agua como tema gerador

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26 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 20, NOVEMBRO 2004 Água como tema gerador do conhecimento químico RELATOS DE SALA DE AULA A seção “Relatos de sala de aula” socializa experiências e construções vivenciadas nas aulas de Química ou a elas relacionadas. Recebido em 1/10/02; aceito em 23/6/04 T enho considerado, em todos esse anos que venho traba- lhando com ensino de Química, o “ensinar Química” como uma tarefa bonita e atraente 1 . Fazer nossos alu- nos e alunas incorporarem o conhe- cimento químico em quantidade suficiente para que, no mínimo, gos- tem de Química tem sido, sem dúvi- da, uma tarefa complicada. No EDEQ/ENEQ (Encontro Na- cional de Ensino de Química) de Porto Alegre, realizado em julho de 2000, Mansur Lutfi definiu bem, do meu ponto de vista, o que temos feito com o conheci- mento químico. Em uma analogia, ele comparou o ensino de Química a pais dando a seus filhos, em colheradas se- paradas, farinha, açúcar, leite, ovos, manteiga e fermento, e esperando que, através de diversas interações dentro do corpo, isto tudo se trans- formasse em um delicioso produto. Nós professores de Química, que temos trabalhado o conhecimento químico na forma de itens fragmen- tados, esperamos que nossos alunos e alunas possam, um dia, juntar todo esse conhecimento e, com ele, enten- der o mundo material e, mais ainda, gostar dessa Química de “colherad- as”. A necessidade de mudança é in- discutível e muitas propostas sobre ensinar Química através de eixos temáticos têm sido apresentadas nos vários encontros de Ensino de Quí- mica realizados pelo país e publi- cadas em revistas especializadas. Possivelmente com a hipótese de que o pensamento químico se constitua pela re- flexão sobre o mun- do material, os eixos temáticos têm sido propostos como ten- tativa de que, ao re- fletir sobre as coisas do meio, tais como ar, água, planta e outros que tenham relação com a vivência do aluno, contemplem, tam- bém, o conteúdo mínimo da disciplina de Química, levando o aluno a sentir necessidade do conhecimento químico, perceber sua importância e gostar desse conhecimento. A minha vivência em trabalhos extra-classe, tais como solicitação de notícias de jornais, revistas ou TV rela- cionadas à Química e participação em mostras e feiras de Ciência, entre outros, fez-me observar que a relação da Química com o cotidiano se dá de maneira negativa, pois muitos traba- lhos referem-se a “destruição da ca- mada de ozônio”, “chuva ácida”, “efeito estufa”, entre outros, e as notí- cias trazidas para a sala de aula refe- rem-se a esses mesmos assuntos e, também, a desastres ecológicos como: navio que derrama produtos químicos no mar, dioxinas, poluição das águas, acidentes de trânsito envolvendo carregamentos químicos, etc. Algumas propostas de ensino de Química também usam, às vezes, te- mas que, do meu ponto de vista, po- dem reforçar a visão de Química como prejudicial. Algumas vezes a importância de conhecer Química é destacada como uma possibilidade de controlar os desastres que, na vi- são dessas propostas, a própria Quí- mica causa (retirar óleo do mar, des- poluir um rio etc.). A água e seu ciclo na natureza A água, como tema gerador, tem recebido uma atenção especial em termos de propostas. Talvez isto se Ana Luiza de Quadros A desconstrução/minimização do imaginário criado sobre a disciplina de Química do Ensino Médio tem sido um desafio durante toda minha atuação como professora de Química. Este trabalho trata da água em uma visão mais rural e, por isso, difere de muitas propostas que usam a água como tema gerador do conhecimento químico, principalmente daquelas provenientes de grandes centros urbanos. A água, tão presente na vida de cada um e cada uma de nós, pode ser usada para desenvolver praticamente todos os conceitos comumente abordados nas aulas de Química do Ensino Médio. eixos temáticos, ensino de Química, contextualização dos conhecimentos O conhecimento químico tem sido trabalhado na forma de itens fragmentados, e espera-se que os alunos possam, um dia, juntar todo esse conhecimento e, com ele, entender o mundo material

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    QUMICA NOVA NA ESCOLA N 20, NOVEMBRO 2004gua como tema gerador do conhecimento qumico

    RELATOS DE SALA DE AULA

    A seo Relatos de sala de aula socializa experincias e construes vivenciadas nas aulas de Qumica ou a elasrelacionadas.

