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© José Viriato Capela | Sociedade Martins Sarmento | Casa de Sarmento 1 Alberto Sampaio e a alternativa paroquial às insuficiências da administração municipal José Viriato Capela Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 419-443 1. Alberto Sampaio, (1841-1908) conjuntamente com os dois grandes historiadores portugueses que o antecedem, A. Herculano (1810-1877) e H. da Gama Barros (1833-1925), que formam entre si uma cadeia de continuidades e referências, constituem sem dúvida os expoentes da historiografia portuguesa, e também a diferentes níveis e cada um no seu tempo, activos e apaixonados intervenientes dos problemas da sua geração. 1 Por seu intermédio abrem-se coordenadas e perspectivas novas à investigação histórica ou se aprofundam períodos e domínios até então mal conhecidos, como também se procuram soluções para os problemas com que se debatem os seus contemporâneos. No seu conjunto contribuiriam para fazer avançar os estudos medievais a um tal ponto que os fizeram destacar no computo dos demais períodos históricos, apesar de terem dado também importantes contributos para o conhecimento da história antiga, das origens da expansão, da história moderna e da história contemporânea portuguesa. Herculano é, como se sabe, o grande historiador do período inicial de Portugal como estado independente (1128-1279), embora nos pretendesse deixar uma história geral de Portugal, para a qual legou 1 Mário Cardozo — Alberto Sampaio. Breve notícia da sua vida e obra. C. M. de Guimarães, 1959.

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Alberto Sampaio e a alternativa paroquial às insuficiências da administração municipal José Viriato Capela Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 419-443

1. Alberto Sampaio, (1841-1908) conjuntamente com os dois grandes historiadores portugueses que o antecedem, A. Herculano (1810-1877) e H. da Gama Barros (1833-1925), que formam entre si uma cadeia de continuidades e referências, constituem sem dúvida os expoentes da historiografia portuguesa, e também a diferentes níveis e cada um no seu tempo, activos e apaixonados intervenientes dos problemas da sua geração.1 Por seu intermédio abrem-se coordenadas e perspectivas novas à investigação histórica ou se aprofundam períodos e domínios até então mal conhecidos, como também se procuram soluções para os problemas com que se debatem os seus contemporâneos. No seu conjunto contribuiriam para fazer avançar os estudos medievais a um tal ponto que os fizeram destacar no computo dos demais períodos históricos, apesar de terem dado também importantes contributos para o conhecimento da história antiga, das origens da expansão, da história moderna e da história contemporânea portuguesa. Herculano é, como se sabe, o grande historiador do período inicial de Portugal como estado independente (1128-1279), embora nos pretendesse deixar uma história geral de Portugal, para a qual legou 1 Mário Cardozo — Alberto Sampaio. Breve notícia da sua vida e obra. C. M. de Guimarães, 1959.

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importantes contributos. Moveu-se durante muito tempo adentro da grande política portuguesa, polemizou com alguns dos mais arreigados sectores do conservantismo nacional, pôs em causa alguns dos seus mais respeitados mitos históricos e historiográficos. Gama Barros, cuja acção político-social está longe de alcançar a expressão de Herculano, esforçou-se por continuar e completar a obra do grande historiador, sobretudo no domínio do estudo das instituições administrativas, de que nos deixou, em regra, abordagens "jurídico-descritivas" e um vastíssimo repositório de informações sobre os mais variados aspectos da sociedade e vida no Portugal medievo, mas não se elevou nos voos interpretativos e nas sínteses do seu antecessor.2 Se a obra de Gama Barros continua e em muitos pontos completa a de Herculano, a do 3º e último medievalista que escreve ainda adentro do período monárquico, A. Sampaio, vem alargar-lhe substancialmente os quadros de análise, as metodo-logias, as temáticas e também os horizontes interpretativos. A. Sampaio é, como se sabe, essencialmente, o grande investigador da história rural e das estruturas económico-sociais da Alta Idade Média, desde as suas origens romanas e castrejas até à fundação de Portugal. Nestas temáticas, a sua obra é pioneira e "excepcionalmente precoce", pois, como refere José Mattoso, já só bem dentro do séc. XX é que a historiografia francesa abordará aqueles temas sob um prisma próximo ou semelhante e a historiografia portuguesa tarde e mal os abordará. Não é aqui o local para abordar a precocidade e natureza da originalidade dos estudos e da obra de A. Sampaio, tarefa que em primeiro lugar cabe e tem sido feita pelos medievalistas portugueses.3 Pretendemos agora, e a traços largos, salientar alguns dos

2 José Mattoso — "Perspectivas actuais da investigação e da síntese na historiografia medieval portuguesa (1128-1383)" in Revista de História Económica e Social, Sá da Costa Editora, 9, 1982, pp. 145-162 (Recensões Críticas). 3 Para além dos autores já citados, Maria José Pimenta Ferro — Prefácio à reedição de Alberto Sampaio — Estudos Históricos e Económicos. "As Vilas do Norte de Portugal", I vol., Editorial Vega, 1979, pp. III-XXXII.

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condicionamentos que seguramente levaram Sampaio a procurar outros campos e novos caminhos. Em primeiro lugar as condicionantes do momento em que escreve. São tempos de profundas transformações na sociedade portuguesa esses do último quartel do século XIX, em que breve as profundas alterações económicas e sociais, a crise política persistente e por fim o Ultimatum inglês de 1890, desencadeiam um largo movimento de reflexão e de opinião pela regeneração e procura de uma Vida Nova para os problemas nacionais, que logo se exprimirão na implantação da República em 1910.4 Depois a perspectiva e os quadros geográficos da sua reflexão. A. Sampaio mede-lhe e ausculta-lhe os efeitos da Província, de uma Província ainda profundamente rural5, que preencherá de uma ponta a outra os seus estudos históricos e a sua reflexão política e social. Um estudo e uma reflexão produzidos a partir dos quadros e das instituições tradicionais, de uma ruralidade e de um localismo e regionalismo em curso de absorção e de total diluição num centralismo asfixiante e devorador, que pretende afirmar e defender como quadro por excelência da regeneração nacional. A obra destes três grandes historiadores viria a ter uma influência diferente, mas em todos os casos sempre grande, nas investigações e historiografia futura. Aí também Sampaio se afastará dos outros dois medievalistas. A obra de Herculano e Gama Barros, mais por efeito dos métodos e recursos utilizados na investigação e escrita histórica, do que dos temas tratados, virá desde logo a restringir a sua influência aos domínios da investigação feita nas Universidades e Academias (mais a de G. Barros que a de Herculano), onde a história política e a institucional se confinará ainda mais ao quadro meramente descritivo.6

