Águas para as cerejeiras | fernando nunes

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Na Praça do Japão, em Curitiba, há lindas cerejeiras que florescem no inverno dando ao local uma beleza indescritível. Um dia sentado na grama, observando essa beleza, resolvi contar às cerejeiras sobre as minhas águas. Algumas de nossas conversas estão aqui!

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Nunes, Fernando

Águas para as cerejeiras / Fernando Nunes --

E-book, Curitiba, 2016.

1. Poesia brasileira 2. Literatura brasileira

Capa: Plum Blossom Awakening, Lauren Thompson

Em: http://mudandlotus.blogspot.com.br/2009/11/nice-things-happen.html

Copyright © Todos os direitos reservados.

4

“Bem aventurados os simples de coração,

de mente aberta e criativos, porque conseguirão

compreender o segredo da vida

e a essência das coisas.”

5

Às valentes cerejeiras do hemisfério sul,

que magníficas, florescem o inverno.

E para minha mãe, Maria,

minha melhor flor.

6

“A vós bradamos os degradados filhos de Eva”

7

(...)

Ela me enche de fé

Me dando um banho de paz

Bebo dela no coité

E vejo bem que me faz

Água de beber

Água de molhar

Água de benzer

Água de rezar

(...)

(Jovelina P. Negra, Labre e Carlito Cavalcante)

8

Um dia nublado, no cair da tarde,

Sentei-me na pedra, de frente para o lago.

E comecei a agoá-las – as cerejeiras da praça –

com as minhas muitas águas.

À luz das quatro e vinte de um céu fechado,

dizia tudo calado.

Canto, som de pássaros, voz.

Barulho de muitas águas.

E foi...

9

chuva Ele dá a chuva sobre a terra,

e envia águas sobre os campos.

(Jó 5:10)

10

~ DEIXA PINGAR

Abre o tempo

Eparrei bela Oyá!

Desanuvia esse céu negro

Não deixa ele se precipitar

Ó mostra a lua clara, brilhante

de São Jorge, o Cavaleiro

Ó pinta ela de vermelho

Vem, deixa ela eclipsar

O céu é teu, sinhá Oyá

Dona do vento!

Se é tua vontade,

tal pote de mal tempo,

agita esse firmamento

e deixa essa chuva pingar

11

~ A VIRGEM DO DESTERRO

Nossa Senhora me defenda de te amar

Bem como as palavras da minha avó

Que me proteja de te olhar

De te querer por mais instantes,

muito mais que um só

De querer te dedicar tempo

Sobre ou longe dos lençóis

De pensar com quem você está

Onde está?

Que horas volta?

Comeu bem hoje?

Não, não quero essa prisão!

Amo demais a liberdade de não ter

esses questionamentos vãos,

que se admite como amor.

Por isso rezo que a Virgem me guarde,

que os anjos que a arrodeiam

descole minha boca da sua

antes que seu sabor dessa ao meu peito

e eu precise de marca-passo

Bem como minha avó dizia:

É melhor romper em cântico,

doravante me alcance o desespero

mas por hora vou restar pedindo,

que te leve Nossa Senhora do Desterro.

12

~ FILHO DAS ÁGUAS

Não sou rio nem mar

Eu sou chuva!

Precipitação que cai

das mãos da Senhora dos Raios,

mas que nasceu nas águas claras

Águas de Janaina em Aiocá

A mão molhada que me pariu,

me lança no calor do céu.

E me veste de branco e prata

e quando ecoa o clarão,

me cobre do vermelho

que raja o firmamento,

e abre à tarde ao meio

Tudo nasceu rio,

Até mesmo o mar!

Portanto trilhar um caminho,

É sempre a mesma coisa:

rio seguindo o mar,

sol a queimar,

rio lançado ao ar.

O baile das águas

de cair e levantar.

13

~ FRUTA MADURA

Só soube que você me queria

na rede daquela tarde de chuva,

sem vento e nem penumbra.

Segurando a minha mão,

com o corpo encangado no meu.