    Recebido em 1/10/02; aceito em 23/6/04

    Tenho considerado, em todosesse anos que venho traba-lhando com ensino de Qumica,o ensinar Qumica como uma tarefabonita e atraente1. Fazer nossos alu-nos e alunas incorporarem o conhe-cimento qumico em quantidadesuficiente para que, no mnimo, gos-tem de Qumica tem sido, sem dvi-da, uma tarefa complicada.

    No EDEQ/ENEQ (Encontro Na-cional de Ensino de Qumica) de PortoAlegre, realizado em julho de 2000,Mansur Lutfi definiubem, do meu pontode vista, o que temosfeito com o conheci-mento qumico. Emuma analogia, elecomparou o ensinode Qumica a paisdando a seus filhos,em colheradas se-paradas, farinha, acar, leite, ovos,manteiga e fermento, e esperandoque, atravs de diversas interaesdentro do corpo, isto tudo se trans-formasse em um delicioso produto.Ns professores de Qumica, quetemos trabalhado o conhecimentoqumico na forma de itens fragmen-

    tados, esperamos que nossos alunose alunas possam, um dia, juntar todoesse conhecimento e, com ele, enten-der o mundo material e, mais ainda,gostar dessa Qumica de colherad-as.

    A necessidade de mudana in-discutvel e muitas propostas sobreensinar Qumica atravs de eixostemticos tm sido apresentadas nosvrios encontros de Ensino de Qu-mica realizados pelo pas e publi-cadas em revistas especializadas.

    Possivelmente com ahiptese de que opensamento qumicose constitua pela re-flexo sobre o mun-do material, os eixostemticos tm sidopropostos como ten-tativa de que, ao re-fletir sobre as coisas

    do meio, tais como ar, gua, planta eoutros que tenham relao com avivncia do aluno, contemplem, tam-bm, o contedo mnimo da disciplinade Qumica, levando o aluno a sentirnecessidade do conhecimentoqumico, perceber sua importncia egostar desse conhecimento.

    A minha vivncia em trabalhosextra-classe, tais como solicitao denotcias de jornais, revistas ou TV rela-cionadas Qumica e participaoem mostras e feiras de Cincia, entreoutros, fez-me observar que a relaoda Qumica com o cotidiano se d demaneira negativa, pois muitos traba-lhos referem-se a destruio da ca-mada de oznio, chuva cida,efeito estufa, entre outros, e as not-cias trazidas para a sala de aula refe-rem-se a esses mesmos assuntos e,tambm, a desastres ecolgicoscomo: navio que derrama produtosqumicos no mar, dioxinas, poluiodas guas, acidentes de trnsitoenvolvendo carregamentos qumicos,etc. Algumas propostas de ensino deQumica tambm usam, s vezes, te-mas que, do meu ponto de vista, po-dem reforar a viso de Qumicacomo prejudicial. Algumas vezes aimportncia de conhecer Qumica destacada como uma possibilidadede controlar os desastres que, na vi-so dessas propostas, a prpria Qu-mica causa (retirar leo do mar, des-poluir um rio etc.).

    A gua e seu ciclo na naturezaA gua, como tema gerador, tem

    recebido uma ateno especial emtermos de propostas. Talvez isto se

    Ana Luiza de Quadros

    A desconstruo/minimizao do imaginrio criado sobre a disciplina de Qumica do Ensino Mdio tem sido um desafiodurante toda minha atuao como professora de Qumica. Este trabalho trata da gua em uma viso mais rural e, por isso,difere de muitas propostas que usam a gua como tema gerador do conhecimento qumico, principalmente daquelasprovenientes de grandes centros urbanos. A gua, to presente na vida de cada um e cada uma de ns, pode ser usadapara desenvolver praticamente todos os conceitos comumente abordados nas aulas de Qumica do Ensino Mdio.

    eixos temticos, ensino de Qumica, contextualizao dos conhecimentos

    O conhecimento qumicotem sido trabalhado na

    forma de itensfragmentados, e espera-seque os alunos possam, um

    dia, juntar todo esseconhecimento e, com ele,entender o mundo material

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    QUMICA NOVA NA ESCOLA N 20, NOVEMBRO 2004gua como tema gerador do conhecimento qumico

    d pela sua abundncia e distribuiono Planeta, talvez pela sua proximi-dade do aluno ou, quem sabe, porfazer parte das sugestes apresen-tadas pelos PCNs. Muitas dessaspropostas so provenientes de cida-des litorneas ou de grandes cidades,nas quais a problemtica da poluioda gua mais grave. Intenciono,neste texto, apresentar uma visomais rural para o desenvolvimento doconhecimento qumico usando agua como eixo temtico.

