agripa vasconcelos - a vida em flor de dona beja

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A VIDA EM FLOR DE DONA BEJA SAGAS DO PAS DAS GERAIS, 3 AGRIPA VASCONCELOS A VIDA EM FLOR DE DONA BEJA Romance do Ciclo do Povoamento nas Gerais 4? EDIO ILUSTRAES DE YARA TUPINAMB EDITORA ITATIAIA LIMITADA, BELO HORIZONTE 1986 Direitos de Propriedade Literria adquiridos pela EDITORA ITATIAIA LIMITADA Belo Horizonte IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL SAGAS DO PAS DAS GERAIS ROMANCES HISTRICOS DE AGRIPA VASCONCELOS 1. FOME EM CANA - Romance do ciclo dos latifndios nas Gerais. 2. SINH BRABA - Dona Joaquina do Pompu - Romance do ciclo agropecurio nas Gerais. 3. A VIDA EM FLOR DE DONA BJA - Romance do ciclo do povoamento nas Gerais. 4. GONGO-SCO - Romance do ciclo do ouro nas Gerais. 5. CHICA QUE MANDA - Chica da Silva - Romance do ciclo dos diamantes nas Gerais. 6. CHICO REI - Romance do ciclo da escravido nas Gerais. E te vesti de bordadura, e te calcei com pele de teyugo, e te cingi de linho fino, e te cobri de seda. E te ornei de enfeites, e te pus braceletes nas mos e um colar roda do teu pescoo. E te pus uma jia na testa, e pendentes nas orelhas, e uma coroa de glrias na cabea. E assim foste ornada de oiro e prata, e o teu vestido foi de linho fino, e de seda, e borbadura. EZEQUIEL, 16: 10, 11, 12, 13. QUEM ESCREVEU ESTE ROMANCE... Quem escreveu este romance foi a prpria vida em flor de Dona Bja. A vida de Ana Jacinta de S. Jos foi estudada por muitos anos, obrigando- me a vrias viagens para colher informaes fidedignas. A tradio, que tambm histria, foi depurada de lendas, comuns a figura de seu tope. Ouvi os ancios que a conheceram na Diamantina do Bagagem e, entre eles, um escravo que trabalhou em seus garimpos. As lendas inverossmeis foram desprezadas. Todos os nomes, datas e lugares so, em rigor, exatos. Os cmodos de suas casas, que percorri vrias vezes, em Paracatu, Arax e Estrila do Sul, so descritos com veracidade. Os honestos descendentes de Ana Jacinta so os que menos informam sobre sua passagem pelo mundo, o que compreensvel. Os fatos em geral aqui aflorados foram ouvidos de mais de um informante, e os muitos episdios da poca so rigorosamente verdadeiros. Uns poucos nomes de indivduos ento importantes nas Minas Gerais, aparecem com parnimos, por viverem ainda pessoas de seu sangue, e pela escabrosidade dos fatos em que se envolveram. Dona Bja ainda viva na terra montanhesa, como nos dias de sua mocidade radiosa. Aqui ela se mostra como viveu, no esplendor da carne vencedora e na prematura renncia ao mundo, quando ainda cheia de encantos que fizeram da menina do serto uma Rainha de incontestvel fascnio.Seus amores vividos com luxuoso escndalo e salpicados de sangue serviram, ao menos, para nos dar 94.500 quilmetros quadrados de terra, o Tringulo Mineiro, ento usurpados pelo Capito-General DOM Joan Manoel de Melo, Capito-Mor das Batalhas dos Exrcitos Reais e Governador da Capitania de Gois. Seu palcio de Arax, hoje amparado pelo Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, atesta-lhe a opulncia. Mas o desvairamento do viver de Dona Bja que lhe mantm, no pas de coisas efmeras, a lembrana que vai ficando eterna, atravs das maledicncias da Histria. Eterna, porque Dona Bja vence as eras, pela coragem de suas atitudes indomveis e pela graa quase divina de sua beleza, Muitas palavras gravadas em maisculas obedecem ao gosto do tempo. - O GARIMPO DO DESEMBOQUE O pas o mais lavado dos ares e porisso muito fresco. Leandro Rabelo Peixoto de Castro - Carta ao Doutor Jos Teixeira de Vasconcelos, Governador da Provncia de Minas Gerais, 1827. primeiro homem branco a pisar, em 1663, a terra abenoada do Serto do Novo Sul(1) foi o bandeirante paulista Loureno Castanho Tacques. Partindo de Embau, levou sua bandeira at ao vale paracatuense e s divisas goianas. O que incendiava as mentes paulistas e portuguesas era a febre de metais preciosos, ndios e pedras coradas. O ouro chamava. O bugre chamava. As pedras coloridas brilhavam como um pedao luzente de cu encravado na terra, fascinando todas as ambies. A espantosa riqueza das minas de Golconda, na ndia, alvoroava a ambio mineira dos povoadores de terras mal conhecidas. A atoarda do ouro no Serto dos Goitacs alvoroava Portugal, e repetidas ordens do Reino armavam mateiros da Capitania de S. Vicente, criada em 1534, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Os mateiros reuniam gente: pees, ndios amansados, padres, escravos africanos, aventureiros, traficantes, entendidos de metais, ndios amansados, porque o preamento do bugre era um dos fitos dessas bandeiras atrevidas. Os bravos paulistas eram gulosos de escravos ndios que valiam ouro e se vendiam a um mil ris, na Vila de Piratininga, em So Vicente. A abundncia da mercadoria desvalorizava o tapuitnga, j 1 Serto do NOTO Sul. Serto Grande, Serto do Sul, Geral Grande, Serto da Farinha Podre eram nomes do que se chamaria, em 1884, Tringulo Mineiro. comerciado a trs mil ris na volta das primeiras mones que penetraram a terra. Continuavam a obra iniciada por Vicente Pinzon que, em 1500, ao chegar ao Mar Doce, aprisionou 36 aborgines do Amazonas para os vender na Espanha. Foi o primeiro preador do bugre brasileiro. Escravizavam os aborgenes porque eram considerados animais, entre os negros africanos e os macacos. No eram homens, mas bestas. Tanto era assim que os primeiros bandeirantes sustentavam seus ces de guerra com a carne do ndio, sem que isso fosse crime ou pelo menos pecado. Foi em vo que o Papa Jlio III, em 1537, pela bula Ventas Ipsa, reconheceu nos ndios verdadeiros homens, susceptveis de f. Os paulistas e portugueses espostejavam o bugre como se fazia ao tapir, ona e aos caititus. A matula heterognea partia... Em roda do Chefe seguiam capangas, briges, escopeteiros, vagabundos e carregadores de bruacas de vveres, caminhando sem bssola, pelo rumo das estrelas, farejando montanhas,vadeando rios ainda sem nome. A turba excitada pelos prprios boatos, notcias verdicas ou mentiras e sonhos delirantes, varava mato, padecia fome, batia, aprisionando, os gentios que lhes cortavam os passos; caminhava. .. Traziam balanas, cordoalha, alvies e sondas de pau, peneiras, bateias. Marchavam a p, falquejavam canoas, montavam raros cavalos peninsulares - no importa: furavam as brenhas, feridos, sujos, barbudos, com os olhos na miragem do ouro da aluvio, nas pepitas, nas betas, nos veios das pedras e principalmente nos ndios. O armador dessas legies de homens corajosos era o Chefe, vontade de ferro, corpo bravo, corao cem por cento. Alm de financiador se impunha como comandante, prtico, juiz, autoridade sem benevolncia. Precisava impor suas