alcoli - experiência da experiência- blanchot e wb entre o primeiro romantismo e o surrealismo...

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Coli, Anna L. A. A linguagem e a experiência da experiência 96 | Pensando – Revista de Filosofia Vol. 5, Nº 9, 2014 ISSN 2178843X A LINGUAGEM E A EXPERIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA: BLANCHOT E BENJAMIN ENTRE O PRIMEIRO ROMANTISMO ALEMÃO E O SURREALISMO FRANCÊS The language and the experience of experience: Blanchot and Benjamin between the first romanticism German and French surrealism Anna Luiza Andrade Coli Bergische Universität Wuppertal Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de trazer para o debate filosófico aquilo que movimentos literários como o primeiro romantismo alemão e o surrealismo francês, através de seus diferentes métodos de escrita e de compreensão da realidade, tomaram como a ‘experiência’ capaz de fundar uma nova atitude literária e de levar a noção tradicional de experiência ao seu limite. Para tanto, recorremos às reflexões de Maurice Blanchot e Walter Benjamin como forma não apenas de legitimar essa aproximação mas também de propor, juntamente com Derrida, uma espécie de reflexão política sobre essa experiêncialimite tomada como linguagem. PalavrasChave: Experiência literária, absoluto, linguagem, reflexão, surrealismo, romantismo alemão. Abstract: The present paper intends to bring up to a philosophical debate what literary movements like the first German Romanticism and the French Surrealism, through its different writing and reality comprehending methods, which they called as the ‘experience’, capable both of founding a new literary attitude as taking the traditional notion of experience to its limits. Therefore, we appeal to Maurice Blanchot’s and Walter Benjamin’s reflections about the literary experience not merely to legitimize this approach but also to propose, along with Derrida, a way to a possible political reflection on the limit experience taken as language. Keywords: literary experience, absolute, language, reflection, Surrealism, German Romanticism. Introdução Para além de todas as questões que nos coloca a difícil obra de Maurice Blanchot, seja no que se refere à essência da obra de arte, seja à sua reflexão sobre seu estatuto e suas funções, o presente artigo tem por objetivo partir das intuições

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Blanchot, Benjamin, Derrida

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  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    96 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    A LINGUAGEM E A EXPERINCIA DA EXPERINCIA: BLANCHOT E BENJAMIN ENTRE O PRIMEIRO ROMANTISMO ALEMO E O

    SURREALISMO FRANCS

    The language and the experience of experience: Blanchot and Benjamin between the first romanticism German and French surrealism

    Anna Luiza Andrade Coli Bergische Universitt Wuppertal

    Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de trazer para o debate filosfico aquilo que movimentos literrios como o primeiro romantismo alemo e o surrealismo francs, atravs de seus diferentes mtodos de escrita e de compreenso da realidade, tomaram como a experincia capaz de fundar uma nova atitude literria e de levar a noo tradicional de experincia ao seu limite. Para tanto, recorremos s reflexes de Maurice Blanchot e Walter Benjamin como forma no apenas de legitimar essa aproximao mas tambm de propor, juntamente com Derrida, uma espcie de reflexo poltica sobre essa experincia-limite tomada como linguagem. Palavras-Chave: Experincia literria, absoluto, linguagem, reflexo, surrealismo, romantismo alemo. Abstract: The present paper intends to bring up to a philosophical debate what literary movements like the first German Romanticism and the French Surrealism, through its different writing and reality comprehending methods, which they called as the experience, capable both of founding a new literary attitude as taking the traditional notion of experience to its limits. Therefore, we appeal to Maurice Blanchots and Walter Benjamins reflections about the literary experience not merely to legitimize this approach but also to propose, along with Derrida, a way to a possible political reflection on the limit-experience taken as language. Keywords: literary experience, absolute, language, reflection, Surrealism, German Romanticism.

    Introduo

    Para alm de todas as questes que nos coloca a difcil obra de Maurice

    Blanchot, seja no que se refere essncia da obra de arte, seja sua reflexo sobre

    seu estatuto e suas funes, o presente artigo tem por objetivo partir das intuies

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    97 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    fundamentais de Blanchot sobre a atividade literria a fim de aproximar o romantismo

    alemo que no apenas influenciou sua escrita, mas igualmente sua concepo de

    literatura enquanto experincia da totalidade e o surrealismo francs. Na segunda

    parte do artigo, partimos dessa aproximao inicial, que tambm feita por Walter

    Benjamin em seu pensamento fronteirio entre a Alemanha e a Frana, para

    mencionar o texto no qual Jacques Derrida discute o carter central da linguagem

    como meio de acesso a uma experincia diferenciada capaz de nos transportar ao

    mbito de um pensamento poltico.

    Ademais, essa discusso que passa aqui por Benjamin, tem o objetivo mais

    especfico de fornecer um exemplo da possvel influncia no apenas dos movimentos

    romntico e surrealista sobre o pensamento francs contemporneo, mas

    principalmente da aproximao frutfera que esses movimentos se permitem, e que

    to bem exposto por Benjamin e por Blanchot, e de sua importncia para a filosofia

    francesa do sculo XX.

    Maurice Blanchot e o romantismo alemo

    No artigo dedicado ao 100 aniversrio do nascimento de Blanchot, Jean-Luc

    Nancy escreve: Blanchot soube reconhecer assim o acontecimento da modernidade:

    a evaporao dos alm-mundos e com eles a evaporao de uma diviso assegurada

    entre a literatura e a experincia ou a verdade. Ele encontra na escrita a tarefa de dar

    voz quilo que permanece mudo1. Esta frase nos aqui de grande utilidade porque

    ela nos fornece a chave fundamental da compreenso da ligao que Blanchot observa

    entre o primeiro romantismo alemo e o surrealismo francs, qual seja, a concepo

    de uma literatura e de um fazer literrio que se apresentam como experincia, como

    forma de estar no mundo e de criar mundos, ou seja, de uma literatura que ultrapassa

    1 Nota redigida por demanda do Alto Comit das Celebraes Nacionais (Haut Comit des Clbrations Nationales) para a edio de 2007, texto disponvel em Espace Maurice Blanchot [www.blanchot.fr], acesso em 10.06.2014. As tradues dos textos em francs, salvo indicao, so de minha autoria.

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    a mera condio de gnero literrio. Vejamos como essa ideia aparece no primeiro

    romantismo de Iena2.

    Enquanto herdeiros tanto do pensamento kantiano quanto do idealismo que a

    ele se apresentou como resposta, e nesse aspecto pela via da filosofia de Fichte, os

    romnticos presenciaram a reviravolta que a Terceira Crtica protagonizou ao

    introduzir a ideia da reflexo. Segundo Schlegel, Kant descobriu o fim da metafsica

    nas trs Ideias: Deus, Liberdade e Imortalidade , mas Fichte o incio, no porm, no

    eu e no no-eu, mas na liberdade interna da reflexo3. No contexto da obra dos

    romnticos, dentre os quais se destaca a figura de Friedrich Schlegel, a reflexo surge

    como a forma que expressa o procedimento especfico do pensar. Assim, ao pensar, o

    pensamento pode voltar-se sobre sua forma para toma-la como seu contedo, ou seja,

    aquilo sobre o que ele se ocupar. O pensar da prpria forma do pensamento

    desencadeia um processo infinito que dirige o conhecimento para o eu, para o si

    mesmo, e o conhecimento, de uma atividade prpria de um sujeito sobre um objeto

    torna-se autoconhecimento. Em seu exemplar estudo sobre os romnticos de Iena,

    Walter Benjamin escreve: Como possvel conhecimento fora do autoconhecimento,

    i.e., como possvel conhecimento do objeto? Ele de fato no possvel4. Para os

    romnticos o germe de todo conhecimento do mundo se encontra na reflexo infinita

    e, portanto, na si-mesmidade e no autoconhecimento. O pensamento que reflete

    sobre si mesmo pensado em estreita unificao com o mundo, o que faz do conhecer

    a si mesmo um processo equivalente ao do conhecer o mundo.