4 M. Villaverde Cabral — O desenvolvimento do capitalismo em Portugal no séc. XIX. A Regra do Jogo / História, Lisboa, 1977; M. Halpern Pereira — Livre câmbio e desenvolvimento económico, Lisboa, 1971. 5 David Justino — A formação do espaço económico nacional. Portugal 1810-1913, Vega, Lisboa. 6 José Mattoso "Perspectivas...", autor e obra citada.

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Os caminhos da influência de A. Sampaio foram outros bem diferentes. A leitura da sua obra podia facilmente estimular uma população universitária ou não vinda de fora dos quadros de erudição e heurística histórica tradicional. Alberto Sampaio, ele próprio, pudera avançar seguramente nestes estudos, utilizando os documentos já impressos que a erudição académica setecentista, o labor de Herculano e seus continua-dores, designadamente o Abade de Tagilde com os seus Vimaranis Monumenta Historica7 foram pondo à sua disposição, sem precisar do domínio da técnica paleográfica e se esgotar na leitura de velhos manuscritos. Depois é a valorização do método comparativo e das técnicas de observação, de análise e crítica provenientes das novas disciplinas científicas em elaboração, a geografia, a sociologia (positiva), a etnologia, e as outras ciências auxiliares da História, tais como a arqueologia, a epigrafia, a paleografia e diplomática, a própria toponímia, estudos e disciplinas que tiveram na comunidade cultural e científica vimaranense da época larga expressão e que certamente ajudam a compreender melhor a orientação dos seus estudos. Ora é interessante constatar como a obra de Sampaio vai ser mais largamente utilizada pelas Ciências Sociais não fosse ele herdeiro de O. Martins e da sua concepção da unidade das Ciências Sociais e para cujo avanço Sampaio dará uma contribuição decisiva e como a produção e erudição histórica feita na Universidade permanecerá largo tempo alheada da sua obra. A. Sampaio vai ser largamente utilizado e citado desde logo pelos economistas, seus contemporâneos ou próximos que como ele vivem e reflectem os problemas do seu tempo e nas coordenadas históricas buscam também as raízes e explicações das dificuldades presentes, e isto ainda antes da sua obra ser reunida, em 1923, por iniciativa de Luís de Magalhães, na Colectânea de Estudos Históricos e Económicos, que lhe permitiriam outra expansão e mais larga divulgação e consulta. Em Avelino da Silva Guimarães, um conterrâneo vimaranense que escreveu sobre as causas históricas, jurídicas e económicas da crise 7 Vítor de Sá — Alberto Sampaio ontem e hoje, Guimarães, 1981.

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agrícola portuguesa, especialmente no Minho obra de 18908 onde se buscam os meios para a atenuar, o recurso à contribuição de Sampaio é de natureza técnica sobre a importância da indústria do gado e da água na cultura do Minho9, porque a informação histórica (h. da propriedade, legislação, política e economia) vai buscá-la a A. Herculano, Coelho da Rocha e O. Martins. Para outros economistas dos mais reputados e intervenientes do seu tempo que se debruçam sobre a economia minhota ou nacional, tais como o Visconde de Villarinho de S. Romão,10 Bento Carqueja,11 Basílio Teles,12 Anselmo de Andrade,13 Ezequiel de Campos,14 a fundamentação da perspectiva ou a explicação histórica recorre regularmente aos dados de Herculano, G. Barros, O. Martins, — este último sobretudo na fundamentação do seu projecto de Fomento Rural. Mas aparece também A. Sampaio. Basílio Teles que exprimirá perspectivas metodológicas próximas às de Sampaio nos seus Estudos Históricos e Económicos de 1901 (a integrar a "Bibliotheca dos Estudos Sociaes Contemporaneos"), mas sobretudo numa outra obra Carestia da vida nos campos, da mesma colecção, de 1903, transcreve largamente nas páginas 278 e 284-285 a exposição de A. Sampaio sobre a formação histórica da propriedade, apelidando de magistral o estudo que Sampaio acabava de publicar na Portugália. E com base em Sampaio contesta as teses dos que, como

8 Avelino da Silva Guimarães A crise agrícola portugueza especialmente do Minho. Causas geraes históricas, jurídicas e económicas. Meios de attenuação. Porto, Typ. de A. J. da Silva Teixeira, 1890. 9 Cita o Dr. Alberto Sampaio, na Revista de Guimarães, vol. IV, pág. 34 e na Propriedade e Cultura do Minho, pág. 53. 10 O Minho e suas culturas. Lisboa, Imprensa Nacional, 1902. 11 O Futuro de Portugal, Lisboa, 1900. 12 Em particular nas 4 obras que escreveu para a Bibliotheca de Estudos Sociaes Contemporaneos, Porto, Chardron, Lello & Irmão: I O Problema agricola, 1899; II Estudos históricos e económicos, 1901; III Introdução ao problema do Trabalho Nacional, 1901; IV Carestia de vida nos campos, 1903. 13 Portugal Económico. Lisboa, Manuel Gomes, Editor, 1902. 14 A Conservação da Riqueza Nacional. — A Grei. — Os Minhais. — A Terra. — As Matas. — Os Rios, Porto, 1913.