prerrogativas, garantir a ordem. Sua mo pesada impunha a disciplina, fazia a Lei da bandeira, senhor de barao e cutelo. Animava os descorooados, punia os covardes, esmagava as rebelies com sangue frio, as algemas e o cnhamo da forca. As bandeiras sucediam-se, apressadas; no esperavam mais as numerosas multides: largavam com quem pudessem marchar, mal equipadas, faltas at de pees e desfalcadas de fiis-guias. J no tempo do Governo Geral de Tom de Souza, ndios falavam em montanhas do vale do S. Francisco, morros de itajub, de pedras amarelas (seria ouro!) e pedras finas, verdes como esmeraldas 10 Corriam notcias de esmeraldas, que havia uma serra resplandecente delas... Ontem arrancavam buscando ndios e ouro, agora as pedras verdes! Ainda no governo de Tom de Souza, partindo de Porto Seguro, pisou na Terra Goitac a primeira bandeira de conquista de Jorge Dias, composta de doze homens e do padre Aspilcueta Navarro, da Companhia de Jesus. Chega depois Sebastio Fernandes Tourinho, entrando pelo rio Doce, enchendo as mos de pedras verdes... Vem Francisco Bruzza Espinosa, o grande lngua. Vem Antnio Dias Adorno, vem Matias Cardoso de Almeida. Um dia a buzina rouca de um peo uiva ao lado de um homem de prol, que empunha grande bandeira. Acorreu povo. Ferno Dias Paes Leme larga para o serto. Vem pela picada de Antnio Rodrigues Arzo, Marcos Antnio de Azeredo Coutinho, Antnio Dias de Oliveira, Sebastio Marinho, Joan Pereira Botafogo, Dom Francisco de Souza, Agostinho Barbalho, Vasco Rodrigues Caldas, Martm Carvalho, Braz Cubas, Martins Correia de S, Joan de Arajo, Miguel Garcia, Gabriel de Lara... foram muitos! Todos esses speros capites remexeram a terra, fuaram os riachos, revolveram grupiaras, afundaram catas... Foram florescendo os primeiros arraiais, os acampamentos bandeirantes ... Ibituruna, Santana do Paraopeba, Sumidouro, Baependi, Itacambira, Morrinhos, Olhos-d'Agua, Montes Claros, Sabar, Conquista... Em 1714, na lavra de S. Pedro, do ribeiro do Machado, no Arraial de Nossa Senhora da Conceio do Serro Frio, ao norte das Minas do Ouro, Dom Violante de Souza, ao tentar partir um cristal que estava a seus ps, no o conseguiu. Levou-o a seu marido Francisco Machado da Silva, que o deu de presente a Lus Botelho de Queirs. Lapidada a pedra, verificaram com assombro que era diamante! As minas de ouro possuam diamantes, muitos diamantes! Ciente desse fato, Bernardo da Fonseca Lobo, que lavrava no ribeiro de Morrinhos, no Arraial do Tijuco, envia amostras desses diamantes para a Metrpole e pede mercs, pede alvssaras pela atordoante descoberta. Chegaram com urgncia as mercs, as honrosas alvssaras d'El-Rei. Ele recebia mercs de Foro de Fidalgo da CasaReal, com o posto de Capito-Mor da Vila do Prncipe, Superintendente Geral das Minas do Serro Frio, da AlcaiadariaMor do mesmo distrito e Tabelio, alm do Hbito de Jesus Cristo! A notcia do achado reboou na Corte Portuguesa como um trovo. 11 Pediram mais amostras, muitas amostras. Chegaram, em voragem, ordens formais: veio o imposto sobre a extrao, a ordem de espionagem sobre o desvio; a Coroa estendia as garras, a Coroa queria todos os diamantes acima de 20 quilates. O Reino entrou a delirar em avisos, alvars, ordens-rgias. As entradas quintuplicaram, Portugal assanhou-se na doida usura das minas da Colnia. S. Vicente enlouquecia. O surto diamantino arrancava o cascalho dos rios, as lavras se escancaravam por todo o cho catagus. Os diamantes das Minas Gerais dominavam todas as conversas dos fidalgos, tirando o sono s mulheres. A nsia de enriquecer por mgica extinguia o sossego dos lares, multiplicava planos de aventura das Mil e Uma Noites. O ouro sufocava o Reino e notcia dos diamantes tresvariavam todos nos sales de Lisboa Ocidental. A terra estava aposseada. Saam milhares de arrobas de ouro, diamantes, guas-marinhas, turmalinas, prata, platina. O ouro preto, misturado prata, o ouro branco ainda de formao incompleta, o ouro podre quebradio, o ouro leve em pepitas e o ouro grosso em gros empurravam a terra para cima, como tumbas de batatas! A ambio das datas derramava sangue, os ladres se alvoroavam, o meretrcio supurava na boca das minas. Ningum plantava, havia fome no serto mineiro, visto que os gneros vinham de S. Vicente, nas tropas demoradas. Ningum tinha calma de esperar a germinao das sementes, pois o ouro estava vista e os diamantes eram de dar com os ps. Partindo calculado, na sofreguido geral, foi que o invicto paulista Loureno Castanho Tacques, pioneiro destemeroso, chegou, na dura jornada, s terras de Paracatu. Havia nas Minas Gerais 38 tribos de ndios sem contato com o resto do mundo. Foi ele quem primeiro palmilhou, como civilizado, o planalto do oeste do Serto do Sul, sendo tambm o primeiro que falou dos ndios Araxs, que dominavam o imenso territrio entre o rio Quebra-Anzol e o rio das Abelhas. Essa indiada, vivendo nos vastos palmares do planalto, tinha mel, peixes, caas, frutos silvestres e palmitos mo. Isolados das tribos confrontantes, - gente intratvel, os araxs aprenderam com os bichos o uso de certos alimentos: com a anta, a comer o inhame; com a perdiz, o amendoim; com a ona, a devorar a mandioca; com o rato, a roer o milho. Era na poca seu andaia o rijo Bambu, chefe de cerne, companheiro leal na guerra e na paz. O morubixaba resumia a nobreza de sua raa e se extremava em guardar a terra contra os inimigos de qualquer cor. Transigia porm com os quilombolas concentrados 12 na regio, porque eles tambm odiavam os brancos. Entendiam-se, cruzavam o sangue, pelo demorado contato de vizinhos, sempre na estacada em que repeliam a ambio do estrangeiro. Seus perigosos rivais, gente cruel, eram os Caiaps, mais para o norte, nas terras goianas. A estes ndios os portugueses chamavam Bilreiros, por andarem armados de bordunas de pau-ferro. Os Tupis os chamavam Ubirajaras. Corriam os sertes da Bahia, Mato Grosso, Gois e Minas. Foi ento que o ousado paulista Bartolomeu Bueno da Silva e seu primo Joan Leite Bueno partiram com escravaria de pretos e ndios de Sabarabu, de que Bartolomeu era senhor, para afrontar um desconhecido Serto Grande, atingindo os Guais, em assombrosa marcha que foi a primeira picada aberta nessa altura do territrio mineiro. Bartolomeu Bueno da Silva, filho do carpinteiro Bartoloneu, de S.Vicente, ganhou o apelido de Anhanguera, ao realizar a estrada estupenda. Nunca se extinguiu no Brasil a fama da Mina dos Martrios. possvel que ela que levasse o Anhanguera a entrar o serto, varando o Geral Grande em busca desse mito. Nas nascentes do rio Paranatinga, consoante o roteiro de um vago Manoel Correia, estava a Serra dos Martrios, onde o ouro era de empatar a marcha. O esplendor dessa mina atingira Portugal, e