    Basta observarmos uma represen-tao de nosso planeta para perce-bermos que, mesmo se chamandoTerra, a gua ocupa a maior parte dasua superfcie. Tambm a cincia temdemonstrado que a vida se originouna gua - embora j haja controvr-sias - e que ela constitui a substnciapredominante nos organismos vivos.

    Sendo a gua to importante paraa nossa vida e estando to abundanteno nosso planeta, ela se constitui emum assunto importante que permitetrazer para o contexto os conceitosqumicos que, por sua vez, podempermitir a formao do pensamentoqumico. Nos programas de Qumicatradicionais a gua aparece quandoso tratados assuntos como separa-o de misturas, substncia pura,ligaes qumicas, solues, forasintermoleculares, polaridade, geome-tria, cidos/bases, entre outros. Mas,considerando o enfoque secundrioque dado a ela, me pergunto: serque o aluno considera aquela guaabordada na Qumica tradicional a

    mesma gua que ele usa para beber?Os tantos ons presentes na gua quebebemos so considerados quandoa gua citada nos programas tradi-cionais? A gua pura pensada emtermos de ons presentes? O aluno vaiencontrar essa gua - trabalhada nosprogramas tradicionais - na agricul-tura? Na irrigao, por exemplo, osons presentes na gua so consi-derados? Por que no possvel irri-gar com gua salga-da? O que significasalinizao do solo?

    Pelo fato de ser aagricultura a baseeconmica de mui-tos dos nossos pe-quenos municpios, importante enfati-zar a ligao da agri-cultura com essa ri-queza, que na suaforma potvel est se esgotando.Mesmo existindo tanta gua noPlaneta, a gua potvel um recursolimitado e no estar disponvelindefinidamente. Hoje, acredita-seque cerca de 250 milhes de pes-soas, distribudas em 26 pases, jenfrentam escassez crnica de gua.

    A agricultura considerada umadas grandes culpadas pela poluiodas guas. So tcnicas de irrigaoque, algumas vezes, no considerama capacidade do solo de absorvergua e no respeitam os horrios emque a evaporao menos intensae, portanto, ocorre menor perda des-sa substncia; so agrotxicos que

    chegam aos rios, matando a vidaaqutica; so bosques e florestasdestrudos, entre outros problemas.A preocupao com a irrigao, como florestamento e sua importncia nociclo de gua, com as fontes naturaisde gua, com a aqicultura, quandoacompanhada de um pensamentoqumico, deve fazer parte de escolascujos alunos tenham alguma ligaocom a agricultura.

    A gua umasubstncia de gran-de reciclagem. Ela parte essencial detodas as formas devida dos reinos vege-tal e animal e encon-tra-se por toda partena crosta terrestre ena atmosfera. Nasfaixas de temperatu-ra do ar que ocorrem

    sobre a Terra, ela se apresenta nostrs estados - slido, lquido e gasoso- e, como existem condiespropcias para a passagem de umestado para outro, sua reciclagem formidvel, formando um dos ciclosa serem desenvolvidos na disciplinade Qumica. Proponho que se inicieo estudo do conhecimento qumicoatravs do estudo do ciclo da gua,que, nesse momento, no deve serfeito pelo professor, mas sim pelosalunos, atravs de leitura eapresentao do tema em sala deaula.

    Normalmente o assunto ciclo dagua considerado simples e os alu-nos no vem dificuldade em apre-sent-lo para os demais colegas. Masalguns questionamentos devidamen-te conduzidos podem levar a algumasdvidas: por que a gua evapora? Porque ela no evapora toda, fazendocom que sequem os lagos? Que fato-res regulam a evaporao? At ondea gua evapora? Que fator faz comque ela no se perca no Universo?Por que ela volta? Quais fatores fazemcom que ela volte lquida? Por que,s vezes, chove granizo? Qual o esta-do fsico da gua nas nuvens? Porque o gelo das chuvas de granizo nofunde? Estariam as nuvens muito bai-xas? Seriam os blocos de gelo muitograndes?