    2 E aqui tomo sobretudo a tese de doutorado que Walter Benjamin apresenta Universidade de Berna (Sua) em 1919 como a base a partir da qual o romantismo alemo ser tematizado. Isso se justifica, em primeiro lugar, por sua reconhecida importncia no contexto dos estudos sobre o Romantismo alemo; em segundo lugar, pela abordagem sistemtica que a obra alcana no somente da produo de Friedrich Schlegel, mas do perodo romntico de Iena e dos seus principais nomes como um todo, podendo ser ento considerada como uma fonte representativa para o objetivo ao qual se prope este trabalho. 3 SCHLEGEL, F. apud SUZUKI, Mrcio. O gnio romntico Crtica e histria da filosofia em Friedrich Schlegel. Editora Iluminuras, FAPESP: So Paulo, 1998, p.16 4 BENJAMIN, W. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo. Trad. Mrcio Seligmann-Silva. Ed. Iluminuras: So Paulo, 2002, p.61 Doravante citado como WB, O conceito de..., 2002, seguido pela paginao correspondente.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

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    Onde o pensamento do Eu no est unificado com o conceito de mundo, pode-se dizer que este pensar puro do pensamento do Eu s conduz a um eterno espelhar-se-a-si-mesmo, a uma srie infinita de imagens-reflexo que contm sempre o mesmo e nunca algo novo. Da porque precisa-se do conceito de mundo: Auto-intuio e intuio do universo so conceitos intercambiveis5.

    Aqui, portanto, dada a tarefa suprema da reflexo: por exercer-se sobre

    uma essncia pensante que j contm em si todo o contedo da realidade de forma

    condensada e obscura, a reflexo deve desdobrar infinitamente esse contedo para

    que o conhecimento da realidade atinja seu ponto mximo de clareza o absoluto.

    O grande desafio que os romnticos parecem trazer tona o de pensar uma

    forma de conhecimento independente da estrutura sujeito-objeto que se consolidou

    na epistemologia moderna. A separao categrica entre um sujeito que se define em

    contraste com o objeto que se d sua percepo apenas como fenmeno limita a

    parcela do mundo que pode dar-se a conhecer ao sujeito. O sujeito no tem qualquer

    privilgio epistemolgico em relao ao objeto, que se d como fenmeno e no como

    coisa-em-si, e todo o conhecimento possvel est apenas nesse mbito parcial em que

    o mundo se mostra. Mas a grande questo para os romnticos, na esteira do idealismo

    alemo, a certeza de que h uma outra forma de abordar o mundo diferente do

    impulso lgico-cognitivo que quer conhecer o mundo tal como ele em si mesmo.

    Essa relao diferenciada com o mundo possibilitada pela duplicao que o conceito

    kantiano de reflexo opera na realidade libertada da tarefa estrita do conhecimento

    lgico, este duplo da realidade que se d atravs do sujeito abre uma via de total

    liberdade entre o sujeito e o objeto, entre o indivduo e o mundo. No contexto da

    teoria romntica do conhecimento a reflexo , portanto, guiada pela tarefa de

    descobrir o conhecimento do mundo no autoconhecimento, bem como o

    autoconhecimento no conhecimento do mundo. A unificao idealista entre o eu e o

    mundo que abre a possibilidade de buscar o mundo no mais fora do eu mas dentro

    5 WB, O conceito de..., 2002, p.42

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    dele, em sua prpria experincia com este mundo mesmo que lhe pertence, cria uma

    rede infinita de novas possibilidades de significao. O impulso criativo do romantismo

    se funda nessa infinitude de conexes que cada indivduo pode estabelecer com o

    mundo que lhe dado em estreita relao6.

    Mas por que que podemos dizer que h efetivamente uma teoria do

    conhecimento romntica ao invs de afirmar simplesmente um subjetivismo radical e

    um solipsismo decorrentes desse esforo de eliminao da coisa-em-si? E nesse ponto

    tocamos o aspecto mstico do romantismo que se relaciona intimamente com a

    questo do absoluto.

    A realidade no forma um agregado de mnadas fechadas em si que no podem ter nenhuma relao real umas com as outras. Pelo contrrio, todas as unidades no real, fora o absoluto, so apenas relativas. Elas esto to pouco fechadas em si e privadas de ligao que, antes, podem via intensificao de sua reflexo, incorporar mais e mais ao prprio autoconhecimento outras essncias, outros centros de reflexo. Nomeadamente, a coisa, na medida em que aumenta a reflexo em si mesma e abrange em seu autoconhecimento outras essncias, irradia sobre estas seu autoconhecimento originrio. Desta maneira, o homem pode tornar-se partcipe daquele autoconhecimento de outras essncias. Portanto, tudo aquilo que se apresenta ao homem como seu conhecer de uma essncia o reflexo nele do autoconhecimento do pensar nesta mesma essncia7.

    H uma terminologia mstica que se evidencia no mbito da teoria romntica

    da traduo e da concepo do mundo como Escritura8, ou seja, h uma ancoragem

    do absoluto em uma viso mgica da linguagem e da lngua em que a linguagem

    original relacionava o homem diretamente com um conhecimento total e com a

    natureza. A queda equivale ao incio da confuso, do caos, da no-compreenso e,

    portanto, da necessidade de se interpretar e traduzir o mundo e as palavras9. A

    6 No por acaso surgem nessa poca diversas teorias acerca do gnio original, da afirmao da subjetividade e as recorrentes questes acerca dos absurdos originais. Cf. SSSEKIND, P. Shakespeare. O gnio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 7 WB, O conceito de..., 2002, p.62. 8 Como muito bem fundamentado por Mrcio Seligmann-Silva, 1999, p.23 seq. 9 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e critica potica. So Paulo: FAPESP: Iluminuras, 1999, p.24.

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    ideia subjacente a todo o esforo infinito do procedimento reflexivo de buscar

    restaurar a mxima significao das coisas pela possibilidade infinita de conexes

    poderia ser dita, portanto, como sendo a de se aproximar a um ideal de compreenso

    do mundo que foi absolutamente interditado ao pensamento quando da Queda. Essa

    seria a linguagem originria sobre a qual os romnticos sempre se voltam, e a

    reconquista desse acesso direto essncia da coisa e, mais que isso, a recuperao da

    harmonia entre homem e mundo, seria o grande ponto motivador para o

    estabelecimento disso que os romnticos chamam de linguagem artificial, que pela

    ambiguidade do termo alemo knstlich nos permite ainda chama-la de linguagem

    artstica, a lngua e a linguagem prprias poesia e prosa. Essa linguagem recriada

    torna-se necessria justamente porque a linguagem natural que nos garantiria um

    acesso ao mundo em si tornou-se depois da Queda uma linguagem meramente

    comunicativa e instrumentalizada.

    O essencial desta concepo do conhecimento como restaurao de um

    acesso privilegiado que a linguagem originria nos daria ao ncleo significativo do

    mundo a conscincia, dela advinda, de que a nossa relao com a verdade e com o

    conhecimento inteiramente dependente de um esforo de construo do sentido. O

    sentido no dado, ele se perdeu e pode ser revelado somente pelo uso

    artificial/artstico da linguagem, que por sua vez deve marcar sua absoluta diferena

    em relao linguagem instrumentalizada.

    Com o pressuposto idealista de que tudo o que existe fora de ns no no-eu, mas a prpria egoidade (Ichheit), o proto-eu (Ur-Ich), fundo obscuro do qual o eu finito se descola, mas do qual tambm continua sendo parte (Stck), o mundo deixa finalmente de ser uma paisagem erma, mero campo de foras mecnicas estreis atuando sem nenhuma finalidade, para se tornar um texto que no pode ser mais soletrado a partir de alguns poucos conceitos filosficos, mas requer uma leitura mais densa, inteiramente simblica10.

    10 SUZUKI, M. O gnio romntico Crtica e histria da filosofia em Friedrich Schlegel. Editora Iluminuras, FAPESP: So Paulo, 1998, p.148.