todo o Brasil estava convencido de sua realidade. Foram na matulagem de Anhanguera, Manoel de Campos e seu filho Antnio Pires de Campos, alm do primognito do sertanista, com apenas 12 anos, e que seria, no futuro, o "segundo Anhanguera". Bartolomeu Bueno da Silva trouxe, como comprovante de sua entrada, 8.000 oitavas de ouro e um olho furado. Voltava roto, doente, envelhecido, no envilecido. Voltava vencedor! O nome da Mina dos Martrios se prende ao fato de haver nas pedras rampadas de uma lapa da Serra dos Martrios, coroa, lana e cravos da Paixo de Jesus. Seria natural esse alto ou baixo relevo? Para muitos aquilo era obra de mos humanas, de um povo desaparecido. Essa viagem de abertura de caminho se fez por territrio desconhecido do branco e atravessou os domnios dos ndios Araxs e Caiaps. Aberta a precria estrada das Minas do Ouro para Gois, pela bravura serena do grande Anhanguera, o Guarda-Mor Feliciano Cardoso de Camargo e seu primo Estanislau de Toledo, uma tarde, ao escurecer, acamparam, com as pequenas famlias, a um quilmetro do rio das Abelhas. Desgalharam-se do picado e estavam ali para tentar a sorte. 13 Sob uma rvore, estenderam no cho couros de bois, amaram a bagagem das trs mulas de cangalha. Fizeram fogo, a chaleira comeou a ferver na tripea para o primeiro caf. As famlias, extenuadas da marcha pelos trilhos de ugre, deitaram-se, caladas. Na manh seguinte Feliciano fincou, ajudado pelo escravo, os esteios para o primeiro rancho de varas, colmando-o de sap. O fogo, batido pelo vento, cozinhava ao ar livre o feijo amargo das bruacas. Depois de pronto o abrigo, sempre com o escravo, o chefe tomou do carumb, da alavanca de madeira e de um lenol de baeta. Desceram ao rio, com a esperana nos olhos. Provaram a terra, com a lngua; lavaram punhados de areia do rio. tarde, apuraram algumas oitavas de ouro fino. O rio das Abelhas era aurfero! A escassa esperana crescia, o sonho no mentira. O escravo ento ergueu, tambm nas folgas, seu rancho. No tardou a aparecer um escravo fugido, pedindo trabalho, custa de comida. Fez tambm sua ligeira morada, dormindo no cho, sobre capins do geral. Em breve levantaram um mastro no terreiro, com estampa encardida de Nossa Senhora do Desterro. As crianas brincavam. O filho mais velho de Feliciano era feio e enfezado. O aspecto do seu corpo, de to seco, parecia quebradio. A mulher lavava e cosia roupas sujas e velhas, ajudava na gamelagem do ouro impregnado de baeta, estendido por estacas na raseira. Os homens arrancavam piarra, amontoavam barro para ser lavado. Continuavam a aparecer fugitivos e geralistas, capangueiros, pedindo para catar pepitas. Novos ranchos se altearam na desolada solido do tabuleiro. Comeava uma vida nova, sob chefia do descobridor do garimpo. Uma tarde, ao terminar o trabalho, Feliciano Cardoso, vendo de longe o arraialejo, sorriu s casas de taipa, reunidas pela audciade todos. O marulho das guas, descendo, carregadas de areias de ouro, embevecia-o. Estava fundado o triste arraial do Tabuleiro. O arraial florescia na fartura do ouro em p. Crescera, com a adio de outras casinholas; chegavam entrantes, cheirando ouro no ar. A sociedade, solidria na ambio e no sossego do ermo, trabalhava, ampliava-se. Rezava noite, de joelhos, o tero, diante de uma casa de palhas que era sua capela. O clima corava as crianas, nasciam filhos de garimpeiros, o arraial se povoava. As frgeis edificaes imitavam ruas; havia trabalho, a alegria secava as lgrimas antigas. 14 Mas um dia os homens, das lavras, ouviram gritos, urros, clamores de socorro. Vozes altas de desespero atroavam nos ares. Largaram, atnitos, os instrumentos. Correram, vendo j labaredas soltas subirem lambendo o teto das casas, crescendo entre o fumaru das fogueiras. Crianas gritavam. - Acode!! Ao... Na aldeia, pulavam, corriam homens nus, gritando. Negros com fachos acesos queimavam o capim dos toldos. Os moradores no lograram chegar no largo do povoado. Iam caindo s flechas; os garimpeiros viam logo as cabeas esborrachadas pelos tacapes. Caiu o escravo do mateiro; tombou, com uma acha na mo, Feliciano Cardoso. Mulheres desgrenhadas disparavam bacamartes, sem pontaria. Esgoelavam, loucas, procurando fugir com os filhos. Morriam pouco adiante. Bugres Araxs e quilombolas atacavam o arraial. Estavam mortos meninos, mulheres. Algumas, no terror, fugiam para o mato, escondendo-se nas moitas. O ataque de surpresa matara quase todos, inclusive os homens. Estava arrasado o Tabuleiro e os paus rolios dos ranchos fumegavam nas cinzas. Comandava o ataque o ndio Mau. Fora o primeiro a pisar no povoado, brandindo, aos berros, a massa brutal. Encheram a aldeola como um aude arrebentado, de chofre, em caches, ululando. Mau voltou glorioso, guerreiro abalizado de sua gente, mas de nada lhe serviu a valentia. Catura, por quem se apaixonara, ia casar com Iboapi. A data das npcias fora fixada pelo andaia, pai da noiva. Na vspera das bodas, quando comearam as festas, Mau, no despeito humilhante, ofendido no brio, sentiu que sua presena festa no era para um valente de sua fibra. Fugiu para o mato, subiu a Serra das Alpercatas, escondendo-se na selva. Por que o andaia negara a mo de sua filha ao valoroso Mau, sempre primeiro na vanguarda dos ataques de sua gente? Era comandante respeitado... No fora ele quem chefiara os ndios no trucidamento do bandeirante mineiro Batsta Maciel, que ameaava os Araxs? Nas Festas da Fartura chegava com imensos balaios de car, macaxeira, feijo, favas, inhames e amendoim de sua roa, para provar que era macho. No comeu jamais carne de preguia mas bebia sangue de canguus, para ter coragem... Vencera a prova da zra, carregando a correr, por duas lguas, enorme tora de buriti: estava pois apto ao casamento da aldeia, podia sustentar mulher. Por que no o deixaram casar com a filha do cacique? 