aguardados ansiosamente pelas famílias. · particularmente, pois a chaga que se abriu jamais...

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22Mai1962: Índia - A chegada do «VeraCruz» a Lisboa Diário de Lisboa, n.º 14166, de 22Mai1962 (transcrição efectuada pela equipa do UTW) Página 1/8 Os primeiros clarões do dia começavam a banhar a cidade ainda adormecida e o Tejo silencioso e calmo, quando o «Vera Cruz», vivamente iluminado, acostou ao cais da Rocha. A bordo vinham cerca de 1500 pessoas soldados, marinheiros, agentes da Polícia e alguns civis, incluindo cerca de 30 mulheres e outras tantas crianças embarcadas em Karachi. Iniciava-se assim o regresso, tão ansiosamente esperado, dos militares aprisionados em Goa. Desembarque sereno, numa operação de rotina calmamente planeada e integralmente cumprida. Basta dizer para concretizar a afirmação, que se calculava em duas horas e meia a duração do desembarque e a verdade é que tudo estava concluído em cerca de hora e meia. Com os primeiros raios de sol iniciou-se o desembarque. Os homens, com fardas limpas e bom aspecto, transportavam malas, cestos, caixotes e bugigangas diversas. Despreocupados mas serenos e disciplinados, deixavam rapidamente o cais e eram encaminhados para os comboios e veículos automóveis que os transportariam para os respectivos aquartelamentos de desmobilização. Aguardados ansiosamente pelas famílias. Já na madrugada de segunda-feira muitos familiares dos soldados, que haveriam de chegar no «Vera Cruz» tinham comparecido nos cais de Alcântara e da Rocha. No entanto, foi na madrugada de hoje que maior afluência se registou. Nomeadamente no primeiro daqueles cais, onde o barco, segundo voz corrente, acostaria, país, irmãos e noivas passaram longas horas de vigília. Muitos foram os que ali dormiram, estendidos em liteiros e cobertores, enquanto a todo o instante os acordados olhavam o horizonte cerrado na ansia de lobrigarem luzes que fossem indícios do barco.

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22Mai1962: Índia - A chegada do «VeraCruz» a Lisboa

Diário de Lisboa, n.º 14166, de 22Mai1962 (transcrição efectuada pela equipa do UTW) Página 1/8

Os primeiros clarões do dia começavam a banhar a cidade ainda adormecida e o Tejo silencioso e calmo, quando o

«Vera Cruz», vivamente iluminado, acostou ao cais da Rocha. A bordo vinham cerca de 1500 pessoas — soldados,

marinheiros, agentes da Polícia e alguns civis, incluindo cerca de 30 mulheres e outras tantas crianças —

embarcadas em Karachi.

Iniciava-se assim o regresso, tão ansiosamente esperado, dos militares aprisionados em Goa. Desembarque

sereno, numa operação de rotina calmamente planeada e integralmente cumprida. Basta dizer para concretizar a

afirmação, que se calculava em duas horas e meia a duração do desembarque e a verdade é que tudo estava

concluído em cerca de hora e meia.

Com os primeiros raios de sol iniciou-se o desembarque. Os homens, com fardas limpas e bom aspecto,

transportavam malas, cestos, caixotes e bugigangas diversas. Despreocupados mas serenos e disciplinados,

deixavam rapidamente o cais e eram encaminhados para os comboios e veículos automóveis que os

transportariam para os respectivos aquartelamentos de desmobilização.

Aguardados ansiosamente pelas famílias.

Já na madrugada de segunda-feira muitos familiares dos soldados, que haveriam de chegar no «Vera Cruz» tinham

comparecido nos cais de Alcântara e da Rocha. No entanto, foi na madrugada de hoje que maior afluência se

registou. Nomeadamente no primeiro daqueles cais, onde o barco, segundo voz corrente, acostaria, país, irmãos e

noivas passaram longas horas de vigília. Muitos foram os que ali dormiram, estendidos em liteiros e cobertores,

enquanto a todo o instante os acordados olhavam o horizonte cerrado na ansia de lobrigarem luzes que fossem

indícios do barco.