    A gua, to importantepara a nossa vida e to

    abundante no nossoplaneta, se constitui em um

    assunto importante quepermite trazer para ocontexto os conceitos

    qumicos que, por sua vez,podem permitir a formao

    do pensamento qumico

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    Cirros-cmulos e cirros-estratos, parte do ciclo da gua.

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    Esses questionamentos levam procura de conceitos como tempera-tura, ponto de fuso, ponto de ebuli-o, presso atmosfrica, presso devapor e diagramas de fases. As res-postas para esses questionamentos,normalmente, no esto presentesnos livros didticos mais tradicionais,mas podem ser encontradas emlivros mais especficos (Brady, 1989;Branco, 1993; Masterton et al., 1990;Reichardt, 1990). Alm de permitiremum melhor entendimento do ciclo dasguas, esses conceitos podem levarao desenvolvimento de outros conhe-cimentos importantes para alunos ealunas.

    Neste perodo em que a agroin-dstria recebe uma ateno especiale que os incentivos, em termos decrditos de investimento, tendem a seconcentrar nesse ramo da agricultura,processos como a liofilizao, ouseja, a conservao de alimentos pordesidratao em baixas temperatu-ras, tornam-se importantes. Soconhecimentos como diagrama de fa-ses que permitiram o desenvolvimen-to da tecnologia de liofilizao. Apresso de vapor tambm est direta-mente relacionada a esse processo.

    preciso ressaltar, tambm, osucateamento tecnolgico no setoragroindustrial. At alguns anos atrs,a pasteurizao do leite era umatecnologia qual apenas a grandeindstria tinha acesso. Hoje, portratar-se de uma tecnologia no maisto moderna, de domnio pblico,qualquer agricultor pode pasteurizaro seu leite com uminvestimento razo-vel e coloc-lo no co-mrcio. A tcnica depasteurizao foisubstituda pela pro-duo do leite longavida, a cuja tecnolo-gia de produo ain-da no temos aces-so. A tecnologia quepermitiu a pasteurizao do leite tor-nou-se ultrapassada quando apa-receu outra melhor no mercado.

    Grande parte da gua do Planeta- mais de 60% - apresenta-se na faseslida e est localizada, principalmen-te, na crosta terrestre, nas regies

    polares e de grande alti-tude, nas formas de gelo eneve. Com disponibilidadede energia, a gua slidapode passar para a faselquida, podendo, porm,tambm passar diretamen-te para a fase gasosa, pro-cesso este denominadosublimao. Pode-se dis-cutir, em sala de aula, aocorrncia de gua potvele a sua escassez. Tambm possvel introduzir o con-ceito de gua destilada,embora ele seja retomadomais adiante.

    Os processos de eva-porao, transpirao,sublimao e fuso exigemenergia, sendo a fonte prin-cipal o Sol. Por isso, elesso afetados pela inten-sidade da radiao solar,pela temperatura do ar e dagua, pelo vento, pela umidade do are por muitos outros fatores. Com rela-o umidade do ar, pode-se discutircom nossos alunos sua influncia natranspirao das plantas, na germina-o de sementes e na nossa prpriatranspirao, entre outros, e a, nova-mente, retornar ao conceito de pres-so de vapor. A quantidade de guapresente no ar, associada ao gs car-bnico e a outros gases, tambm estrelacionada ao efeito estufa que,atravs do aquecimento global doPlaneta, pode derreter parte da guaslida dos plos e causar outros pro-

    blemas, sendo, porisso, consideradoum dos grandes pro-blemas ambientaisdeste sculo.

    A gua, temaescolhido para geraro conhecimento qu-mico, pode introduziroutros assuntos ouproblemas que exi-

    gem novos conceitos, alguns delesinterdisciplinares, como o caso daClimatologia, da taxa de transfernciade energia e de muitos outros.