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O. Martins, acusam a grande divisão da propriedade como causa de todos os males, retorquindo com argumentos de Sampaio que ela não está tão dividida como isso, que a divisão é a resposta adequada às condições físicas e a dispersão impôs-se para defender a variedade das culturas. Anselmo de Andrade, no Portugal Económico, de 1902, serve-se de Sampaio para explicar a fragmentação da propriedade, mas sob a influência de O. Martins diz que ela é demasiado pequena, não sustenta a população e daí a emigração. Ao historiar a formação da pequena propriedade no Minho segue também a descrição de Sampaio da subdivisão das Vilas no regime de propriedade individual e classifica de notáveis os artigos que Sampaio publica na Revista de Guimarães, no nº de Abril de 1895.15 Ezequiel de Campos, um tanto mais tarde, em 1913, na sua Conservação da Riqueza Nacional, utiliza e cita largamente o A. das Vilas na caracterização da evolução e formação histórica do povoamento, da propriedade, da sociedade rural.16 De finais do século data a publicação da Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes e, logo, dos inícios de 1900, a revista Portugália onde pontificam nomes como Rocha Peixoto, Ricardo Severo (com responsabilidades directivas) e onde A. Sampaio iniciará a publicação dos seus estudos. São revistas decisivas, onde se afirmam as novas disciplinas das C. Sociais e a interdisciplinaridade vai ser posta ao serviço de um melhor conhecimento do presente e passado do povo português, em busca de novos rumos. Ora os escritos de Sampaio vão ter logo um profundo eco, em especial nos autores que tocam temas afins. Rocha Peixoto cita logo A propriedade e a cultura do Minho (Ed. Porto, 1888) no seu estudo sobre os Palheiros do Litoral (Portugália, I) e cita as Villas (Ed. Portugália, I) no Traje Serrano (Portugália, II); Fonseca Cardoso no seu estudo sobre o Poveiro (Portugália, II), cita largamente o Norte Marítimo (Rev. de Portugal, vol. II, Porto 1980) e a Bajlya da Poboa Noua de Varazim (Ed. de Rocha Peixoto, Porto, 1907). Mas é Ricardo Severo que mais se empolgará com os estudos de A. Sampaio e por seu intermédio a obra do vimaranense pode ser mais 15 Portugal económico. ... o.c., p. 363, nota 1. 16 3ª parte, cap. II, p. 229 e ss.

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conhecida, ainda que de modo indirecto. É que o seu livro Origens da Nacionalidade Portuguesa, de 1911, onde mais largamente se usa e transcrevem partes inteiras da obra de Sampaio, designadamente no capítulo sobre "As origens préhistóricas da nacionalidade", vai ser declarada obra de utilidade pública, e mandada reeditar em 1923 pelo Governo da República por despacho de 8 Março daquele ano, para ser distribuída pelas escolas. De Sampaio afirmará R. Severo, que produziu uma obra de "investigador consciencioso e douto" e que "avançou alguns séculos por esse passado misterioso que Herculano respeitara; as suas obras irmanam-se pela comum orientação filosófica, pela superior honestidade de investigação, pela pureza da linguagem, pela elevação e interesse de patriotismo". Ora dificilmente se vislumbrará nesta etapa a influência de Sampaio entre os historiadores. De 1929 é a História de Portugal, dirigida por Damião Peres e E. Cerdeira (Edição Monumental, Portucalense Editora, Barcelos), obra que integrará importantes contribuições e boas sínteses, e constitui um marco na produção historiográfica portuguesa do pós-guerra. Apesar de os Estudos de Sampaio terem sido publicados há 5 anos, a sua obra pouco eco aí terá. Vergílio Correia que vem da Antropologia Física e é o responsável pelo capítulo Dominio Romano,17 só trata da organização da conquista. Nada sobre a organização da vida rural das terras conquistadas, embora sobre tal largamente discursasse Sampaio. Newton de Macedo, responsável pelo capítulo Domínio Germânico, não cita Sampaio, mas sustenta a tese (próxima) por ele defendida da superioridade da cultura romana e da continuidade cultural e de povoamento, citando largamente Manuel Torres no seu estudo sobre o Estado Visigótico publicado no Anuário de História do Direito Espanhol. E afirma textualmente o seguinte, que é o mesmo que Sampaio tão largamente se empenhara em provar e que constitui a sua tese dominante: "Lembremo-nos de que, se no domínio da convivência social o ambiente romano domina o visigodo, pela superioridade da sua cultura, da sua técnica agrícola e industrial, do 17 História de Portugal, ed. de Barcelos, p. 215 e ss.

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seu regime fiscal e administrativo, na ordem política(...) é o visigodo que acaba por dominar...". Daí a alteração do nome das propriedades como tinha explicado Sampaio.18 É contudo Damião Peres no capítulo A Reconquista Cristã19 que mais clara e largamente utiliza Sampaio. A propósito da reconquista (até ao Douro) e da problemática do ermamento, diz que depois dos estudos de A. Sampaio se devem afastar as teses do despovoamento e ermamento, numa total adesão à explicação deste autor, para o que vai aduzir novos documentos e argumentos. Logo no ano seguinte, 1930, é a História do Regime Republicano20 onde colabora Jaime Cortesão com os seus Factores democráticos na formação de Portugal, estudo a todos os títulos renovador. Aqui Sampaio é largamente utilizado: a propósito da fixação das populações no fundo do estuário dos rios e lugares acastelados para a protecção contra os ataques dos marítimos normandos (sécs. IX-X) e as Póvoas marítimas são o apoio fundamental para o seu capítulo sobre O litoral português e a sua ocupação durante a Idade Média(...) onde se fala largamente do desenvolvimento dos povoados marítimos e portos mercantis ao longo da Idade Média, especialmente nas costas do Entre Douro e Minho e se perspectivam as origens mercantis e medievais da nossa expansão ultramarina de quatrocentos. E na colectânea Portugal A Terra e o Homem21 Cortesão voltará a referenciar Sampaio, ao lado de R. Severo, Rocha Peixoto, Jorge Dias e O. Ribeiro, a propósito da sua contribuição para o estudo do comunitarismo serrano. Mais próximo, dois dos discípulos e continuadores de Cortesão, António Sérgio e V. Magalhães Godinho, fixarão também a importância da obra de Sampaio, como lhe sofrerão também a influencia. Já foi bem salientada a proximidade de pontos de vista entre Sampaio e A. Sérgio sobre o que este último designou das "duas políticas nacionais"

18 Idem, p. 343. 19 Idem,7ª parte, cap. I, p. 435 e ss. 20 Publicada por Luís de Montalvor, Lisboa, 1930 (1º vol). 21 Vitorino Nemério Portugal: a terra e o homem. Lisboa, s.d.