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    Uma vez que a natureza passou a falar em uma linguagem distante,

    enigmtica, incapaz de ser decodificada pelos conceitos instrumentais da cincia da

    natureza, o cientista da natureza, ou seja, aquele que se dispe a abord-la, deve

    transformar-se em um crtico, para o qual a natureza transforma-se em um texto, que

    ele interpela [...] com o [mesmo] sentido que o crtico [interpela] o autor.11. Schlegel

    escreve ainda:

    A matria nada na intuio. Aquilo unicamente que lhe d realidade a essncia, a significao [Bedeutung], o sentido [Sinn] dela, a linguagem [Sprache] que nos interpela [anspricht] obscuramente ali onde o tu se nos quer fazer inteligvel. A essncia interna e a natureza das plantas e animais so como que as palavras e a lngua com que o eu distante, mudo, fala conosco. Desta maneira, pela significao, aquilo que de resto matria insignificante se torna palavra e imagem de um esprito profundamente oculto, mas aparentado conosco12.

    Os romnticos querem buscar aquilo que est escondido no mundo, prestes a

    ser revelado, o mistrio da prpria linguagem originria que se esconde na linguagem

    ordinria. Ao dar ao que comum um sentido elevado, ao que usual uma aparncia

    misteriosa, ao conhecido a nobreza do desconhecido, ao que pode perecer a aparncia

    do infinito, assim que eu os romantizo13. A vida tem de ser infiltrada pela poesia, e

    Schlegel expressa esse ideal no conceito de Poesia universal progressiva, que segundo

    ele deve eliminar a separao entre a lgica da vida cotidiana e as atividades livres e

    criativas do esprito, como a poesia. Mas como isso deve ser feito? Schlegel provoca:

    Fichte passa livros inteiros sempre dizendo s pessoas que, na verdade, no quer nem

    pode falar com elas14, e nessa provocao nos d a dica para essa resposta: o mundo,

    entendido como escrita, como texto a ser lido, deve ser transformado em poesia, em

    11 SCHLEGEL, F. Philosophische Lehrjahre (PhL) - Kritische Ausgabe (KA), Vol. XVIII, p.165. As passagens de Schlegel citadas diretamente da Kritische Ausgabe so, salvo indicao, retiradas do estudo Walter Benjamin sobre o romantismo [BENJAMIN, W. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo. Trad. Mrcio Seligmann-Silva. Ed. Iluminuras: So Paulo, 2002], traduzidas por Mrcio Seligman-Silva e cotejadas com o original alemo. 12 SCHLEGEL, F. Philosophische Lehrjahre (PhL) - Kritische Ausgabe (KA), Vol. XII pp. 338-9. 13 NOVALIS apud SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affaire. Carl Hanser Verlag, 2007, p.54. As tradues desta obra aqui citadas so de minha autoria. 14 SCHLEGEL, F. Philosophische Lehrjahre (PhL) - Kritische Ausgabe (KA), Vol. XVIII, p.37.

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    linguagem artstica capaz de resgatar sua significao perdida para a superfcie lgica

    da realidade. A crtica e a ironia romnticas aparecem como mtodos da

    fragmentao sistemtica do mundo, como forma de destruir a totalidade lgica e

    aparente da realidade cotidiana para buscar a totalidade mais profunda, infinita, a face

    romntica da vida (uma forma de sur-realismo? poderamos nos perguntar). Pois esse

    o comeo de toda poesia, anular todos os movimentos e as leis da razo que pensa

    de modo sensato e nos transportar de novo para a bela confuso da fantasia, no caos

    original da natureza humana, para o qual eu no conheo nenhum smbolo mais

    bonito do que o redemoinho colorido dos antigos deuses15.

    A ironia uma espcie de ponto de indiferena entre o real e o irreal no

    sentido de que inteiramente uma coisa que, ao mesmo tempo, se refere a algo

    inteiramente outro, ela o entre-dois que diz finitamente do infinito.

    O sentido da socrcia [e aqui Schlegel cria um termo que o conecta ironia socrtica], que a filosofia est por toda parte ou em lugar nenhum e que com leve fadiga possvel orientar-se pelo primeiro, pelo melhor em toda parte e encontrar aquilo que se procura. Socrcia a arte de a partir de qualquer lugar dado, encontrar a localizao da verdade e assim determinar com exatido as relaes do dado com a verdade16.

    A ideia central da ironia parece ser a de estabelecer o infinito na finitude

    aparente de todas as coisas, de buscar um sentido que no esgotvel, dado que a

    inteligibilidade do mundo e de todas as coisas deve ser percebida ao mesmo tempo

    como desejvel mas inatingvel, necessria mas impossvel. A ironia exige

    comunicabilidade e comunicao incondicionadas, ou seja, enquanto fundamento

    do discurso e condio do seu sentido, comunicabilidade e comunicao no devem

    poder se esgotar em nenhuma fala, em nenhum discurso nem significao

    determinada. A ironia permite o dilogo porque evita o ponto morto da compreenso

    absoluta17. Um escrito clssico jamais tem de poder ser totalmente entendido.

    15 SCHLEGEL, F. apud F. SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affaire. Carl Hanser Verlag, 2007, p. 58. 16 SCHLEGEL, F. Dialeto dos Fragmentos. Trad. Mrcio Suzuki. Ed. Iluminuras: So Paulo, 1997, p.67. 17 SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affaire. Carl Hanser Verlag, 2007, p.61.

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    Aqueles que so cultos e se cultivam tm, no entanto, de querer aprender sempre

    mais com ele18.

    A crtica, por sua vez, nada mais propriamente que a comparao do

    esprito e da letra de uma obra, que tratada como infinito, como absoluto, e como

    indivduo Criticar quer dizer entender um autor melhor do que ele mesmo se

    entendeu19. A crtica se funda numa Ideia compreendida como antecipao

    divinatria de um todo orgnico ainda no realizado, mas cuja realizao s pode ser

    pensada no interior de um processo infinito. A atividade da crtica romntica

    pressupe, portanto, uma totalidade, um sistema a partir do qual ela critica aquilo que

    est fora desse sistema e dessa totalidade ao criticar a si mesma. Nesse sentido, a

    crtica s completa se for inteiramente uma coisa ao ser inteiramente outra, ou seja,

    se for inteiramente filosofia ao ser inteiramente poesia. A comparao com a ironia

    inevitvel. A crtica romntica est no seio do projeto epistemolgico romntico por

    operar a juno entre parte e todo, indivduo e mundo, filosofia e poesia. Somente o

    filsofo crtico pode conhecer corretamente a si mesmo no todo e por partes.

    Somente ele pode reunir em si mais esprito de cincia [Wissenschaftsgeist] que Fichte

    e mais sentido artstico [Kunstsinn] que Goethe. Do filsofo crtico se pode dizer tudo

    o que os estoicos afirmavam do sbio20. A crtica romntica no deve ser confundida

    com um mero cnon para julgar conhecimentos que podem fazer parte do sistema da

    filosofia ou obras que pertencem esfera da arte. A atividade crtica constitui o pice

    da formao do filsofo e do artista, o acabamento ideal do esprito cientfico e do

    senso artstico e, diferentemente do que em geral se compreende por crtica, a saber,

    o exame e anlise do que j existe, no romantismo a crtica ser pensada como

    instrumento que possibilita a descoberta e a inveno de coisas futuras. Exatamente

    por isso que a crtica, no contexto romntico, surge como genial, proftica,

    divinatria, procedimento que no tem meramente uma funo negativa mas, antes,

    18 SCHLEGEL, F. Lyceum, Kritische Ausgabe (KA) Doravante citada apenas como KA, seguida da indicao do volume e pgina Vol. II, p. 240. 19 SCHLEGEL, F. KA, XVI, p. 168. 20 SCHLEGEL, F. KA, Vol. II, p.84.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

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    positiva, progressiva, cujo esprito no skepsis, mas divinao21. Para Schlegel a

    crtica torna-se o lugar da inveno e do gnio, e deste ponto de vista no h mais

    distino possvel entre crtica e poesia, juzo esttico e criao. Poesia s pode ser

    criticada por poesia. Um juzo artstico que no ele mesmo uma obra de arte na

    matria, como exposio da impresso necessria em seu devir, ou mediante uma

    bela forma e um tom liberal no esprito da antiga stira romana, no tem

    absolutamente direito de cidadania no reino da arte22. Ele escreve ainda: Filosofia da

    filosofia = arte da inveno e do chiste combinatrio ou fundao de uma arte e

    cincia profticas. Orculos combinatrios. Princpios profticos 23. Se a tarefa da

    criao, antes deixada lgica, pode agora ser assumida pela crtica, isso se deve

    justamente a esta coincidncia com a poesia, com o talento irnico e proftico de

    buscar totalidades perdidas e inexistentes nos fragmentos, nas partes. O fragmento

    como projeto e semente (Plen) significa um desenvolvimento constante, um

    desdobrar infinito do todo contido potencialmente em cada parte, e, por fim, um

    conectar infinitamente os fragmentos. Assim o chiste definido como genialidade

    fragmentria24, e este princpio de inventividade compreendido como o talento da

    fragmentao, pois os produtos naturais do chiste interrompem a ordem e as leis da

    razo, fazendo aflorar novamente o caos originrio da fantasia. Os fragmentos e,

    dentre eles, os chistes, apontam para a dimenso catica da imaginao criativa que a

    todo o momento est prestes a romper o limiar da finitude e da limitao de sentidos.