    A chuva, ao atingir a superfcie dosolo, nele se infiltra, havendo possibi-lidade de parte da gua escorrer pela

    superfcie. Este segundo processo denominado escoamento superficiale um dos responsveis pela erosodo solo. Na agricultura convencional,que ara o solo e queima a palha quesobra de culturas, a eroso tornou-se um srio problema. E, neste caso,a gua que significa vida, causadestruio do solo atravs de remo-o de terra que, ao atingir os rios,torna seus leitos mais rasos, provo-cando um alastramento maior dagua em pocas de enchente e a re-moo por solubilidade de nutrientes- substncias essenciais s plantas.Atravs da eroso, grandes quanti-dades de solo valioso podem serperdidas.

    A gua que se infiltra no solo porele armazenada em seus poros, fican-do parte disponvel para as plantas.Em certas reas ou regies, a guano penetra muito no solo, ocasio-nando problemas na lavoura. Por quea gua no penetra no solo? E, quan-do penetra, como o solo a armazena?Qual a influncia dos tipos de solo naabsoro de gua? Quando no absorvida, para onde vai a gua?Essas so algumas das questes quepodem permear o estudo, pois aimportncia da matria orgnica parao solo tem sido muito evidenciada e

    O tema gua podeintroduzir outros assuntosou problemas que exigemnovos conceitos, algunsdeles interdisciplinares,

    como o caso daClimatologia, da taxa de

    transferncia de energia ede muitos outros

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    gua pura: um bem cada vez mais escasso.

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    o ciclo dos principais nutrientes, a servisto em seguida, poder retomar ostipos de solo e discutir o que significa,quimicamente, essa matria org-nica. Do solo e das plantas a guavolta para a atmosfera na fase de va-por, fechando assim o ciclo.

    imprescindvel o bom entendi-mento do ciclo da gua na natureza,para que o aluno possa perceber quea gua est presente em todos os se-res vivos, mas que ela tem funes quevo muito alm de, por exemplo,impedir uma desidratao. Os estadosfsicos da gua, as mudanas deestado fsico, a presso de vapor, en-tre outros, so conceitos que podemser introduzidos para que se entendamelhor o mundo material vivido. A pres-so de vapor ou o diagrama de fases,que so apontados como contedostericos, podem ganhar, assim, umoutro contexto, medida que tm signi-ficado para os alunos. Ao se trabalharo ciclo da gua, diversos outros assun-tos podem ser explorados para umperfeito entendimento dele.

    Quimicamente a gua formadapelos elementos hidrognio e oxignio,representados pela frmula molecularH2O. Mas ela no s isso. O reconhe-cimento da representao qumica dagua pode ser explorado em termosde porcentagem de cada um doselementos, em termos de proporo,entre outros, de forma que o alunoconsiga perceber que, em todas asrepresentaes qumicas, h uma certaquantidade de elementos qumicospresentes. Acredito que, se o alunoentender a porcentagem elementarpara a gua, ele poder aplicar esseconhecimento para novas situaes.Assuntos importantes podem serdiscutidos a partir dessa representaoqumica, como, por exemplo: o oxig-nio presente na molcula de gua omesmo que ns respiramos? Ospeixes respiram o oxignio presente namolcula H2O ou o O2 dissolvido nagua? Em um rio poludo e, conse-qentemente, com pouco oxignio, amolcula de gua muda pela falta deoxignio ou o oxignio dissolvido nela que diminui?

    gua doce vs. gua salgadaA gua do mar chamada de sal-

    gada, enquanto a gua dos rios,lagos, lenis freticos e outros cha-mada de doce. Essa classificaodeve-se ao grau de concentrao decertos sais nelas dissolvidos. Nanatureza no existe gua pura, devido sua grande capacidade como sol-vente. A gua dissolve grande partedas substncias qumicas.

    Para evidenciarmos isto, bastaque observemos, com nossos alu-nos, uma anlise de gua. As subs-tncias presentes nessa gua vo,certamente, levar a alguns questio-namentos, tais como: de que formaessas substncias esto presentesna gua? Por que no as enxerga-mos? De onde elas vm? Elas modi-ficam as propriedades da gua?Esses questionamentos, quando fei-tos por alunos ou mesmo quandoinduzidos pelo professor, podemtrazer os conceitos de dissoluo, desolubilidade, entre outros. O fato deno enxergarmos, por exemplo, o salde cozinha, quando dissolvido emgua, pode levar ao estudo dos onse das caractersticas destes frenteaos seus sais de origem (naturezaeltrica da matria). Se uma anlisede gua no estiver disponvel, pode-se usar o rtulo de algumas marcasde gua mineral para analisar os saisl presentes, j que esta tambm classificada como gua doce. Consi-dero muito importante o aluno perce-ber e, por isso, volto a esse assuntovrias vezes, a diferena entre a guadoce e a gua salgada.