Quando deitado em teu peito,

te olho

e você faz o mesmo que fez.

Abre-se em mim uma porta

Desprendem-se todas as rotas

O desejo bate à porta!

E mesmo a vida se atura

penetrada pelo olhar de quem

vai morder fruta madura.

14

~ FRANCISCA PASTORA

Dias assim me lembram minha avó.

Dias úmidos, de chuva.

de grande figura!

No conforto de sua fala alegre e alta,

riso solto em suas histórias do passado.

Quando era bela, era jovem,

na distante Ibateguara.

Era a filha da índia de mesmo nome

Francisca,

a índia pastora.

Mas pro mundo é Dona Zefa,

A Zefinha, cantora!

Cantando Negue, ou qualquer coisa.

De pele branca, cabelo castanho,

sempre foi mameluca.

Filha do senhorzinho franzino de olho azul

e da índia sem pelo que terminou louca.

Casou com o moreno de olho verde,

pariu oito menino-macho

e três mulé-fême

Enviuvou cedo.

Terminou de criar seu meio mundo de menino.

Ah, essa minha véia, namorou!

Guiou rebanhos.

É filha da índia, não é à toa,

que também carregue o nome Pastora.

15

~ SER-TÃO

Sertão é andar errante,

sem ter Diadorim para abraçar

com as asas de todos os pássaros.

Sertão, saiba você,

não é apenas não ter chuva

É a alegria de ver ela chegar.

É o chão onde a gente enterra semente

de uma espécie de planta

que cresce para dentro da gente

E dá árvore alta, verde

Que o povo dessas bandas,

apelidou de esperança.

Dizem que ele vai virar

ou já virou mar.

Só sei que aquele chão de poeira

é como tudo aquilo que muda:

basta derramar água na terra,

juntar os potes de barro no terreiro

e colher os pingos da chuva.

16

~ VERDE SOMBRA

Se eu gosto daqui?

Gosto das cores da cidade!

Dos ipês amarelos e brancos na primavera,

da cor rosada de vocês no inverno,

das senhoras de sobretudo na rua,

escondendo embaixo das roupas

uma peça turquesa.

Gosto do cabelo dos jovens,

Os ruivos ou azuis, como o céu,

que às vezes escapa dos dias nublados

e nos deixa entontecer.

Embora eu seja do Leste,

volta e meia, me pego encantado

com ele assim, fraquinho, friozinho.

Mas de tudo o que eu mais gosto

das árvores eu gosto mais!

Mais do que das pessoas.

Mas isso é em tudo que é canto.

Sempre que eu me encontro,

Há perto uma árvore à toa.

Aqui não foi diferente.

E se cidades e árvores não destoam

Sei que essa cidade vai me dar,

sempre sombra, numa boa.

17

~ TEMPO FECHADO

Desde de muito criança

eu queria o poder dela.

“Senhora das chuvas de junho

Das chuvas de todo ano

Dentro de mim”

Enquanto todos queriam

tempo aberto,

eu queria tempestade.

Só fui entender isso mais tarde,

já velho e à tarde,

que quando Bárbara mexia os ventos,

jogava em mim a liberdade.

18

~ FESTA JUNINA

Junho

Se vocês pudessem ouvir

as noites do São João não tem fim

Eita mês das águas, de chuva

de regar a terra do povo do Sertão!

E do trio mais querido,

de mais devotos definidos,

que mais recebe oração

É para casar.

É paixão pelo Batista.

É para o céu se abrir.

Se vocês pudessem ouvir,

as noites de São João não tem fim

é bandeirola, é palhoção,

e o fogo de Xangô queima

ardendo a fogueira

a fogueira de São João.

Onde se assa o milho,

ao lado se dança a quadrilha

e em volta o coco de roda

com tanta cantiga bonita

que o trio toca no forró.

Ah, se vocês pudessem ouvir,

as noites de São João não tem fim

19

~ AÇUDE

Todo fim tem seu princípio

O meu fim é lá o princípio,

Lá debaixo, bem embaixo

No açude.