    Um achado chistoso uma desagregao de elementos espirituais que, portanto, tinham de estar intimamente misturados antes da sbita separao. A imaginao tem de estar primeiro provida, at a saturao, de toda espcie de vida, para que possa chegar o tempo de a eletrizar de tal modo pela frico da livre sociabilidade, que a excitao do mais leve contato amigo ou inimigo possa lhe arrancar fascas fulgurantes e raios luminosos, ou choques estridentes 25.

    21 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XVIII, pp.49. 22 SCHLEGEL, F. KA, Vol. II, p. 162. 23 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XVIII, p. 352. 24 SCHLEGEL, F, KA, Vol II, p. 148. 25 SCHLEGEL, F. KA, Vol. II p.150.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    106 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Este contato de ideias que vivifica a mente interrompe a rotina montona e

    entorpecida da conscincia. Mas o carter fragmentrio do chiste s pode ser

    compreendido se localizado na conscincia finita, porque o modo de funcionamento

    desta conscincia que a humana, segundo Schlegel, ele mesmo fragmentrio. Os

    cursos de Colnia tem uma seo inteira dedicada explicao de que o chiste a

    forma prpria, especfica da conscincia humana, como conscincia derivada,

    racional ou como a forma da conscincia derivada, fragmentria26. justamente

    pelo fato de que o chiste se manifesta na conscincia finita que ele s pode ter a

    forma do fragmento, como indcio do seu pertencimento a um mundo inconsciente e

    no inteiramente disponvel.

    Mesmo as obras ldicas da imaginao ainda mantm sempre uma conexo entre si, mas o chiste surge isoladamente, de maneira totalmente inesperada e sbita, sem nenhuma relao com o que veio antes, tal como, por assim dizer, um trnsfuga, ou antes, como um relmpago do mundo inconsciente [ein Blitz aus der unbewuten Welt], que sempre subsiste para ns junto [neben] ao mundo consciente, e dessa maneira expe notavelmente o estado fragmentrio de nossa conscincia. um vnculo e mescla de consciente e inconsciente [des Bewuten und Unbewuten]. Sem nenhuma inteno e sem conscincia, subitamente se descobre algo que no tem conexo alguma com o precedente; aquilo, porm, que nos consciente nisso, est vinculado maior clareza e lucidez 27.

    Pela sua caracterstica de estabelecer uma ponte, um vnculo entre domnios

    distintos da mente, entre o consciente e o inconsciente que o chiste considerado

    por Schlegel como o princpio e rgo da filosofia universal, justamente por sua

    capacidade de restaurar essa passagem da conscincia finita conscincia infinita,

    originria, ou seja, passagem do eu-fragmento da parte ou do pedao do eu

    (Bruchstck), para o eu-totalidade. desta forma que o chiste preserva o jogo entre

    razo e fantasia, consciente e inconsciente, pois o eu absoluto s possvel pela

    determinao recproca entre eu inteligvel e eu emprico.

    26 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XII pp. 392-392. 27 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XII pp. 392-392.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    107 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Maurice Blanchot e o surrealismo

    Em La part du feu28 Blanchot faz importantes consideraes sobre o

    surrealismo e, no quadro geral da literatura, aproxima o movimento surrealista do

    romantismo alemo do ponto de vista do significado que a atividade literria exerceu

    para ambos os movimentos. Bem mais do que um gnero literrio, o romantismo,

    tanto quanto o surrealismo, so formas do fazer literrio, formas de uma experincia

    excepcional que se abre ao artista na forma do poder de criar uma vida diferente

    daquela que o criou na potncia da liberdade e da fico que, diferentemente do

    impulso de experimentar a prpria vida, o poder de testar a si mesmo, de se ariscar

    nessa experincia vitalmente perigosa que seria a arte para o artista, o romance para

    o romancista e, de uma forma mais geral, o ato de escrever para aquele que

    escreve29. Enquanto expresso de uma experincia absolutamente pessoal e singular,

    o romantismo considerado por Blanchot como a origem da literatura, cujo apelo ao

    status de experincia literria retomado pelo surrealismo dos anos 20. Enquanto

    experincia visceral e radicalmente peculiar de si e do mundo, a literatura tal como

    compreendida e exercida pelos romnticos e pelos surrealistas aparece no texto de

    Blanchot como uma forma de transformao daquele que passa pela experincia da

    escrita, pois na experincia literria j h uma ao que se d de forma imediata.

    A literatura uma atividade pela qual aquele que se dedica no tende apenas a produzir obras belas, interessantes, instrutivas, mas pe a si mesmo inteiramente prova, tende a no se encontrar, a se exprimir, nem mesmo a se descobrir, mas a perseguir uma experincia em que ser descoberta, em relao a ele e mundo que o seu, o sentido da condio humana em sua totalidade. simples repetir: escrever tem para aquele que escreve um valor de experincia fundamental30.

    28 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949 H uma traduo recente da obra para o portugus, intitulado A parte do fogo, publicada pela Editora Rocco. 29 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 210. 30 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 211.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    108 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Entre abril de 1941 e agosto de 1944, Maurice Blanchot publicou mais de 170

    artigos de crtica literria no Journal des dbats, que foram posteriormente publicados

    em forma de coletneas, dentre as quais La part du feu de 1949 e LEntretien infini de

    1969. Mas em um artigo inicialmente no publicado no Faux pas de fevereiro de

    1944 que Blanchot faz uma aproximao entre o romntico Jean Paul e o francs

    Giraudoux exatamente pelo ponto de vista da literatura como experincia. Como

    salienta Christophe Bident, o editor da coletnea que em 2007 publicou as crticas

    literrias ausentes nas edies anteriores, o romantismo alemo como um todo no

    cessar de reter sua ateno: a prova disso o livro de Philippe Lacoue-Labarthe e

    Jean-Luc Nancy, Labsolu littraire, no qual o lugar de Blanchot decisivo.

    (Apresentao traduo brasileira de De Jean-Paul Giraudoux e Lexprience

    magique de Henri Michaux). Nesse texto afirma Blanchot:

    Na aurora do romantismo, Jean-Paul representa certas tomadas de posio cujo valor no foi percebido pelos romnticos franceses, mas que, depois deles ou para alm deles, penetraram profundamente nosso tempo. A principal o carter de experincia que se reconhece na literatura; a literatura torna-se uma manifestao espiritual; ela introduz aquele que a busca em um novo modo de existncia; uma espcie de ascese que nos permite o acesso a uma vida mais autntica: em uma palavra, ela tem para o escritor uma significao mstica31.

    Sobre os romnticos alemes, acrescenta Blanchot, a literatura tem um valor

    de engajamento: ela no exprime, ela abala; ela a um s tempo meio de

    conhecimento e poder de metamorfose; viver, escrever, um mesmo ato. A poesia

    uma experincia mgica32.

