômica da

Europa (KRAUSS, 2006, p. 14). Contudo, Jornal é todo ele uma reprogramação

visual de uma manchete – produzida alguns meses após o golpe civil-militar de 1964,

quando o periódico “Última Hora”, que apoiava as reformas de base do governo

João Goulart teve suas instalações no Rio destruídas por militares. Segundo

Gustavo Motta, tal operação não tinha mais relação com as reformas visuais pelas

quais passavam os jornais naquela época, mas sim relacionava-se a um propósito

crítico, de oposição política, quando a censura e a violência atingiram os meios de

comunicação. Deste modo, o artista enfatizava a dificuldade da leitura dos jornais

naquele momento ironizando a realidade que se manifestava nas entrelinhas da

notícia, dada a sua não confiabilidade. Assim como, chamava o espectador-

participador para decifrar o enigma das palavras embaralhadas pela reprogramação

visual, sendo que esse jogo estimularia uma nova perceptividade diante das notícias

dos periódicos existentes na realidade (MOTTA, 2011, p. 40-43).

Além disso, Tozzi atuaria como agente de circulação do signo a partir de sua

própria obra, pois em 1968, ano em que se acirram paradoxalmente as proposições

de arte pública e o autoritarismo, ele utilizaria apenas a imagem dos policiais

fascistas apropriada em USA e abUSA – fechando o plano em suas cabeças, em um

fundo amarelo. Sintomaticamente Claudio intitulou esse trabalho de Repressão (ver

Figura 6), no qual é apenas apresentado o ícone militar, ausentando-se qualquer

elemento visual indicativo de possibilidade de resistência.

Figura 6 – Claudio Tozzi, Repressão, 1968. Liquitex sobre duratex, 120 × 120 cm.

Fonte: TOZZI, Claudio. Claudio Tozzi: Artes Plásticas. São Paulo: J. J. Carol, 2009. (Portfolio Brasil: Artes Plásticas). [p. 14].

  54

Aliás, para o artista, este período de endurecimento do regime com o AI-5

significou “uma ruptura muito grande” (TOZZI, 2012, p. 12), quando, a partir desse

momento, ele começou a desenvolver uma poética mais elaborada, realizando um

trabalho mais reflexivo, porém, com menor engajamento político explícito nas obras.

Neste sentido, para o trabalho de Tozzi de 1967, Nós somos os guardiões-

-mor da sagrada democracia nacional (ver Figura 7), tendo em vista a semelhança

de estrutura e operação compositiva realizadas pelo artista, proponho as mesmas

relações que tracei acima para USA e abUSA – circulação do signo (Rosalind

Krauss), arte como jogo (Hans-Georg Gadamer) e apropriação racional dos objetos

(inspirada em Duchamp). Contudo, nessa obra os elementos que a compõem dão

conta de uma manifestação de resistência mais explícita, aberta a partir da

incorporação de objetos familiares do cotidiano de brasileiros em 1967.

Figura 7 – Claudio Tozzi, Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional, 1967.

Tinta alquídica, gesso, fórmica e plástico sobre madeira, 80 × 120 cm.

Fonte: KIYOMURA, Leila; GIOVANNETTI, Bruno (Org.). Claudio Tozzi. São Paulo: Edusp, 2005. p. 30.

A seta, elemento que fortalece o caráter de comunicação direta e objetiva,

aponta aqui, diferentemente de USA e abUSA, não a solução contra o autoritarismo,

mas o “culpado” por esse representado na imagem em alto contraste do general-

  55

-presidente Humberto Castello Branco. Como na obra de 1966, Tozzi estrutura um

campo no qual serão arranjados os elementos que vão compor o trabalho, operação

essa que, aliás, marcaria os primeiros trabalhos do artista até sua imersão na

linguagem pop, a partir de estudos principalmente dedicados ao trabalho de Roy

Lichtenstein em 1967, os quais podemos notar em Paz (ver Figura 8) de 1963/1964.

Figura 8 – Claudio Tozzi, Paz, 1963/1964. Massa alquídica e resinas, colagem sobre madeira,

28 × 51 cm.

Fonte: MAGALHÃES, Fábio. Obra em construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi. Rio de Janeiro: Revan, 1989. p. 20.

Nesta obra, a semelhança com USA e abUSA e Nós somos os guardiões-

-mór… é evidente: a compactação dos vários elementos que a compõem (a imagem

apropriada do Papa Paulo VI, as engrenagens de relógio, a letra “G”, a figura de um

grupo, no qual cada um dos membros está articulado a uma palavra-fala, e a

bandeira dos EUA, que aparece aqui de modo muito semelhante – à direita em

diagonal, ao trabalho de 1966. Tudo isto em um caráter linear que atua como força

comunicativa, no qual cada elemento apropriado relaciona-se significativamente com

os outros, e todos “se articulam para formar uma unidade compositiva sob tensão”

(MAGALHÃES, 1989, p. 20). Paz, marcaria deste modo a crítica do artista ao

didatismo artístico e sua inserção na vanguarda que se esboçava naquele momento:

Em [19]63, antes de entrar na FAU, eu comecei a fazer alguns trabalhos, mas ainda em casa, não tinha o ateliê, e fiz os primeiros trabalhos que eram

  56

umas colagens utilizando materiais de jornais, com poliuretano, com imagens queimadas – eu jogava no álcool misturado com uma tinta de pintar sapato que era solúvel em álcool, daí eu punha fogo – então, dava umas texturas, dava um trabalho já que depois eu te mostro, tem nos livros as imagens, eu tenho aqui comigo também. Então, esses trabalhos já tinham uma intenção de fazer um trabalho que não fosse simplesmente um desenho, que não fosse simplesmente um trabalho quase que didático e ligado à escola. Fazia isso com um prazer muito grande e por coincidência era o que estava se fazendo, não é? (TOZZI, 2012, p. 4)

Assim, a apropriação de objetos continua marcando a operação do artista

paulistano, porém, em Nós somos os guardiões-mór… incorporava-se um dos

principais mitos brasileiros naquele momento, o próprio presidente – que fora o

coordenador da conspiração militar de 1964, eleito por um “Congresso saneado” em

11 de abril de 1964, tomando posse 4 dias depois e realizando seu mandato até 15

de março de 1967. Contudo, tal imagem apropriada vem acompanhada, além da

seta que lhe aponta, à direita na porção superior de uma medalha na qual se lê o

título do trabalho rodeando um busto de uma figura militar, assim como na parte

inferior de um quadro dividido em três seções: “Lei de Segurança Nacional”,

“Culpado” (em destaque) e “Lei de Imprensa”.

Após o golpe, com o pronunciamento do senador Auro de Moura Andrade em

1º de abril de 1964, o qual declarava vaga a presidência da República e

constitucionalmente o presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazzili para

assumir o cargo, os militares iniciavam com aspecto legal – aliás, havia uma

razoável preocupação em fazer com que o golpe parecesse legal, tanto que o

movimento golpista não se denominava desse modo, mas como movimento

revolucionário – a instalação da ditadura militar. Logo após, o Ato Institucional nº 1

(AI-1) de 9 de abril agendaria eleições para dali a dois dias, quando Castello Branco

foi “eleito” com a maioria esmagadora dos votos por um Congresso Nacional, no

qual os parlamentares considerados contrários aos desígnios da “revolução” já não

mais atuavam, pois tinham sido cassados – os Comandantes-em-Chefe lançaram

uma “operação Limpeza” no AI-1, quando se atribuíram o direito de suspender os

direitos políticos por dez anos e cassar mandatos legislativos a nível federal,

estadual e municipal. Além disso, durante a operação, milhares foram presos em

todo o país, incluindo aí membros de organizações católicas – Movimento de

Educação de Base (MEB) e Juventude Universitária Católica (JUC), militantes do

“moscovita” Partido Comunista Brasileiro (PCB), do maoísta Partido Comunista do

Brasil (PC do B) e trotskistas da Organização Revolucionária Marxista-Política

  57

Operária (ORM-Polop), assim como oficiais e praças das Forças Armadas

considerados como simpatizantes da esquerda e articuladores do proletariado

urbano e rural (SKIDMORE, 1988, p. 55-56). Este momento marcaria a primeira

cisão entre civis e militares golpistas, pois Castello teria sido escolhido como

candidato pelo “Comando Supremo da Revolução” por ser uma liderança hábil em

unir as Forças Armadas, assim ficando evidente a proeminência dos militares sobre

os políticos civis golpistas, que geraria séries de desentendimentos, como com o

governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda, que fora um dos políticos mais

entusiastas do movimento que culminou no golpe de 1964, o qual teria entregue

simbolicamente seu cargo ao novo Ministro da Guerra (MARTINS FILHO, 1993, p.

54).

Entretanto, como se sabe, a escolha do marechal não foi bem aceita nem por

todos os militares, como, por exemplo, pelo autodenominado “comandante-em-chefe

do Exército Nacional” e líder do “Comando Supremo da Revolução” Arthur da Costa

e Silva, ecoando, assim, divergências entre o que simplificadamente João Roberto

Martins Filho (1993, p. 50) chamou de “liberais”/“moderados”/“castelistas” e “linha

dura”. Nesta interpretação, havia entre as Forças Armadas uma divisão interna

anterior ao início do regime militar, na qual os “moderados” seriam aqueles com

formação intelectual mais apurada, mais atentos às normais legais e menos severos

na punição aos inimigos da “revolução” (FICO, 2004, p. 32), enquanto que à “linha

dura” (aliás, representada por Costa e Silva) pertenciam os militares que defendiam

um nacionalismo militar e maior rigor na “limpeza” do sistema político, bem como

pretendiam assumir para si a tomada de decisões do governo militar em franco

desprezo aos civis (MARTINS FILHO, 1993, p. 61). Note-se, contudo, que tais

categorias de análise referem-se mais às divergências quanto ao “uso e papel

político da repressão legal e o grau de violência policial direta neste processo”

(NAPOLITANO, 2011a, nota 59), não necessariamente indicando que um grupo

seria autoritário e outro não, até porque todos os militares defendiam o autoritarismo

como forma de controle sobre a nação.

Sendo assim, Castello Branco, como a associação de seu nome com os

“moderados” indicava, liderava esse grupo formado por oficiais conectados,

sobretudo como professores, à Escola Superior de Guerra (ESG), articulado por

resultado de experiências compartilhadas que viveram na Força Expedicionária

Brasileira (FEB), durante a Segunda Grande Guerra (SKIDMORE, 1988, p. 52).

  58

Muitos deles tinham feito cursos em instituições militares no exterior, como o próprio

Castello, que tinha cursado dois anos na École Supérieure de Guerre, na França,

assim como o curso de estado-maior e comando na Fort Leavenworth War School,

nos EUA (SKIDMORE, 1988, p. 51). Deste modo, vinha daí a “fidelidade

democrática” do primeiro general-presidente da ditadura, o qual em sua posse

declarava cumprir como Chefe de Estado a Constituição de 1946 e entregar o cargo

a um brasileiro, em 31 de janeiro de 1966 (O DIA, 2011). Pois sim, pretendia-se

inicialmente “apenas” efetuar a “Operação Limpeza”, na qual as forças reformistas

que atuavam no governo Goulart fossem expurgadas, porém, a eleição que se

realizaria em 3 de outubro de 1965 por ocasião do fim do mandato do presidente

deposto seria adiada em até um ano por Castello Branco. Quase dois meses depois

da posse de Castello, era instituído em 13 de junho o Serviço Nacional de

Informações (SNI), idealizado e dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva – que,

aliás dirigira o IPES logo após a fundação da entidade em 29 de novembro de 1961

– até março de 1967, o qual também vinha da ESG, com a intenção de desenvolver

uma instituição de informações que consolidasse o novo regime. Atuando na

superintendência e coordenação de atividades de informações e contrainformações,

principalmente as que interessassem à segurança nacional, o SNI ofereceria

subsídio às decisões de Castello. Entretanto, com a posse de Costa e Silva em

março de 1967, o SNI, sob chefia do general Emílio Garrastazu Médici, seria

transformado em centro de uma extensa rede de espionagem, ultrapassando as

intenções de Golbery, que afirmaria ter criado um monstro. Mas não teria sido ele o

responsável por isso, e sim a “linha dura” (FICO, 2004, 36).

Após um ano e meio de governo, sob pressão principalmente da dita “linha

dura”, e com as dificuldades em diversas áreas que culminaram na crise de outubro

de 1965, Castello Branco, sem o apoio do Congresso, decretou o Ato Institucional nº

2 (AI-2). Este Ato, de 27 de outubro de 1965, sinalizaria certo recuo do general-

-presidente a fim de atender às exigências dos linhas-duras e se manter na

presidência (SKIDMORE, 1988, p. 99-100) – lembro que aqui as eleições para

presidente e vice-presidente eram fixadas para acontecer até 3 de outubro de 1966,

principalmente naquilo que ele tinha de mais consequente após a insatisfação dos

oficiais com as eleições recém realizadas, a extinção das siglas partidárias então

existentes, dificultando vitórias eleitorais da oposição, alienando os políticos a partir

de 1966 ao postiço sistema bipartidário Arena (Aliança Renovadora Nacional, partido

  59

situacionista) “versus” MDB (Movimento Democrático Brasileiro, partido oposicionista

“consentido”). Além disso, o AI-2 suspenderia as eleições diretas para presidente,

vice-presidente e governadores, os quais seriam eleitos indiretamente pelo

Congresso Nacional e assembleias legislativas, respectivamente, o que

praticamente significava que a presidência não seria sucedida por um civil. Isto é, os

militares anunciavam que tinham vindo para ficar como bem sugere Marcos

Napolitano, “A partir daí, o que era um ‘golpe civil-militar’ começa a se transformar,

efetivamente, em um ‘regime militar’” (NAPOLITANO, 2011a, p. 41, nota 59).