    Para um aluno oualuna com ligaocom a agricultura, aoter clareza de concei-tos como presso devapor, fica fcil anali-sar qual o melhor ho-rrio para fazer irrigao. Ao conhecero que uma gua doce, ele pode en-tender os problemas de salinizao dosolo, que j so bastante conhecidosem regies que usam, de forma maissistemtica, a tecnologia de irrigaodo solo. Alm disso, esses ons todos,presentes tanto na gua doce quantona gua salgada, exigem conceitos desolubilidade. A discusso sobre extra-o de sal do mar levar ao estudo dasligaes inicas.

    A gua nas plantas

    A planta, como produo agrcola,necessita de gua para crescer e sedesenvolver. A gua o constituintevegetal mais abundante, correspon-dendo, algumas vezes, a 95% damassa total da planta. Como solvente,a gua serve de meio de deslocamen-to para certas substncias essenciaiss plantas. Essas substncias sousualmente chamadas de nutrientes. importante analisar o conceito qu-mico e o conceito biolgico dado anutrientes e substncias e, atravsdessa diferenciao, discutir elemen-tos qumicos e substncias. Mas dis-solver nutrientes no a nica funoda gua nas plantas.

    Alm da gua, pode-se questio-nar, com alunos e alunas, sobre ou-tras substncias que a planta absor-ve. Normalmente o gs carbnico a substncia mais citada. E, certa-mente, ouviremos que a planta usa ogs carbnico para produzir oxignio.E, neste momento, as representaesqumicas tornam-se fundamentais.Como pode o CO2 se transformar emO2? Se a fotossntese fosse apenastransformao do CO2 em O2, o queaconteceria com os tomos de car-bono? possvel fazer, tambm, umacomparao com o processo de res-pirao: se a respirao fosse trans-formar o O2 em CO2, que outra trans-formao teria dado origem aocarbono? Alguns outros questiona-mentos tornam-se pertinentes: a res-

    pirao o inversoda fotossntese? Asreaes intracelu-lares, a digesto, arespirao e a circu-lao esto direta-mente relacionadas?

    possvel fazer essa relao pen-sando quimicamente?

    O fenmeno da fotossntese pre-cisa ser entendido quimicamente. Agua tem um papel fundamental nafotossntese e esta, talvez, seja a prin-cipal funo da gua para a planta.Outras questes devem ser dis-cutidas: a planta faz fotossntese paraproduzir oxignio ou para formar assuas prprias substncias? Qual a im-portncia da energia solar? A planta

    A gua tem um papelfundamental na fotossntese

    e esta, talvez, seja aprincipal funo da gua

    para a planta

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    QUMICA NOVA NA ESCOLA N 20, NOVEMBRO 2004gua como tema gerador do conhecimento qumico

    poderia fazer fotossntese com aenergia proveniente da luz eltrica?Qual a real funo da energia lumi-nosa na planta? Qual a funo daglicose na planta? Que outras subs-tncias podem se formadas a partirda glicose? Que outras substncias

    a planta possui que noso formadas s a partirda glicose? A respostapara esses questiona-mentos exige saberesinterdisciplinares e umadedicao mais profunda Bioqumica.

    O carbono conside-rado o ponto focal dastransformaes qumicasrealizadas pelas plantas.O gs carbnico, cujarepresentao qumica CO2, presente no ar aproveitado pela plantapara participar do proces-so de fotossntese, junta-mente com a gua. Nessatransformao, a energialuminosa essencial paraa quebra das ligaes dasmolculas de gua (oxi-dao) que, por suces-so, iro quebrar asligaes das molculas

    de gs carbnico (reduo). Em umatransformao que se d em diversasetapas, teremos a formao da gli-cose, cuja representao C6H12O6,que, atravs de outras transfor-maes, ir formar amido, celulose,protenas, aminocidos etc., cons-

    Figura 1: Mapa conceitual para o tema gua.

    tituintes dos vegetais e tendo, todoseles, uma representao qumicatambm. Ao consumirmos os alimen-tos produzidos pelas plantas, ou atra-vs da simples decomposio dasplantas ao ar livre, as substncias for-madas como produto final pelas plan-tas se decompem, at se transfor-marem em glicose. Esta, num proces-so que no o inverso da fotossn-tese, ir formar, novamente, o gs car-bnico, que ir para a atmosfera eentrar novamente no ciclo. A fotos-sntese, nessa abordagem, ser com-preendida quimicamente, bem comoprocessos de formao de outrassubstncias a partir da glicose, comoamido, celulose e protenas, entreoutras.