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(do Transporte e da Fixação) que envolve uma nova apreciação crítica do papel dos Descobrimentos e da Expansão na História de Portugal. Sem dúvida como resultado de leituras comuns e do forte influxo espiritual e intelectual do pensamento de Antero de Quental (nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, de 1871) e de O. Martins (na História da Civilização Ibérica) sobre ambos os autores, com quem Sampaio privou intimamente e que em conjunto com Martins Sarmento constituem o triângulo próximo das suas referências culturais22. V. Magalhães Godinho inscreve a obra de Sampaio no contexto do florescimento dos estudos da história económica e social europeia do último quartel do século, para que contribuiu com "excelente análise da história agrária e marítima", fundado no conhecimento da experiência e técnica do agricultor mas também, nas pistas e peugadas de O. Martins, no Projecto de Lei de Fomento Rural ou no estudo do desenvolvimento marítimo dos séculos que precederam à independência23. Depois da História de Portugal (ed. de Barcelos) é sem dúvida o Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, a obra onde colaboram os mais reputados historiadores. A obra de Sampaio é unanimamente citada pelos medievalistas que aí colaboram, T. Sousa Soares, A. H. Oliveira Martins, A. Castro, mais também pelo etnólogo Jorge Dias e o geógrafo O. Ribeiro. Uma especial referência deve ser feita ao lugar de Sampaio na obra deste grande geógrafo humano que foi O. Ribeiro. As teses de Sampaio ganham agora, por seu intermédio, mais corpo e desenvolvimento, como a questão das continuidades históricas entre um passado longínquo castrejo, romano, godo e português; a da importância da matriz romana na nossa constituição histórica; a da permanência das

22 Vítor de Sá Alberto Sampaio...o.c., Guimarães, 1981. 23 V. Magalhães Godinho Introducção à História Económica, Livros Horizonte, Lisboa, p. 25; Idem "A historiografia portuguesa do séc. XX Orientações, problemas, perspectivas", in Ensaios III Sobre Teoria da História e Historiografia, Lisboa, 1971, p. 231 e ss.

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gentes e povoamento na Reconquista ou de outros aspectos mais pontuais como a questão da expansão do milho ou da contracção da economia ganadeira, dos vestígios e sobrevivência do comunitarismo antigo nas agras minhotas24. Em síntese: não é grande a influência de Sampaio nos historiadores, pelo menos até à década de 60. Ela é maior nos historiadores mais atentos às questões económicas (rurais) e sociais ou nos historiadores do pós-guerra que estudaram as origens da expansão portuguesa nas suas coordenadas sociais, comerciais e geográficas. A sua influência foi muito precoce nos economistas, alguns ainda seus contemporâneos, que maior atenção prestaram à história, a cujo círculo intelectual se deve também associar Sampaio. Só que a originalidade, a extensão que nele tomou a análise e o estudo da história, fizeram esquecer o economista e relevar o historiador. 2. A obra histórica de Sampaio é de todo incompreensível sem a referirmos às coordenadas dos problemas do seu tempo, em particular aos que se colocam à economia agrícola, à sociedade rural e à vida da sua Província no seu conjunto. Foi T. de Sousa Soares que referiu já em 1956 que A. Sampaio viveu a história, citando o historiador francês da história rural e do senhorio, Marc Bloch, "não como um antiquário que se satisfaz do que envelheceu, mas como um verdadeiro historiador, cuja preocupação fundamental é a apreensão do que é vivo, do que como tal continua" 25. Poucos como ele se referiram e trataram alguns dos aspectos técnicos da agricultura, com a autoridade do agricultor e do estudioso: a caracterização da estrutura geológica e possibilidades agronómicas dos solos minhotos; a questão das águas e seu papel na valorização

24 Sobretudo o artigo “Agricultura” naquele Dicionário e Ensaios de Geografia Humana e Regional, I, Sá da Costa Editora, Lisboa, 1970 e A Evolução Agrária no Portugal Mediterrâneo segundo A. Silbert, Lisboa, 1970. 25 T. de Sousa Soares Alberto Sampaio, o homem e a obra: Guimarães, 1956 (Separata do vol. LXVI da “Revista de Guimarães”).

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das terras, a questão dos adubos (naturais e artificiais), da selecção dos gados e sementes, a questão da vinha, etc. Mas é sobretudo nas questões sociais que a reflexão histórica se torna num elemento essencial da análise, e, diga-se desde logo, por vezes torna-se difícil distinguir o que no presente pertence ao passado, ou o que no passado projecta do presente, tão atreito se revela Sampaio às continuidades e persistências no desenvolvimento do processo histórico português. Impossível não evocarmos, de imediato, quando se refere ao processo histórico da constituição da propriedade, os grandes horizontes e objectivos da revolução liberal burguesa do séc. XIX, que fez da propriedade burguesa um elemento fundador do novo regime social e que leva Sampaio a procurar a sua definição e origens nas sociedades antigas (bárbara, romana ou alto medieval) em que se assenta as bases da sociedade contemporânea, que é aliás um dos pontos-chave da sua tese; dificilmente também a sua análise da passagem do colectivismo bárbaro das cividades para o regime individualista (enfitêutico) romano, não deixará de nos evocar os grandes desenvolvimentos e os grandes debates ideológicos que a afirmação da propriedade plena levantará ao longo do século XIX, perante as resistências e os restos do Antigo regime político e económico bem como os debates à volta da enfiteuse para uns resto das feudalidades, para outros instrumento de progresso social e económico nos campos que Sampaio fixa como invenção e aplicação romana; ou a questão do imposto e do registo como elemento definidor da titularidade de propriedade: a quem dar mais ênfase, à matriz do direito agrário romano ou às práticas do registo largamente implantadas no séc. XIX e com elas a legitimação do extraordinário agravamento do imposto público que o estado liberal lançou sobre as propriedades? E quando trata das relações do imposto com a sociedade: não é a modelação social imposta pela enfiteuse (e não só) que Sampaio conhece do seu tempo, que ele transpõe para a época romana? Os cabeceis dão lugar na organização romana aos senhores (domini), os pessoeiros aos colonos, a responsabilidade do pagamento do imposto