22Mai1962: Índia - A chegada do «VeraCruz» a Lisboa

Diário de Lisboa, n.º 14166, de 22Mai1962 (transcrição efectuada pela equipa do UTW) Página 2/8

Pessoas houve que,

procedentes dos pontos mais

afastados, logo se sentaram

no cais na manhã de segunda-

feira e ali se mantiveram até

ao raiar do sol do dia

seguinte. Como exemplo,

apontamos a sr.ª Angélica de

Nascimento Reis, de Alcains,

Castelo Branco, a qual, apesar

da sua avançada idade, ali se

encontrava esperando o seu

filho, furriel, há mais de dois

anos em terras de Goa; Maria

Rosa Costa Monteiro, de

Vialonga, Cova de Santa Iria,

ansiosa por rever o sobrinho;

Idalina Augusta Ferreira, de

Fornos de Algodres, Beira

Alta, tendo na mente o filho

expedicionário, igualmente

esperado por três irmãos, etc.

Numerosas famílias dos

arredores de Santarém

haviam alugado uma

camioneta e ali estavam,

desde a manhã de segunda-

feira, aguardando a tão

almejada chegada do «Vera

Cruz».

Com o passar das horas, foi surgindo mais gente, sempre ordeira e compenetrada, respeitando as ordens dos

agentes da autoridade. A madrugada corria sem frio excessivamente cortante - e quando a alvorada se anunciou

já todos os familiares dos soldados se haviam passado para o cais da Rocha, onde o «Vera Cruz» na realidade

atracou, e acenavam com lenços, em extenso cordão, para os jovens portugueses que na Índia distante se

encontravam há longo tempo, como cativos.

O «Vera Cruz» atracou pouco depois das 5 horas

Como dissemos, foi no Cais de Alcântara que se juntou a maior parte das centenas de pessoas que, durante toda a

madrugada de hoje, aguardaram a chegada do «Vera Cruz», até porque a P. S. P. não deixava estacionar ninguém

no Cais da Rocha.

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Diário de Lisboa, n.º 14166, de 22Mai1962 (transcrição efectuada pela equipa do UTW) Página 3/8

Cerca das 4 horas, começaram a chegar ali as

entidades militares que iriam dirigir a operação

de desembarque e, então, já foi permitida a

aproximação, relativa, do publico, que formou

densos cordões, no extremo do largo exterior da

gare marítima.

Entre outros oficiais que superintenderam na

operação contam-se os srs. general David dos

Santos, coronel Valente Pires, tenente-coronel

Mário Ferreira e major Mota. A montagem do

dispositivo de segurança foi discreta e eficiente

e nunca contundiu com os populares.

Pouco passava das 4 horas quando o paquete da

Companhia Colonial de Navegação,

transformado em transporte de tropas, com as

suas mil luzes reflectidas na água ainda negra,

deixou a sua imobilidade á entrada da barra e

começou a subir o rio. Seguiu-se uma série de

lentas manobras de atraque até que, ás 5 e 15, o

barco ficou completamente encostado ao cais.

Amanhecia e nas amuradas viam-se já

distintamente filas cerradas de soldados e

marinheiros, civis e mulheres, que correspondiam, de quando em vez, aos acenos de lenços ou saudações das

pessoas que, comprando bilhete, haviam, entretanto, tido acesso ao varandim da estação marítima.

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A luz ainda pardacenta da madrugada, o cais estava quase vazio e silencioso. Aguardava-se, manifestamente,

ordem superior para o início das operações de desembarque. Cá fora ouviam-se, distintamente, algumas ordens a

bordo. E só ás 5 e 30 foram colocadas as escadas de acesso ao navio.

O sr. general David dos Santos, que dirigia superiormente a operação de desembarque, recebeu então os

jornalistas num dos gabinetes da gare marítima. Aquele oficiai começou por agradecer a presença dos

representantes da Imprensa, a quem comunicou que lhes seria dada inteira liberdade de acção, com a certeza de

que, tanto nas notícias como nas fotografias, manteriam uma atitude realista e equilibrada.