15 Catura era to graciosa que nunca falou com uma visita de seus parentes, cara-a-cara: conversava sempre de costas para o interlocutor, o que era sinal de sua antiga nobreza. Ainda trazia no tornozelo esquerdo o xpi, amarrilho que lhe denunciava a virgindade. E fora obrigada a se casar, sem amor, com o desenxabido Iboapi! Agora, Mau, na floresta fugira para no assistir s festas docasamento. Do morro distante, na noite quente ele ouvia, da matavirgem, amornada pelo mormao do ar parado, seus irmos de raa tocarem os uatapis, chamando os ventos. As vozes roucas das buzinas de chifre acordavam os ecos nas grotas e assustavam o silncio da floresta. No outro dia, ao descer para a aguada, percebeu tropel de cavalos. Escutou, com o ouvido no cho, ouviu depois bem claro o barulho dos cascos se aproximando. Escondeu-se, com o arco destendido, espreita. Era um troo de drages do 1. Regimento de Cavalaria do Rio das Mortes, que ocupava a terra dos Araxs. Comandava-o o Capito de Campo Incio Correia Pamplona, homem corajoso, cumprindo misso do Capito-General Governador das Minas Gerais. Quando passavam por um capo grosso na barriga da Serra das Alpercatas, uma praa viu algum: - Bugres. A tropa estacou, entrando em forma, preparada com os mosquetes. Sacaram-se as colubrinas. A mando do Comandante, o lngua chamou o caboclo fala, gritando: - Irmo, quero falar! E mais alto: - de paz! Os Drages cercaram o ndio que, sozinho, no reagiu. Pamplona, severo, para o Capito-Ajudante: - Prenda o negro! E em seguida para o lngua: - Apalpe o bugre! Mau foi amarrado com as mos para as costas, firmes nas cordas. Pamplona ordenou ao intrprete: - Pergunte o nome! O homem temperou falas com o outro, tudo nas perguntas do Comandante. .. - Qual seu nome? - Mau! - Seu chefe est nervoso com os brancos? Mau respondeu, desempenado: - Krenhouh jissa kiju jak jemes! (Capito Grande est brabo!) 16 Pamplona ordenou: - Pergunte se me quer levar para atacar a tribo. Perguntou e Mau, cerrando os dentes: - Hen-hen! (Sim!) Pamplona: - Indague se tem respeito pelo chefe, l dele. pergunta: - Tang-erangue! (Raiva!) O militar ordenou: - Inquira se tem medo dele. Pronto, respondeu: - Amenuk! (No!) - Pergunte quem ele - este bugre, na tribo. Mau, orgulhoso, respondeu: - Gni-maiokne! (Guerreiro valoroso!) - Pergunte se quer ir com a tropa atacar a taba. Altivo e disposto Mau falou, decidido: - Mu-katinhan! (Para diante, vamos!) Foi, a, desamarrado das cordas. Pamplona esperou o comeo da tarde para soltar a matilha. Quando a tropa rompeu a marcha para enfrentar o grande barnbu, Mau seguiu de perto ao lado do comandante. Seu rosto frio, de mscara impassvel, dizia que ele estava deliberado a extinguir, de uma vez, toda a sua raa. Ia dar, vingativo, ao poderoso andaia dos Araxs o presente de noivado de sua filha Catura. Comandava uma emboscada contra os irmos de nobre sangue, em que morreria quase toda sua gente; ia dar boa lio de pusilanimidade a seu agora chefe Pamplona, o abominvel futuro traidor dos Conjurados de Vila Rica de Albuquerque. Um ia trocar a vida dos Araxs pela covardedesforra, o outro iria delatar os comparsas da Inconfidncia pela Comenda da Ordem de Cristo, honras e dinheiro. Atacaram a indiada, de surpresa, no dia das bodas, com 400 Drages eqestres. Na matana, tombaram fulminados pelos clavinotes reinis o acatado andaia Bambu, Catura e Iboapi. Morreram quase todos os ndios; da carnagem pouco sobrou. Um pugilo deles fugiu (era a primeira vez que fugiam) para o Morro da Mesa, sem poder ao menos apanhar as flechas, massas e zarabatanas. As bocas de fogo, espadas e patas de cavalos fizeram o seu ofcio. noite, do topo do Morro da Mesa, foi em vo que uma inbia triste conclamou os at ento invictos guerreiros. A tribo estava extinta. Ningum respondia com outra inbia ao chamado geral. 17 Acabou-se a tribo. Felizmente para as geraes futuras ningum mais soube notcias de Mau. possvel que haja sentado praa no Regimento Montado de seu provecto discpulo e senhor. Eram dignos um do outro. Os afins se atraem. Como o sangue puxa, os traidores se entendem. Por seu ato de bravura o Capito-de-Campo Pamplona foi graduado em Mestre- de-Campo Regente da Conquista do Campo Grande para dominar ladres, matadores foragidos, facinorosos e quilombolas que abundavam pelo serto nas eras de 1766. Seu xito sobre os Araxs valeu-lhe a confiana de El-Rei. Era pouco. Mais tarde, por outro ato de bravura denunciar companheiros, - pediria a El-Rei os dzimos e o usufruto da Freguesia do Termo de S. Bento de Tamandu. Chegou porm depois do infame Joaquim Svrio dos Reis... Mau e Pamplona se aparelhavam, to iguais como duas gotas d'gua. Fizeram-se amigos. Bem dizia um forro, escapo do arraial do Tabuleiro: - Pra quem gosta de mulato - catinga cheiro. Desembaraado o serto dos Araxs, o caminho de Anhangera enxameou de traficantes farejadores de ouro. Tempos depois de queimado o lugarejo do Tabuleiro, os sobreviventes e outros profissionais do garimpo, subindo o rio das Abelhas, provando o barro com bateias de pau e baetas, comearam a plantar ranchos na margem, a poucas braas do rio. Acampavam, levaram famlias, tomaram posse da barranca. Chegaram outros, tendo por guia Agostinho Nunes de Abreu. Eram Toms Calassa, Manoel Jos Torres, Manoel Alves Gondim, cujos ranchos serviram para Intendncia do aposseado. Tambm o Padre Gaspar Alves Gondim chegara como encarregado da assistncia religiosa dos que iam viver na terreola. Fundara-se o triste Arraial das Abelhas. Quando Governador Interino de Minas, o Capito-General Martinho de Mendona Pina e Proena mandou o fiel-guia Urbano do Couto romper e tornar transitvel a velha picada para Gois, aberta pelo Anhangera, encurtando-a de 120 lguas. J florescia o garimpo do Arraial das Abelhas. A regio era motivo de altercaes graves entre os governos de Minas e Gois, cada qual justificando sua posse. Ora, quando o Serto do Novo Sul j era da Capitania das Minas Gerais, Gois nem era Capitania! Para solucionar o conflito encontraram-se, por parte de Minas, o General Mestre-de-Campo Incio Correia Pamplona, promovido por bravura contra os Araxs, e o Sargento-Mor lvaro Jos Xavier, por parte de Gois, que serenaram os nimos. Reconheceram ser de Minas o vasto territrio, como era de pleno direito. 18 Nessa poca saram de l para devassar o Serto de Farinha Podre, dominado agora em constantes correrias pelos Caiaps,1 os entrantes Janurio Lus da Silva, Pedro Gonalves da Silva, Jos Gonalves Eleno,Manoel Francisco e Manoel Bernardes Ferreira. Havia no caminho de Gois o grave empecilho dos Caiaps, fechando as minas de Cuiab explorao dos paulistas. No era para qualquer conquistador a arrancada atravs da mataria, poder dobrar a cerviz do "safado Caiap", como fez o desabusado Diabo Velho. No era s o bandeirante que fazia a conquista, mas o faiscador e o fazendeiro, arraigado terra. A barreira das guerrilhas do bugre goiano vedava as entradas, a no ser que, para for-la, se jogasse com a morte. Passou tempo at que o aborgene permitisse a estada dos civilizados, nas belas plagas dominadas pelos donos legtimos da terra. Os escassos ncleos de temerrios ou viviam isolados e em vigilncia, ou caam s flechas de quem defendia o que era seu. Nas Minas Gerais arrasaram os Araxs a ferro e a fogo. Nessa emergncia foi que o Capito-General Governador de Gois, Lus da Cunha Menezes, no seguiu o exemplo de seu colega das Minas. Havia em seu Regimento de Caadores um soldado, Lus, que chegara nas arrojadas bandeiras paulistas. Deu-lhe alguns ndios mansos e um lngua,, mandando-o chamar os Caiaps civilizao. Quando Lus