    O fenmeno da fotossntese vaiintroduzir o estudo de outras reaesqumicas e aqui considero muito im-portante que esse estudo seja feitode forma prtica, ou seja, provocandouma transformao qumica (emlaboratrio ou no) e tentando repre-sent-la por equaes qumicas. Jul-go importante que se enfatize o pro-cesso de transformao e no a clas-sificao das reaes. A Lei de Con-servao da Massa e a das Propor-es Definidas tambm podem serdesenvolvidas para explicar o uso decoeficientes nos reagentes e produ-tos de uma equao.

    Um tipo de substncia de grandeimportncia para a planta so as pro-tenas. Elas no sero formadas ape-nas a partir da glicose proveniente dafotossntese. A planta necessitarabsorver outras substncias, comu-mente chamadas de nutrientes. Osciclos dos principais nutrientes, entreeles os formados pelos elementos N,S, P e K, podem ser analisados e, apartir deles, podem ser introduzidosoutros conceitos qumicos importan-tes. Tratarei brevemente do ciclo donitrognio.

    Com relao ao ciclo do nitrog-nio, necessrio conhecer a compo-sio do ar e, a partir dela, entend-lo. O gs nitrognio, que tem a repre-sentao qumica N2, apesar da gran-de quantidade presente no ar, no absorvido pelas plantas nessas con-dies. A planta s absorve ons sol-veis em gua e, portanto, capazes de

    S.R

    . Bia

    ggio

    A gua tem um papel fundamental na fotossntese.

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    QUMICA NOVA NA ESCOLA N 20, NOVEMBRO 2004gua como tema gerador do conhecimento qumico

    Abstract: Water as a Theme Generator of Chemical Knowledge - The deconstruction/minimization of the imagery created around the discipline chemistry in high school has been a challenge duringall my action as chemistry teacher. This article deals with water in a more rural view and thus differs from many proposals that use water as a theme generator of chemical knowledge, but especiallyfrom the many coming from the large urban centers. Water, so present in the life of each one of us, can be used to develop practically all the concepts commonly treated in high-school chemistryclasses.Keywords: thematic lines, chemistry teaching, knowledge contextualization

    RefernciasBRADY, N. Natureza e propriedade

    dos solos. Trad. A.N. Figueiredo Filho.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989.

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    MASTERTON, W.L.; SLOWINSKI,E.J. e STANITSKI, C.L. Princpios deQumica. 6 ed. Trad. J.S. Peixoto. Riode Janeiro: Ed. Guanabara, 1990.

    REICHARDT, K. A gua em sistemasagrcolas. So Paulo: Ed. Manole,1990.

    Para saber maisCHAGAS, A.P. Argilas: As essncias

    da terra. So Paulo: Moderna, 1996.CHASSOT, A.I. Para que(m) til o

    ensino? Canoas: Ed. da Ulbra, 1995.MARCONDES, M.E.R.; VIDOTTI,

    I.M.G. e ESPIRIDIO, Y.M. Utilizando ahidrosfera no ensino de Qumica.Livro de resumos e programa: A edu-cao em Qumica pela pesquisa: umdesafio para a sala de aula. 2 ELEQ,20 EDEQ e 10 ENEQ. Porto Alegre,2000. p. 38-39.

    QUADROS, A.L. A Qumica na forma-o do tcnico agrcola: Potencialida-des inexploradas. Dissertao de mes-trado. Iju: Uniju, 2000 (nela pode serencontrada a justificativa para a cria-o desta tentativa de proposta).