Entretanto, a trajetória de institucionalização da ditadura militar no governo

Castello ainda seria muito afetada pela “cizânia militar” (termo utilizado por Martins

Filho para enfatizar a heterogeneidade no interior das Forças Armadas),

principalmente após a retificação da sucessão em 3 de outubro de 1966 por Costa e

Silva, que na época era Ministro da Guerra. Mesmo a contragosto, Castello Branco

teve de admitir como sucessor o condestável de seu governo, porém, pressionou

Costa e Silva por uma continuidade política pautada na democracia (SKIDMORE,

1988, p. 111), que, como sabemos, não se efetivou. Neste ínterim, os “moderados”

dedicaram os últimos meses de governo à criação de dispositivos legais que

impedissem arbitrariedades do grupo sucessor e abusos tanto da direita quanto da

esquerda. Deste modo, apareceriam entre final de 1966 e início do ano seguinte

com datas para entrar em vigor fixadas concomitantemente à posse de Costa e Silva,

tornando evidente a estratégia “castelista”. Tal estrutura estava baseada em três

itens: uma nova Constituição, Lei de Imprensa e Lei de Segurança Nacional (LSN).

A história das Constituições brasileiras acompanha as rupturas de governo e

tendem a legitimar o regime que a redige. Isto não ocorreu de modo diferente no

governo militar, quando a Carta que entrou em vigor em 15 de março de 1967

apresentava, de diferente à Carta de 1946, basicamente o conteúdo dos três Atos

Institucionais baixados até então e leis correspondentes (SKIDMORE, 1988, p. 119).

Um dos pontos-chave da Constituição decretada e promulgada pelo Congresso

Nacional em 24 de janeiro de 1967 estava referido à constitucionalização da

Doutrina de Segurança Nacional (DSN) (BORGES, 2009, p. 39).

A DSN, nascida nos EUA, chegou ao Brasil pelos oficias que tinham lutado na

Segunda Grande Guerra. Nos campos de batalhas italianos, os brasileiros ficariam

seduzidos com a máquina de guerra estadunidense, que os levaria a participar de

cursos de escolas de guerra dos EUA (vide Castello Branco) (BORGES, 2009, p. 35).

  60

A DSN, originária dos gabinetes do National War College dos EUA, era marcada

pela guerra fria, na qual se estabelecia um forte antagonismo das relações Leste-

-Oeste, ficando evidente os EUA como potência ocidental e o anticomunismo. Esta

DSN seria adaptada ao Brasil na ESG, fundada em 1949 pelo Exército brasileiro, de

matriz liberal e anticomunista, atrelando segurança externa e segurança interna. A

LSN (que fora prevista enquanto dispositivo na Constituição de 1967), decretada por

Castello, o qual fora da ESG, estabelecia no quadro de crimes à segurança nacional

aqueles de ordem política e social (BRASIL, 1967b, [p. 1], Arts. 2º e 3º), instituindo-

-se a noção de “guerra subversiva” ou “guerra interna” (FICO, 2004, p. 33). Deste

modo, em consequência, justificava-se “o controle da população e o exercício da

violência física e simbólica para o opositores do regime” (BORGES, 2009, p. 37)

através de aparelhos de repressão, o que figuraria como porta de entrada da

institucionalização do aparato repressivo que, em 1969, viria a ser a Operação

Bandeirante (OBAN) e por sucessão o DOI-CODI (Destacamento de Operações de

Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que estabelecia um sistema

de repressão com “as turmas de captura e interrogatório” (FICO, 2004, p. 34)

articuladas por militares e policiais. Logo, vê-se que a estratégia legalista dos

“castelistas” tinha saído como “um tiro pela culatra”, como diz Thomas Skidmore,

O frenético recurso à lei tinha por fim moldar definitivamente o Brasil pós- -1967. Mas a tentativa continha forte dose de ironia. Ao codificar os poderes arbitrários considerados necessários, por exemplo, Castelo achava que podia impedir no futuro novas leis para impor medidas ainda mais arbitrárias. […] Ao elaborarem uma nova Constituição e a Lei de Segurança Nacional, Castelo e seus colegas pretenderam criar um sistema político que reconciliasse as idéias militares e constitucionalistas do país, da sociedade e do indivíduo. Mais importante e paradoxal, os castelistas acreditavam que tais leis – quase todas em conflito com os princípios constitucionais anteriores a 1964 – eram o único meio de preservar a democracia. Na realidade, eles foram vítimas da suposição elitista há muito predominante em Portugal e no Brasil de que a solução de qualquer problema consistia em uma nova lei. A UDN [União Democrática Nacional], o partido de Castelo, era o exemplo acabado deste tipo de mentalidade. Seu governo operava, portanto, no contexto de uma velha, melhor dizendo, antiquíssima tradição política brasileira. (SKIDMORE, 1988, p. 121)

Em 1983, com o processo de abertura democrática, uma ampla campanha

popular encabeçada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) faria o pedido de

revogação da LSN, o qual foi atendido simbolicamente pelo presidente do

julgamento, o ex-senador Teotônio Vilela do Partido do Movimento Democrático

Brasileiro (PMDB), no Tribunal Tiradentes. Ocorrido em 10 de maio daquele ano no

  61

Teatro Municipal de São Paulo, o tribunal foi filmado, quando foi produzido o

documentário de Renato Tapajós “Em Nome da Segurança Nacional” e lançado no

seguinte ano. Por meio desse filme é possível constatarmos, a partir dos vários

depoimentos prestados, que a LSN pautada na DSN, significou a militarização da

sociedade brasileira em todos os aspectos, ressonância da “guerra interna”, na qual

civis eram julgados por dispositivos militares (EM NOME, 1984). Entretanto, a

revogação daquela levaria a outra LSN, sancionada no final de 1983, interpretada ao

final do filme, ao contrário da leitura que a OAB fez, como um dispositivo “que

modificaria apenas superficialmente a antiga lei, sem alterar em nada a DSN” (EM

NOME, 1984). Tal LSN vigora até hoje.

A outra lei do final do governo de Castello era a Lei de Imprensa, que daria

certa dor de cabeça ao general-presidente. Com a negativa crítica da imprensa ao

governo militar, o projeto de lei apresentado pelo general-presidente no final de 1966

ao Congresso pretendia enquadrar a mídia a partir da censura. Entretanto, os

principais jornais do país (“Correio da Manhã”, “Estado de São Paulo”, “Jornal do

Brasil”) atacariam contundentemente a lei que, segundo os jornalistas, incorporava a

DSN da ESG, instituindo assim que alguns crimes de imprensa poderiam ser

tomados pelo viés de crimes à segurança nacional (MARTINS FILHO, 1993, p. 104).

Produzido nesse calor, o documentário reflexivo de João Batista de Andrade,

“Liberdade de Imprensa”, condensaria as críticas direcionadas à Lei de Imprensa.

Nele podemos ver e ouvir alguns bastiões do jornalismo da época como Carlos

Lacerda, fundador do “Tribuna da Imprensa”, o qual dizia que “a Lei de Imprensa

feita pela semi-ditadura que tivemos ultimamente é uma lei contra a imprensa”

(LIBERDADE, 1967), pois tolhia a liberdade de notícia e crítica. É interessante

percebermos como o feitiço volta contra o feiticeiro em certas ocasiões. Entretanto, a

pressão sobre a imprensa que o governo militar exerceu baseava-se no pensamento

de que segurança nacional também dependia da conquista da opinião pública. Aliás,

o filme de João Batista é costurado pela história de Celso Monteiro da Silva, homem

simples que, contando com o emprego no “Estado de São Paulo” e a renda vinda de

uma banca de jornais e revistas, esforçava-se para construir uma casa para a sua

família. Tal situação de pobreza vivida pelo personagem é contrastada e ironizada

na montagem do final do filme, quando vemos o interior da casa dele, sua esposa e

os vários filhos e ouvimos a voz em off de Celso, o qual concordava com a

intervenção estadunidense sobre São Domingos a fim de garantir a não-instalação

  62

de um governo socialista. Perguntado por João Batista, o trabalhador ainda diria que

se acontecesse algo semelhante no Brasil, ele apoiaria a interferência dos EUA

(LIBERDADE, 1967). Mal sabia Celso que isso já havia ocorrido em 1964. Deste

modo, a intenção do diretor era a de mostrar como a mídia poderia manipular a

opinião pública, e os militares estavam atentos a isso.

Nesta via, sob pressão da opinião pública, a Lei de Imprensa aprovada em 9

de fevereiro de 1967 incluía várias emendas importantes, o que garantiu a calma e a

aceitação pela imprensa. A lei, em sua tarefa de regulação da liberdade de

declaração do pensamento e de informação, não estabelecia a censura, aliás, seu

artigo inicial definia ser “livre a manifestação do pensamento e a procura, o

recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem

dependência de censura, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos

que cometer” (BRASIL, 1967a, [p. 1], Art. 1º), no entanto, ela definia um amplo

aparato burocrático para o funcionamento dos meios de comunicação, bem como

previa um amplo rol de penalizações baseadas em abusos da liberdade de imprensa.

Deste modo, uma interpretação de Nós somos os guardiões-mor da sagrada

democracia nacional deve levar em conta que Claudio Tozzi estava atento à

realidade política e social brasileira daquele momento e a colocou como problema

em seu trabalho. Lembro, inicialmente, que o artista participou da formulação do

projeto gráfico e acompanhou a diagramação do jornal “Amanhã”, em 1967 –

periódico que coproduziu o filme de João Batista de Andrade – “um tablóide

alternativo, de conteúdo contestatório ao regime militar, fundado por Raimundo

Pereira” (MAGALHÃES, 2007, p. 20). Tal fato e o engajamento político de Tozzi no

movimento estudantil levam a crer que a organização dos elementos dessa obra de

1967 é intencional e crítica, principalmente quanto ao uso da imagem de Castello

Branco, a qual convoca diretamente o público à problematização da situação política,

pois no caso desse uso de imagem amplamente conhecida,

As obras têm efeito impactante sobre o espectador, expondo-o a imagens icónicas do cotidiano contemporâneo. O uso da imagem familiar, deslocada para outro contexto, induz a um certo nível de identificação e participação ativa do observador, motivado para alcançar os significados potenciais que a obra sugere. Ele se engaja em atividades associativas, e nesse processo obtém um efeito colateral da Pop Art: uma ampliação da consciência, no que se refere ao ambiente em volta e ao cotidiano. O observador, através de respostas perceptivas provocadas pelo reconhecimento imediato da imagem e pela dimensão visivo-tátil presente na obra Pop, preenche o espaço vazio que o artista deixou ao optar pela atitude de distanciamento e impessoalidade. (OLIVEIRA, 1993, p. 90)

  63

Assim, o artista paulistano aproximava-se da ideia de Sérgio Ferro, seu

professor e companheiro de luta artística e política, que intencionara “fazer uma

pintura que se aproximasse das pessoas, que qualquer um pudesse entender”

(FERRO, 1997 apud RIDENTI, 2000, p. 177). Sintomaticamente, isto tinha a ver com

a aproximação de arte e vida que, no caso dos “pintores-arquitetos”, principalmente,

significava vida engajada politicamente. Tal engajamento renderia, em 1971, em

processo movido pelo regime militar contra Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Carlos

Heck, Júlio Barone e Sérgio de Souza Lima – o grupo de arquitetos da ALN –

resultando na sentença do juiz militar que os condenou a dois anos de prisão, “por

atentados a bomba, pertencer a organizações terroristas e outros delitos” (RIDENTI,

2000, p. 181). Aliás, nesta mesma época que os arquitetos foram presos, o ateliê de

Claudio foi invadido pelos agentes do DOI-CODI e Nós somos os guardiões-mór…

foi destruído (TOZZI, 2012, p. 6) – eu acredito que os eventos estavam conectados,

porém, na entrevista concedida a mim, o artista não deixou isso evidente.

A destruição do quadro-objeto pelo regime militar não foi casual. O trabalho

tinha sido apresentado na Primeira Feira Paulista de Opinião, realizada em São

Paulo (TOZZI, 2007, p. 37), espetáculo realizado pelo Teatro de Arena em 5 de

junho de 1968, no qual artistas das várias artes respondiam à pergunta: “O que

pensa o Brasil de hoje?” (ENCICLOPÉDIA, 2008). O evento pretendia reunir as

interpretações de artistas da realidade social e política brasileira daquele momento a

partir de suas obras. Deste modo, Tozzi apresentava sua interpretação de um Brasil

em 1967/1968 que enveredava para a militarização da esfera civil e com Nós somos

os guardiões-mór…, o artista culpava Castello Branco por ter decretado a Lei de

Segurança Nacional que incorporava a Doutrina de Segurança Nacional da Escola

Superior de Guerra que, como já disse acima, abriu as portas para a

institucionalização do aparelho repressivo militar.

Além disso, o trabalho do artista visual tem certa dose de ironia, a iniciar pelo

título: Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional, que aliás, era

o discurso dos militares golpistas que tinham feito a “revolução” para garantir a

ordem democrática e que, além disso, tinham se mantido no poder para continuar a

“garantindo”. Nesta falácia, que durou 21 anos, as Forças Armadas instauraram uma

ditadura militar, desde o início, de ordem autoritária que contrariava o discurso da

salvaguarda da democracia. Esta ironia apareceria no próprio discurso da obra com

  64

a apropriação da medalha com o busto do militar, na qual se inscreve o nome do

trabalho, e sua relação com os outros elementos que indicavam a culpa de Castello,

o autoritarismo e, por fim, a contradição entre a fala pretensamente “democrática” do

governo e a realidade social e política. Nesta via, a inscrição do texto na medalha se

configura, segundo o historiador da arte Peter Wagner, como “iconotexto”, o qual

serviria como guia em direção a uma leitura proposta pelo artista (BURKE, 2004, p.

49). Contudo, esse iconotexto, lido em relação aos outros elementos da obra, não

apresenta valor literal, mas sim estabelece um valor comunicativo de ironia

relacionada ao discurso dos militares que se autonomearam “guardiões-mór da

sagrada democracia nacional”.

Neste sentido, é possível constatarmos que a operação de apropriação em

USA e abUSA e em Nós somos os guardiões-mór… tem a ver com o que o

historiador Roger Chartier aponta sobre as apropriações culturais – estou pensando

a produção artística como prática cultural também – que são pensadas enquanto

exercícios de apoderamento sempre criadores, desviantes, nos quais os usos ou as

representações “não são de forma alguma redutíveis à vontade dos produtores de

discursos e de normas” (CHARTIER, 2002, p. 136).