regressou trazendo uns poucos ndios, entre eles vinha uma criana que o ento Governador DOM Jos de Almeida e Vasconcelos Soberal e Carvalho batizou. Deu-lhe a Aldeia Maria para residncia, aldeia a que puseram o nome de sua Serenssima e Piedosa Soberana. Como o Governador fosse, em Portugal, Baro de Mossamedes, fez questo de que a menina se chamasse Damiana de Mossamedes. Essa jovem viria a se casar com o anspeada Manoel da Cruz, do Batalho 29. de Unha de So Joo del-Rei de Vila Boa de Gois, Capital da Provncia. Fugindo da Aldeia Maria os poucos aborgines que vieram com o militar, Damiana da Cunha de Mossamedes foi ter com eles no mato, como missionria da paz. Ao entrar na Aldeia, com centenas deles, foi recebida com festas triunfais. Toda a populao foi para a rua ver de perto o gentil brbaro e sua pacificadora. O canho roqueiro troa, em homenagem dama que vencera toda uma tribo, o que no fizeram sucessivas expedies sanguinolentas. Outras entradas que ela fez no serto de Camapu tiveram igual xito, sendo que o Padre Manoel Camelo Pinto batizou os pagos. s vezes, o ndio se levantava de novo nos tabuleiros goianos. Vrias bandeiras que tentavam varar os campos esbarravam na muralha. 19 das armas do caboclo Caiap, como certa vez em que, revoltados, atravessaram o Araguaia, surgindo diante do arraial do Rio Claro, depredando-o. Nesses dias aflitivos quem salva S. Joo de El-Rei da Vila Boa de Gois dos temidos assaltos Damiana. Em ofcio, o Comandante do 29. de linha Jos Antnio agradecia, em nome de Sua Majestade o Imperador, tantos servios, - pedindo que Damiana aconselhasse os seus a deixarem livre o caminho das tropas para o comrcio intraprovincial. No seu rancho da Aldeia Maria visitou-a Saint-Hilaire em suas viagens s fontes do rio de S. Francisco. Quando a senhora voltava de sua derradeira excurso para arrebanhar ndios, chegou alquebrada, apoiando-se em ombros alheios. Foram v-la o Governador da Provncia, Marechal Miguel Lino de Morais, e o Comandante das Armas. Pacificou os de seu sangue mas combaliu a prpria carne. Morreu quando tentava domesticar os Coroados do Tombador, mulher que valera pelo Exrcito de linha e as artimanhas de tantos Governadores sem escrpulos. A neta do Cacique valeu por todos e colaborava como nenhum, na limpeza da estrada batida para o trfego das tropas, permitindo as excurses do comrcio. O ncleo inicial da colonizao do Serto Grande se originou noArraial das Abelhas, depois Desemboque. O fluxo dos aventureiros e os garimpos do Rio das Velhas foi garantido pelo extermnio dos Araxs e pacificao dos Caiaps, aquele pela brutalidade de uma carnagem, esta pela palavra de humilde missionria. Em torno do Desemboque nasciam aldeias, entre elas as de So Domingos, Farinha Podre, S. Jos do Tijuco, Nossa Senhora da Abadia de gua Suja, Arraial da Ventania, Brejo Alegre, Vila de Nossa Senhora da Sade de Poos de Caldas, S. Bento de Tamandu, S. Pedro de Alcntara, Nossa Senhora do Patrocnio do Salitre, S. Pedro de Uberabinha, Diamantina da Bagagem, Confuso... Havia j no sculo XVII notcias dos diamantes do rio da Bagagem, que agora empolgava e atraa ondas de faiscadores fracassados em outras lavras distantes, famlias de forros, soldados de baixa, clrigos, cabotinos, meretrizes e mariolas para o Oeste Mineiro. Quando a garimpagem ficou mais cara com o aprofundamento das catas, os campos opulentos apontavam o caminho da lavoura e da criao de gado. Surgiam por todo o serto fazendas iniciais, rebanhos humildes cresciam, encorpavam para riqueza futura. Aquela terra no era apenas mineira, servia para os milagres das sementes e era favorvel indstria do pastoreio. O Padre Leandro Rabelo Peixoto de Castro, superior da Imperial Casa de Nossa Senhora Me dos Homens, em Campo Belo, 20 confessa ao regressar de uma desobrigada pelo Serto de Farinha Podre, que viu talvez o mais frtil territrio da Amrica. Viu folhas de fumo com cinco palmos, razes de mandioca de cinco meses de planta, maiores que as de seis anos em outras terras; bananeiras frutificando aos seis meses de planta, em cachos de cento e sessenta bananas. Viu um algodoeiro em que um homem subiu, at altura de quatorze palmos, com apanha de oito arrobas de pluma. Saboreou ananases de palmo e meio e melancias crescidas toa, pelo campo. Um amigo do Padre Leandro troou, ao ouvir-lhe falar sobre esse algodoeiro: - Senhor Padre, Vossa Reverendssima sapecou, ao falar de tal planta... - No sapequei no, filho. Eu sou um sacerdote e no ficava bem falar que fora eu, em pessoa, quem subiu por ele. Mas fui eu mesmo. V Farinha Podre que no se arrepender; aquilo um paraso. O Desemboque prosperava, fervilhando da vaza derramada de outras betas. Nos eternos prdromos da arranchao predominava a lei dos mais truculentos, pois no havia justia instalada no degredo daqueles, condenados por vontade prpria. Com o afastamento do gento, a populao flibusteira da garimpagem se regalava pelas reinas polveiras 58, 44 e 320. Ali falavam com maior eloqncia o trabuco do curiboca e a pedreira do forro. O rio das Abelhas, que vai desembocar no Paranaba, abrigava o primeiro povoado estvel do Serto Geral, sustentado pela ambio do ouro. Foi descoberto e fundado por mineiros que lhe devassaram o serto. Quando o Governador Marqus de S. Joo da Palma nomeou o Sargento-Mor Antnio Eustquio da Silva Oliveira, Regente do Serto de Farinha Podre e Curador dos ndios, este, com geralistas, dependentes e pessoal de guerra, fez entrada at o Ribeiro da Prata, atravessando o Porto da Espinha, no Rio Grande, garantindo a posse mansueta do territrio, para Minas. Lembraram tarde de curar dos ndios... Na excurso do Sargento-Mor, o matuleiro Antnio Rodrigues da Costa foi assaltado por uma ona pintada, que avanou faminta sobre o seu cavalo, segurando-o com garras e dentes. Antnio no pde gritar nem brandir a espada, e apenas afastara o bicho, ferindo-o comestocadas de sua catana. A primitiva ronda do mato, com o perigo do gentio brabo e dos astutos quilombolas, era menos selvagem, menos brbara que a vida do Desemboque, entre facnoras, ladres de estrada, jogadores, escondidos da fora. Numa das 21 batidas pelas savanas, o Sargento-Mor levou o Vigrio do Desemboque, Hermgenes Casemiro de Arajo Bronswith, que o viu distribuir imensas posses de terras fecundas, em troco de pequenos favores. Uma dessas glebas, compreendendo duzentos alqueires de matas virgens e boas guas, foi vendida pelo Curador dos ndios ao geralista Pedro Gonalves da Silva, que faleceu aos 114 anos, por um casal de leites. Apesar da assistncia de um sacerdote, o Desemboque ainda estava entregue a esbrnias e licenciosidades sujas. Alm da crpula, da beberrice e do roubo descarado, havia a prostituio. Mulheres sem laia, das