alarme nas ilhas, poema de nemésio, vitorino

1
TEXTOS DE LITERATURA POESIA SÉC. XX VITORINO NEMÉSIO CADERNO DE CALIGRAPHIA E OUTROS POEMAS A MARGA ALARME NAS ILHAS Torres de Ponta Delgada Araucárias da Horta, muros de Angra, Nuvens, verdes profundos, Campos de Março à lua: Uma espada no mar, afarolada, sangra, Ponta Delgada é tua. Mas quem te deu assim pronome a estas paragens? Quem separa estas ilhas? Quem nos tira as viagens, Os cais, as vacas, as filhas? Placidez açoriana Nos teus olhos de china, Argolas de cigana: Passam-lhes cabos os baleeiros: Um pouco de amor a mais…e a borda guina! -Orça! diz o gajeiro. E eu sem sal nos meus poemas! Vais à cozinha? Traz-me caldo. Pouco é o dinheiro: Vende os diademas. Empunho açores de fogo, armo sotis às arvelas, Que adriça picarota ardeu no teu cabelo? Partiram todas as janelas, Faço greve de zelo: Nas palavras poupadas, Nos amores escondidos, Na graça do que é teu, Mãos dadas que Deus nos deu. Fuma, se queres! Na cinza parda o vento verde esconde as bombas Da independência. Há sombra em todas as lombas, Espírito Santo na violência. À lâmpada me esperes. Deves? O quê e a quem? Um monte nos chega, a terra nos tem, E a liberdade o que seria Sem essas mãos de lança E esse ar de Santa Maria Que tens, de barro, desde criança? Olha a chuva nas couves, Foge da erva molhada. Um tiro. Não ouves? Contigo ao pé, não foi nada. É o povo que finge, O avião que passou: Muda como uma esfinge Ficaste alerta às ilhas do perdão E a noite me acalentou. Que geotérmico, À bomba auricular, É o teu coração, Pois nunca rebentou de tanto amar, Como a caldeira, de cachão. É o povo que finge, O avião que passou: Muda como uma esfinge Ficaste alerta às ilhas do perdão E a noite me acalentou, Que geotérmico, À bomba auricular, É o teu coração, Pois nunca rebentou de tanto amar, Como a caldeira, de cachão. Ponta Delgada, 11/12.03.1976

Upload: francisco-mariano

Post on 31-Mar-2016

219 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

ALARME NAS ILHAS (Poema), in Nemésio, Vitorino; Caderno de caligraphia e outros poemas a Marga, IPCM

TRANSCRIPT

Page 1: ALARME NAS ILHAS, Poema de Nemésio, Vitorino

TEXTOS DE LITERATURA POESIA SÉC. XX VITORINO NEMÉSIO

CADERNO DE CALIGRAPHIA E OUTROS POEMAS A MARGA

ALARME NAS ILHAS Torres de Ponta Delgada Araucárias da Horta, muros de Angra, Nuvens, verdes profundos, Campos de Março à lua: Uma espada no mar, afarolada, sangra, Ponta Delgada é tua. Mas quem te deu assim pronome a estas

paragens? Quem separa estas ilhas? Quem nos tira as viagens, Os cais, as vacas, as filhas? Placidez açoriana Nos teus olhos de china, Argolas de cigana: Passam-lhes cabos os

baleeiros: Um pouco de amor a mais…e a borda guina! -Orça! – diz o gajeiro. E eu sem sal nos meus poemas! Vais à cozinha? Traz-me caldo. Pouco é o dinheiro: Vende os diademas. Empunho açores de fogo, armo sotis às

arvelas, Que adriça picarota ardeu no teu cabelo? Partiram todas as janelas, Faço greve de zelo: Nas palavras poupadas, Nos amores escondidos, Na graça do que é teu, Mãos dadas que Deus nos deu. Fuma, se queres! Na cinza parda o vento verde esconde as

bombas Da independência. Há sombra em todas as lombas, Espírito Santo na violência. À lâmpada me esperes. Deves? O quê e a quem? Um monte nos chega, a terra nos tem, E a liberdade o que seria Sem essas mãos de lança E esse ar de Santa Maria

Que tens, de barro, desde criança? Olha a chuva nas couves, Foge da erva molhada. Um tiro. Não ouves? Contigo ao pé, não foi nada. É o povo que finge, O avião que passou: Muda como uma esfinge Ficaste alerta às ilhas do perdão E a noite me acalentou. Que geotérmico, À bomba auricular, É o teu coração, Pois nunca rebentou de tanto amar, Como a caldeira, de cachão. É o povo que finge, O avião que passou: Muda como uma esfinge Ficaste alerta às ilhas do perdão E a noite me acalentou, Que geotérmico, À bomba auricular, É o teu coração, Pois nunca rebentou de tanto amar, Como a caldeira, de cachão. Ponta Delgada, 11/12.03.1976