Grande barreira de todas as águas!

Não deixa ser rio, ser lago

ser pântano, lagoa ou freático,

muito menos mar.

De lá toda chuva só pode ser cá.

Aqui em cima,

Donde sonho ser um dia cachoeira

A mais bela princesa de todas nós.

A água movimento e queda,

que esconde segredos na pedra.

A única noiva que veste o véu.

Já o sonho do açude,

É ficar.

O rio, o lago, a lagoa

e, mesmo a cachoeira,

tudo pode secar.

Mas seca menos que ele,

que sabe que não pode ficar,

que rápido volta a ser eu

e eu me demoro demais a ser ele,

do que o homem pode aguentar.

Por isso ele é o mais perene.

Águas de pequeno porte,

A quem se permitiu ajuntar.

Nisso recebeu a maior recompensa,

grande benção suprema,

da sede do sertanejo matar.

20

Para água nenhuma, na terra e no ar,

há maior galardão

Do que dar vida ao sofrido homem

Que do mar está bem distante.

Matar a sede lá no meio do sertão

21

~ DESENCONTROS

Água e saudade

são presença certa,

são sinônimos.

Em fim de dia triste,

em tardes de domingo,

em manhãs de casamento,

em dias de chuva

em pranto desperdiçado,

rios onde não se pode nadar.

Dor de ir um ente querido,

um chá,

um encontro entre amigos,

um brinde à mesa,

um copo cheio de cerveja

um amigo nobre,

um amor bandido,

a coroa e o vício

na vida há sempre um motivo

para a água sair

e a saudade chegar

22

rio Os rios tapa, e nem uma gota sai deles,

e tira à luz o que estava escondido.

(Jó 28:11)

23

~ MORENA

Quem ousa amar como o tapuia,

ao ponto de não ouvir conselhos e sofrer de amar?

Quem ousa se enovelar

no canto da sereia de água doce,

que procura noivo, que quer casar?

Quem ousa empurrar a canoa,

metê-la no rio de proa,

quando a tarde já se despede para sonhar?

Só quem vê seu cabelo negro.

Ialaó, okê, ialoá

Canta, morena, canta

Para com a voz o esposo chamar.

Canta, bela morena, canta

Esse lábio úmido quer beijar.

Canta, linda Iara, canta

Para o profundo do rio, o índio abraçar.

24

~ ABISMO

Há sempre consolo no caminho

para quem segue por estradas de ladrilhos soltos,

pisando em areia mole, limo escorregadio.

Os que tropeçam em passados imprecisos

e param sem encontrar encosto

Alento aos fartos de dizerem sim,

enquanto vozes reproduzem o oposto

a irromper em cânticos no silêncio,

sem eco, sem coisa alguma que ressoe

Pés cansados dos passos,

pernas que reclamam assento,

imploram parada, qualquer uma, um canto,

onde ficar seja mais que breve:

multiplicidade de momentos

Aos que sonham com o chão batido,

a terra firme, a fria Mãe e seus conselhos

Encontrar em seu seio novo sentindo

E partindo, se entregar em jornada livre

que termine, finde, um porto, um infinito

A esses, embora pareça,

percorrer a beira do precipício,

nunca foi desgosto

fitar a queda sempre foi ofício

e lançar-se no penhasco,

a esse gênero, é gosto

25

Lá no fundo, deles, passa um rio

de águas de nome escuro

Quando caminhar incomoda

na essência, no peito, no risco,

sabem que é chagada a hora.

Aquela, de lançar-se no abismo.

26

~ SIMPATIA

Eu não desgosto dessa gente,

Que tem fama de não ser sorridente

É causo, é coisa antiga

do tempo dos tropeiros

que roubavam as raparigas.

De certo, falta-lhes um pouco

de gente morena,

um pouco de sol

e, até mesmo, um pirão de mocotó

para simpatia desincricriar.