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entregue ao cabeça do casal que o arrecada das partes e entrega ao senhorio tal como na organização romana o dominus o entrega ao fisco. Desta organização tributária, ou melhor, desta "posição" contributiva decorrem as bases da estruturação social e a divisão da propriedade e culturas. E como não vislumbrar nos capítulos sobre a grande propriedade romana e construção das bem dimensionadas sub-unidades culturais, pela divisão das Villas, ecos do grande debate de oitocentos sobre o papel histórico de enfiteuse na divisão da grande propriedade em pequenas e médias explorações camponesas, tal como o esforço para implantar políticas de emparcelamento ou impedir a divisibilidade do casal (O. Martins) e as críticas aos males do mini ou microfundismo? E como não evocar, por fim, "no enxame de funcionários e especuladores" que Roma, depois da conquista lançou sobre as populações subjugadas que "exploram" e "exauram os recursos do país", a realidade da administração pública portuguesa no fim do séc. XIX? Não é possível no espaço breve desta comunicação aprofundar em pormenor o corsi e o ricorsi entre a realidade do seu tempo e a história nos variadíssimos aspectos tratados por A. Sampaio. Fixar-nos-emos agora, tão simplesmente, na questão da administração, sua relação com a sociedade, nas reflexões e modelos históricos da sua superação. É num pequeno mas muito sugestivo trabalho intitulado "A terra, o clima, os homens e a administração pública" que Sampaio se debruça detalhadamente sobre o papel nefasto e bloqueador da administração sobre a sociedade e a economia portuguesa. Critica naturalmente a poderosa e volumosa administração lançada pelo Estado liberal que tudo submete e submerge. A agricultura minhota, diz ele, tem as condições económicas e sociais para progredir: a constituição física dos solos, o regime das chuvas e a abundância das águas são condições próprias à produção, que se faz no regime de pequena cultura. As condições jurídicas e sociais são-lhe também favoráveis. O regime enfitêutico favoreceu a formação de uma

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desenvolvida classe de pequenos proprietários rurais e o desenvolvimento do comércio e da indústria a formação de uma burguesia urbana, que investe na cultura e fomento agrícola, que suporta a formação e desenvolvimento de uma larga classe de caseiros, colonos e jornaleiros. Mas sobre esta estrutura de progresso abatem-se dois grandes obstáculos: o excesso do crescimento demográfico e a administração. A pequena cultura não resiste a um acréscimo desproporcionado da população que de imediato se repercute no abaixamento de recursos, e logo na emigração. Por seu lado, a administração pública, de cariz fortemente centralista, é responsável: a) pela baixa (ou nula) instrução de classes populares que quando emigram, vão exercer as profissões e actividades secundárias no comércio e indústria; b) nos desapoios à indústria, base de qualquer progresso agrícola e rural; c) nos altos impostos, que afectam a conservação do tipo histórico de propriedade; d) no depauperamento das paróquias e dos concelhos rurais em benefício dos principais centros urbanos e capitais de distrito. Fixemo-nos, sem esquecer as demais consequências da administração e da centralização, segundo Sampaio, no último ponto, isto é, no depauperamento das paróquias e concelhos rurais. As propostas de Sampaio, passam, no essencial, pela animação desse quadro histórico e social básico, que é a paróquia, submergida por uma desmesurada centralização, seus agentes e beneficiários (a administração e os partidos). Define-lhe três caminhos a seguir para a sua revitalização: a) A fixação nas despesas públicas o que deve caber à administração geral e pertencem ao país; o que pertence à municipal e à paroquial; b) O redimensionamento do quadro territorial das paróquias para que possam custear as suas despesas; c) A reanimação nas populações em geral do interesse pela coisa pública, para anular a acção e poder dos burocratas e dos partidos. Antes Sampaio explicara os mecanismos político-administrativos da pauperização e do transporte dos recursos e das vitalidades políticas da

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base ao topo e aos estádios intermédios. Neles concorre a administração geral no que diz respeito à totalidade do território; a administração distrital no que diz respeito aos municípios e localidades; a administração municipal no que diz respeito às paróquias, que na base contribuem para todos os níveis da administração, pouco recebendo em troca. A explicação de Sampaio, delineada em grandes traços, não deixa de avançar mais do que no seu tempo se diz quando se fala da centralização, não deixando porém de se referir, o que nos parece um dado novo, ao papel do município, cúmplice desse processo, ainda que, do nosso ponto de vista, supervalorizando as coordenadas político-administrativas, sem tomar na devida conta outras coordenadas da centralização por via municipal, também importantes. As contradições são até visíveis quando confrontadas com outras passagens deste seu escrito. Antes de falar na centralização, Sampaio alargara-se a vincar o papel das cidades (sobretudo das cidades históricas regionais e está obviamente a pensar, no quadro da sua região, em Guimarães, Braga e Porto) e da média burguesia, urbana e rural, na irradiação do progresso, do desenvolvimento, da cultura e até na criação de uma comunidade de "sentimento", regional. E afirmara já, contraditoriamente, que a administração distrital e municipal, que se exerce a partir das cidades e vilas mais importantes, promovera o bem estar e desenvolvimento dos seus núcleos à custa e em prejuízo dos territórios que administra. A contradição é clara e evidente e ela resulta, essencialmente, do facto de Sampaio tender a considerar a administração como uma entidade estranha à sociedade, uma mera emergência do Estado. Ora é exactamente no nível intermédio da administração distrital e municipal que a selecção e recrutamento local do funcionalismo mais se faz sentir, mantendo-se por esse facto ainda muito aproximada das realidades sociais locais de onde emana genericamente. Há, a esse nível, pois, ainda uma larga comunhão de interesses entre esta administração e estes interesses urbanos, que