Neste ponto da utopia do deslocamento semântico, pode-se sinalizar também

aproximações do trabalho de Tozzi com a ideia de “détournement”, “de ‘desvio de

finalidade’: que consiste em tomar elementos previamente disponíveis, para lhes

conferir, em um novo contexto, um sentido inovador e revolucionário” (JAPPE, 2011,

p. 195, grifo meu). A ideia foi desenvolvida nos anos 1950 pela Internacional Letrista

e posteriormente utilizada pela Internacional Situacionista, grupo francês atuante de

1957 a 1972, que contava com a participação de intelectuais de diferentes áreas e

teve como figura mais proeminente o pensador e ativista Guy Debord.

Apesar de notarmos um “novo valor” conferido aos objetos apropriados nas

obras de 1966 e 1967 , isto é, a atualização da referência ao fascismo e aos EUA

como crítica à ditadura militar e a ironia atribuída à salvaguarda da democracia

nacional, na leitura proposta por Anselm Jappe, pode-se dizer que isso

acompanharia a “dissolução das formas artísticas tradicionais” (JAPPE, 2011, p.

197), proposta por Claudio e pela Nova Objetividade: a superação do quadro de

cavalete em direção à criação de objetos interventores na realidade e, que, assim,

com ela dialogassem. Nesta via, as convergências dos “nouveaux réalistes” com os

situacionistas compreenderiam também algumas temáticas caras aos artistas visuais

  65

brasileiros na década de 1960: crítica à institucionalização da arte, diálogo arte e

realidade, principalmente a realidade inventada pela cultura de massa, que leva à

apropriação de fragmentos (e mitologias) do mundo espetacularizado, alienado,

enfim, industrializado e urbano.

No sentido de uma proposta de arte engajada, a partir da qual Tozzi atuou

como força resistente e crítica da realidade política e social brasileira nos primeiros

cinco anos de regime militar, promovendo a atuação da arte na causa revolucionária

e uma revolução na arte, acentue-se a posição do filósofo Mikel Dufrenne (1974

apud AMARAL, 2003, p. 14) sobre a não neutralidade da arte e do artista, porque

acredito no jogo propositivo/participativo entre o artista e público, principalmente, em

um momento como o vivenciado em 1966 e 1967, marcado pela institucionalização

da ditadura que se mostrava cada vez mais militar e autoritária.

Era preciso, como disse Gadamer (1985, p. 16), apresentar uma justificativa

para a arte, assim como todos os tempos produziram as suas. Na poética de Tozzi

no período 1964-1968 a arte se justificava por seu caráter resistente, de luta contra o

regime. Deste modo, o artista politizado estetizava a política, pois desejava a partir

da estrutura de seus trabalhos ressoar sua vontade de organizar o mundo. Tal

preocupação de organização no caso de Claudio também estava referida a sua

formação na arquitetura, que desaguaria em uma necessidade de pensar o espaço

que não se limitava ao arquitetônico – principalmente com a influência que teve na

FAU-USP de Sérgio Ferro e Farid Helou (esse último estava diretamente ligado a

Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, e Carlos Marighella da ALN (TOZZI, 2012, p. 5))

– mas que também se relacionava com pensamento de ação sobre o espaço

artístico, político, social etc.

  66

4 IMAGENS ALEGÓRICAS, ARTES PERIFÉRICAS: O BANDIDO NAS ARTES

Este capítulo analisa as relações intertextuais entre Bandido da Luz Vermelha,

de 1967, e outros trabalhos artísticos contemporâneos a esse ambiente de Claudio

Tozzi. Assim, a partir de um tom ensaístico, delineio as apropriações e

frequentações operadas pelo artista visual paulistano com a Arte Pop de New York

pelo trabalho de Roy Lichtenstein, com as proposições “marginais” de Hélio Oiticica

e com os filmes O Bandido da Luz Vermelha, do cineasta brasileiro Rogério

Sganzerla, e Pierrot le fou, do cineasta francês Jean-Luc Godard.

Há uma ideia, a qual gostaria de recapitular, que perpassa a construção deste

trabalho, como pode ser notado nos dois capítulos anteriores. Esta ideia se refere à

crise instalada com o golpe civil-militar de 31 de março de 1964, que impulsionaria a

transformação do campo cultural em local por excelência de resistência até a edição

do AI-5. René Rémond nos lembra que, em tempos de crise, setores possivelmente

distantes da política, passam a atuar em articulação com ela (RÉMOND, 2003, p.

443), o que no Brasil pós-golpe traduziu-se na colocação de questões políticas em

debate no campo cultural, marcando quase que uma fusão entre política e cultura,

fruto do engajamento dos artistas.

Deste modo, se o ano de 1967 marcou o apogeu da arte engajada

(NAPOLITANO, 2008, p. 59) – quando essa invade várias instituições tradicionais de

arte, sendo o exemplo máximo a proposta de Arte Pública na IX Bienal de Arte de

São Paulo – esse ano marca alterações na poética de Claudio Tozzi. Aí o artista se

interessaria e estudaria o trabalho de Roy Lichtenstein, o qual desenvolvia na época

uma operação analítica da histórias em quadrinhos, um dos produtos mais

consumidos da indústria cultural de massa. (ARGAN, 1992, p. 646). Estes estudos

de Tozzi o levariam a fabricar vários trabalhos marcados por apropriações de

Lichtenstein, sendo a série “Bandido da Luz Vermelha” um exemplo.

Entretanto, talvez seja nessa série que mais explicitamente notamos as

apropriações como reempregos singulares da operação do artista estadunidense.

Para Fábio Magalhães, esta alteração se devia ao fato de que Claudio utilizaria a

operação de Lichtenstein como suporte “para aprofundar críticas à nossa

dependência cultural e artística” (MAGALHÃES, 1989, p. 25). Isto está ligado ao que

discute Mário Pedrosa, em texto de 1967, intitulado “Quinquilharia e Pop’Art”, aborda

como inspiração “conformista” dos artistas pop e, sendo assim, expõe falas de Roy

  67

que o denunciam como um admirador da realidade que aparentemente ele estava

parodiando (PEDROSA, 2007, p. 177), o qual se insere no meio de onde retira seus

temas. Como lembra Pedrosa, estes artistas pop – além de Lichtenstein, Andy

Warhol e Claes Oldenburg – eram especialistas do que desenvolviam em suas obras,

as técnicas dos meios de comunicação de massa, principalmente a publicidade, que

era fundamental para a “civilização estadunidense” (PEDROSA, 2007, p. 177).

Assim, apropriaram-se de subprodutos culturais estadunidenses como

“quinquilheiros” ou “bricoleurs”, o qual utiliza imagens ou objetos que integram o

ambiente em que vive, configurando-se como “bricolage” (atividade exercida pelo

“bricoleur”) a técnica, que Claude Lévi-Strauss, a partir da antropologia cultural,

relaciona ao “primitivo que vive da coleta” (ARGAN, 1992, p. 558) – no limite, esta

afirmação nos levaria a crer que a sociedade de consumo reconduz o homem ao

estado de selvageria.

No capítulo anterior, a apropriação do lixo cultural já fizera parte do percurso

interpretativo, quando se pensou a justaposição de elementos transitórios (o jornal

que ao fim do dia vai para o lixo) e permanentes em USA e abUSA. Contudo, eu

gostaria de guardar esta questão e voltar a ela mais a frente neste capítulo.

O interesse de Claudio Tozzi pelos artistas pop não fora casual, pois ele

mesmo vinha de uma trajetória enquanto artista gráfico (sua participação no XI

Salão Paulista de Arte Moderna, vencendo o concurso de cartazes), bem como tinha

auxiliado na formulação do projeto gráfico e acompanhava a diagramação do jornal

“Amanhã”. Contudo, aquele contexto no Brasil, apesar das iniciativas de superação

que despontavam, ainda era muito marcado pela experiência do concretismo, assim

como pelos convencionalismos artísticos. Dentro disso, o artista paulistano, ao

conhecer principalmente os trabalhos de Andy Warhol e Roy Lichtenstein, sentiu-se

encorajado e disse a si mesmo: “puxa, isso aí é o que tem que ser feito mesmo!”

(TOZZI, 2012, p. 8). Vale ressaltar a reviravolta que esses artistas operariam, pois

O pop decidiu representar graficamente tudo o que antes era considerado insignificante, irrelevante mesmo, como arte: todos os níveis da ilustração publicitária, de revistas e de jornais, anedotas de Times Square, bricabraque, mobiliário e acessórios vistosos, de mau gosto, vestuário e produtos alimentares vulgares, estrelas de cinema, pin-ups, bandas desenhadas. Nada era sagrado, e quanto mais barato e mais ordinário melhor. Nem eram respeitados os métodos de criação consagrados. Lichtenstein e Warhol não “inventaram” sequer as suas imagens, e dizia-se muitas vezes que eles se limitavam a escolhê-las. (LIPPARD, 1976, p. 90, grifo da autora)

  68

Assim, na mesma época, Tozzi ganhara um episcópio, que é como um

projetor que permite a ampliação da imagem sobre uma tela branca e o trabalho

diretamente em cima dela (OLIVEIRA, 1993, p. 222). Em entrevista, o artista contou

que “gostava muito de ficar fazendo um desenho, alguma coisa ligada à história em

quadrinhos e ver em tamanho que ocupasse a parede” (TOZZI, 2012, p. 8). Isto ele

aplicaria juntamente com a operação de apropriação de imagens e passaria à

reprodução delas. Este método marcou profundamente os trabalhos a partir de 1967.

Sendo assim, o que eu apresento aqui como Bandido da Luz Vermelha é, na

realidade, apenas uma parte de um ambiente homônimo que foi apresentado em

1968 na “Cultural de Belém”, em Belém (PA). O trabalho de arte ambiental era um

dodecaedro composto por 12 painéis com planos referentes ao tema do bandido da

luz vermelha, que estava elevado do solo e do centro irradiava uma forte luz

vermelha, a qual atingia os participantes que se aproximassem (TOZZI, 2012, p. 11).

Além disso, havia um texto que não tinha uma sequência lógica, mas que incitava o

participante a montar o sentido do trabalho (MAGALHÃES, 2007, p. 26).

Entretanto, e esta é uma das problemáticas referentes à desmaterialização do

objeto de arte, mesmo que traga três painéis do ambiente para discussão neste

capítulo, o sentido da proposição vivencial do artista se perde. Claudio, neste

sentido, apropriava-se da proposta de antiarte ambiental de Oiticica, que propunha:

a reunião indivisível de todas as modalidades em posse do artista ao criar – as já conhecidas: cor, palavra, luz, ação construção etc., e as que a cada momento surgem na ânsia inventiva do mesmo ou do próprio participador ao tomar contato com a obra (OITICICA, 1986, p. 78)

Deste modo, fundava-se uma proposta de arte coletiva, de arte pública, de

manifestação criadora do artista e do público que apostavam no jogo da arte. Aliás,

esta proposição lembra a relação, construída por Gadamer, da arte também como

festa. Nesta via, a formulação de arte ambiental de Hélio recuperava a própria

condição antropológica da arte como festa, como experiência de coletividade e

mesmo como ritual, bem como vivência de suspensão do tempo cronológico da vida

cotidiana (GADAMER, 1985, p. 61-69).

Por isso mesmo, que ao levar o participador à experiência da criação a partir

da vivência da proposição, a arte pode ser entendida como intervenção social, pois

na participação o indivíduo seria desalienado e convocado à participação ético-social

no confronto com situações, as quais estimulariam comportamentos de “ampliação

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da consciência, liberação da fantasia, renovação da sensibilidade” (FAVARETTO,

1992, p. 127). Aliás, encontramos aí uma chave que questionaria o ceticismo de

Aracy Amaral, do qual tratei no primeiro capítulo, aos trabalhos de Hélio Oiticica,

porque participação tem algo a ver com criação e criação tem algo a ver com

liberdade. A partir dessa proposta de revolução micropolítica, o regime autoritário

castrador das liberdades individuais era criticado. Logo, creio que os trabalhos de

arte pública – sem entrar no mérito de se isso surtiu efeito como se propunha –

tinham sim caráter de resistência a todo e qualquer autoritarismo proibidor da

participação pública na atuação política. Aliás, a própria questão da “participação do

espectador” tinha se tornado na época um item do programa vanguardista (item 3 do

já citado “Esquema Geral da Nova Objetividade), que segundo Mário Pedrosa,

revelava-se “cada vez mais como um conceito revolucionário a opor-se – quase que

como o traço específico da sensibilidade de nossa época – ao conceito estético

decisivo sem dúvida das épocas anteriores, ou o da ‘distância psíquica’” (PEDROSA,

2007, p. 188), desta entre a obra e o espectador, a qual já vinha sendo abolida por

Lygia Clark desde os Bichos (1960).

Contudo, retornemos aos painéis de Bandido da Luz Vermelha. Como disse,

esse trabalho ressoa o estudo que Tozzi efetuou sobre a obra de Lichtenstein,

entretanto, há o reemprego singular da operação analítica do artista estadunidense

em um sentido crítico. Analisados em conjunto, os três painéis Acertei a Frigideira no

Bandido (ver Figura 9), Desta vez eu consigo fugir (ver Figura 10) e Bandido da Luz

Vermelha (ver Figura 11) expõem diferenças de apresentação formal se comparados

a uma obra de Lichtenstein, M-Maybe (ver Figura 12). Esta divergência formal, como

veremos adiante, não se encerra em si mesma.

Boa parte do trabalho de Roy Lichtenstein após 1961 foi marcado pela

operação analítica da estrutura da imagem nas histórias em quadrinhos, a partir da

qual o artista “isola uma dessas imagens e a reproduz à mão, ampliada. Retira-a

assim do ‘consumo’ normal, olha-a pelo microscópio, reconstrói seu tecido (na

prática, o ‘retículo’ tipográfico), utilizando uma técnica gráfica e pictórica” (ARGAN,

1992, p. 646, grifo do autor). Como sabemos, esta operação foi estudada por Tozzi,

porém, sua apropriação indica desvios.

Deste modo, ao atentarmos para a reconstrução da imagem ampliada,

notamos que as retículas Ben-Day – processo gráfico no qual várias pontos são

desenhados em espaçamentos e/ou sobrepostos, assim, criando, por ilusão de ótica,

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Figura 9 – Claudio Tozzi, Acertei a Frigideira no Bandido, 1967. Tinta em massa sobre eucatex, 95 × 95 cm.