    O artigo publicado em 1949 sob a coletnea La part du feu em que Blanchot

    apresenta algumas reflexes sobre o surrealismo parecem de fato identificar no

    movimento surrealista vrias daquelas caractersticas j identificadas no romantismo

    31 BLANCHOT, M. De Jean-Paul Giraudoux. Trad. Marcelo Jacques de Moraes, in Revista ALEA: Rio de Janeiro. Vol. 12, n. 1, pp.169-172, jan./jul. 2010, p.169. 32 BLANCHOT, M. De Jean-Paul Giraudoux. Trad. Marcelo Jacques de Moraes, in Revista ALEA: Rio de Janeiro. Vol. 12, n. 1, pp.169-172, jan./jul. 2010, p.170.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    109 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    alemo. Com efeito, Blanchot se pergunta pela herana deixada pelo surrealismo, uma

    vez que No h mais uma escola, mas subsiste um estado de esprito, e h em toda

    pessoa que escreve uma vocao surrealista33. E ento ele nos d a chave da

    resposta, aproximando as intuies e mtodos surrealistas daqueles que podemos

    atribuir prpria literatura, e afirma que o fato de que Breton se fez sempre presente

    com uma perseverana infatigvel, que ele tentou se salvar de todos os naufrgios e

    mesmo de suas prprias dvidas [...] mostra suficientemente que esse mtodo no era

    uma inveno factcia e que ela respondia a uma das principais aspiraes da

    literatura34. Quais seriam as aspiraes da literatura e, portanto, tambm de Breton e

    do movimento surrealista? Uma relao imediata do indivduo com si mesmo, uma

    espcie de vida imediata que nos permita afirmar que h, que deve existir na

    constituio do homem um momento em que todas as dificuldades se amenizam, em

    que as antinomias perdem o sentido, em que o conhecimento toma inteiramente

    posse das coisas, em que a linguagem no o discurso mas a prpria realidade sem,

    no entanto, deixar de ser a realidade prpria linguagem, em que, enfim, o homem

    toca o absoluto35.

    Blanchot reconhece no surrealismo este mpeto de forar a conscincia a

    incluir em si tambm elementos do inconsciente como forma de alargar o mbito

    prprio da experincia, que se realiza pelo uso expandido da linguagem, atravs da

    tcnica da escrita automtica. Esta tcnica de produo literria, detalhadamente

    descrita por Breton no Manifesto Surrealista de 1924, trapaceia a legislao rigorosa

    da conscincia, suspende o hbito de deduzir os fatos da realidade para nos levar alm

    da experincia cotidiana, para alcanar uma forma de percepo pura que escape ao

    crivo lgico e coerncia do sentido e da razo para buscar as manifestaes do

    inconsciente:

    33 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 90. 34 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 91. 35 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 91.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    110 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Se a razo, como o caso, abandona terrivelmente aquele que a convoca, no seria conveniente fazer abstrao dessas categorias? [...] Vivemos ainda sob o imprio da lgica, eis a, naturalmente, onde eu queria chegar. [...] O racionalismo absoluto que continua em voga s nos permite considerar os fatos trazidos tona estritamente por nossa experincia. Os fins lgicos, ao contrrio, nos escapam. Sob o pretexto de civilizao, sob o pretexto de progresso, conseguiu-se banir do esprito tudo aquilo que se pode taxar, com ou sem razo, de superstio, de miragem; conseguiu-se suprimir todo modo de busca da verdade que no seja conforme ao costume36.

    Uma frase automaticamente constituda revela uma formulao feita por uma

    imaginao passivamente disposta, que capta os diversos elementos do mundo numa

    espcie de suspenso da lgica consciente, do funcionamento consciente e coerente

    do mundo. Sobre o mtodo surrealista, Blanchot afirma que a escritura automtica

    uma mquina de guerra contra a reflexo e a linguagem. [...] A eficcia e a importncia

    da escrita automtica consistem no fato de que ela revela a prodigiosa continuidade

    entre meu sofrimento, meu sentimento de sofrer e a escrita do sentimento desse

    sofrimento37.

    A linguagem para Breton deve ser humilhada, sacrificada, deve ser explorada

    de forma a poder nos levar muito alm da nossa experincia cotidiana e habitual.

    Devemos fazer uma verdadeira violncia linguagem para que ela nos sirva de

    transporte. O uso surrealista da linguagem no a pressupe como um mero

    instrumento, mas justamente como algo cujo fim dado em si mesmo. A linguagem

    deve ser pressuposta como livre, como substancial em si mesma. O reconhecimento da

    linguagem enquanto livre implica o reconhecimento de um sujeito igualmente livre, e

    nesse sentido, h uma evidente analogia entre a linguagem e o sujeito. O mtodo da

    escrita automtica deve transformar a linguagem numa extenso do prprio sujeito, ou

    seja, a linguagem deve ser pensada como o sujeito, como aquilo que o sujeito

    enquanto ele comunica. Na escrita automtica as palavras se tornam livres e tm

    vontade prpria. Elas fazem amor, se conectam e se separam como bem querem.

    36 BRETON, A. Manifeste du Surralisme (1924). Ed. Gallimard: Paris, 1966, pp.11-64. Disponvel em http://inventin.lautre.net/livres/Manifeste-du-surrealisme-1924.pdf. Acessado em 12.09.2013, pp. 1,2. 37 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 91,92.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    111 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Para Blanchot, o primeiro surrealismo tinha essa ideia da linguagem como

    acesso direito letra, palavra e, como tal, ao absoluto. Nesse sentido, a linguagem

    estaria no fundamento, no comeo fundacional do pensamento e da criao livres. O

    resultado que as palavras livres se tornam os centros da atividade mgica, mais que

    isso, as coisas se tornam impenetrveis e opacas a todo e qualquer objeto humano

    retirado de sua significao utilitria.38. O maravilhoso, a criao mgica abrem-se

    linguagem que se humilha e se liberta do sujeito para torna-se ela prpria o sujeito

    agente. As palavras so livres, e talvez elas possam nos liberar; suficiente segui-las,

    abandonar-se a elas, coloca-las ao servio de todos os recursos da inveno e da

    memria.39. Com efeito, Breton relata no primeiro manifesto de 1924:

    Escreva rpido e sem um assunto preconcebido, rpido o suficiente por no se reter nem ser tentado a se reler. A primeira frase vir por si mesma, tanto verdade que a cada segundo h uma frase estranha ao nosso pensamento consciente que pede para ser exteriorizada. [...] Continue enquanto isso lhe apraz. Confie no carter inesgotvel do murmrio. [...] Em seguida a uma palavra cuja origem lhe parea suspeita, coloque uma letra qualquer, a letra l por exemplo, sempre a letra l, e evoque o arbitrrio ao impor essa letra como a inicial da palavra que vir a seguir 40.

    Para o surrealismo h uma limitao na vida real em funo de ela ser

    sempre enquadrada em exigncias que so da ordem da vida prtica, do

    conhecimento lgico, etc. E por isso que h uma necessidade de ir alm da

    conscincia meramente imediata do real e da prpria vida. O surrealismo seria esta

    forma de ir alm e elevar a conscincia a essa realidade superior, a esse

    suprarrealismo. O alcance desta realidade aparece quando alcanamos o que Breton

    chama de funcionamento real da conscincia, ou seja, um funcionamento no

    domesticado, no adestrado para o funcionamento real e para as exigncias prticas

    da vida.

    38 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 94. 39 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 95. 40 BRETON, A. Manifeste du Surralisme (1924). Ed. Gallimard: Paris, 1966, pp.11-64. Disponvel em http://inventin.lautre.net/livres/Manifeste-du-surrealisme-1924.pdf. Acessado em 12.09.2013, p. 11.

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    112 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    H uma crtica fundamental aqui que se aplica a uma teoria da representao

    e, consequentemente, a uma teoria em que a clivagem entre sujeito e objeto assume

    uma caracterstica ontolgica na qual o real e o irreal so compreendidos como

    momentos contnuos da experincia do sujeito, separado do seu objeto-mundo. No

    h uma separao ou um rompimento entre sujeito e o mundo, nem entre o mundo

    real e os mundos possveis experimentados pelo sujeito. A alegada contradio entre o

    real e o irreal nada mais seria que uma limitao da conscincia em termos do mbito

    de suas experincias possveis.

    No segundo manifesto do Surrealismo, Breton caracteriza essa diviso

    insupervel do pensamento entre o real e o irreal, o que existe e o que no existe

    como o cncer do pensamento, uma vez que essa posio ontolgica o que torna o

    homem absolutamente triste e desamparado. por isso que Breton prope todos os

    meios de resgatar aquilo que est para alm dessa diviso como forma de resgatar a

    prpria experincia da totalidade.