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Sampaio diz promoverem, uma o desenvolvimento da região, outra o seu empobrecimento. A administração não é assim uma realidade estranha ao corpo social, não emerge só do Estado, emerge também das forças sociais locais e das suas elites governativas locais. Há, pois, também uma lógica social centralizadora, que utilizou largamente as instituições, sobretudo o município, que pelas funções e níveis em que intervém é muitas vezes ainda estrategicamente o mais importante. Uma análise mais atenta ao lugar do município no A. Regime e no século XIX, evidencia bem o seu largo papel ao serviço da centralização, quer como agente directo, através dos interesses nele instalados, quer pelo apoio e suporte a instituições e serviços nacionais. Ora tal significa que se o Estado modela o município também o município modela, em seu proveito e dos interesses que suporta e organiza, o Estado e as suas políticas. É a esse ponto de vista interessante observar que não raro medidas de alcance geral social, económico e cultural ou até políticas e institutos fiscais justos e proporcionados, nos aparecem, de todos enviesadas e distorcidas ao nível da sua aplicação local por virtude da intervenção e do "filtro" das administrações locais (municipais ou outras) responsáveis pela sua aplicação. Em conclusão, o que parece uma ordem, o resultado de uma ordenação pública de uma excessiva centralização, é muitas vezes, senão a maior parte, mais a expressão de interesses sociais instalados nos municípios, com ele interligados, mas obedecendo muitas vezes a lógicas próprias e intentando promover interesses específicos. Do ponto de vista agrícola (para além das diferentes coacções político-administrativas municipais que se abatem sobre a vida e sociedade rural com gravames insustentáveis serviços forçados, impostos e taxas municipais, tabelamento dos preços e mercado urbano forçado, que do A. Regime passam ao séc. XIX) pretendemos sublinhar aqui sobretudo a sua participação no processo da constituição de grande propriedade e sua correlação com os mecanismos de empobrecimento dos munícipes. É necessário sobretudo vincar o papel desempenhado pelos municípios, desde

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meados do séc. XVIII, na sequência das leis de 1745 e sobretudo de 1765 e 1790 que deu aqueles maior campo de actuação na privatização da propriedade e uso dos baldios, pela prática de aforamentos em benefício de grandes proprietários, camaristas, elites urbanas ou seus caseiros e rendeiros (verdadeiras testas de ferro nas aldeias). Ora esta partilha e apropriação dos baldios prejudicou os interesses paroquiais e comunitários, no seu conjunto a pequena propriedade e exploração, isto é, a pequena lavoura que aí se completava e, naturalmente, os desapossados da terra que aí levavam a apastorar gado miúdo, aí recolhe lenhas, matos, pastos e outros recursos. É, pois, mais uma vez a lógica dos interesses sociais instalados no município que se aproveita da lei que atribui aos municípios a posse administrativa dos baldios. E é esta burguesia rural, comercial e industrial que domina na cidade o município, que dele tira mais proveito, acrescentando a sua propriedade e sua renda, sem que nada acrescente, antes pelo contrário, espoliando interesses comunitários, a pequena propriedade autónoma, a viabilidade da pequena cultura e pequena exploração. A enfiteuse é ao lado do município, a outra instituição decisiva com base na qual A. Sampaio analisou a formação e evolução histórica da propriedade e sociedade rural, para o qual fixou a matriz romana (a investigação histórica virá a fixar a sua definição no séc. XV avançado). Demasiado crente nas vantagens daquele contrato agrário para o progresso rural, na esteira de uma literatura vinda já do séc. XVIII e que se continua no seguinte, demasiado preso à sua definição jurídica, Sampaio não atentou nas modalidades da sua aplicação e desvios originados pela prática social. E O. Martins já dissera o essencial sobre um instituto que continuava a considerar utilíssimo para o futuro, mas que havia de proteger e defender contra a degeneração e utilização abusivas. A enfiteuse, no dizer do autor do Fomento Rural já não estava a produzir o progresso da cultura (particularmente dos incultos) pela intromissão dos capitalistas. Citando o Ministro dos Obras Públicas no seu Relatório de 29 de Janeiro de 1886, afirmava que "hoje raro se

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mantém o modo primitivo de constituir emprazamentos. Antes, procurava-se obter do senhorio directo um campo para o desbravar; hoje, o credor achou meio de obter o domínio directo de bens alheios, já desbravados e cultivados, dos quais se lhe constitui enfiteuta o próprio senhorio, transformando deste modo os juros em pensões perpétuas, abusivamente chamados foros; logo o credor achou meio de com um crédito usurariamente explorado, mais tarde adquirir fatalmente as propriedades que lhe ficaram sujeitas em pleno direito, as quais o verdadeiro não pode beneficiar pelo ónus que o extenuam, e muito menos libertar total nem parcialmente, porque o senhorio não consente na alienação de uma parte do prazo para mais facilmente estar segura a sua presa. Estão pois, numa grande parte dos prazos, trocados os papéis: a enfiteuse criou-se para o lavrador adquirir terrenos incultos do senhorio, hoje mantem-se principalmente para a usura,..."26. Por outro lado já não estava em muitos casos a proteger a pequena cultura, que pela força das coisas que O. Martins definira, em particular, pelo abaixamento do valor da propriedade, dos preços agrícolas, da falta e carestia dos braços, do valor dos juros, dos impostos e da agiotagem a desenvolver a transmissão onerosa estava a possibilitar a transferência progressiva da terra, das mãos de quem trabalha, para as mãos capitalistas que sobre ela constituem renda. Ora são estes grupos de empresários medianeiros capitalistas que se sobrepuseram aos senhorios ou se interpuseram entre senhorios e enfiteutas ou entre estes e os colonos e que investigações mais recentes feitas no espaço mais desenvolvido da sua aplicação o noroeste peninsular galaico-minhoto mostram como principais beneficiários económicos e sociais do contrato agrário, alterando e agravando poderosamente este regime para as classes cultivadoras27.