que acompanhavam a retaguarda dos exrcitos, chegavam dia a dia, para seus negcios da carne. proporo que o ouro aparecia, elas tambm. O SargentoMor no tinha pulso de chefe, no arraial onde assistia. A uma observao do Padre, expunha seu carter: - Aos que furtam castigo. Aos que jogam, no. Como curar as doenas da rafamia, nos alcouces? Sei que h de tudo aqui. As fregas esto caindo aos pedaos, no h fsicos de ervas nem fsicos de lancetas, nem barbeiros sangradores para as curar. Os ndios mansos do razes, aprendidas nas pagelanas l deles. E com cara de nojo: - Tudo fede, tudo se arrasa. Alm dos mais vcios, alm das mazelas do catarro-podre e das feridas de choro, alm das lceras de Moambique, o xenhenhm. Parece que o mundo vem abaixo. No bastam as bexigas-doidas, as cobras, os olhos- grandes, a praga contagiosa das mulheres da vida; inventam mais vcios! O Padre estava abatido mas reagia: - Sargento-Mor, mas h as Ordenaes do Reino, tudo est previsto. - Qual Ordenaes! Ordenaes aqui so a tala, o bacamarte, o tronco, a coxia! Morriam vtimas do glico, a bouba matava, a carneirada matava, a polca invadia as catas, derrubando gente a cuspir sangue. Quando passava um fsico para desobriga de sade no Arraial, matava mais que a peste. E o povo no esmorecia, lutava bichado, no podendo andar, caindo aos pedaos. S o ouro empurrava para diante aqueles espetros trmulos. Porque o delrio era geral, a ambio era o nico remdio eficaz. Podiam morrer, mas sufocados no ouro em p. O ouro valia mais que a vida. As mos rudes, sujas de terra, encardidas no barro, ajudavam a completar os Quintos de cem arrobas obrigatrias, anuais, de ouro, 22 que faziam a fortuna temporria de Portugal e a definitiva riqueza da Inglaterra. O Reino, desvairado pelos montes de ouro, pelos milhares de arrobas de ouro puro, no sabia guard-lo, deixava-o cair das mos. Nossos diamantes, pedras coradas e pau-brasil solidificavam a preponderncia britnica. Com essas riquezas se defenderia de Napoleo no Bloqueio Continental. Foi o ouro da terra do degredo, arca da Colnia portuguesa, que estabilizou o Imprio Britnico. Foi o ouro do rio das Abelhas que mais tarde ergueria a igreja de pedra do Desemboque. Foi seu ouro que levantou nas torres dessa igreja o maior e mais sonoro sino dos templos do Brasil1. Ouvia-se a cinco lguas, porque o rio das Abelhas, passando rente do povoado, conduziu som a to longa distncia. Desemboque foi a clula das futuras cidades do Oeste mineiro. A descoberta de suas pepitas e a grandeza adquiridacom a fenomenal estrada homrica de Anhangera para as minas goianas espalharam, deram fama, foram o toque de reunir da gente aventurosa dos paulistas de prol, capites de bandeira, - gente que fez o Brasil. II - DIABO NO CORPO 1 alvar rgio de DOM Joo IV,.que firmou as divisas entre Minas Gerais e Gois, estabeleceu uma linha que, partindo de NorteSul, da Guarda dos Arrependidos, coincidisse com a Serra de Loureno Castanho, rio So Marcos, Desemboque e Rio Grande. O fisco, por seus arbitrrios agentes, pisoteava o povo cobrando a capitao, a conduo do ouro, as entradas na terra. O Quinto era o pesadelo dos mineiros que viviam das lavras de ouro. A cobrana desse imposto incidia, se negada ou protelada, sobre a prpria vida do devedor, ou quando menos, no seu desterro por 10 anos para Angola. Se faltosos, mesmo sem extrair o metal, pagavam no tronco de ferro, nesse caso apenas por estarem registrados como contribuintes. No havia fundio de ferro em Portugal para fabrico desses troncos. O material era importado da Sucia ou da Espanha. A tentativa de fornos em Portugal no deu certo. O criado em Figueir dos Vinhos no alcanou produo vantajosa, e apagou-se. No Brasil, em 1590, Afonso Sardinha construiu um forno para fundio em Biraoiaba, serto de Sorocaba, onde descobrira minrio prprio, mas depois de vrias complicaes, essa tentativa deu em nada. l Est hoje na cidade de So Paulo. 23 Para os sonegadores do Quinto havia priso, sem prazo para soltura, e em casos, o degredo era para toda a vida. Houve quem fosse enforcado mesmo sem dever, por simplssima denncia aos crberos de El-Rei Magnnimo. Ser suspeito era pior do que ser criminoso de extravio. Quando criminoso, era certo o degredo por 10 anos para Angola, e ser suspeito era ficar isolado dos mais, para sempre seguido por sombra. Se falasse com algum, essa pessoa era presa, ouvida longamente; purgava o crime nas masmorras, ficava tambm suspeito de conivncia. Se viajava, era seguido por matlha que inquiria a todos com quem negociasse. Por isso ningum queria ao menos cumprimentar um suspeito: ouviam os vizinhos, os companheiros de seus filhos, mesmo os pequeninos. O pior que no havia meios de provar que no era extraviador. Nessa desesperante situao, vendo fechadas as portas sua passagem, ele ficava como um leproso naquele tempo - sem liberdade de locomoo, embora senhor dessa liberdade. Uma denncia, mesmo de desafeto do denunciado, determinava essas secretas investigaes: se nada houvesse provado, o denunciado perdia por Lei todas as terras de sesmarias e as demarcaes de terrenos aurferos ou diamantinoso. O direito da arrecadao no pesava apenas sobre a fazenda individual do devedor e sobre sua vida: os bens dos parentes respondiam tambm por ela, mesmo dos parentes afastados. A liberdade era o menos. Seus haveres pouco importavam. O ruim que, mesmo depois da pena infamante da forca, seus descendentes eram responsveis pelo dbito, mesmo sem herana! A cobrana do Quinto queria dizer: tirar, fora, a quinta parte do ouro extrado, para as arcas reais. O imposto de capitao era ainda mais oneroso: cada escravo pagava quatro mil-ris anuais, alm da taxa de importao de cada africano chegado em navios negreiros. Essas arrecadaes no eram to s cobrana: eram violento furto, roubo descarado, inominvel execuo a ferro e a fogo. Em 1745, DOM Joo V conseguiu do Papa Benedito XIV a criao das prelazias de Gois e Mato Grosso, pela bula Candor lucis, eternae, em que foram fixadas as divisas de Mato Grosso, So Paulo, Rio e Mariana, sendo que a prelazia de Gois abrangeu os velhos julgados de Arax e Desemboque, mineiros. Com pretexto sibilino da diviso eclesistica, ogoverno de Gois comeou a alegar o ut posidetis do territrio do Serto de Farinha Podre. A pretenso de Gois originou-se da no convocao dos eleitores do Rio Verde para certa eleio em Paracatu, pois os polticos 24 desse lugar sabiam que os eleitores eram contrrios a certo candidato. Gois mais tarde alegou essa tramia poltica to banal, como tcito reconhecimento de Minas aos direitos goianos. Em 1750, o Governador Dom Marcos de Noronha declarara, esclarecendo, que o julgado de Paracatu pertencia a Minas e tanto era exato que, por alvar 20 de outubro