    KAWASAKI, C.S. e BIZZO, N.M.V. Fo-tossntese: Um tema para o ensino deCincias? Qumica Nova na Escola, n.12, p. 24-29, 2000.

    mover-se nela. Somente por ao dealguns tipos de bactrias possvela absoro do nitrognio presente noar. Elas transformam o nitrognio doar em on amnio (NH4

    +), deixandopara outro grupo de bactrias a tarefade transform-lo em formas assimi-lveis planta, ou seja, na forma denitratos (NO3

    ). Quando absorvidospela planta, os nitratos, por seremsolveis em gua, nela se deslocame reagem com outras substncias jpresentes, formando as protenas. Ese a planta no absorver os onsliberados por ao bacteriana? Elesso adsorvidos pelo solo ou voltampara o ar na forma de N2?

    Qual afuno da argila, da areia e da matriaorgnica presentes no solo na adsor-so de nutrientes? Ao morrer eretornar para o solo, a planta liberanovamente o nitrognio em uma dasformas aproveitveis por outras plan-tas que ou o aproveitaro ou essesofrer novas transformaes atchegar forma molecular, que irpara o ar, fechando o ciclo.

    O entendimento desse ciclo trazconceitos de ligao qumica, par-tindo dos ons presentes no solo e doequilbrio desses ons. Uma introdu-o ligao inica j foi feita ao tra-balhar-se os ons presentes na guadoce e na gua salgada, mas o temapode ser aprofundado aqui, junta-mente com os outros tipos de liga-es, presentes nas molculas deH2O e nas de N2. Alm disso, o ciclodo nitrognio pode provocar outrasquestes: por que em certas regiesno necessrio aplicar uria ou apli-ca-se em menor quantidade? Qual ainfluncia dos relmpagos na absor-o de nitrognio pelas plantas? Aexplicao para essas questes per-mitir entender conceitos de energiapotencial (de ligao) e aprofundar oestudo das reaes qumicas, atravsda ruptura e formao de ligaes. necessrio buscar explicaes parao fato das plantas absorverem gran-des quantidades de gs carbnico,mesmo sendo sua porcentagem pre-

    sente no ar relativamente baixa, e noabsorverem o gs nitrognio, cujaporcentagem no ar alta. O estudodas energias de ligao fundamen-tal para esse entendimento.

    Muitos outros conceitos podemser usados para fecharmos o estudodo ciclo da gua na natureza. E paraisto, alm do ciclo da gua, usamos,neste trabalho, mais dois ciclos: car-bono e nitrognio. Considero muitoimportante que o aluno perceba quetodos os elementos qumicos estoem constante reciclagem e os proble-mas que hoje enfrentamos de polui-o representam, a maioria deles, adestruio desses ciclos. Ou seja,deslocamos substncias de seu ciclonormal e, com o decorrer do tempo,fora de seu ciclo, elas vo representarpoluio. Na Figura 1 mostrada umatentativa de se construir um mapaconceitual. Em cada um dos assuntoscitados, alguns conceitos so desta-cados. H muitos outros conceitosque poderiam ser introduzidos, almdos citados no quadro. Ele procuraser apenas uma idia geral sobre oprograma proposto.

    Considero que o uso da temticagua para desenvolver o conheci-mento qumico no Ensino Mdio per-mite a incluso de um nmero maiorde conceitos, dependendo da dispo-nibilidade de tempo. No a descrevide forma muito detalhada por doismotivos: o primeiro o espao; osegundo que considero que o maisimportante uma proposta ser elabo-rada por quem vai trabalh-la, poden-do, claro, receber o auxlio de outrascom os mesmos princpios. Espero,com esta divulgao, receber suges-tes para a melhoria da proposta,que uma tentativa de construir, comalunos e alunas, um pensamentoqumico. Espero, tambm, estarauxiliando quem hoje trabalha naconstruo de propostas que visema formao de um pensamentoqumico e a diminuio - e, utopica-mente, a destruio - da resistnciados alunos a essa disciplina, to

    cheia de beleza e encanto.

    Nota1. Partes deste texto fazem parte

    da dissertao de mestrado A Qu-mica na formao do tcnicoagrcola: potencialidades inexplo-radas, desenvolvida na Uniju, soborientao do Prof. Dr. Otavio AloisioMaldaner.

    Ana Luiza de Quadros ([email protected]),licenciada em Qumica pela Uniju, especialista emEnsino de Cincias pela Universidade de Passo Fun-do e mestre em Educao nas Cincias pela Uniju, docente na Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia, em Jequi - BA.