26 Torquato de Sousa Soares Alberto Sampaio, o homem e a obra... o.c., Guimarães, 1956. 27 Aurélio de Oliveira "A renda agrícola em Portugal durante o Antigo Regime, (Séculos XVII e XVIII). Alguns aspectos e problemas" in Revista de História Económica e Social, Sá da Costa Editora, 6, 1980, p. 1 e 55; Jaime Garcia-Lombardero La

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Ora tal situação não emerge nem se detecta a partir de uma análise dos conteúdos ou formulários jurídicos daquele contrato agrário, de onde partiram, exclusivamente, muitos dos analistas de enfiteuse. Ora este grupo social que investe na contratação de rendas agrícolas, vindo agora, principalmente, das esferas mercantis urbanas, investe também na contratação das rendas públicas e municipais, controla a administração, entra nos partidos, nos negócios e na agiotagem, sendo um dos mais fortes acumuladores da propriedade ... que não moderniza, mas sobre ela constitui rendas, à moda antiga, feudal e senhorial. Não comungamos, pois, do optimismo e tão largo espaço dado por A. Sampaio ao papel positivo e motor do mercado urbano, das suas elites (burguesia mercantil e industrial, aristocracia e proprietários), enfim, da civilização urbana, no progresso regional, que não há dúvida é uma cedência às referências de um fisiocratismo serôdio, como se lhe referiu Villaverde Cabral, ou à visão de um cosmopolitismo urbano com larga expressão em Portugal nos finais do séc. XVIII e outras etapas posteriores e nem se coaduna com a sua análise do papel da administração. 3. A experiência histórica do séc. XIX desiludira já a 1ª geração de reformadores liberais sobretudo Herculano, Garrett e outros que tinham posto a sua esperança na restauração das antigas instituições portuguesas, degeneradas por séculos de absolutismo e centralização, em particular o município. A meio dessa experiência o socialista H. Nogueira nos seus Estudos sobre a Reforma em Portugal, de 1851, e mais desenvolvidamente em o Município no Século XIX, de 1856, gizava um novo plano de reforma administrativa com base numa nova divisão territorial que reagia fortemente contra a adminis-tração provincial e distrital, dita artificial, pretendendo fixar no novo município liberal "toda a energia e independência própria, dentro dos limites legais" que compreenderia "uma série resumida, mas completa das

agricultura y el estancamiento económico de Galicia en la España del Antiguo Regimen, Siglo Veintiuno de España Editores, Madrid, 1ª ed., 1973.

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instituições públicas"28. Este município promove a agricultura, a indústria, o comércio, as estradas, a beneficência, a instrução, a moralidade, a civilização, a salubridade e a polícia, as associações e as receitas e o património municipal e paroquial29. O município cobra gratuitamente os impostos gerais, recolhe no seu cofre uma quota parte dele para custeamento da despesa própria e entrega ao Tesouro o restante. No fim do século a experiência de quase um século de centralismo, tornara as realidades locais ainda mais angustiantes. As câmaras, sobre a premente necessidade de realizar receitas, retomaram a antiga feição de senhorio fiscal, continuando a lançar impostos indirectos, "repondo os antigos encargos dos forais e das sisas"30 contra o que se fizera a Revolução. É o que mostra a estatística de Silva Ferrão, de meados do século, que constatava que em muitos concelhos parte dos antigos tributos haviam sido repostos31. A esse respeito afirmará claramente A. Sampaio "A extinção dos dizimos apenas produziu um alivio momentaneo nos encargos que pesavam sobre a lavoura, pois que actualmente os impostos já os representam suficientemente se os não excedem". A reforma administrativa intentando vir ao encontro do país real, ficara presa dos interesses do funcionalismo e no plano do desenho do território, não se adaptara ao quadro das realidades político-geográficas. A administração pública submergira as câmaras e as paróquias... Os 36 anos em que vigorou o código administrativo de 1842, fortemente centralizador é bem a expressão da sua "adaptação às necessidades do tempo"32, da implantação de uma determinada ordenação do território posta ao serviço das capitais de distrito (Juntas e Conselhos do Distrito) a tutelar fortemente as câmaras e as juntas

28 José Félix Henriques Nogueira Obra Completa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1976, vol. I, p.136. 29 Idem, vol. II, pp. 73-75. 30 David Justino A formação do espaço económico nacional...o.c., vol. II, p.171. 31 Idem, p. 171. 32 Marcelo Caetano Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, Lisboa, 1973.

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de paróquia, que nas suas linhas gerais chegará até nós sem se preocupar com a ordenação do território "numa perspectiva de enquadramento das populações, das economias e dos espaços económicos e sociais"33. A solução para os problemas portugueses, passa em A. Sampaio, em grande parte, pelo papel que segundo ele entende deve de novo ser dado à paróquia rompendo, deste ponto de vista, com a tradição que vinha privilegiando o quadro municipal e que H. Nogueira acabava de valorizar. Daí que a questão da paróquia tenha assumido um lugar relevantíssimo na sua investigação histórica, já que a pretende erigir em instituição e quadro por excelência das reformas. J. Mattoso em trabalho recente34 relevou bem a contribuição histórica de Sampaio para o estudo das paróquias, o seu carácter pioneiro, afirmando a geral aceitação dos aspectos essenciais da tese do Autor sobre a origem das paróquias e o seu relacionamento com a evolução de Vila agrária durante a Reconquista e a Alta Idade Média. A tese de A. Sampaio haveria, segundo ele, em alguns aspectos agora de ser corrigida com os estudos de Pierre David (de 1947) que levava em conta os progressos dos estudos europeus acerca da origem e evolução das paróquias rurais do Ocidente e com a contribuição de Miguel de Oliveira. Assim às paróquias que, como refere Sampaio derivam das igrejas das villae, há que acrescentar as fundadas pelos bispos para prolongar a pastoral sacramental por eles exercida na cidade episcopal e as que derivam das igrejas monacais. A análise da constituição histórica da paróquia, é um outro domínio, como muitos outros no início referidos, onde se projectam também muitas preocupações e factos do seu tempo. Assim, quando se refere ao papel determinante desempenhado pelo padre, sucessor do dominus da villa, que a todos domina sem distinção de classes, vivendo entre o povo e ligado a ele por íntimas relações por virtude do seu ministério, como não associar aqui, de imediato, ou mesmo