Fonte: KIYOMURA, Leila; GIOVANNETTI, Bruno (Org.). Claudio Tozzi. São Paulo: Edusp, 2005. p. 46.

um efeito de coloração que na época era muito utilizado para imprimir histórias em

quadrinhos a baixo custo nos EUA – são ampliadas por Lichtenstein em seu

processo analítico, como podemos notar no preenchimento da cor de pele da figura

de M-Maybe. Entretanto, a partir de um gesto mais pictórico do que gráfico, Tozzi

produz suas retículas, como podemos ver nos três painéis, de modo mais ampliado,

praticamente exagerado e utilizado apenas para construir o fundo. O trabalho de

Roy evidencia a demonstração de que o “processo de produção industrial de

imagens é de absoluta correção, um modelo de perfeição tecnológica” (ARGAN,

1992, p. 582). Já em Tozzi esta perfeição é abandonada, pois o que aparece ali é de

  71

Figura 10 – Claudio Tozzi, Desta vez eu consigo fugir, 1967. Tinta em massa e acrílico sobre eucatex, 95 × 95 cm.

Fonte: MAGALHÃES, Fábio. Obra em construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi. Rio de Janeiro: Revan, 1989. p. 26.

certa forma um gesto pictórico grosso – as retículas são demasiadamente grandes e

apresentam problemas de simetria em alguns trechos.

Desta forma, tal questão está relacionada ainda às estrelas inscritas em um

retângulo lembrando a bandeira dos EUA, que aparecem em Acertei a Frigideira no

Bandido e Bandido da Luz Vermelha, e referem-se ao que Nelson Aguilar chamou

de realização da “paródia da paródia” (AGUILAR, 1978, p. 221). Nesta interpretação,

Lichtenstein executava a paródia das histórias em quadrinhos, enquanto que Tozzi,

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Figura 11 – Claudio Tozzi, Bandido da Luz Vermelha, 1967. Liquitex sobre hardboard, 95 × 95 cm.

Fonte: BRASIL Artes Enciclopédias. Rio de Janeiro: [s.n.], [2006?]. Tozzi. O bandido da luz vermelha, 1967, col. part. Disponível em:<http://www.brasilartesenciclopedias.com.br/mobile/nacional/

images/tozzi01g.jpg>. Acesso em: 26 mai. 2013.

ao utilizar o método do artista estadunidense, parodiou pela utilização escrachada

das retículas que ainda são acompanhadas pela “bandeira dos EUA” – vestígio da

referência – desvelando, assim, a colonização cultural que os EUA efetuavam no

Brasil (AGUILAR, 1978, p. 221). Tal questão era ainda mais acirrada pelo fato de

Claudio utilizar um método estadunidense para criar a história em quadrinhos sobre

o bandido da luz vermelha, uma das mitologias de marginalidade na metrópole, o

que questionava os ideais da ordem autoritária imposta pelo regime militar que se

instalou e consolidou com o apoio dos EUA.

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Figura 12 – Roy Lichtenstein, M-Maybe, 1965. Óleo e Magna sobre tela, 152,4 × 152,4 cm.

Fonte: MARION Roussey. [S.l.:s.n.], 2012. Analyse d’oeuvre. Disponível em:<marionroussey.files.wordpress.com/2012/01/roy-lichtenstein_m-maybe1.jpg>.

Acesso em: 26 mai. 2013.

Entretanto, lembro que esses elementos não são exclusivos dos painéis de

Bandido da Luz Vermelha, pois eles se apresentam em muitas outras obras de Tozzi

deste período, inclusive em Até que enfim… (ver Figura 13), de 1967, portanto do

mesmo ano dos painéis. Até que enfim… apresenta os mesmos elementos formais

da paródia da paródia de Aguilar, que denunciariam o colonialismo cultural, e

também apresenta a figura feminina como personagem destas histórias. Há aí

também uma divergência em relação ao trabalho de Roy Lichtenstein.

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Figura 13 – Claudio Tozzi, Até que enfim…, 1967. Tinta em massa e acrílico sobre eucatex, 240 × 120 cm.

Fonte: MAGALHÃES, Fábio. Obra em construção: 25 anos de trabalho de Claudio Tozzi. Rio de Janeiro: Revan, 1989. p. 27.

  75

Ambas as obras de Claudio Tozzi estão relacionadas à temática sexual: em

Bandido da Luz Vermelha há a questão do medo dos estupros que o bandido real

cometia sinalizado pelas falas das mulheres nos balões, já Até que enfim… se

relaciona com a questão da (perda da) virgindade feminina, da liberação sexual,

realçada pela ironia da pose da figura e da fala “Desta vez foi”, um “tema que

passava por altas discussões na época e que apesar da abordagem fria, com a

figura da moça em desenho estandartizado, sem dúvida causou impacto pelo

conteúdo de reportagem social implícito” (OLIVEIRA, 1993, p. 224). Esta última obra

foi exposta na IX Bienal de Arte de São Paulo daquele ano, na qual houve uma

concentração de trabalhos de Arte Pop, incluindo alguns de Roy Lichtenstein.

Nesta via, ainda sobre as figuras femininas nos trabalhos de Tozzi e Roy,

gostaria de expor o contraste que há no tratamento conferido a elas. Assim, os

artistas pop estadunidense estavam acostumados nos anos 1960 a utilizar – como

Lichtenstein – temas de guerra e personagens masculinos em suas obras,

representações de força e vigor masculino como o Super-homem ou o Popeye, os

quais ressoavam uma narrativa nacional que incorporava antigos e poderosos mitos

do EUA e do “American way of life” (MCCARTHY, 2002, p. 63-64). De certo modo,

esta questão transborda na construção de figuras femininas que geralmente estão

atreladas a homens, que estão chorando no ombro de algum homem, que estão

beijando algum homem ou que falam como em M-Maybe, a partir de seus balões,

em homem. A Arte Pop é, em certa medida – ao apresentar (mesmo que

parodicamente) os valores da sociedade da qual faz parte – machista.

Contudo, nos painéis de Claudio Tozzi, as figuras femininas, talvez por causa

da grossura pictórica, aparecem firmes, fortes e decididas. Aliás, é quase que a

inversão da lógica pop, pois a mulher invade o espaço da história que é de um

homem (o bandido) e o enfrenta, no que poderia ter sido uma resistência a um

assalto e/ou a um estupro, como em Acertei a Frigideira no Bandido.

Deste modo, os trabalhos de Claudio Tozzi discutidos até aqui – no capítulo

anterior e neste – poderiam ser também interpretados como representativos de uma

“posição ética” do artista na tarefa de resistência aos condicionamentos políticos,

sociais e estéticos. A questão da “posição ética” foi formulada por Hélio Oiticica por

ocasião da fabricação de um bólide que encarnava a revolta. Para o artista, é

preciso destruir todas as morais em favor da liberdade moral que

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[…] não é uma nova moral, mas uma espécie de antimoral, baseada na experiência de cada um: é perigosa e traz grandes infortúnios, mas jamais trai a quem a pratica: simplesmente dá a cada um o seu próprio encargo, a sua responsabilidade individual; está acima do bem, do mal etc. Deste modo estão como que justificadas todas as revoltas individuais contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais socialmente organizadas (revoluções, p.ex.) até as mais viscerais e individuais (a do marginal, como é chamado aquele que se revolta, rouba e mata). (OITICICA, 1986, p. 81)

Aliás, a “posição ética” de Hélio, diante da catástrofe do mundo, da opressão

e do “otarismo”, leva o artista a produzir B33 Bólide Caixa 18, Caixa poema 02

[Homenagem a Cara de Cavalo] (ver Figura 14), sobre o qual Oiticica diz:

Gostaria de explicar a outra caixa com fotografias e palavras: não é um poema mas uma espécie de imagem-poema-homenagem (isto me faz lembrar de Milton Lycidas, quando homenageou um amigo que morreu no mar) a Cara de Cavalo (o morto em cada uma das fotos). Afora qualquer simpatia subjetiva pela pessoa em si mesma, este trabalho representou para mim um “momento ético” que se refletiu poderosamente em tudo que fiz depois: revelou para mim mais um problema ético do que qualquer coisa relacionada com estética. Eu quis aqui homenagear o que penso que seja a revolta individual social: a dos chamados marginais. Tal idéia é muito perigosa mas algo necessário para mim: existe um contraste, um aspecto ambivalente no comportamento do homem marginalizado: ao lado de uma grande sensibilidade está um comportamento violento e muitas vezes, em geral, o crime é uma busca desesperada de felicidade. Conheci Cara de Cavalo pessoalmente e posso dizer que era meu amigo, mas para a sociedade ele era um inimigo público nº 1, procurado por crimes audaciosos e assaltos – o que me deixava perplexo era o contraste entre o que eu conhecia dele como amigo, alguém com quem eu conversava no contexto cotidiano e tal como fazemos com qualquer pessoa, e a imagem feita pela sociedade, ou a maneira como seu comportamento atuava na sociedade e em todo mundo mais. Você nunca pode pressupor o que será a “atuação” de uma pessoa na vida social: existe uma diferença de níveis entre sua maneira de ser consigo mesmo e a maneira como age como ser social. Todos estes sentimentos paradoxais tiveram grande impacto em mim. Está homenagem é uma atitude anárquica contra todos os tipos de forças armadas: polícia, exército etc. Eu faço poemas-protestos (em Capas e Caixas) que têm mais um sentido social, mas este para Cara de Cavalo reflete um importante momento ético, decisivo para mim, pois que reflete uma revolta individual contra todo tipo de um condicionamento social. Em outras palavras: violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como o de opressão. (OITICICA apud FAVARETTO, 1992, p. 131)

Esta imagem apropriada por Oiticica em forma de revolta resultaria, em 1968,

no estandarte Bandeira-poema [Seja marginal, Seja herói] (ver Figura 15), o qual foi

produzido por ocasião da manifestação “Bandeiras e Estandartes” na Praça General

Osório, Rio de Janeiro. Aliás, Claudio Tozzi contou em entrevista que Hélio enviou-

-lhe a fotografia do Cara de Cavalo Morto, a qual ele transformou para alto contraste

e fez a bandeira com Marcello Nitsche (TOZZI, 2012, p. 17). Este foi um dos eventos

de arte pública mais importantes daquele conturbado ano.

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Figura 14 – Hélio Oiticica, B33 Bólide Caixa 18, Caixa poema 02 [Homenagem a Cara de Cavalo], 1966. Madeira, fotografia, nylon, acrílico, plástico e pigmentos, 40 × 30,5 × 68,5 cm.

Fonte: ARTE na escola. São Paulo: Instituto Arte na Escola, 2013. B33 Bólide Caixa 18 [Homenagem a Cara-de-Cavalo]. Disponível em:<http://artenaescola.org.br/uploads/publicacoes/imagens/Helio_

Oiticica_B33_bolide_caixa_18.jpg>. Acesso: 26 mai. 2013.

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Figura 15 – Hélio Oiticica, Bandeira-poema [Seja margina, Seja herói], 1968. Serigrafia sobre tecido, 97 × 115 cm.

Fonte: FE CORTEZ. Rio de Janeiro: Fernanda Cortez, 2013. “Arte & Política: enfrentamentos, combates e resistências”. Disponível em:<http://fecortez.com.br/wp/wp-content/uploads/

2013/05/oiticica.jpg>. Acesso em: 26 mai. 2013.

A emergência da figura do marginal nos trabalhos artísticos daquele período

(1964-1968), a meu ver, não era casual, não se configurava, apesar de também

contar, enquanto um mero diálogo estético em que se problematizava a violência

social e política no Brasil. Havia nesta questão algo ligado diretamente à figura do

artista e sua função social no caos do subdesenvolvimento, do Terceiro Mundo.

Assim, um trecho de uma carta de Hélio Oiticica a Lygia Clark, em 8 de novembro de

1968, estabelece uma relação entre o trabalho artístico e a ação marginal:

Para Marcuse, os artistas, filósofos, etc. são os que têm consciência disso ou 'agem marginalmente' pois não possuem 'classe' social definida, mas são o que ele chama de 'desclassificados', e é nisso que se identificam com o marginal, isto é, com aqueles que exercem atividades marginais ao trabalho produtivo alienante: o trabalho do artista é produtivo, mas no sentido real da produção-produção, criativo, e não alienante como os que existem em geral

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numa sociedade capitalista. Quando digo 'posição à margem' quero algo semelhante a esse conceito marcuseano: não se trata da gratuidade marginal ou de querer ser marginal à força, mas sim colocar no sentido social bem claro a posição do criador, que não só denúncia uma sociedade alienada de si mesma mas propõe, por uma posição permanentemente crítica, a desmistificação dos mitos da classe dominante, das forças da repressão, que além da repressão natural, individual, inerente à psique de cada um, são a 'mais-repressão' e tudo o que envolve a necessidade da manutenção dessa mais-repressão. (FIGUEIREDO, 1996, p. 74-75)

Portanto, no heroísmo anti-heroico do marginal, Oiticica propunha uma

justificativa de arte engajada baseada na denúncia dos condicionamentos políticos,

sociais e estéticos. A metáfora do artista marginal faz ainda mais sentido quando

lembramos algo que já foi dito no primeiro capítulo deste trabalho: a morte da arte e

do artista anunciada pela sociedade do consumo em massa. Leitor que era de

Herbert Marcuse, o artista carioca lembraria que para o filósofo alemão, a morte da

arte significava a morte de uma linguagem tradicional que lhe parecia incapaz de

comunicar o mundo contemporâneo, principalmente as manifestações da juventude

rebelde que colocavam em pauta a linguagem artística como linguagem

revolucionária (MARCUSE, 2000, p. 259). Pois se a arte, através da faculdade

cognitiva da imaginação, guarda sua afinidade com a liberdade, em uma realidade

em que o sentido e a ordem são impostas pelos meios de repressão, “as artes por si

mesmas assumem uma posição política: a posição do protesto, da repulsa e da

recusa” (MARCUSE, 2000, p. 262).