Mas foi aqui que meu rio

encontrou depressão leve,

verde margem em meu peito,

veios que adotei como leito

e minhas águas resolveram demorar.

27

~ DO PRIMEIRO HOMEM

Furtei-lhe pequenas contas brancas

da pulseira que prendia na mente

seu pulso ao redor do meu.

Furtei-lhe os beijos que eu dera,

entre os leves toques que se fizera,

no prazer que somente se deu.

Furtei-lhe das mãos as lembranças,

presas nas contas brancas,

do seu corpo sobre o meu

Furtei-lhe madrugadas pequenas,

que embora entregues ao tempo,

pensam que nunca se deram adeus

28

~ OPÇÕES

Jogado na praça,

encostado na pedra,

vendo a vida passar.

Mirando-a distraído,

a observo sem me espantar.

Faço um oxanã da mata.

Uma rosa vermelha ao lado:

Joguem o amor fora!

Ele só faz é atrapalhar.

Vejo de longe a ave bicando,

catando os talinhos secos

para seu ninho terminar.

Penso: por isso ela voa,

eu aqui numa boa.

e ela agitada a trabalhar.

29

~ RIACHINHO

Vocês já ouviram essa canção

que o Maestro fez pro rio?

“E bandos de nuvens que passam ligeiras”

Um riachinho bem pequeninho,

que passava no fundo de seu quintal?

Ah, a grandeza desse bichinho!

Do seu ser pititotinho,

fluir pros versos do grande poeta

Ora que samba, que bossa!

Ser a coisa mais linda que existe,

e se pede permissão para adorar.

O mais nobre dos riachos,

dos riachinhos, bem pequenininhos,

que um dia foi batizado assim,

Ganhando o nome de Dindi,

cantado no tom de Maria,

que não conhece o fim

30

~ QUANDO EU ERA MENINO

Quando eu era menino

e terminava de correr na rua,

mãe me botava logo

para debaixo do chuveiro

e me mandava banhar direito

não queria ver meu preto,

um pé todo preto,

ou ia com a japonesa esfregar

Outros banhos tão bons

nunca mais tive,

sob supervisão tão firme,

de mãe d´água da barriga,

toda cheia de ciúme

da mãe d’água de Ijexá

31

~ CURITIBA DO SUL

Vim-me embora para sul

Eu nunca planejei

um dia vir pra cá

Sendo água sou um tanto rio

de veio bem fininho

que não sossega à procura do mar.

Sei que ele está tão longe,

que nem responde direito,

como outrora fora perfeito

o quebrar da onda ao meu chamar.

Por isso estranharam os amigos

perguntaram como ouriços

Por que eu deixava o lar.

Nunca respondi direito

Dei às respostas outros leitos

Para as questões irem a outro lugar.

É que aqui, dentro peito

bate um coração de rio,

do que vê depressão no caminho,

antes de entrar no mar.

32

~ ESTRANGEIRO

É só olhando para o rio,

que eu entendo o estrangeiro

que vem de longe, forasteiro,

até a margem conversar.

Porque ele nunca é o mesmo,

do lado direito ou esquerdo,

quando eu o paro para olhar.

33

~ ORIXÁ DO SERTÃO

Quando eu morrer, por favor,

repousem minhas cinzas na ribeira,

no estuário do Francisco,

o frei, o santo,

o antigo orixá do Sertão,

a velha corredeira.

Único rio que não é mais menino,

mas que carrega barrancos e areia.

Onde rugas são correntezas.

Por isso te quero são,

São Francisco,

mesmo depois de morto.

Porque abraço de velho

é a madeira que queima.

34

lagoa e lago Converte o deserto em lagoa,

e a terra seca em fontes.

(Salmos 107:35)

35

~ FORA DO CORPO

...

Aquele momento:

Você sai de si,

Se vê de cima, no alto,

talvez Deus me veja assim!