33 David Justino A Formação do espaço ... o.c., p.174. 34 José Mattoso "A história das paróquias em Portugal" in Portugal Medieval. Novas interpretações. Imprensa Nacional Casa da Moeda. Temas Portugueses.

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projectar, a primazia política e social que lhe fixam agora as normas dos códigos administrativos de 1842, 1865, 1895/96, que fazem do pároco vogal nato e presidente da junta paroquial ou como nos códigos de 1878 e 1886 que embora retirando-lhe a presidência, o assentam à direita do Presidente, tomando parte e votando em todas as deliberações das Juntas nos assuntos que respeitam aos interesses eclesiásticos da paróquia e da administração da fábrica? E essa solução não é o resultado da pacificação político-social depois das renhidas lutas do primeiro liberalismo trazidas às relações entre o Estado e a Igreja que passam a colaborar mais intimamente ao nível local, administrativo e até político? O abade e juiz, são nesta sociedade pós-romana, os depositários do governo espiritual e temporal da antiga Vila, um tanto como o ordenamento jurídico-político o desenhou no séc. XIX para o âmbito da freguesia e da paróquia, entidades agora sobrepostas. Até quando Sampaio se refere que o povo escolhe e elege o padre por direito de padroado popular não poderá estar subjacente a ideia, que teve certo acolhimento entre alguns sectores, de que o padre, agora subvencionado pela côngrua estadual, quase funcionário público, com tarefas político-administrativas definidas pelos códigos, não deveria também submeter-se ao veredicto popular como os demais elementos que integram a Junta da Paróquia? E quando refere que a freguesia é uma entidade autónoma, com juiz que organiza a ordem política, jurídica e social da paróquia, um juiz eleito "popularmente ou nomeado ou de apoio régio" não reflecte as experiências históricas e as próprias hesitações neste domínio no séc. XIX, quer na fixação da freguesia como quadro e entidade administrativa, quer na manutenção a todos os níveis da administração, de magistraturas nomeados ao lado das eleitas? A fixação da paróquia, como quadro politico administrativo, é uma das aquisições fundamentais dos códigos administrativos, apesar das hesitações: ora restringindo-lhe os poderes ou apagando-as do mapa com os códigos centralizadores, ora alargando-lhes os poderes e as competências com os códigos descentralizadores. E neste domínio o

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quadro político e legal em que se movimente a paróquia ao tempo em que Sampaio medita estas materias, é em grande medida o que refere o Relatório que antecede o Código Administrativo de 1895 que justifica o alargamento das competências e meios das Juntas de Paróquias... "para que possam competente e zelozamente ocupar-se do serviço do culto (...) cemitérios, fontes e caminhos paroquiais", que tudo ia caindo no abandono e ruína, "suscitando geraes clamores e justificando o novo alargamento de atribuições e recursos à Junta da paróquia, sem contudo se voltar ao regime do código de 1886, cujas larguezas provocaram a reacção concretizada no Dec. de 6 de Agosto de 1892..."35. O quadro objectivo das propostas e horizontes de Sampaio é claramente libertar a Sociedade do Estado, procurando na paróquia esse espaço originário de onde será possível reanimar as forças nacionais, bloqueadas e dominadas pelo estatismo e pelo centralismo da burocracia da administração e da partidocracia. O que H. Nogueira fixara para o Novo Município Liberal pretende A. Sampaio fixá-lo na paróquia. Na paróquia visualiza Sampaio a tradição histórica que se esforça por definir, de uma coesão moral, microcosmos da sociedade mais vasta, cuja protecção e desenvolvimento criará as condições do progresso geral e da fixação das populações. Molécula social básica, o seu movimento transmitir-se-á a todo o corpo da Sociedade e do Estado. Das freguesias rurais, conforme fixou historicamente, saíram os governadores, a classe superior e dirigente. A freguesia é, em suma, a comunidade de origem de todos. A ela se deve regressar. Enquanto criação espontânea popular, melhor representa e promove os interesses da população. Ela, pois, deve ser erigida em quadro político-administrativo básico e essencial. A proposta de Sampaio ultrapassa, em definitivo, o mito da solução municipal que os primeiros liberais intentaram implantar e os historiadores definir nas coordenadas anteriores ao centralismo e absolutismo. Sampaio vai mais longe e mais fundo: desloca-a do

35 Relatório ao Código de 1895, p. 4.

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concelho para a paróquia, do quadro da matriz medieval para o quadro da matriz romana (partindo dos documentos medievais).36 A sua proposta ultrapassa também o quadro da mera definição do seu conteúdo legal e do seu quadro institucional. Tal como o pedira H. Nogueira, para o novo município liberal, ele quer para a sua paróquia meios e condições: uma divisão territorial e a fixação e dotação de recursos financeiros que criem iguais e reais condições de intervenção. À paróquia, o que é da paróquia, ao município, o que cabe nas competências do município e ao Estado, o que lhe cabe nas responsabilidades nacionais, que não caiem nem na competência nem na área de intervenção das Câmaras e das Juntas.

36 Luís Chaves — "Alberto Sampaio na História de Portugal" in Novidades, 25.05.1941.