de 1789, foi elevado a Vila, com o ttulo de Paracatu do Prncipe. Havia no Serto de Farinha Podre um portugus de tino incrvel para contrabando e arrasadora ambio: era o Padre Felix Jos Soares, apelidado o Pequenino. O serto mineiro estava inado de criminosos foragidos, desordeiros, vagabundos e ladres de caminho, a comear da Serra de Jaguamimbaba, todos em comunicao com quilombos de negros fugidos, entre os quais os do Canalho e do Ambrsio. Essa choldra se valia do contrabando grosso, do extravio do ouro, dificultando a doao obrigatria das 100 arrobas de ouro a Sua Majestade. Estavam desatentos ao vigor das Leis Positivas. Era o Visconde de Barbacena Capito-General Governador das Minas Gerais e no via com bons olhos as constantes incurses do Capito-General Governador de Gois por terras mineiras, at 200 lguas de So Joo del-Rei de Vila Boa de Gois, capital goiana. Esse turbulento Governador, Capito-General DOM Joan Manoel de Melo, desrespeitando as Leis das Capitanias, mandou um Destacamento de Pedestres, escria militar, para o Arraial do Rio das Abelhas fazer registros, apresentar-se como Delegado do Juiz das Demarcaes, medi-las, tudo dentro do Registro das Minas, pisando nas provises do Augusto Senhor DOM Joo V. Essas provises j haviam sido publicadas a rufo de caixas, nos bandos de 1738, por toda a Capitania de Minas, pelos ento Governadores Martinho de Mendona e Pina e Proena e Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, quando nem Gois era ainda Capitania, pois ainda estava unida das Minas, e sujeita s Leis das Capitanias do governo mineiro. As minas de ouro, metal, foram descobertas por Manoel Borba Gato, chegando na bandeira de Ferno Dias Pais Leme, e Manoel Pedroso de Barros, aquele considerado o pioneiro, o mais importante e respeitado pelo povo como verdadeiro descobridor. Afluiu gente aos borbotes para os descobertos e a rivalidade entre nacionais portugueses fez com que estes elegessem a Manoel Nunes Viana para seu Governador, por ser o mais valoroso para abalar a audcia dos paulistas, numerosssimos no serto. Os paulistas chamavam os portugueses de forasteiros ou emboabas e os emboabas odiavam os paulistas. Por ordem de Sua Majestade, Dom Fernando Mascarenhas de Alencastro, nobre de sua 25 graa, foi ao serto sossegar os briges, mas Nunes Viana o recebeu em ordem de batalha, no stio de Congonhas, perto da Vila Real de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. O General regressou, vencido. No se animou a enfrentar o apotestado chefe emboaba. Foi nomeado ento Antnio de Albuquerque Coelho de Carvalho para Governador de Minas, com o fim de pacificar os guerrilheiros. Em face da atitude de Dom Lus de Mascarenhas, Governador de Gois, o Governador mineiro, Conde de Bobadela, mandou o Doutor Toms Ribeiro de Barros Rego, Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes, dividir as duas Capitanias, confirmando a linha de NorteSul, at tocar a Capitania de So Paulo. O General Mestre-deCampo Incio CorreiaPamplona voltou de novo, por isso, ao serto que ele j inundara de sangue; voltou agora para dar caa aos bandidos, libertinos, revoltosos, mariolas e fugidos das gals. Foi ento que teve incio, no geral, j povoado de gente spera, a pregao incendiria do Padre Felix. Com a notcia de que Pamplona dera por finda sua segunda misso, julgando pacificada a Capitania, comearam a voltar s grupiaras os facinorosos e escravos fujes que o assassino do andaia Bambu dissera estarem em paz. Ao correr por toda Capitania o boato verdico de que os Quintos, com o afloramento do ouro das Gerais, renderam naquele ano 150 arrobas para El-Rei, entraram para o barro centenas de sujeitos famintos do metal. Era to arraigado o desvio que a polcia discricionria dos polvos reinis se tornou draconiana, sem conseguir pelo menos diminu-lo. O escravo era assombroso na prestidigitao de mudar ouro de bateia em ouro de escamoteio. O bateeiro no agia mais por hbito e sim pelo vcio inextrpvel de roubar do senhor, roubar do amigo, roubar do Rei. Era simples passe de mgica, feito por todos, tirar oitava de 100, diamante, de 50. O Pequenino agia... Miudinho, chocho como criana de sete meses, era irrequieto vasculhador da vida alheia. Interessava-se, furo, por todas as questinculas dos conhecidos, como eminente, consumado intrigante de tranas sutis. Metia-se pela vida dos casais felizes lanando ciznia, separava amantes incitando cimes sem razo de ser. Sabedor de segredos e, pour-cause, era para ele uma delcia semear dvidas, a dvida que flagela o corao dos homens. No havia entre a gente rude do Serto de Farinha Podre cristo mais mexeriqueiro, tudo feito com autoridade sacerdotal. 26 Estava dentro de todo diz-que-diz, metia o bedelho em negcio dos outros fuando a roupa suja dos lares. Alguns aventureiros, j vtimas de suas unhas, falavam ao v-lo em segredinhos com um e outro: - Esse Padre um perigo! Parece taturana, onde encosta queima como fogo. Na agitada e misteriosa mobilidade de intrigante corria garimpos, terreolas, aldeias, ranchos de fazendas de pau-a-pique. Metia-se nas transaes dos outros, dava opinies que ningum pedia, era um sugeridor de maldades. Mestre consumado, especialista notvel de assuntos de infrao, de insignificncias do Regulamento das Minas e de suas possveis penalidades, estava em todas as questes. Conhecia midamente as Ordenaes do Reino, gostava de discorrer sobre a Mesa de Conscincia de Lisboa, a terrvel espi do Santo Ofcio que, por um nada, condenava inocentes e puritanos, por suspeitas quase sempre infundadas. Padre Felix parecia observador autorizado da santa Inquisio. Sendo fraco, era o Sanso da maledicncia; mesmo pequeno - o Golias do fuxico. Cheio de artimanhas, s no era covarde nas parolagens, mas pusilnime diante dos poderosos. Como Atlas, sustentava um mundo de embondos nos ombros de raqutico de nascena. Sua lngua era to respeitada como a de S. Joo Crisstomo, sendo que para o mal. Tinha boca doce para elogiar os grandes na presena, mas na ausncia deles sua baba era puro caldo de malaguetas. Com vitrolo de conversas moles mascarava a face dos inimigos, em gilvazes indelveis. Para o Pequenino, a prpria hstia do sacrifcio era uma pataca branca. Seria capaz de arrebatar um pedao de po, da boca de um mendigo doente. Talvez desejasse morrer como o trinviro Crasso, com a garganta entupida de ouro do Rei Herodes. Palmilhava todo o geral agourando igual Cassandra e dando a beber venenos doces, como Locusta. No viajava para pregar o bem: era o missionrio da desunio, revoltava os homens contra o Rei e o Rei contra Deus. Seu corpinhoenquijilado parecia no ter sangue nas veias, mas a peonha da boca das cascavis. Useiro de falcatruas, vezeiro de tranqibrnias, dele falou um drago a quem ameaara acusar Rainha como cristo-nvo: - Esse Padre pode ser de Deus, mas tem o diabo no corpo. Tudo isso porque era o mais perigoso contrabandista do Serto do Novo Sul. Manipulador de contrabando grosso, cabea de motim para furtar o fisco, ningum o apanhara no desvio, era finssimo. 