Diante da vida e no meio

O canto dos pássaros,

o úmido da mãe Terra

- e água é amor -

contempla o lindo lago branco

É pedra miudinha, branca

É água que corre parada

É margem do tudo

Tudo é descanso afora

o verde da mata,

a vida que farsa

toda essa bagagem

no dentro do sonho

viagem

36

~ FADO VADIO

Digo que não, mas volto.

Todas as noites que renasço

De olho vermelho brasa,

Eu volto

Bem de volta para o asfalto,

onde me acho e me desfaço,

e reconstruo de rastros

a esperança do que ainda não fui

37

~ SONETO DO EGOÍSMO

Vive a realidade uma paixão,

que não encontrou jeito de acontecer

A do lago preso no chão cercado

e a frondosa árvore no reflexo a se ver.

Ele lago, logo se encantou com sua majestade

e trocaram juras de amor eterno em setembros.

Se olhando sem fim em domingos, em tardes,

jamais se viram ou se abraçaram por dentro

O lago sofre e chora ao contemplá-la distante.

Ao Imaginar mil formas de levantar-se homem,

derrama lágrimas, que devagar, salgam sua fonte

A árvore de pé mantém-se observante em receio,

temendo que esse abraço estrague o espelho

límpido a seus pés onde aprendeu a se enxergar.

38

~ ÁRVORE DA TERRA

- Quero ser árvore de caboclo -

disse a cerejeira pra mim.

- Ouça, dona cerejeira,

a senhora não é daqui.

No meu quintal

só tem mangueira,

goiabeira e coco,

às vezes maracujá.

Logo eu seria meio louco,

Se de cabocla eu te chamar

Mas não se desespere

nem um pouco,

já vi essa situação acabar

Deixa sair o inverno

e o verde te cobrir de novo.

Aproveite a primavera,

que solução vamos achar?

39

~ BRINQUEDO JOGADO

Se tão cedo vierem me falar do amor,

vou lembrar que foi essa merda!

Essa coisa de dor!

De não saber o que fazer

no fim da tarde

ou mesmo quando o dia começa

Vou dizer que é tudo uma bobagem

A maior que nos fizeram acreditar

Nesse dia, eu sei,

vou praguejar

tudo e quanto o bendiga

E brindar aos que, como eu

Quebram a cara ao ousar

Jogar qualquer, qualquer uma,

coisa pro ar

Olha, se vierem me falar dele,

Que venham preparados:

espada fora da bainha,

pistola engatilhada,

ouvidos compreensivos

Porque eu vou estar armado

e nessa lorota vou dar

certeiro, último e primeiro,

um tiro

40

Antes de falar do amor

Saibam que eu recomecei,

acreditei no samba mais que nele.

Cruzei a fossa nadando peito

e refiz meus caminhos

com um milheiro de tijolo de fim

Se um dia pensarem em falar do amor

De amor!

Eu vou dizer que ele,

bem como tudo acaba.

E mal e só e dolorido,

sempre deixa algo apreendido

do tempo que o moleque

bem travesso, destino

largou no terreiro,

sob o sol e sobre a grama,

depois de brincar

41

~ À ESPERA

Eu tenho inveja de lagoa!

Porque que ora há ser d'Oxum,

Ora domínio de Janaína,

mas sem recanto de Olossá,

vira posse de qualquer pessoa

Nela, águas se misturam

O amor é, de fato, água doce

e a paixão, sua antítese, salgada

Como do canto do poeta que:

"Queria que a vida fosse

Essas águas misturadas"

As mesmas que sonham,

Quase assim paradas

o dia de juntar-se ao sal

de comando da Grande Lagoa

e escorrer de vez seu destino

embaixo de qualquer proa

O mais que invejo: seu espelho

Não é parado, mas ficou no meio

que do tudo ao redor margeia

Ela é depressão cheia,

precipitação acumulada

É a vazante à espera

O rio na retaguarda

42

~ FLOR MISTA

Sou bom te amando em silêncio

Em segredo secreto, fechado a chaves

no fundo do meu coração

É tão bom te amar em silêncio,

parado à sua frente,

te olhando por cima dos óculos,

que sofro com o medo,

de numa farra, nessas de virada,

nessas que a verdade dá.