Neste mesmo período, em 1968, a esta questão viria uma resposta-paródia

do “cinema marginal” de Rogério Sganzerla, o filme O Bandido da Luz Vermelha. Se

nos painéis que analisei de Claudio Tozzi o bandido está ausente enquanto

personagem (exceto em Acertei a Frigideira no Bandido, mas ali aparece deitado,

inconsciente após ter sido atingido pela frigideira), no filme ele está todo o tempo

presente, mas fadado à morte – aliás, ele mesmo anuncia sua morte. Este é, sem

dúvida, um tema que envolve identidade e destino, a partir do qual é tramada uma

polifonia narrativa, na qual as vozes do “Luz” e dos meios de comunicação se

misturam por justaposição (XAVIER, 2012, p. 154). Assim, tanto o artista quanto o

marginal estão fadados à vicissitude polifônica – o artista não se prova enquanto

fabricador de objetos estéticos –, ele precisa conectar-se a uma rede que “legitime”

seu trabalho. Contudo, esta legitimidade tem mais a ver com a natureza

comunicativa da arte do que com uma necessidade de valoração, isto é, tem a ver

com a necessidade de respostas ao convite ao jogo da arte.

  80

Nesta via, os painéis de Tozzi e o filme de Sganzerla estão mais preocupados

com o imaginário construído sobre o bandido, daí o pastiche, a colagem. Este

imaginário está fundado em uma “experiência de periferia” (XAVIER, 2012, p. 166),

Não casualmente, os títulos iniciais do filme distribuídos em um letreiro eletrônico já

avisam que “os personagens não pertencem ao mundo, mas ao Terceiro Mundo”

(ver Figura 16) (O BANDIDO, 1968). Daí, pergunto: o que é ser artista no Terceiro

Mundo? Sganzerla responde melancolicamente: ele está fadado ao fracasso.

Entretanto, precisamos ter em mente que Rogério, ao efetuar sua crítica às ilusões

de um cinema político endereçadas ao “cinema novo”, desenvolvia uma “consciência

mais cética das relações entre política e cultura no universo da mercadoria”

(XAVIER, 2012, p. 170). Até porque em sua “estética do lixo”, o Terceiro Mundo

estaria destinado à explosão – “O Terceiro Mundo vai explodir e quem estiver de

sapato não sobra” – e o artista viveria sob “o signo da morte”. (O BANDIDO, 1967).

Paradoxalmente, se o mundo é catástrofe e à arte foi atestado o óbito, há o

artista que vai se propor a interrogar o mundo, considerando mesmo a dissociação

entre homem e experiência, a partir da coleção de fragmentos. No fragmento o

artista buscará uma “representação capaz de figurar a totalidade” (XAVIER, 2012, p.

172). Deste modo, encontraria na alegoria sua possibilidade de expressão. Não

pretendo aqui elaborar um extensivo retrospecto sobre o conceito de alegoria, que

tem mobilizado vários intelectuais, contudo, destaco que a alegoria – e aí sua

exaustiva utilização em tempos de crise – é “fruto da melancolia e da revolta”

(RIDENTI, 2000, p. 179, grifo do autor).

Deste modo, impulsionado pela cisão fáustica do intelectual no interior de um

regime autoritário, o uso da alegoria pelo artista se deu como estratégia de

problematização da realidade social e política, pois no discurso alegórico o sentido

não se expõe imediatamente, ele está fraturado, disfarçado em seu “caráter

descontínuo da organização das imagens” (XAVIER, 2012, p. 446), sendo um

enunciado aberto que convida o leitor a uma postura analítica.

Com isto, é possível notarmos o caráter alegórico de O Bandido da Luz

Vermelha em sua apresentação de um espaço periférico (A Boca do Lixo) onde

atuam personagens marginais, deste modo, configurando uma alegoria do

subdesenvolvimento. Nesta via, gostaria de destacar que o marginal ausente

enquanto personagem na história em quadrinhos nos painéis de Bandido da Luz

Vermelha de Tozzi, aparece enquanto elemento formal na construção da obra. A

  81

grossura, à qual me referia acima, os retículos exagerados e imperfeitos, e o gesto

pictórico, caracterizando um aspecto artesanal da fabricação da obra de arte,

configuraria um enunciado alegórico do subdesenvolvimento, sendo assim,

constituindo-se enquanto alegoria do subdesenvolvimento.

Figura 16 – Rogério Sganzerla, Snapshot de O Bandido da Luz Vermelha, 1968. Snapshot de filme

digital, 512 × 384 p.

Fonte: O BANDIDO da luz vermelha. Direção: Rogério Sganzerla. Produção: José da Costa Cordeiro, José Alberto Reis, Rogério Sganzerla e outros. Intérpretes: Paulo Villaça; Helena Ignez; Pagano Sobrinho; Luiz Linhares e outros. Roteiro: Rogério Sganzerla. Narração: Hélio Aguiar. São Paulo:

Urano Filmes, 1968. 1 DVD (92 min), son., P&B, 35 mm.

Como no filme de Godard, Pierrot le fou, o artista-bandido-marginal se suicida

fechando o círculo identidade-destino – morte da arte: “l’art / la mort” (ver Figura 17).

Claudio Tozzi parece ir em caminho diferente e mais próximo a Oiticica, pois pensa

que o artista, se morrer, não será por suicídio, mas por homicídio: assassinado pelos

condicionamentos opressores.

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Figura 17 – Jean-Luc Godard, Snapshots de Pierrot le fou, 1965. 2 Snapshots de filme digital, 720 × 304 p cada.

Fonte: PIERROT le fou. Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Georges de Beauregard. Intérpretes: Jean-Paul Belmondo; Anna Karina; Graziella Galvani e outros. Roteiro: Jean-Luc Godard. Paris: Films Georges de Beauregard; Rome Paris Films; Société Nouvelle de Cinématographie, 1965. 1 DVD (110

min), son., color., 35 mm.

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5 CONCLUSÃO

Isto não é uma conclusão.

Esta sentença parece meio clichê – e talvez seja – porém, indica meu

interesse em não fechar esta investigação, pois creio que ainda há muito o que se

pesquisar e interpretar a fim de compreender historicamente o rico trabalho de Tozzi.

Ao longo de três capítulos, partindo de um História relacional da arte, construí

o que considero ser uma interpretação histórica coerente dos fenômenos artísticos

compreendidos em relação aos fenômenos políticos e sociais, pela qual busquei

expor os sentidos apreendidos entre anseio do artista e “resultado” na obra.

Neste sentido, compreendi que a crise instalada com o golpe civil-militar de 31

de março de 1964 impulsionou a transformação do campo cultural em local, por

excelência, de resistência ao regime militar até a edição, em 1968, do Ato

Institucional nº 5. Sendo que, neste período, atuou uma vanguarda que colocava em

pauta a necessidade de articulação entre arte e política, a qual esquematizada por

Hélio Oiticica, em 1967, estava comprometida com a criação de novos objetos,

assim, superando a estrutura do cavalete e as convenções da arte contemplativa

entendida como burguesa.

Deste modo, notei que tal estratégia envolvia uma vontade construtiva de

atuação do artista na sociedade, o qual, a partir de seu trabalho, colaboraria na

tarefa conscientizadora de oposição à ditadura militar a partir de proposições de arte

pública. Neste sentido, o artista visual paulistano Claudio Tozzi desenvolveu no

período 1964-1968 uma poética engajada, a partir da qual fabricou trabalhos

comprometidos em problematizar a realidade política e social do Brasil.

Este Trabalho de Conclusão de Curso teve como principal objetivo analisar

como esta tomada de posição de resistência por Tozzi frente aos problemas

políticos, sociais e estéticos significava nas obras. Neste período, o artista inspirado

em Marcel Duchamp, Roy Lichtenstein e Hélio Oiticica desenvolveu uma operação

de apropriação racional ou intencional de imagens e objetos, a qual deslocava os

elementos apropriados a fim de subverter sua significação original, porém,

guardando o vestígio da referência, em prol de um discurso formado pela relação

desses itens no trabalho construído. Deste modo, a partir dos trabalhos USA e

abUSA (1966), Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional

(1967) e de três painéis do ambiente Bandido da Luz Vermelha (1967), foram

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analisados aqui os possíveis sentidos interpretados na apreensão entre o anseio e o

“resultado” das obras de Tozzi.

Assim, buscou-se, na perspectiva de uma História relacional da Arte, na qual

é imprescindível a compreensão do diálogo estabelecido entre fenômenos artísticos

e fenômenos políticos, sociais, econômicos, entre outros, a apreensão dos sentidos

expostos pela interpretação histórica.

Nesta via, foram interpretadas nos trabalhos de Tozzi críticas ao golpe de

1964 que instalou um regime autoritário contra o qual era eticamente necessário

manifestar-se, ao apoio estadunidense a esse golpe e à repressão das

manifestações de resistência, ao governo do general-presidente Castello Branco de

forma irônica pela contestação do caráter de salvaguarda da democracia nacional

imposto pelos militares, bem como, a partir da apropriação de personagens e temas

preexistentes, o artista visual propunha narrativas referentes às mitologias urbanas,

à marginalidade em São Paulo, à liberação sexual e às conquistas de atuação

política e social pelas mulheres.

Entretanto, durante a elaboração deste trabalho, encontrei algumas

adversidades, principalmente relacionadas à quase ausência de interpretações

aprofundadas sobre as obras de Claudio Tozzi analisadas aqui. Como pode ser

percebido, busquei contornar este problema a partir da interpretação de relações

das obras do artista paulistano com obras de outros artistas contemporâneos a ele.

Todavia, acredito não ter esgotado as possibilidades de interpretações dos

trabalhos em questão, aliás, pelo contrário, escrevi leituras inéditas pautadas na

investigação histórica. Deste modo, creio ter deixado algumas questões em aberto

ou não ter aprofundado o suficiente em outras, contudo esses são os riscos que o

pesquisador corre ao empreender em tema pouco explorado.

Ainda assim, este trabalho se justificou, no mínimo, por descrever algumas

operações criativas articuladas ao ímpeto de resistência à ditadura militar

manifestadas por Claudio Tozzi.

Por fim, creio que alguns conceitos, como o de alegoria, possam ter passado

sem o devido aprofundamento na elaboração deste trabalho. Entretanto, tenho

consciência de que ele poderá ser aprofundado futuramente, em minha intenção de

cursar Mestrado em História, a partir das contribuições de Walter Benjamin a partir

de seu estudo sobre a origem do drama barroco alemão.

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APÊNDICES

APÊNDICE A – Roteiro para entrevista com Claudio Tozzi em 6 dez. 2012

1. Início da carreira como artista gráfico e relações com a comunicação de massa;

2. Figurativismo, Nova Figuração, Cultura Pop no Brasil nos anos 1960;

3. Participação no XI Salão de Arte Moderna, de 1963;

4. Politização, Ingresso na FAU-USP, Golpe militar em 1964;

5. Círculo e circuito intelectual: Chico, Caetano, Gil, Mario Schenberg, Hélio Oiticica,

Mário Pedrosa, Ferreira Gullar, Agrippino de Paula, Aracy Amaral e Frederico Morais

6. Arte e política, vanguarda e Rubens Gerchman;

7. Reação das artes visuais ao golpe e ao governo militar?;

8. Comprometimento político da “obra de arte”, arte e público, interação;

9. Projetos de nação para o Brasil e projetos de arte (nacional) brasileira;

10. Apropriação das imagens cotidianas e conceito duchampiano de apropriação;

11. USA e abUSA, de 1966, fascismo e crítica ao apoio estadunidense ao golpe?;

12. Antiamericanismo?;

13. Como conheceu a Arte Pop inglesa e/ou estadunidense?;

14. Aproximações com Roy Lichtenstein, série Bandido da luz vermelha, de 1967-8;

15. Técnicas e materiais: tinta em massa, acrílica, vinílica, hardboard, liquitex, silk;

16. São Paulo, metrópole, estética urbana e industrial;

17. Relações com Wesley Duke Lee e o Grupo Rex?;

18. Intertextualidade: fotografia, cinema, propaganda, quadrinhos, música e pintura;

19. Participação na IX Bienal de Arte de São Paulo, de 1967;

20. Painel Guevara Vivo ou Morto, de 1967, parcialmente destruído no IV Salão

Nacional de Arte Contemporânea, em Brasília;

21. ALN; Nós somos os guardiões-mór da sagrada democracia nacional, de 1967;

22. Exposição O artista brasileiro e a iconografia de massa, de 1968;

23. AI-5 (13 de dezembro de 1968), anos de chumbo e alterações na poética visual;

24. Considerações sobre seus trabalhos artísticos hoje: panorama e retrospectiva;

25. Opinião sobre os trabalhos artísticos em São Paulo hoje, arte e cidade, painéis

em edifícios, graffiti, iconografia urbana atual;

26. Acompanha o trabalho da Galeria Choque Cultural e do artista Daniel Melim?;

27. Para você, é importante hoje um comprometimento político dos trabalhos de

artes visuais no Brasil?

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APÊNDICE B – Entrevista com Claudio Tozzi

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO – FAED

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – DH

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.

TOZZI, Claudio. Entrevista concedida a Alexandre Pedro de Medeiros. São Paulo, 06 de dez. de 2012. Entrevista.

ENTREVISTA CONCEDIDA A ALEXANDRE PEDRO DE MEDEIROS

Florianópolis 2012

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Ficha Técnica

tipo de entrevista: temática entrevistador: Alexandre Pedro de Medeiros levantamento de dados: Alexandre Pedro de Medeiros pesquisa e elaboração do roteiro: Alexandre Pedro de Medeiros sumário: Alexandre Pedro de Medeiros copidesque: Alexandre Pedro de Medeiros técnico de gravação: Alexandre Pedro de Medeiros local: São Paulo – SP – Brasil data: 06/12/2012 duração: 52min20s mídias: 01 arquivo mp3 de 125,5mb páginas: 17 Entrevista realizada no contexto da pesquisa “Made in Brazil: apropriações da Arte Pop e comprometimento político na obra do artista visual Claudio Tozzi (1964-1968)”, projeto do estudante Alexandre Pedro de Medeiros. A escolha do entrevistado se justificou pela importância do estudo do discurso de si sobre seu trabalho elaborado por Claudio em rede com outros discursos construídos por historiadores, críticos de arte, jornalistas, entre outros, nesse projeto. A pesquisa resultou no Trabalho de Conclusão de Curso em História intitulado “Fragmentos de arte engajada e resistência no Brasil: o trabalho de Claudio Tozzi (1964-1968)”, de autoria de Alexandre Pedro de Medeiros. temas: Claudio Tozzi, Ditadura militar (1964-1968), História da arte brasileira, Arte brasileira contemporânea, Artes visuais, Comprometimento político, Arte engajada, Arte Pop, Nova Figuração, Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, colagem, apropriação, Ação Libertadora Nacional, Carlos Marighella, Rubens Gerchman, Wesley Duke Lee, Frederico Morais, Antonio Dias, Sérgio Ferro, Flávio Império, Ernesto “Che” Guevara, Joaquim Câmara Ferreira, Antônio Benetazzo, Farid Helou, Marcel Duchamp, serigrafia, Andy Warhol, obra de Roy Lichtenstein, São Paulo, Nova York, Ponto Quatro, movimento estudantil, Mário Schenberg, Mário Pedrosa, José Agrippino de Paula, Hélio Oiticica, arte urbana, arte pública, exposições de arte, recepção, Arte Povera, obras de Claudio Tozzi, graffiti, Daniel Melim, Galeria Choque Cultural, arte e política, Escola Superior de Desenho Industrial, Aracy Amaral, Victor Knoll, Luciano Fabro, Antonio Dias, arte contemporânea, comunicação.