    A poesia que ao mesmo tempo tomada de conscincia dessa superao sem fim e tambm sem meio, e ainda essa prpria superao, no dada jamais ela no tem nada a ver com o mundo de coisas feitas. [...] A poesia e a vida esto em outro lugar, (...), mas outro lugar no designa uma regio espiritual ou temporal: outro lugar no est em parte alguma; ele no o alm; ele significa que a existncia no est jamais onde ela . O surrealismo uma dessas tentativas pelas quais o homem pretende se descobrir como totalidade41.

    Tal como o romantismo alemo, o surrealismo alimenta-se da ideia de que o

    homem deve buscar compreender-se em sua totalidade, totalidade esta sempre

    reprimida e ameaada pela ditadura da razo e da lgica, quando no da exigncia

    prtica e funcional da vida. Ambos os movimentos partem dessa concepo de que

    isto que chamamos realidade deve ser superado, deve ser destrudo a favor de uma

    realidade em que a experincia de um sujeito livre e liberto de exigncias diversas

    pode ter lugar. Ambos, finalmente, apostam que na linguagem e, mais

    especificamente, no uso artstico do fazer potico, da prpria literatura, que esta 41 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 97.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    113 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    experincia e esta abertura a um outro mundo e uma outra realidade uma sur-

    realidade devem ser buscados.

    Concluso ou notas sobre Derrida e a linguagem

    Uma de nossas ideias que na verdade se impe por si mesma seria a de reservar uma seo desses cadernos questo poltica. O que seria algo inteiramente diferente do dossi (mais ou menos bem) esboado h alguns anos pela revista Gamma, e que consideramos antes como uma ocasio, para ns mesmos (nossa gerao), de colocar, atravs do senhor, a questo do poltico nesse sculo, bem como da responsabilidade poltica da escrita. Seu exemplo h tempos nos persuadiu da necessidade de submeter essa questo em geral a um reexame radical. Hesitei h algumas semanas a propor Libration algumas pginas a respeito do lanamento em francs do livro do Jeffrey Mehlman (cuja argumentao, no que concerne ao senhor e ao seu itinerrio, me parece falsa, talvez pelo fato de que em momento algum ela considerou a diferena que Mehlman o primeiro a conhecer: a diferena entre aquilo que surge do discurso e aquilo que da ordem da escrita, no sentido pelo qual Derrida, por exemplo, pde distinguir esses termos, sem considerar, naturalmente, a cegueira completa em relao ao que pode ser uma experincia poltica, uma conscincia poltica, uma converso poltica, ou seja, uma converso tout court; isso para no dizer nada da ignorncia na qual ela manifestamente se encontra em relao ao que pde representar, do ponto de vista do romantismo, na Europa, o radicalismo nacionalista mas seu propsito ele prprio romntico) 42.

    Esta carta no poderia antecipar de forma mais clara a guinada guisa de

    concluso a que esta ltima parte do trabalho pretende. Se de fato o movimento

    surrealista foi inspirado no romantismo alemo de Schlegel, uma questo que pouco

    importa no quadro geral em que podemos especular os efeitos que essa aproximao,

    essa retomada e ou re-interpretao de Blanchot pode ter tido no contexto da filosofia

    francesa contempornea. Se no h uma influncia essencial ou determinante de

    Blanchot sobre Derrida, podemos ao menos buscar neste ltimo consequncias

    frutferas de uma ideia que, de uma forma ou de outra, se encontra enraizada nas

    intuies de Blanchot.

    42 LACOUE-LABARTHE, Philippe. Agonie termine, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot. ditions Galile: Paris, 2011, p. 16. Trata-se de um trecho da carta que Philippe Lacoue-Labarthe envia a Maurice Blanchot em 6 de julho de 1984, citada na apresentao do livro.

  • Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia

    114 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Proponho ento uma rpida abordagem de um pequeno texto de Derrida,

    intitulado Des tours de Babel, no qual ele no apenas tematiza diretamente a questo

    da linguagem, trabalhando j elementos diversos que figuram em sua formulao do

    conceito de escritura, como ainda estabelece um dilogo direto com outro grande

    filsofo Walter Benjamin que, a despeito da nacionalidade alem, adotou a Frana

    como ptria e em muitos aspectos se aproximou mais desta cultura do que de sua

    prpria e, ademais, foi outro pensador importante a relacionar os movimentos

    romntico e surrealista, buscando em ambos vrias das intuies fundamentais de sua

    prpria filosofia.

    Nesse pequeno texto intitulado Torres de Babel, parte integrante da obra

    Psych: Inventions de lautre, Derrida retorna ao texto bblico sobre a construo da

    torre de Babel para propor uma reflexo sobre a traduo, sobre seus limites e,

    finalmente, sobre lnguas e a linguagem. Para tanto, Derrida compara a traduo da

    Bblia feita por Louis Segond em 1910 com aquela feita por seu conterrneo, Andr

    Chouraqui que, assim como ele prprio, tem a experincia de abandonar o rabe como

    lngua materna tornando-a por isso estrangeira, e da adoo do francs como lngua

    estrangeira, tornando-a por isso sua lngua materna.43 A traduo de Chouraqui

    baseada na Bblia hebraica e se insere na tradio da massor, ou seja, dos

    comentrios e estudos que tm por objetivo manter a pureza do texto original e evitar

    todo tipo de acrscimo ou alterao que inevitavelmente trazem consigo as

    interpretaes e as tradues. diferena manifesta entre as duas tradues, Derrida

    opta pela segunda para buscar um sentido que as alteraes e interpretaes da

    primeira traduo o que ele, com certo humor, comenta: transmutao dos

    materiais, o tijolo que se torna pedra e o betume que serve de argamassa44 ocultam

    a manifestao lmpida do sentido primeiro das palavras e funcionam, nas palavras de

    43 Sobre a apropriao da lngua interditaria e interdita. Cf. DERRIDA, J. Le monolinguisme de lautre - ou la prothse dorigine. ditions Galile : Paris, 1996, p. 60 et. seq. 44 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196.

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    115 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    Derrida, como uma traduo da traduo.45 Assim traduz Chouraqui a passagem

    bblica sobre Babel, citada por Derrida:

    So estes os filhos de Sem / segundo suas famlias, segundo suas lnguas / em suas terras, por seus povos. / So estas as famlias dos filhos de No por seus gestos, em seus povos: / destes se dispersaram os povos sobre a terra, aps o dilvio. / E assim toda a terra: um nico lbio, nicas palavras. / E assim em sua partida do oriente: eles encontram um desfiladeiro / em terra de Sinear. / Ali eles se estabelecem. / E dizem, cada qual ao seu semelhante: / Vinde, faamos os tijolos, / flamemo-los nas chamas./ O tijolo se torna para eles em pedra, o betume, morteiro. / Eles dizem: / Vinde, edifiquemo-nos uma cidade e uma torre. / Sua cabea: aos cus. / Faamo-nos um nome, / para que no nos dispersemos sobre a face da terra. / YHWH desce para ver a cidade e a torre / que edificaram os filhos do homem. / YHWH diz: / Sim, um nico povo, um nico lbio para todos: / eis o que eles se puseram a fazer! / [...] Vinde! Desamos! Confundamos ali seus lbios, / o homem no mais reconhecer o lbio do seu prximo. YHWM os dispersa dali pela face da terra. / Eles cessam de edificar a cidade. / Da ele chama-la pelo nome: Babel, Confuso, / porque ali YHWH confunde o lbio de toda a terra, / e dali YHWH os dispersa pela face da terra46.

    No comentrio que se segue a essa passagem, Derrida chama a ateno para

    um elemento bastante intrigante, inexistente na traduo tradicional da Bblia:

    Pelo qu Deus os pune ao dar-lhes seu nome, ou melhor, uma vez que ele no o d a nada nem a ningum, ao chama-la pelo nome, o nome prprio de Confuso, que ser sua marca e seu selo? Ele os pune por ter querido construir altura dos cus? por ter querido atingir o mais alto, at o Altssimo? Talvez, sem dvida tambm por isso, mas incontestavelmente por ter querido fazer um nome, dar-se a si prprio o nome, construir para si mesmo o prprio nome, reunir-se ali (para que no nos dispersemos...) como na unidade de um lugar que ao mesmo tempo uma lngua e uma torre, tanto uma quanto outra. Ele os pune por ter querido, por si mesmos, assegurar uma genealogia nica e universal47.