O medo de você nunca mais voltar

praquele nosso lugar, sabe?

Da flor sem nome, naquela pedra

ao lado da planta de flor mista

Sou melhor te amando em silêncio

Em segredo excreto, abertos olhares

Do fundo do meu coração

E é tão melhor ser em silêncio

Presente ou ausente

Por entre as lentes dos meus óculos

que perco o medo

qualquer hora, nessas de virada

nessas que a cidade dá

Eu deixo o medo escapar

Te levo praquele lugar, sabe?

Da flor sem nome, naquela planta

ao lado da pedra de flor mista

43

~ PEDRA FILOSOFAL

Todos os dias invento um cigarro,

aquele pra ficar ao seu lado

dizendo bobagens,

olhando sua nuca e

como o vento balança seu cabelo

Te olho discretamente

mil vezes,

mil dias

e a cada hora

e te registro com a luz

do azul do brilho de seus olhos

Volta e meia você me ri

e a onda bate forte no rio

é maré cheia, irrigação

vez de umidificação

é dia

Saio para casa em silêncio

na expectativa do outro dia

onde tudo se repete no meio

mesmo esplêndido

ao sons de outros silêncios

que me seguram até

o outro take dessa vida

recomeçar

44

~ ÁGUA DO POÇO

Ia te amar muito

e tanto e pra sempre,

Se assim o fosse,

Se eu fosse

Essa fonte doce,

no meio do alagadiço

e da cidade agridoce,

um poço.

Ia te drenar pelo pescoço,

Devorar todo teu torso

Te secar e por no bolso

Te moer que nem um osso

E te cuspir

que nem caroço,

de pitomba carnuda.

Mas não dá outra, seu moço

Eu só fico nisso e nem ouço

tá pra mais de lá de légua

Tá é mesmo é um sufoco

só de uma cuia vir a ser

esse danado desse poço.

45

~ PAI CONHECIDO

Eu venho de lá,

lá onde há lagoas

- águas doces e salobras –

que se encontram com o mar.

Namoram, se pegam,

se mergulham e geram

bastardinhos sem contar.

É um chamego tão lindo,

consensual e infinito,

que da areia branca

só se pode contemplar.

E quando a tarde cai,

vira tudo, mais bonito olhar

o beijo silencioso, quietinho.

Quentinho, quietinho!

Que a lagoa dá no mar.

46

mar Como as águas se retiram do mar,

e o rio se esgota, e fica seco.

(Jó 14:11)

47

~ JANGADEIRO

Acorda jangadeiro!

Hoje é dois de fevereiro,

tira a jangada para o mar

Trago flor, espelho e pente

e um perfume de alfazema

para a Rainha do Mar

Se apresse seu menino,

não quero me tardar, não!

Vou voltar para rezar o teço

da Imaculada Conceição.

Mas antes, bem antes disso

quero na praia adorar

Olhe o brilho dessa prata,

que vou dar à Iemanjá!

Pegue o remo jangadeiro,

Ora me leve para o meio do mar

Tenho sete rosas brancas

para a princesa de Aiocá

48

~ ALIMENTO

Coisas sem sentido, nada.

Me volto para o mar,

dispensa em espírito

Folheio a mente e resgato versos

Me alimento!

Sacio a fome de quem me havia perdido

Engolindo maresia, brisa e algas

preencho vazios, preces,

me ajoelho em mim e em silêncio

Ser contemplação, tempo

achado à beira, à praia,

no corpo velho da maré

Dá-me Olorum melhor comida,

letras que constroem momentos

Dá-me essa farinha poesia,

misturada em coentro

Da horta de Aiocá, unguento

e faz essa minha alma lavar

49

~ VOCÊ ROUBOU MEU CORAÇÃO

Você me olhou, eu te olhei

Eu te namorei ali, eternamente

E por tanto tempo, que nem posso

É melhor mesmo, não contar

Você sorria e me olhava

no balanço da música, no ritmo das luzes.