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Sumário

Sumário da entrevista: Os primeiros trabalhos artísticos no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP); a nova figuração; o ingresso na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP em 1964; o engajamento no movimento estudantil; a relação com a Ação Libertadora Nacional (ALN); a participação nos Salões de arte; a invasão do ateliê pelos agentes do DOI-CODI em 1971; a participação em ações da ALN; a preocupação em romper com uma estrutura contemplativa/burguesa de arte; a execução de painéis urbanos; o estudo da Arte Pop inglesa e estadunidense; a utilização de materiais e técnicas das artes gráficas; a participação na IX Bienal Internacional de Arte de São Paulo em 1967; o trabalho com as colagens; a apropriação de objetos; a ironia e a crítica social e política em seus trabalhos; a apropriação da cultura de massa e urbana de São Paulo; a ruptura com uma linguagem tradicional das artes plásticas; a arte ambiental; a arte pública; as histórias em quadrinhos; o comprometimento político que marca o trabalho artístico no período 1964-1968; a modificação na poética após a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) no final de 1968; os “anos de chumbo” e a repressão política aos artistas: invasão de ateliês e destruição de obras; a introspecção criativa dos artistas; a formação em arquitetura, a preocupação formal e a vontade construtiva; a recepção imediata dos trabalhos; recepção positiva e negativa: apreciação e destruição; a crítica ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE); as atuais intervenções artísticas no espaço urbano; o graffiti; o trabalho como professor na FAU-USP; a importância do comprometimento político das artes; arte e tecnologia; vanguarda da imagem; teorias de comunicação; linguagens da arte contemporânea.

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Entrevista: 6.12.2012 A. M. – Então, Claudio, tu poderias me dizer como foi a tua trajetória anterior a 64 e como que tu te relacionaste com as artes? C. T. – Eu estudava no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da USP, eu fiz todo o curso [inaudível], o primário depois o secundário, e o secundário eu fiz lá na Escola de Filosofia da… Colégio de Aplicação da Filosofia da USP. Quando eu tava no segundo científico, eu já tinha um certo interesse pelas artes plásticas e tinha uma professora muito [silêncio] tinha um pensamento mais de vanguarda que me orientava muito nos trabalhos. Eu lembro que eu tinha uma tendência [inaudível] dava cartazes, dava não só a questão do desenho, mas a questão também de como você monta um campo, como que você trabalha com um campo visual trabalhando com as formas. Eu tinha muita facilidade e fazia sempre uns trabalhos assim. Em 63, antes de entrar na FAU, eu comecei a fazer alguns trabalhos, mas ainda em casa, não tinha o ateliê, e fiz os primeiros trabalhos que eram umas colagens com… utilizando materiais de jornais, com poliuretano, com imagens queimadas – eu jogava no álcool misturado com uma tinta de pintar sapato que era solúvel em álcool, daí eu punha fogo – então, dava umas texturas, dava um trabalho já que depois eu te mostro, tem nos livros as imagens, eu tenho aqui comigo também. Então, esses trabalhos já tinham uma intenção de fazer um trabalho que não fosse simplesmente um desenho, que fosse não simplesmente um trabalho quase que didático e ligado à escola. Fazia isso com um prazer muito grande e por coincidência era o que estava se fazendo, não é? A Pop Art inglesa, a Nova Figuração inglesa já tinha essa intenção de fazer essas colagens, então, tinha uma simultaneidade de linguagens. Esses trabalhos eu mandei para várias exposições e depois, quando eu entrei na FAU, abri o primeiro ateliê, que era um porão ali na Rua Minas Gerais, daí eu comecei a fazer os trabalhos já com uma intenção de expor. Naquela época tinham muitos salões, que era onde a gente podia mostrar os trabalhos, o Salão de… o Museu de Arte Contemporânea da USP que era o Jovem Arte, tinha o Salão Paulista de Arte Contemporânea, onde uma vez o “Guevara” ia ser premiado, mas depois houve uma jogada do júri que botou para segundo lugar – eu tenho até uma carta inédita, depois te dou, que o Sérgio Ferro me deu agora – e já fiz esses trabalhos em 66, 65, já tinha um trabalho que era muito ligado às questões que ocorriam na época aqui no Brasil. Então, era praticamente uma linguagem da Nova Figuração europeia, depois da Pop Art americana, mas traduzida para questões essencialmente ligadas ao Brasil e principalmente à cidade em que eu vivia que é São Paulo, que eu nasci aqui, e eu participava ativamente do movimento estudantil e depois também de outras [silêncio] entidades mais clandestinas, tudo, então, esse trabalho já tinha muito a ver com o que eu pensava, com o que eu queria fazer. A gente trabalhava muito com serigrafia, essas serigrafias eram expostas em sindicatos, em fábricas, saía assim de um circuito tradicional que a gente atuava mais com a pintura e atingia mais um espaço mais alternativo, um espaço que não era ligado às instituições, nem às galerias, mas é um espaço que atingia muito o público. Depois a arte pública que eu faço até hoje também tem muito esse sentido. Daí, tem uma série de trabalhos que eu fiz principalmente a série de multidões, que eram trabalhos que eu documentava as imagens ou fazia um trabalho mais com apropriações de imagens – dentro bem do conceito do Marcel Duchamp de apropriação de objetos – e retrabalhava essas imagens em cima do papel vegetal,

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mesmo quando eu utilizava as fotografias a gente fazia com solarização, que é um processo que você acende a luz durante a revelação interrompendo a construção da imagem e eliminando os meios tons, hoje o computador faz isso com as imagens de alto contraste, os programas do Photoshop fazem. Enfim, era uma tentativa de fazer um trabalho que tivesse uma comunicação mais aberta com o público, não é? As imagens, você vê, são facilmente identificáveis e você também tem uma escala que você participava do quadro. Tem uma “Multidão”, que é um quadro de 1,75 por 3, que tá em uma coleção, e que era uma imagem de multidão, de passeatas, onde você se identificava. Tem até uma foto que eu estou na frente de um quadro e você não sabe a fusão total da imagem do espectador com a imagem do quadro te dá essa solução de participação. Quer dizer, a arte não era só um objeto de você contemplar, não era mais uma pintura de cavalete, mas era uma pintura trabalhada mesmo com as tintas que se utilizavam para pintar placas, dos meios de comunicação de massa. Enfim, era uma [silêncio] linguagem bastante revolucionária em termos de você trabalhar com uma técnica quase que muito simples, mas com uma força muito grande, não é? A. M. – Você entrou na FAU em 64?! C. T – Entrei em 64 e…, quer dizer, logo que em março teve o golpe militar. A. M. – Como que foi isso? C. T. - Eu já tinha certo engajamento político e daí tinha uma atuação política estudantil bastante grande. A. M. – É, eu acabei sabendo agora pelo livro do Marcelo Ridenti, “Em busca do povo brasileiro”, que tem um depoimento que fala que você teve uma relação com a ALN. C. T. – Exatamente. A. M. – Qual foi essa relação? C. T. – É, tinha na FAU um grande arquiteto, professor, que era o Farid, que era muito ligado ao Joaquim Câmara Ferreira e ao Marighella. A gente tinha um grupo também que tinha algumas pessoas da Filosofia, um colega de classe meu, muito meu amigo, que eu conheço desde que tinha mais ou menos 14 anos, que ele morava em Mogi das Cruzes e eu ia passar as férias muito lá e era meu amigo já de longa data, que é o Antônio Benetazzo, que também era artista e fazia a FAU e fazia a Filosofia, a gente conversava muito, principalmente essa questão da linguagem das artes plásticas. Daí, eu pertencia a esse grupo todo, não é? A gente fez várias ações, tudo. A. M. – Mas a tua participação era mais ligada à estética, mais ligada a… C. T. – Não, tinha esse grupo de seis pessoas que era uma unidade base, não é? Que era totalmente clandestina e tinha essa atuação que era dentro das artes plásticas, de você fazer um trabalho. Eu lembro que quando eu fiz o “Guevara” em 67, logo que ele tinha morrido – no dia seguinte eu já peguei as imagens, já fiz o

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quadro – e o Câmara foi ver lá e “puxa, essa é a grande obra!”, não sei o que, e depois esse trabalho foi muito exposto, foi para Brasília, foi destruído, voltou para o meu ateliê, depois de uns três anos totalmente arrebentado eu reconstruí e agora está no MALBA, que é importante que o Guevara é argentino. O quadro está lá. A. M. – Como tu conseguiste expor o “Guevara Vivo ou Morto” em Brasília? C. T. – Foi um Salão que foi organizado, acho que, pelo Frederico de Morais e ele convidou um grupo de artistas daqui, que daí a gente mandou uma série de obras, que era um Salão bastante importante. Daí, foi para lá, o júri escolheu, que tinha júri, hoje tem a figura do curador que ele escolhe o que vai, mas na década de sessenta você participava mesmo, você mandava um trabalho e os Salões que te divulgavam o trabalho. A. M. – Mas aí foi destruído? C. T. – É, foi fechado o Salão, o trabalho foi destruído – não sei como, e depois voltou para cá, para a Secretaria de Cultura [inaudível] uns dois, três anos [silêncio] acho que mais, porque eu já tinha mudado para o outro ateliê da Minas Gerais, aí eu reconstruí. Aproveitei a parte que ainda tinha, reconstruí os pedaços. Esse outro trabalho da [silêncio] “Nós somos os guardiões da sagrada democracia nacional” é um trabalho interessante, porque tinha a Lei de Anistia*, que era imagem de uma medalha de um soldado, não é? E esse trabalho foi totalmente destruído quando o [silêncio] pessoal do DOI-CODI invadiu o ateliê e esse trabalho foi totalmente destruído. *Certamente o entrevistado enganou-se e quis dizer Lei de Imprensa ou Lei de Segurança Nacional, as quais estavam em pauta no ano da produção do trabalho “Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional”, no qual ambas aparecem representadas. A. M. – Então, invadiram o teu ateliê? C. T. – Invadiram, invadiram [inaudível] levaram o [inaudível] tudo. A. M. – Isso em…? C. T. – Isso em 71, 71, por aí, é isso, que foi preso [silêncio] todo mundo. A. M. – É, o Sérgio Ferro foi exilado. C. T. – O Sérgio Ferro. Aliás, houve um episódio bonito que houve uma acareação entre eu e o Sérgio lá e o meu ateliê tinha uma gráfica que a gente imprimia todos os… quando tinha uma ação que era feita pela ALN, aí tinha uma bandeira que era uma estrela com uma aranha que era jogada em um fio, assim ficava pendurada para marcar que aquela ação era da ALN. Então, isso tudo foi produzido lá, no ateliê, de uma forma totalmente secreta, e eu dava esse desenho direto para o Toledo, o Joaquim Câmara Ferreira. A. M. – E quando foi destruído o “Guevara”, saiu…

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C. T. – Já foi no segundo ateliê que quando… tem razão, que foi em 71*, que foi preso todo mundo, o grupo dos arquitetos, e houve essa… tava falando da acareação, daí tava lá o interrogatório, veio o Sérgio, eu dei um abraço nele e o [silêncio] o militar lá achou que a gente ia falar que não se conhecia, não é? E eu dei um abraço nele e ele ficou meio assim: “poxa” [riso]. *Certamente o entrevistado enganou-se, porque o painel “Guevara Vivo ou Morto” foi destruído em 1967 no IV Salão Nacional de Arte Contemporânea, em Brasília. A. M. – Mas quando o “Guevara Vivo ou Morto” foi destruído, tu tentaste depois reproduzir isso e vender na rua? C. T. – Não, não, isso foi bem antes, foi bem antes. Quando a gente fazia esse trabalho com serigrafia, em 65, 66, eu já tinha feito uma imagem do Guevara, do Guevara que é um círculo, que é a capa do Manual de Guerrilhas, que a ALN editou do Guevara. É, daí tinha como se fabricava bombas, como se fabricava uma série de coisas, e eu fiz ilustrações, fiz a capa. Essa imagem a gente reproduziu e foi vendida, aliás, na verdade, foi feita para fazer finanças também para a ALN e tudo. A gente fez algumas experiências de fazer algumas imagens, inclusive populares – eu lembro que eu fiz o Garrincha e a gente vendia na porta do jogo a preço de custo, eu e mais os colegas da FAU, isso em mais ou menos em 65, 66. Mesmo como atitude de arte mesmo, não é? De romper com essa estrutura só burguesa da arte, de ir para uma sala de visita, mas é um quadro que podia muito bem ir para uma casa da periferia, para uma favela, em vez de ter uma imagem de São Jorge, de… A. M. – Não simplesmente contemplativa, não é? C. T. – Exatamente, era uma coisa que tivesse um acesso amplo. A. M. – É que depois tu extrapolas com os painéis urbanos. C. T. – Os painéis urbanos, exato. A. M. – Ontem ainda vi a “Zebra” lá na Barão de Itapetininga. C. T. – A “Zebra” foi feita em 70 e [silêncio] 2, não é? Por aí. A. M. – 70, 71. C. T. – É, 71, por aí, não é? É, 71, é. É uma intenção também de levar uma obra para um espaço. Eu pensei em pôr como uma ironia de colocar uma zebra… A. M. – No meio da cidade. C. T. – No meio de uma cidade. Ela tá olhando para baixo e daí tinham as loterias esportivas, que o pessoal falava: “vai dar zebra, não vai dar zebra”, então, criou uma certa curiosidade principalmente pela revolução da linguagem, não é? Que é muito importante não só um período específico, era associada uma mensagem específica, mas também como uma revolução da própria linguagem da pintura, não é?