Respondendo a algumas perguntas que lhe fizemos, o sr. general David dos Santos esclareceu que as forças

desembarcadas seguiriam, em comboios e viaturas automóveis para os seus respectivos quarteis, dispondo

imediatamente de 48 horas para contactar com as famílias e ir a casa. Os militares da Madeira seguiriam

imediatamente no «Lima» para aquela ilha.

O desembarque deveria iniciar-se ás 6 horas, esperando-se que estivesse concluído ás 8 e 30.

O desembarque iniciou-se às 6 horas e 5 minutos

Efectivamente, o desembarque começou pouco depois das 6 horas, precisamente, ás 6 e 5, depois da força da

Polícia Militar ter ocupado as suas posições no cais.

O primeiro militar a descer foi o capitão Morgadinho, da Companhia de Artilharia 249, do Porto, seguido do

alferes Barradas, sargentos e soldados da mesma companhia, em número de 160. Seguem-se outras companhias;

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marinheiros garbosos do «Afonso de Albuquerque», alguns com vistosas barbas no estilo do patrono do glorioso

navio; agentes da Polícia á paisana; mulheres goesas e crianças.

Alguns oficiais em serviço no cais, reconhecendo nos expedicionários antigos camaradas, exprimiram a sua alegria

com acenos e palavras amigas, e, não raro, com abraços calorosos.

Por fim, em macas, já com um sol brilhante a iluminar o cenário, foram transportados para as ambulâncias 14

doentes, que seguiram para os respectivos hospitais militares. A operação terminou ás 7 e 35, isto é, uma hora

antes da prevista, o que prova a ordem e disciplina com que decorreu a operação.

As mulheres e crianças — esposas de soldados e agentes da Polícia de Goa — foram transportadas para o Centro

da Cruz Vermelha, na Parede, nos veículos que as aguardavam.

Tudo decorreu, pois, na melhor ordem e calma. A pouco e pouco, a estação do Cais da Rocha foi-se esvaziando —

de militares, de público e de interesse, também.

A operação de desembarque terminara. Os militares regressados da Índia seguirão das suas unidades, sem

quaisquer outras formalidades, para suas casas. Após 48 horas, entrarão de licença, por períodos prorrogáveis de

15 dias.

O «Vera Cruz» voltará de novo a Karachi, para transportar para a Metrópole, civis evacuados de Goa.

O sr. general Vassalo e Silva esteve, também, com o sr. brigadeiro Fernando Chaby, no Cais da Rocha, a assistir á

operação de desembarque, tendo, no final, subido a bordo do «Vera Cruz».

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A guarnição do «Afonso de Albuquerque», que teve actuação heroica no combate daquela nossa unidade naval

com poderosos navios de guerra da União Indiana, assim que o «Vera Cruz» atracou á estação marítima da Rocha

do Conde de Óbidos, desembarcou e foi conduzida em dois autocarros para a Doca da Marinha. Ali, teve carinhosa

recepção por parte do titular da referida pasta, sr. almirante Quintanilha Mendonça Dias, bem como dos altos

comandos, outros oficiais e familiares.

Aquele membro do Governo

chegou à Doca da Marinha cerca

das 6 e 45, sendo ali aguardado

pelos srs. almirante Sousa Uva,

chefe do Estado-Maior da Armada;

Roborede e Silva, subchefe do

Estado-Maior da Armada; Vasco

Lopes Alves, director do Instituto

Superior Naval de Guerra; Cardoso

de Oliveira, comandante Naval do

Continente; Henrique Tenreiro,

inspector de Marinha; Newton da

Fonseca, director-geral de Marinha;

e Noronha Andrade, secretário-

adjunto da Defesa Nacional;

comodoros Oliveira Júnior,

Laurindo Henriques dos Santos,

Joaquim José Teixeira, Valente de

Araújo, Vítor Duque, Santos Júnior

e Almeida Carvalho, e ainda o comandante do «Afonso de Albuquerque», capitão-de-mar-e-guerra António da

Cunha Aragão, e outros oficiais superiores.