    Isso que podemos identificar como um cimes de Deus parece ter sido

    causado no pela inteno dos homens de construir uma grande torre capaz de

    alcanar os cus e o Altssimo mas, antes, pela pretenso em dar a si mesmo um 45 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196. 46 BIBLE, Trad. Andr Chouraqui. Apud DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196. 47 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 197-8.

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    116 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X

    nome. Podemos pensar aqui que precisamente em funo dessa pretenso inaceitvel

    que Deus impe, como punio, seu prprio nome, seu nome de pai. No sei por

    que se diz no Gnese que Babel significa confuso; pois Ba significa pai nas lnguas

    orientais, e Bel significa Deus; Babel significa a cidade de Deus, a cidade santa. Os

    antigos davam esse nome a todas as suas capitais.48, escreve Voltaire em seu

    Dictionnaire Philosophique. A imposio violenta do seu nome de pai a ao pela

    qual Deus consegue interromper a construo da torre. E isso acontece porque a

    palavra divina criadora, como encontramos na abertura do Evangelho de Joo: No

    princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. / Ele estava no

    princpio com Deus. / Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem

    ele49. Quando a palavra divina se impe sobre a palavra humana, efetua-se o

    rompimento que as afasta violentamente e cria-se o domnio agora inacessvel da

    lngua divina, domnio este ao qual a palavra humana se dirige a fim de recuperar o

    sentido perdido na ruptura e na interdio. Atravs dessa imposio do seu nome de

    pai, segundo Derrida, Deus dispensa a filiao genealgica, rompe a linha. Ele impe a

    traduo ao mesmo tempo em que a torna impossvel50. As lnguas se dispersam

    porque elas no podem mais dizer aquilo que a lngua criadora de Deus dizia de modo

    imediato, e a traduo ndice dessa incapacidade:

    A traduo torna-se necessria e impossvel como efeito de uma luta pela apropriao do nome, necessrio e interdito no intervalo entre dois nomes absolutamente prprios. E assim o nome prprio de Deus se divide o bastante na lngua, j, e para significar igual e confusamente, confuso. E a guerra que ele declara inflamou-se j de incio no interior do seu nome: divido, bipartido, ambivalente, polissmico. Deus desconstri51.

    48 VOLTAIRE, Dictionnaire Philosophique, artculo Babel, apud DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 192. 49 Joo 1:1-3 50 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196. 51 expdier.

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    E aqui eu gostaria de abrir um parntese conclusivo que nos permite no

    apenas evidenciar o dilogo que Derrida claramente estabelece com Walter Benjamin,

    mas tambm salientar a proximidade das questes que conectam os autores que nos

    trouxeram at aqui. Derrida se refere diretamente ao famoso texto A tarefa do

    tradutor, que por sua vez baseado nas consideraes sobre a linguagem que

    Benjamin fizera num texto de sua juventude, que malgrado sua precocidade,

    permaneceu como uma das grandes referncias em toda sua obra, a saber, Sobre a

    linguagem em geral e a linguagem humana.

    Benjamin prope nesse texto uma leitura muito peculiar do Gnesis, mais

    interessada em pensar a dimenso significativa da linguagem, em contraste com a

    linguagem reduzida dimenso comunicativa do que propriamente em propor algo

    como uma origem histrica das lnguas. Segundo a interpretao que Benjamin, por

    seu turno, confere ao relato bblico, a lngua criadora de Deus cria o mundo e em

    seguida cria Ado, antes de dar nome s coisas do mundo e a Ado, porque cabe a este

    terminar a criao divina ao herdar de deus a lngua com a qual nomearia a si e ao

    mundo. Concedida ao homem, a palavra divina perde seu carter de criao e se

    conserva como o conhecimento puro. Ao nomear uma coisa qualquer, esta se abriria

    plenamente ao conhecimento pelo homem, e assim, conhecendo inteiramente tudo

    aquilo que agora trazia a marca divina do nome, ao homem foi concedida a tarefa de

    concluir a criao divina e ao mesmo tempo o privilgio de reconhecer-se imagem e

    semelhana de Deus. Nesse contexto, portanto, o pecado original se realizou quando

    o homem comeu o fruto proibido da rvore do conhecimento, sendo a punio a

    irrevogvel necessidade de julgar todas as coisas como verdadeiras ou falsas. A Queda

    significou, assim, a introduo do falso num mundo no qual ele no existia, no qual a

    lngua que se falava era a lngua divina que concedia o conhecimento pleno e imediato

    a todas as coisas. A possibilidade do falso e a necessidade da palavra judicativa indicam

    essa ruptura com a palavra divina para a qual j apontava Derrida. O mundo se torna

    estranho ao homem, e ele no compreende mais a linguagem das coisas do mundo. A

    Queda o incio da confuso Babel? do caos, da no compreenso e da

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    necessidade de interpretar e de traduzir o mundo numa linguagem sempre imperfeita,

    deficiente, insuficiente. O diagnstico aparece aqui mais uma vez: a traduo to

    necessria quanto impossvel.

    No conjunto da obra de Benjamin, este pode ser apontado como o

    fundamento do pensamento segundo o qual o mundo pode e deve ser concebido

    como um livro a ser lido, traduzido, interpretado, como uma Escritura sagrada, para

    evidenciar ainda mais a forte presena dos primeiros romnticos no alicerce do

    pensamento de Benjamin. Esta sem dvida uma pista interessante para se

    compreender a razo pela qual ele confere um espao especial ao nome prprio: em

    cada nome se esconde um vestgio dessa conexo imediata com aquilo que ele

    nomeia, como se atravs do nome algo da prpria essncia do nomeado pudesse se

    revelar. Lembremo-nos de Derrida: A traduo torna-se necessria e impossvel como

    efeito de uma luta pela apropriao do nome, necessrio e interdito no intervalo entre

    dois nomes absolutamente prprios, e que adiante afirma: Ora, um nome prprio

    enquanto tal permanece sempre intraduzvel, fato a partir do qual podemos

    considerar que ele no pertence rigorosamente, da mesma forma que as outras

    palavras, lngua e ao sistema da lngua, seja ela traduzida ou tradutora52.

    Eis aqui o motivo pelo qual Derrida defende que a traduo permanece uma

    tarefa impossvel, ainda que necessria. A necessidade da traduo propriamente

    sua impossibilidade. Quando Deus impe o nome Babel torre, ele rompe a mesma

    transparncia racional que conectava e referia a coisa ao seu nome, como a torre seria

    referida pelo nome com o qual a linhagem de No pretendia chama-la, e assim Deus os

    condena traduo. A traduo torna-se, portanto, a lei, o dever e a dvida, dvida que

    no entanto no poder jamais ser paga. E por que essa dvida impagvel, essa tarefa

    impossvel, afirma-se acima de tudo como necessria? Derrida ento recorre a

    Benjamin e responde:

    52 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 197.

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    O tradutor endividado, ele se revela como tradutor na situao de dvida; e sua tarefa a de devolver, de devolver aquilo que deve ter sido dado. Dentre as palavras que respondem ao ttulo de Benjamin (Aufgabe, o dever, a misso, a tarefa, o problema, aquilo que atribudo, dado a fazer, dado a ser devolvido), desde o incio Wiedergabe, Sinnwiedergabe, restituio, restituio do sentido. Como possvel ouvir tal restituio, ver tal pagamento? E que sentido? Quanto aufgeben, ela tambm dar, enviar (emisso, misso) e abandonar53.

    Mas a que exatamente o tradutor deve renunciar, o que ele deve abandonar?