Havia som, mas eu não o ouvia

Havia dança, mas só ao meu redor

O meu corpo tremia e fingia dançar

na esperança de prender mais olhares teus

Num ensaio de que tudo

e de nós podia ser:

o seu corpo e o meu juntos.

Beijos e barbas se percorrendo

Olhos vermelhos se cruzando

Um calor.

Tua voz dizendo teu nome,

A minha o meu

Momento antes do beijo

Que eu fui até você

E que você me devolveu assim:

escapado dos lábios e corrido

bem por cima da mão

Ainda hoje te procuro em moldura

Buscando o verde de seus olhos

E a parte que me roubou

Mesmo em preto e branco

Te caçando em olhares na rua

nessa eterna ânsia do reencontro

Eu e você.

50

~ TE ENCONTRO NA PRAIA

Uma das coisas mais difíceis para o poeta,

é versar as águas do mar,

porque elas são tão misteriosas e incertas.

Berço de tantas pérolas,

que é bem fácil naufragar.

Mas quando esses capitães de palavras

ousam

nas largas águas se aventurar,

os sons saem sempre bonitos,

trazem sempre aquele ritmo das ondas,

mansinhas,

quebrando em sequência

no sempre encontro da calma areia

com o intempestivo mar.

51

~ MAR ALTO, FORTE, SENSUAL

O mar já me disse tantas coisas

na escuridão de seu horizonte,

na sombra da lua

ou em seu reflexo perverso

(de pura beleza)

O mar já ficou em silêncio comigo

Eu e ele, ali

parados...

Parados a nos contemplar

Ele em seu balançar

Eu em um pra-lá e pra-cá sem Deus

Eu já fugi com mar

Sim, fugi!

Eu dentro de seu corpo denso

me envolvendo, desenvolvendo

Era vazio, corpo no vento,

Não me continha, não me prendia,

não me resumia naquele lugar

Sumia! Fugia! Era fuga.

Mas eu também já briguei com mar

que me bradou sua vastidão,

me apequenou,

naquela terra, erguido

enquanto tinha medos contidos

de ao Senhor Mar enfrentar

E assim rompi em todas

em todas essas idas e ondas

muitas vezes e em ressaca

minha relação com o mar

52

Nós dois sempre voltamos!

Ele porque dona Lua é sempre tão sábia,

que lhe empurra de volta com sua vara maré

E eu porque a brisa a seu lado

tem o quo de "foi quente!'

Seu cheiro umedece a gente

Seus braços, ambos maresia,

me envolvem, me cansam, me enfadam

e se eu ficar para sempre,

me destroem!

Isso me outorga volta

a dentro dele, adentro dele

em fuga solta

no silêncio do não ar

Nós sempre nos amaremos!

Eu, mesmo que vá pelo caminho de todos,

voltarei em instantes, em momentos de morto

a recobrar junto a ele o que não vivi

Ele, que em volta do meu corpo ou à frente,

a me aquecer ou a congelar

me invadia pela ar, osmose

sem eu nada demandar sobre:

o assim se dar. Ser um do outro

Eu parado e ele onda

Eu pequeno e ele tanto

Eu derramando, e ele não

De perto ou bem assim,

preso nessa garrafa

que cabe no imenso átrio

do meu coração

53

~ ELEMENTOS

É brisa,

é mar na virada,

na beira da areia

É brasa a amar

o corpo todo

canto que incendeia

a vez que a deixei calado

na minha longe alagação

Longa cor de seus cabelos

nos retratos no mural

Eu só sinto a Saudade

balançar o vendaval.

Ó, deixa ela entrar!

Quem mandou essa foi a Sereia

Inda hoje que planejo

meu retorno contramão

- Grão tempestade -

para voltar pros braços dela,

bem para perto, odoyá

Quando aperta a saudade

Pranto corre, vai em vão

Digo a flor do nome dela

E vai de mim o enguiçar

54

~ VELHO MODUS

Todos os dias, em silêncio,

eu te conto sobre o mar

aquele ser maior que nós

distante, imenso, salgado

que você nunca vai conhecer

Talvez essa seja a coisa ruim

na beleza de ser árvore,

não poder partir.