O abraço do comandante Cunha Aragão aos elementos da guarnição do

«Afonso de Albuquerque»

O encontro do comandante Cunha Aragão, com os elementos da guarnição do seu navio, que se encontravam

formados sob o comando do imediato Pinto da Cruz, foi emocionante. O bravo oficial estreitou em primeiro lugar

num grande amplexo o sr. capitão-de-fragata Pinto da Cruz, o imediato a quem entregou o comando do navio

depois de gravemente ferido. Seguidamente abraçou os restantes oficiais, sargentos e praças, com referência

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especial para o marinheiro que desempenhava a bordo as funções de seu criado e que o acompanhou

dedicamente nos momentos mais difíceis.

Depois, o sr. ministro da Marinha avançou em direcção aos oficiais e cumprimentou-os um por um, felicitando-os

pela sua actuação que deixou prestigiada a corporação que servem.

O discurso do ministro da Marinha

O sr. almirante, Quintanilha Mendonça Dias, dirigindo-se aos oficiais, sargentos e praças, afirmou:

- Ansiosamente os esperava e é com verdadeira

emoção que os encontro de novo de regresso á

Metrópole, depois de terem servido e cumprido

o seu dever na nossa Índia — naquela parcela da

Nação que foi cadinho para a rija tempera das

nossas energias e virtudes que nos deram o

Império.

E mais adiante:

- Estamos todos de luto, e eu sinto-o

particularmente, pois a chaga que se abriu

jamais deixará de sangrar, enquanto não

voltarmos a pisar aquele território. Infelizmente,

nem todos os que por lá andaram conseguiram

voltar. Alguns deles por lá tombaram, para

sempre, no cumprimento do dever e da defesa

da Pátria. Morte gloriosa e heroica, pois bem

souberam cumprir esse dever, honrando a

Nação e a Marinha. Para eles convergem neste

momento os meus pensamentos, relembrando-os dolorosamente. Aqui lhes presto a mais sentida homenagem de

saudade, num minuto de silêncio.

E a concluir declarou:

Não os prendo mais, aguardo agora os relatórios que hão-de vir ás minhas mãos, para me inteirar mais

detalhadamente de tudo quanto ocorreu. A todos concedo quinze dias de licença para mitigarem saudades com os

vossos familiares que estão ansiosos para os abraçar. Felicidades.

22Mai1962: Índia - A chegada do «VeraCruz» a Lisboa

Diário de Lisboa, n.º 14166, de 22Mai1962 (transcrição efectuada pela equipa do UTW) Página 8/8

Regressaram 11 oficiais, 27 sargentos e 139 praças

Findo o discurso do sr. ministro da

Marinha, os 11 oficiais, 27 sargentos e 139

praças, que regressaram no «Vera Cruz»,

dirigiram-se para as suas residências.

Igualmente viajou naquele transporte de

tropas o sr. capitão-tenente engenheiro

construtor naval, Bernardino Rodrigues

Faria Cadete, que pertencia ao Comando

Naval de Goa e que no Estado da Índia

desempenhava as funções de director dos

estaleiros navais de Goa.

Os indianos rebocaram para

Bombaim a carcaça do

«Afonso de Albuquerque»

Soube-se agora em Lisboa, através de

alguns elementos da guarnição do aviso

«Afonso de Albuquerque», que a União

Indiana rebocou para o porto de Bombaim

a carcaça daquele nosso vaso de guerra,

onde se encontra.

O facto foi observado no decorrer de uma

viagem aérea de Goa para Karachi por

passageiros de um dos aparelhos franceses

que transportaram os militares

portugueses.

O comodoro Viegas Ventura

chega a Lisboa no «Pátria»

No paquete «Pátria», que dentro de dias chegará ao porto de Lisboa, viaja o comodoro Raul Viegas Ventura,

comandante naval de Goa, acompanhado de elementos que faziam parte daquele comando naval.