[INTERRUPÇÃO DE GRAVAÇÃO]

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A. M. – Como tu conheceste a Arte Pop, tanto a inglesa quanto a estadunidense? C. T. – Eu fazia esses trabalhos meio intuitivamente, depois eu tive um contato, quando entrei na faculdade, comecei a ver as revistas, os livros, e tinham os professores, principalmente o Flávio Motta que era especialista em Pop Art, escreveu vários artigos, tem um livrinho dele sobre a Pop, inclusive uma exposição que a gente fez em praça pública com as bandeiras, que tava o Gerchman, o Oiticica, o Nelson, foi organizada pelo próprio Flávio Motta que fez um desenho. Essa exposição foi pensada por ele, depois os carimbos também – eram trabalhos que você carimbava em um tamanho A4 e as pessoas levavam. Tinha uma grande coincidência, porque eu tinha ganho um episcópiozinho, sabe? Que amplia a imagem. Eu gostava muito de ficar fazendo um desenho, alguma coisa ligada à história em quadrinhos e ver em tamanho que ocupasse a parede. Daí, comecei a fazer isso com imagens e comecei a reproduzir essas imagens. A. M. – Aí tu conheceste a obra do Roy Lichtenstein? C. T. – Conheci a obra do Lichtenstein, fui estudar toda a obra dele, do Andy Warhol, principalmente os dois que me influenciaram e que me deram essa coragem de fazer: “puxa, isso aí é o que tem que ser feito mesmo!”. Foram os dois que… eu estudei muito a obra, tive com Andy Warhol em Nova Iorque, mas isso depois quando eu fui trabalhar, que eu fiz as montagens dos painéis [inaudível] do Ricardo Amaral, eu trabalhei lá durante 2 meses e tive algumas vezes com o Andy Warhol. O meu trabalho depois dessa fase inicial, que é mais ou menos essa reestruturação da imagem, eu trabalhava mesmo com as serigrafias sobre a tela, foi uma influência muito grande do Andy Warhol. Aliás, ontem ganhei um trabalho dele. A. M. – Aí teve a IX Bienal em 67. C. T. – Essa foi importantíssima, importantíssima, porque essa me deu uma nova cara. Eu fiz um trabalho que era “Até que Enfim”, que tá lá, por coincidência tá aqui, é da minha coleção e ontem veio o pessoal de uma… bom, da Tate, eles vão fazer uma grande exposição de Pop e já estão organizando essa exposição para daqui um ano. Eu mostrei para eles o trabalho. A. M. – Alguns outros trabalhos teus me interessam principalmente como o “USA e abUSA”. C. T. – Esse é um trabalho que está em uma coleção em Belo Horizonte, mas é um trabalho que é a transição dessa fase que eu fazia as colagens de revistas, aí eu passei a usar apropriação do texto mesmo. A. M. – Aquele jornal italiano… C. T. – Isso, o jornal italiano. A. M. – Tu recortou o jornal e colou? C. T. – Recortei, colei, isso.

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A. M. – Como é que tu montaste aquela obra? C. T. – Bom, se você pegar os primeiros trabalhos tem sempre uma característica. Até os trabalhos de hoje, se eu pego esse aqui, eles têm uma estrutura construtiva. Então, cada imagem que eu colocava era dentro de um campo já estruturado, já trabalhado. Então, aquele trabalho – eu coloquei um eixo e a bandeira. A bandeira foi montada com pequenas ripas. A. M. – A bandeira dos Estados Unidos já tinha aparecido em outro trabalho “Paz” de 64. C. T. – Já, já tinha aparecido e quase ninguém conhece. A. M. – E já aparece no mesmo lugar. C. T. – Quase ninguém conhece esse trabalho. Você achou onde? A. M. – Eu encontrei no livro da Leila e do Bruno, “Paz”. C. T. – É? Não, esse é as colagens. Tem um que chama… tem um outro que era uma gota caindo, uma gota de sangue com a bandeira embaixo. Que tem a bandeira e tem uma gota de sangue feito com gesso, mas esse ninguém conhece, mas eu tenho ele aí, depois se você precisar eu te mando alguma foto, alguma coisa. A. M. – Mas dá de perceber no “USA e abUSA” que tem como – eu dividi assim, três eixos. Até é uma questão de trabalhar depois comparativamente com um que eu conheci ontem que é o “Nós somos os guardiões-mor da sagrada democracia nacional”, que tem a flecha, uma seta, não é? Que aponta… C. T. – Aponta para baixo. A. M. – Que aponta para baixo. Ou é o Castelo Branco no “Nós somos os guardiões--mor” ou é o jornal, uma manchete, que trata do fascismo… C. T. – E que as coisas aconteciam no mundo. A. M. – Mas tem um significado especial para o Brasil?! C. T. – Tem, e aquele quadro é engraçado, porque tem um certo humor, que tá escrito “USA e abUSA”, usa e embaixo abusa. A. M. – E no centro tem a figura dos fascistas. C. T. – Exatamente, polícia fascista. É uma alusão direta ao que acontecia aqui no país. A. M. – Tem duas relações que eu pensei: existe uma relação direta com os boatos de que os Estados Unidos teriam apoiado o golpe?

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C. T. – É, principalmente isso tinha muita ligação com o Ponto Quatro, que era programa dos Estados Unidos de repressão ao movimento estudantil, chamava Ponto Quatro, e esse quadro tem muito essa relação dessa repressão ao movimento estudantil. A. M. – E ainda a questão do usa e abusa, uma relação com um subdesenvolvimento, uma exploração econômica… C. T. – Exatamente. A. M. – Hegemonia estadunidense? C. T. – Que vale até hoje, não é? [risos] De certa forma. Atuação para todos os países da América Latina, um quadro que tem uma extensão maior também, não é? A. M. – Em um campo, não é? C. T. – É, um campo de atuação, é. A. M. – Que não só o Brasil.

[INTERRUPÇÃO DE GRAVAÇÃO] A. M. – Sobre a tua relação com a… tu falaste algumas coisas da tua relação com a cultura pop, com a cultura urbana em São Paulo. Alguns filmes… por alguns filmes, por alguns jornais, revistas da época se consegue, não é? Detectar essa cultura. Eu particularmente gosto muito dos filmes do Sganzerla. Tu fizeste a série do “Bandido da Luz Vermelha” e tem o filme do Sganzerla do “Bandido da Luz Vermelha”. Além disso, tu fotografavas, não é? Os movimentos, enfim, o movimento estudantil e depois te apropriavas das fotografias para produzir os painéis. Essa relação de intertexto de cinema, fotografia, pintura, os quadrinhos, as revistas e toda essa relação nesse caldeirão que era a cultura urbana e cultura pop no Brasil. C. T. – É, não dava para fazer outra coisa. Tinha que… toda… principalmente o teatro, não é? Com o Teatro de Arena, o Teatro Oficina, o TUSP que era um teatro muito [silêncio] ligado [silêncio] o Flávio Império que dirigia, ele fazia um trabalho muito ligado especificamente ao sindicato, então, ele fazia uma adaptação dos textos do Brecht para… A. M. – Qual sindicato? C. T. – Em vários sindicatos. A. M. – Em vários sindicatos. C. T. – Em vários sindicatos. Cada mês se fazia essa atuação em um sindicato com uma adaptação do texto do Brecht especificamente para aquela classe. Então, era uma série de professores da USP que faziam. Então, é toda essa linguagem do Cinema Novo, tudo, era uma coisa de interação. Então, esse trabalho simultâneo que eu fiz do “Bandido da Luz Vermelha”, que era uma série muito irônica – era uma

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história em quadrinhos, ele foi mostrado em Belém do Pará em uma forma circular elevado do solo e no meio tinha uma luz de bombeiro, essa que… A. M. – Sei. C. T. – Que joga o raio e fica virando. Então, quando se… e era uma praça pública. Quando você chegava perto do trabalho, você já recebia esse faixo de luz. Então, era uma interação toda… talvez a primeira… talvez as primeiras manifestações de se fazer uma arte pública e coletiva. Também em um sentido de performance, de happening, de arte ambiental, que se falava na época, mas sempre visando essa linguagem que não era só linguagem das artes plásticas, mas que tinha uma relação grande com todo o pensamento cultural da época, não é? Então, era uma pintura que nasceu disso, ela não é isolada das outras linguagens. Bandido da Luz Vermelha… o Rogério era meu amigo e tudo, o Cláudio, irmão dele, a gente estudava juntos para o vestibular, era muito meu amigo e surgiu na mesma época de a gente fazer esse trabalho. A. M. – Tem esse circuito tanto de artistas quanto intelectuais em geral. C. T. – É. A. M. – Tinha o Mário Schenberg. C. T. – O Mário Schenberg. A. M. – Até trouxe ali o livro do José Agrippino. Tu chegaste a ler o livro do José Agrippino, o “PanAmérica”? C. T. – Li, “PanAmérica”. Agrippino era… vivia no ateliê, lembro que ele chegava bem tarde, às vezes eu estava indo para o ateliê, que eu morava lá também, encontrava o Zé na rua e ele ficava… eu ia para o ateliê e ele ficava ora lá. Então, tinha essa… as exposições também eram quase que um ponto de encontro, ia todo mundo, não tinha essa coisa que tem hoje que é o mercado, que é coisa muito ligada ao mercantil, era uma coisa mais cultural mesmo. As exposições coletivas e os Salões tinham uma importância muito grande, não é? A. M. – Tu chegaste a participar do “Arte Pública”? C. T. – “Arte Pública”? A. M. – De 67, que, na verdade, é… na verdade, o “Arte Pública” é um vídeo que foi filmado na IX Bienal. C. T. – Provavelmente eu devo estar. A. M. – Eles selecionaram uns trabalhos de… aparece o Gerchman. C. T. – Então, deve estar. O Gerchman, a gente trabalhava juntos desde a década de 60 e tudo, fizemos vários trabalhos em conjunto. Quando ele voltou dos Estados

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Unidos em 73 a gente fez um álbum chamado “SPPS”, que são 4 serigrafias que retratam algumas questões da cidade que são super atuais. A. M. – E essa introdução de novos materiais, porque, como tu falaste, a serigrafia não era qualquer um que usava ou não vinha sido utilizada. C. T. – É, a gente tentava, principalmente eu, o Rubens, fazer uma ruptura mesmo com a pintura de cavalete, essa coisa tradicional. Então, essa incorporação de novos materiais é muito associados à linguagem dos meios de comunicação de massa. Serigrafia se usava para imprimir [silêncio] cartazes, para… e a gente utilizava também para fazer uma série de cartazes para o movimento estudantil. Isso era uma decorrência da própria possibilidade de você reproduzir uma imagem em casa, não é? Com materiais muito simples, sem precisar uma máquina, sem precisar da intervenção de uma gráfica. A. M. – Então, existe especificamente nessas tuas obras de 64 a 68 um comprometimento político da obra de arte. C. T. – Principalmente nessa fase. A. M. – Principalmente nessa fase. C. T. – 64 a 68. A. M. – Nos teus trabalhos posteriores a isso, tem a série “Astronauta”, “Parafuso”… C. T. – O “Astronauta” era dentro dessa ampliação de temas do que acontecia em torno dos… A. M. – É, o homem à Lua. C. T. – O homem à Lua, enquanto um contraste entre o que acontecia aqui na Terra – um grande palco de misérias, o homem andando, fluindo pela Lua. Se você pegar formalmente, a linguagem de uma “Multidão”, por exemplo*, onde você vê que os traços eles são mais… eles traduzem uma movimentação mais agitada, se você pega um “Astronauta”, ele tem um traço bem fluido, é como se ele tivesse… aquela imagem da levitação do que homem que dava um passo, outro passo. Então, existe uma diferença formal muito grande entre esse traço que traduz uma situação mais de movimento, de agitação, de [silêncio] e aquela forma mais fluida que tinha a ver, que veio do andar do astronauta na Lua. *O entrevistado aponta para um dos painéis da série “Multidão” que está pendurado na parede logo atrás de si. A. M. – Essa modificação da tua poética tem uma relação direta com o AI-5? C. T. – O AI-5 foi uma ruptura muito grande, não é? Depois na década de 70, principalmente aqui em São Paulo, houve uma repressão bem maior também. O Ato 5 proibiu uma série de coisas, mas os artistas passaram a fazer uma produção mais clandestina. Essa série de multidões é feita exatamente no ano do AI-5, logo que ela ficou pronta veio o AI-5. Daí, o trabalho se voltou um pouco mais, ele começou a

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ficar mais elaborado em termos de cor, de formas. Aqui eu trabalhava praticamente com preto, branco, amarelo, azul e vermelho, não é? Que eram as cores mais ligadas ao que você vê no dia-a-dia – sinal de trânsito, toda a linguagem urbana. Daí, eu comecei fazer… eu fiz um parafuso que apertava um cérebro e esse trabalho já era uma tradução do que… dessa repressão mais violenta que começou a existir principalmente agora invadindo ateliês e… A. M. – Os anos de chumbo, não é? C. T. – Afunilando mais essa repressão cultural, deixa de ser coletiva para ser mesmo individual – destruição de… invasão de peças, destruição de filmes, invasões de ateliês, essas coisas todas. Daí eu acho que os artistas se voltaram mais aos ateliês e começaram a fazer um trabalho mais elaborado em termos de cor, mas ainda com algum significado um pouco mais simbólico, um pouco mais velado. A série de “Parafusos” é toda isso, não é? A. M. – Vários amigos teus foram exilados ou… C. T. – Foram. A. M. – E tu perdeste contato [silêncio] e depois teve a Lei da Anistia, eles voltaram ou não? O Sérgio Ferro ainda… voltou ou não? C. T. – O Sérgio, ele vive… ele estava aqui ontem, foi embora para a França de novo. Ficou 2 meses aqui e volta em março agora. Mas o Sérgio fica um tempo, um tempo aqui. Ele foi para Grenoble [silêncio] trabalhou na universidade. A. M. – Deu aula lá? C. T. – É, formou muita gente, escreveu vários livros. A. M. – Em 69 tu te formaste na USP. 69? C. T. – Em 69. Aliás, eu fiz um ano a mais na turma de 69, mas eu tive que fazer mais uma disciplina lá, então, ficou para 70, mas é 69, eu só cumpri depois uma disciplina, porque eu tinha viajado, fiquei um tempo na Itália, depois fiz uma viagem com o TUSP, então, isso atrapalhou um pouquinho, tive que depois completar os créditos. A. M. – Isso é algo que o Fábio Magalhães fala, não é? Não tem como pensar a tua obra sem lembrar que tu és arquiteto. C. T. – É. A. M. – Porque tem uma preocupação de composição, uma preocupação muito formal, não é? C. T. – É, desde aqueles trabalhos que eu te falei do curso secundário, eu já tinha essa estrutura. É uma coisa que é muito da minha [silêncio] personalidade, do meu jeito de ser.