Amar para sempre um só lugar

e esperar continuamente que venha o novo,

sem poder ir atrás dele

Eu e você somos livres

notei diversas vezes feliz,

em nossas conversas.

Cada um do seu jeito.

Você naquele velho modus raiz

Fincada na terra e solta nas folhas,

ao balanço do vento

Eu errante, no vento,

achando que o certo para o tempo

é passar com as coisas

Um dia, quem sabe?

Cheguemos a um acordo

Onde eu abra mão de ser livre

para com a terra comungar

e você aceite existir,

assim por muito tempo, nua:

sem fronde, sem folha, sem caule

Sem o encanto rosa de suas flores

55

~ GOZO CHAMADO

Vem!

Tá me ouvindo?

Derrame dentro de mim!

Mornamente dentro de mim

porque eu sou homem

e essas águas correm em mim

fontes de mim

saem de mim

podem ser outros de mim

e só repousam tranquilas

no fim

quando encontram o mar

no meio

dentro de mim

56

~ PESCADOR

A minha rede eu teço de palavras

e faço de arrasto, faço tarrafa,

para pegar lagosta vermelha,

quando muito cioba

se eu só lançar na beira.

O peixe grande tá no profundo.

mar adentro,

berço seguro,

bem onde nadam as baleias.

Tem bacia, água-viva,

redemoinho.

É na maré onde se pesca,

que ouço o canto da sereia.

57

~ ÁGUAS PARA AS CEREJEIRAS

Atenção minhas senhoras,

trago água engarrafada

Doces águas de amor

Sal do mar, as minhas lágrimas

Pra aguar suas raízes,

e lavar o meu caminho

Já teci o meu filé

e vou cantar devagarinho

Derramar minhas palavras,

mãos me colheram na beira

Vou deitar nas tuas terras

águas pras cerejeiras

Há quem diga que amores

que se perdem no caminho

São levados pelo vento,

onda do mar, queda do rio

Mas a chuva traz de volta,

quando cai pela estrada

Vai juntando cada um

na luz do sol, na poça d’água

canto assim essas palavras

com a voz da divina sereia

pra deitar nas tuas terras

águas pras cerejeiras

58

Barulho de muitas águas.

Silêncio!

Disse-lhes tudo: das alegrias, das dores,

de amores e paixões, do Divino.

Que são a mesma coisa, águas da mesma fonte,

que jorra incessante.

Dentro de cada um de nós.

59

Notas

1. O poema “Ser-tão” (p. 15) começa com uma alusão à

obra Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,

mais especificamente ao trecho: “Abracei Diadorim com

as asas de todos os pássaros.”

2. O poema “Tempo fechado” (p. 17) traz versos da

canção “Iansã”, dos compositores baianos Caetano

Veloso e Gilberto Gil.

3. O poema “Morena” (p. 23) faz referência ao texto “A

perigosa Iara” da obra “Como Nasceram as Estrelas –

Doze lendas brasileiras”, de Clarice Lispector. Traz

também o verso “Ialaô, Okê, ialoá”, do samba-enredo de

1976 do G.R.E.S. Império Serrano (RJ): A Lenda Das

Sereias, Rainhas do Mar, composição de Vicente Mattos,

Dinoel Sampaio e Arlindo Velloso.

4. O poema “Riachinho” (p. 29) faz alusão à canção

“Dindi”, escrita pelo maestro Antônio Carlos Jobim, o

Tom Jobim, e traz o verso “E bandos de nuvens que

passam ligeiras”.

5. O poema “À espera” (p. 41) traz os versos “Queria que a

vida fosse / Essas águas misturadas", da canção “Memória

das Águas”, dos compositores baianos Roberto Mendes e

Jorge Portugal.

60

~ 02 de fevereiro ~

Dia da Rainha das Águas