    Derrida nos d aqui uma dica atravs das palavras de Mallarm: As lnguas,

    imperfeitas porque plurais, falta a suprema: sendo pensar escrever sem acessrios

    nem murmrio mas tcita ainda a palavra imortal, a diversidade, na terra, dos idiomas,

    impede que se profiram as palavras que, seno haveriam de se encontrar por um ato

    nico de cunhagem, ela mesma materialmente, a verdade54. Ento, se isso que o

    tradutor deve devolver ao fazer uma traduo a prpria verdade isso que deve ter

    sido anteriormente dado ela agora aparece como inalcanvel, impossvel, uma vez

    que estamos condenados ao domnio das lnguas imperfeitas, finitas, peas

    insuficientes da lngua pura da verdade. Mas podemos insistir e perguntar: mas por

    que, ainda, ela se impe como necessria? Ou seja, se traduo a tarefa de devolver

    ou de restituir o sentido pleno do texto original condenada desde o incio ao

    fracasso, por que ela deve ser, todavia, realizada? E aqui que Benjamin mais uma vez

    nos ajuda a encontrar o fio condutor do nosso problema. Ele escreve, em seu texto A

    tarefa do tradutor:

    Da mesma forma que as manifestaes vitais esto intimamente ligadas ao ser vivo, sem significarem nada para ele, a traduo provm do original. Na verdade, ela no deriva tanto de sua vida quanto de sua sobrevivncia (berleben). Pois a traduo posterior ao original e assinala, no caso de obras importantes, que jamais encontram poca de sua criao seu tradutor de eleio, o estgio da continuao de sua vida (Fortleben). A ideia da vida e da continuao da vida de obras de arte deve ser entendida

    53 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 201. 54 MALLARM, Crise de Vers, apud DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 202.

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    em sentido inteiramente objetivo, no metafrico [in vllig unmetaphorischer Sachlichkeit]55.

    O original aqui de grande importncia porque pertence a ele a exigncia da

    sobrevivncia da obra. Nisso assente Derrida: Essa sobrevivncia garante mais vida,

    mais que uma sobrevida. A obra no vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor,

    em situao superior quela do seu autor56. E como que tal exigncia pela

    sobrevivncia da obra pode ser realizada? Aqui que podemos situar o papel que cabe

    ao tradutor. Todas as obras, ao exigir sua sobrevivncia, a exigem exatamente sob a

    forma da traduo. Podemos compreender finalmente a frmula de Derrida segundo a

    qual a traduo uma forma57. Ele afirma ainda:

    Se a estrutura da obra a sobrevivncia, a dvida no se compromete com um suposto sujeito-autor do texto original o morto ou o mortal, o morto do texto mas com algo outro que representa a lei formal da imanncia do texto original. Em seguida, a dvida no se compromete a restituir uma cpia ou uma boa imagem, uma representao fiel do original: este aqui, o sobrevivente, est ele prprio em processo de transformao. O original se d modificando-se, este no , portanto, um objeto dado, ele vive e sobrevive em mutao. Pois nessa sobrevida, que no merece esse nome, se ela no for mutao e renovao do vivente, ento o original que se modifica. Mesmo para as palavras solidificadas h ainda uma ps-maturao58.

    Essa estrutura original que exige a traduo a mesma que estabelece a

    relao entre vida post-mortem e a sobrevida da obra. Essa estrutura no se altera se

    a obra no encontra seu tradutor, e por essa razo que ela um a priori da obra

    original. A dimenso sobrevivente da obra , dessa forma, a priori, embora ela s

    possa ser realizada por um outro necessariamente fora dela o tradutor. Por essa

    55 BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor de Walter Benjamin quatro tradues para o portugus. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2008 Traduo de Susana Kampff Lages, p.66. 56 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 204. 57 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 206. 58 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 207.

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    abertura essencial ao outro e, por consequncia, produo de diffrance no interior

    do mesmo que esse pequeno comentrio a Benjamin e sua teoria da traduo pode

    ser de grande relevncia na abordagem do conceito de escritura em Derrida. Em

    Gramatoologia Derrida escreve:

    ... o fonocentrismo se confunde com a determinao historial do sentido do ser em geral como presena, com todas as subdeterminaes que dependem desta forma geral e que nela organizam seu sistema e seu encadeamento historial (presena da coisa ao olhar como eidos, presena como substncia/ essncia/ existncia (ousia), presena temporal como ponta (stigm) do agora ou do instante (nun), presena a si do cogito, conscincia, subjetividade, ...59

    Essa proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do ser, da voz

    e da idealidade do sentido significa que, imprudentemente, deixamos a tradio

    logocntrica se perpetuar. Para afirmar, ainda uma vez como prova da conscincia de

    ser para si mesmo (quando, por exemplo, ele ouve a si mesmo e sua prpria palavra)

    e, portanto, tambm da presena, essa palavra se torna a expresso da significao do

    ser. Nesse sentido, a escrita geralmente compreendida apenas como uma virada

    (dtournement) ou como a lacuna da presena sem um intermedirio.

    por causa desse privilgio que toda a tradio filosfica sempre conferiu

    voz e ao discurso oral como meio de, ao fim, conceder todo o privilgio prpria

    presena, que as estruturas lingusticas so sistematicamente concebidas e designadas

    cobrir todas as diferenas que o uso espacial e temporal da linguagem possa vir a

    produzir. O jogo da diffrance (e no por acaso que Derrida cria uma marca que

    assinala a palavra escrita [a] mas que no pode ser percebido na fala oral) apagado

    ou oculto pelos imperativos logocntricos e fonocntricos da economia da linguagem,

    o que representa enfim a economia das palavras, dos conceitos e, portanto, do prprio

    pensamento. talvez justamente nesse sentido que Derrida insiste sobre o conceito

    de escritura, no apenas para se opor ao privilgio concedido pela tradio voz e 59 DERRIDA, J. De la Grammatologie. Les ditions de Minuit : Paris, 1967, p.23 Edio brasileira: DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Schneiderman e Renato Janine Ribeiro. Ed. Perspectiva: So Paulo, 1973, p. 15.

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    presena do locutor no momento do discurso mas sobretudo pelo fato de que o ato de

    escrita pode ser concebido atravs do verbo suplantar, suplementar60

    Uma escritura que completa a outra, que acrescenta e paradoxalmente a

    substitui, e isso cria um processo sem fim, que renovado pelos signos suplementares,

    que diferem tanto dos demais signos quanto de si mesmos, e isso sucessivamente. A

    escritura suplantada, suplementada acrescenta no instante no qual ela expe uma

    semelhana insuficiente (pois que no h presena que seja plena e inteira), enquanto

    ela substitui o que tomado aqui por insubstituvel, agora, o Hic et Nunc do discurso:

    O que que permite a presena seno a prpria ausncia?, e a esta estrutura que

    Derrida d o nome de Escritura.

    Referncias

    BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor de Walter Benjamin quatro tradues para o portugus. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2008 Traduo de Susana Kampff Lages, pp. 66-81. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhuser (Ed.) Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 1972-1985. BENJAMIN, W. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo. Trad. Mrcio Seligmann-Silva. Ed. Iluminuras: So Paulo, 2002. BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot : de la chronique la thorisation, in Revista ALEA : Rio de Janeiro. Vol.10, n.1, pp.13-28, jan./jul. 2008. BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949. BLANCHOT, M. De Jean-Paul Giraudoux. Trad. Marcelo Jacques de Moraes, in Revista ALEA: Rio de Janeiro. Vol. 12, n. 1, pp.169-172, jan./jul. 2010. BRETON, Andr, Manifeste du Surralisme (1924). Ed. Gallimard: Paris, 1966, pp.11-64. Disponvel em http://inventin.lautre.net/livres/Manifeste-du-surrealisme-1924.pdf. Acessado em 12.09.2013. BRETON, Andr. Second manifeste du Surralisme (1929). Edio virtual disponvel em: http://melusine.univ-paris3.fr/Revolution_surrealiste/Revol_surr_12.htm. Acessada em 12.09.2013. DERRIDA, De la Grammatologie. Les ditions de Minuit : Paris, 1967. DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Schneiderman e Renato Janine Ribeiro. Ed. Perspectiva: So Paulo, 1973. DERRIDA, Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225.

    60 DERRIDA, J. De la Grammatologie. Les ditions de Minuit : Paris, 1967, p.280

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    Doutoranda em Filosofia (Bergische Universitt Wuppertal)

    E-mail: [email protected]