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A. M. – Mas é algo que também aparece na Pop inglesa, na Pop estadunidense. C. T. – Na Pop inglesa. O trabalho do Lichtenstein é todo estudado, cada quadro que ele fazia tinha os deseinhos feito a lápis, quase que um desenho de um arquiteto. A. M. – Sim. C. T. – Acho que é uma tendência bem de construção, de fazer com que a própria estrutura do quadro reflita um anseio de você organizar o mundo mesmo, não é? De fazer um mundo [silêncio] mais solidário. A. M. – Essa noção da recepção, tu tinhas essa volta? C. T. – Tinha, tinha, porque o contato era muito direto. Aquele objeto “Veja o nu”, ele foi exposto em vários espaços públicos, em Belém do Pará na praça, aqui em São Paulo no calçadão da Praça da República, ali perto de onde está a “Zebra”. Então, tinha uma resposta muito grande. Mesmo durante a Bienal de 67, a presença… tinha essa resposta muito grande. Depois também com o painel do metrô da Praça da Sé, de 79, 80, eu senti também. Para colocar aquele trabalho, a gente fez uma pesquisa, porque eu tinha três ideias – uma era colocar um astronauta, que era um elemento do espaço embaixo da terra, uma outra situação de colocar uma série de silhuetas trabalhadas inclusive com projeção de luz que se fundiam com o transeunte, com o pedestre, com o usuário do metrô, e uma terceira imagem que era a colcha de retalhos, que era um objeto feito na periferia da cidade, feito pelas pessoas mais simples com retalhos de sobras de tecidos e de outros objetos. Aí eu fiz três maquetes e foi feita essa pesquisa. Então, você sentia a resposta. Eu achei que a imagem do transeunte ia ser a mais querida, não, a colcha de retalhos teve uma preferência unânime. Daí, eu peguei, em função dessa pesquisa eu trabalhei aquela imagem. Aquele painel virou um ponto de encontro, você poder pôr o pé, você pode chutar, é um material feito com tesselas de vidro que é uma durabilidade infinita. Mesmo a montagem foi feita por um técnico italiano que é o professor Serafino Faro, que morreu, mas ele era especialista, então, não saiu uma pastilhinha, tá lá e ficou um ponto de encontro. Então, esse retorno – mesmo a “Zebra” teve um retorno muito grande. A. M. – O “Guevara” também, não é? C. T. – O “Guevara”, é… A. M. – Respostas boas ou más, ele teve, não é? Uma resposta… C. T. – Ele teve, exatamente. A. M. – Com a depredação. C. T. – Então, essa intenção me deixa muito feliz, que é isso que… A. M. – Essa é a intenção, não é?

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C. T. – É. A. M. – Uma relação direta com… C. T. – Esse diálogo. A. M. – O público. C. T. – Não ser mais a pintura fechada, mas sim a pintura que estivesse no mundo como uma pessoa. A. M. – Isso de algum modo configura uma crítica ao CPC? C. T. – Não, o CPC também fazia uma série de… A. M. – Mas era uma coisa mais de cima para baixo. C. T. – É. A. M. – Uma coisa mais pedagógica. C. T. – É, muito associada mais à representação, mais ao teatro. Trabalho muito importante. A. M. – Vocês principalmente tu pegas elementos do próprio cenário urbano. C. T. – Exatamente. A. M. – Traz isso para a obra, então, é uma relação de trazer e depois isso volta. C. T. – Isso, de transformar o sentido da imagem. A. M. – Isso é muito legal. C. T. – Acho que em uma entrevista que eu dei para o Fábio lá tem uma explicação de como a imagem é tratada. Você falou com o Fábio? A. M. – Não. Ele tá aqui em São Paulo? C. T. – Interessante conversar com ele sobre esse período. A. M. – É, eu tenho interesse de entrevistar outras pessoas. C. T. – É, te dou o telefone do Fábio. A. M. – Sim, agora já para… C. T. – Já chegamos a outras questões que você queria fazer.

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A. M. – Concluindo. A exposição “O artista brasileiro e a Iconografia de massa”, de 68, que tu participaste. C. T. – Essa exposição foi muito importante, que já foi uma síntese do que já se fazia, que já tinha acontecido várias exposições, em São Paulo, Rio, e o Frederico Morais, ele fez uma exposição específica, ele era professor da ESDI, muito ligado à ESDI, e ele fez esse trabalho que é um levantamento de toda essa questão da linguagem mais acessível à massa utilizada pelos artistas plásticos. A. M. – Tu participaste com quais trabalhos? Tu lembras? C. T. – Eu não lembro, não. [silêncio] A. M. – É, nessa exposição foi [inaudível]. C. T. – Você tem essas informações lá para… A. M. – Não. C. T. – Teve um catálogo? A. M. – Não, não tem, não tem. C. T. – Poderia falar com o Frederico, não é? A. M. – Esse é o problema, não sei… C. T. – É um período que não tem muita documentação. A. M. – Eu tenho o livro do… até trouxe o livro do Frederico que ele editou depois em 75, não é? “A crise da hora atual”. Mas já é… são 7 anos depois… C. T. – É. A. M. – Da exposição. Mas tu lembras alguma coisa da agitação, da exposição? C. T. – É, foi uma exposição muito… A. M. – Foi aqui em São Paulo, não é? C. T. – Ãhn? A. M. – Foi aqui em São Paulo? C. T. – Não, foi no Rio, na ESDI, na Escola Superior de Desenho Industrial. A. M. – As questões atuais – tu tens acompanhado os trabalhos hoje em São Paulo, os artistas mais jovens que trabalham hoje, que trabalham com graffiti?

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C. T. – É, hoje tem essa intervenção no espaço urbano com o graffiti, não é? Não tem mesmo esse sentido de ser uma obra produzida para um espaço, como eu fiz na 23 de Maio, que é um conjunto de trabalhos que mexe com a questão da cor, do movimento, mas que não é uma empena, não é um viaduto, é uma região da cidade que foi trabalhada com eixos de circulação, então, um eixo que se direcionava para o Parque do Ibirapuera tinha a cor verde, outro eixo que ia para o litoral a gente trabalhou com azul, outro eixo que ia para o aeroporto a gente trabalhou com amarelo, que toda a sinalização para os aviões é laranja, então, a gente fez essa interação da forma com o espaço urbano. Acho que é o primeiro projeto que se faz mesmo que… e foi apagado, não é? Com a Cidade Limpa eles pediram para que apagasse e essa parte foi apagada em um dia. Talvez um dia reconstruam isso. A. M. – Hoje tem o patrocínio, não é? De algumas empresas. Eu tenho acompanhado os trabalhos de uma galeria, Choque Cultural, aqui de São Paulo, que tem trabalhos… C. T. – Do baixo da Mariana, não é? A. M. – Muito legais. Um trabalho que me chamou muita atenção é um trabalho do Daniel Melim que tá… que é ali perto da Pinacoteca, da Pinacoteca você tem como ver. Ele trabalha também… me chamou atenção porque é um trabalho… C. T. – É uma imagem Pop Art? A. M. – Sim. C. T. – Sim, é. A. M. – Me chamou muita atenção. C. T. – É, me chamou atenção também. Então, é uma influência muito grande dessa linguagem da Nova Objetividade, não é? A. M. – É, ele fala. C. T. – Mesmo o trabalho do Oiticica vem influenciando muitos artistas contemporâneos. O Oiticica era o grande artista que fez a maior ruptura mesmo da nossa geração. O Hélio era muito meu amigo também. Inclusive aquela… quando teve essa exposição de bandeiras, ele mandou uma fotografia do Cara de Cavalo Morto e aquela bandeira dele “seja marginal, seja herói”. Essa transformação da imagem da fotografia para o alto contraste, para o desenho, fui eu que fiz. As bandeiras a gente imprimiu, eu e o Marcello Nitsche, a gente imprimiu algumas bandeiras e a do Hélio a gente fez. Ele mandou o texto, eu mandei o desenho para ele. A. M. – Hoje tu és professor da FAU. C. T. – Professor da FAU há 40 anos. Adoro dar aula. Já podia ter parado, mas é um trabalho que… a FAU é a minha segunda casa, não é? Quando eu não estou aqui, eu estou lá.

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A. M. – Tu foste até orientando da Aracy, não é? No mestrado. C. T. – Fui orientando da Aracy, depois fiz doutorado, que é [silêncio] um trabalho ligado muito ao espaço urbano também, tudo. A. M. – Então, tu trabalhas com a… com essa questão… C. T. – E não quis fazer livre-docência, não quis fazer nada. O doutorado você tinha que fazer para continuar ser professor, porque na USP você tem que ser mínimo doutor. A. M. – Hoje tu desenvolves lá pesquisa também nessa área? C. T. – Nessa área. A. M. – Arte e espaço urbano. C. T. – Isso, é. Trabalho muito com os alunos. A gente faz, sempre os trabalhos são em grupo, sempre pegando essa questão da relação da forma com o espaço, o processo de projetar, de transformar uma imagem de um plano para ocupar um espaço. Você podia também ver… entrevistar algum pessoal da FAU, pra ver essa… A. M. – É, eu tenho interesse de entrevistar a Aracy. C. T. – A Aracy. A. M. – Porque ela tem aquele “Arte para quê?”, ela tem um pensamento já desenvolvido. C. T. – Tem umas exposições que ela fez no Centro Cultural Itaú, acho que é “Arte e Sociedade”. A. M. – Isso. C. T. – Que é uma exposição muito importante que ela faz um levantamento dessa época muito bom, com texto, com publicação, tudo. A. M. – E o André Toral, eu acho, não é? E o André Toral? C. T. – É, a Aracy depois… você tem o contato dela? A. M. – Não. C. T. – Depois eu te dou. A. M. – A última pergunta… C. T. – O Fábio, o Fábio Magalhães também tinha uma atuação muito grande, ele está fazendo um levantamento grande dessa época, e o Frederico. O Mário Schenberg infelizmente…

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A. M. – É, muito morreram, não é? Não tem mais como ter o contato. C. T. – Mário Pedrosa, Mário Schenberg, os queridos Mários se foram. A. M. – Até os próprios artistas. Até o Wesley, o Gerchman… C. T. – É. A. M. – Se bem que o Wesley morreu há… C. T. – O Wesley, a gente trabalhava, a gente estava fazendo a reestruturação do curso da Escola Panamericana durante dois anos. Fizemos isso, a gente fez, tem até um programa aí que a gente fez juntos, tudo. Daí, ele começou a não lembrar mais, ele começou até a fazer um tratamento com um psicólogo, aí chegou um dia e ele fala: “olha, não estou aguentando mais, vou parar”. A gente convidou o Gerchman. Ficou eu e o Rubens fazendo essa parte do Panamericana. A. M. – A última pergunta: fazendo um deslocamento, não é. Como eu tenho esse interesse, por fazer história, esse deslocamento temporal, de 64 a 68 para hoje. Para ti, é importante ainda hoje esse comprometimento político das artes? C. T. – É, sempre, mas de uma outra forma. Não é necessário mais que você tenha especificamente uma imagem. Você pode fazer o trabalho em outras situações, não é? A própria manipulação da forma. Agora na Documenta de Cássia eu tinha um trabalho que trabalha mesmo com as tecnologias, mas não como apropriação da tecnologia, como interferência na própria tecnologia. A. M. – Sim. C. T. – Então, tem uma série de trabalhos que era uma sala que foi feita com os artistas da Alemanha e junto com a Universidade de Viena. Então, era um trabalho interativo que você criava a imagem com as mãos e um sistema de micro-led – que é muito bonito, eu nunca tinha visto, não existe ainda, existe o led, mas o micro-led é uma imagem muito bonita. Você tinha uma lousa e você escrevia uma mensagem e, após escrever essa mensagem, você colocava a mão nesse equipamento desenvolvido pela Universidade Viena e várias manifestações do seu movimento eram refletidas por esse pequeno led. Tem o catálogo aí, que eu emprestei o catálogo para o professor Victor Knoll, que ele está fazendo um texto agora, ontem mesmo eu dei para ele, mas se você pesquisar isso… Então, é uma forma que tem todas essas questões, dessa imagem que a gente trabalhava na década de 60. Tem essa questão de você trabalhar com texto, de você fazer relação do texto com a imagem, mas com outras formas. É muito importante que… mesmo esse trabalho que eu faço, estou fazendo agora, que são essas construções de espaços. Esses trabalhos podem ser vistos como um espaço que você cria, pode ser um espaço público. A intenção não é que você olhe os trabalhos, que você construa ele, que você construa uma certa movimentação dentro desse trabalho. Então, acho que são formas que são tão [silêncio] ligadas a uma vanguarda da imagem que tinha na década de 60, hoje trabalhando com novos pensamentos, com novas teorias de comunicação que surgiram, com novos pensamentos. Mas essa questão sempre

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está presente, não é? Mesmo o trabalho do Bóis, que era um trabalho que mexia muito com a matéria, com construção de espaços. A. M. – Sim. C. T. – É um trabalho político, mas sem estar diretamente relacionado à imagem quase que de uma comunicação imediata. A. M. – É e não necessariamente ligada à figuração também, não é? C. T. – É, mesmo o próprio material, a Arte Povera, que fez um trabalho belíssimo, aliás, eu acho tão importante quanto a Nova Figuração, a Pop Art. A Arte Povera italiana principalmente é um trabalho de uma profundidade de linguagens, de uma vanguarda que influenciou toda a arte contemporânea, não é? Tinha um amigo, o Luciano Fabro, que morreu também, de Milão, era muito meu amigo. O Antonio Dias também, a gente… e tem uma série de textos que discutem essa questão da matéria com a comunicação, tudo.

[FINAL DO DEPOIMENTO]

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ANEXO

ANEXO A – “Propostas 66”