27 Padre Felix se desentendera, pelo nimo atrabilirio, com o Bispo de Mariana praticando desatinos que violavam as Leis Cannicas. Por ordem do Cabido de Mariana, o Sargento-Mor Manoel Gondim fardou-se, vistoso, de oficial Comandante do Destacamento de Drages do Arraial das Abelhas e acompanhado de cinco Drages apareceu na casa do Padre Felix. Formalizou-se, a 10 passos, bateu continncia, apresentando-se altaneiro: - Sargento-Mor das Batalhas dos Exrcitos Reais! E com a mo conservada em sentido, na aba do quepe: - Reverendssimo Senhor Padre Felix Jos Soares, por ordem do Cabido de Mariana e em nome da Augusta e Poderosa Senhora a Rainha Dona Maria I, sua senhoria est preso. Padre Felix, estatelado de surpresa, murmurou, plido mas disposto: - Entrego-me. O Sargento-Mor cumpria ordens: - Por ordem do Excelentssimo Capito-General Lus Diogo Lobo da Silva, sua senhoria Padre Felix Jos Soares ser recolhido, sob escolta, Vila Real de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, capital da Provncia das Minas Gerais! O Padre Felix ratificou-lhe as palavras: - Estou disposio do Senhor Sargento-Mor das Batalhas Reais, Manoel Gondim. O Sargento-Mor fez um sinal e o preso tomou a frente dos drages formados, seguindo para a Intendncia. A notcia rebarbativa correu logo por todas as casas, lavras e descobertos. Um tropeiro acampado perto boquejou: - Padre Felix est preso, com sentinela vista! - Foi por ordem do Capito-General Lus Diogo Lobo da O forro Joo Alves j sabia: do Silva! Preso, na sala da Intendncia diante de duas baionetas enormes, como se usavam, luzindo a seus olhos, o Pequenino mexia a lngua de bca-larga, afetando bom humor: - Ora, o Padre Felix na priso... Ria-se, fingindo achar graa, a esfregar as mos secas: - Os cristo-covos de Mariana metem um padre na masmorra! Na masmorra estou na pedra, como um facinoroso, como negro fugido! Suas risadas ferinas escandalizavam os amigos e os prprios Drages da sentinela. O vigrio Gaspar Alves Gondim, homem sorumbtico, foi visit-lo: - Padre Felix, sua priso acabrunhou-me asss. Procure-se conter... seja mais razovel... 28 O Pequenino pulou, como sauim espantado: - Ora, Padre Gondim! Isto grandeza! Ser que desejam me desterrar para Angola? Para Bailungo? Para Cassunga? Ou querem me arvorar na forca? No seja ingnuo Padre Gondim... O vigrio estava horrorizado com aquelas palavras: - No diga dislates, Padre Felix! Vossa merc um sacerdote... Opreso estava radiante de verve: - Padre Gondim, como cadeia, por que no? Quem governa ainda o Marqus de Pombal... Vou ser o novo Marqus de Tvora... Hum... hum... Temos no Serto de Farinha Podre um outro Padre Malagrida... O vigrio ficava cada vez mais escandalizado, fungando seu fedorento rolo: - Pelo amor das Cinco Chagas, tenha calma, Padre Felix! Ele ergueu-se, eltrico, vivo como azougue: - Faam comigo o que foi de uso no alvorecer do Cristianismo, faam bem feita a carniaria de minha carne! Piquem meus olhos com agulhas, cegando-me aos poucos, como Caio Mximo fez a Probo, em Anazarbs, na Siclia. Venham com aoite, botem- me nos cavaletes, rasguem meu corpo com unhas de ferro, como fizeram com Cipriano, o Mgico. Preguem-me na cruz, enterrem em minhas entranhas brasas vivas, joguem sobre mim chumbo derretido, arranquem os dentes, cortem-me a lngua, prendam-me por um p, de cabea para baixo, carreguem-me de cadeias brutas, aoitem-me com nervos de boi, assem-me nas grelhas bem temperadas, quebrem-me os ossos, joguem- me s feras das arenas pags, que todos esses martrios cairo sobre mim como um orvalho embalsamado!... Sentou-se de novo, consertando a batina: - Tudo isso j fizeram com os mrtires dos tempos de Trajano: como eles, no fim dessas brutalidades, cantarei aleluias! O pobre vigrio Gondim s teve tempo de fazer o sinal da cruz, retirando- se, calado. L fora, no adro da Igreja encontrou-se com o SargentoMor: - Meu vigrio, dizem por a que o Reverendssimo preso tem o diabo no corpo... Gondim olhou o militar nos olhos vermelhos e, muito baixo: - No sei... no sei, mas o Padre est fora dos eixos. H qualquer coisa sobrenatural na cabea de meu pobre colega... O sargento estava impressionado: - Mas o senhor acredita nisso? - Se acredito? Acredito. Tenho vivido muito, o bastante para crer em tudo. Quando" Duarte Coelho, Donatrio de Pernambuco, estava em guerra com os pagos, s venceu o copioso bugre com o auxlio do Padre do Ouro, apelido de certo padre que por l 29 apareceu, e era nigromante. Dizia-se mineiro, conhecedor de minas, que localizava com os olhos. Sendo ele mandado ao serto com trinta homens de guerra e duzentos ndios mansos flecheiros, ao chegar na primeira aldeia assombrou a todos. Pedindo um frango, depenou-o e, desfolhou um ramo: cada pena e cada folha arrancadas por suas mos, se transtornaram em outros tantos diabos, vomitando fogo pela boca. Era s amarrar os ndios brabos em revolta, macho ou fmea, e ir pondo nas canoas. Sabedor da fama desse feiticeiro, depois que ele ajudara a vencer o aborgine, El-Rei Dom Sebastio, o Desejado, mandou prend-lo, seguindo para o Reino pela frota real. El-Rei desejava lev-lo na guerra ao turco e talvez se o fizesse no desaparecesse, para lstima do mundo, esmagado pelos mouros em Alccer-Quibir. Quando a frota chegou a Cabo Verde, o Padre do Ouro sumiu da priso! Ningum mais soube dele. Padre Gondim falou, misterioso, segredando mais de perto no ouvido do Sargento-Mor: - O Pequenino pode ser nigromante, pode... O demnio tem muita fora!... Preso e vigiado, o Padre Felix comediava suas palhaadas contra mundo, diabo e carne. O refro de suas pantomimas era que havia no geral a reproduo do caso Malagrida. Referia-se ao crime infame de Pombal mandando enforcar o santojesuta, fato que encheu de horror ao prprio Voltaire. Na sala da Intendncia, o detido dava espetculo pblico, divertindo a populao apavorada. Nos intervalos, assoviava alto, coisas de improviso, sem ps nem cabea. No perdera a fome e tudo reclamava, intolerante. No nono dia da deteno o Sargento-Mor o procurou: - O Senhor Capito-General Comandante manda vos dar liberdade, Padre Felix. Espera que vossa senhoria agora se contenha, pois falar como braveja pode vos ser mau. Numa continncia brusca: - A priso est relaxada! O Padre Pequenino saiu lampeiro como entrara. Leve, airoso, no mostrava nem um vinco na testa, por temor ou raiva. No outro dia recomeava os cochichos. A lngua solta no tivera medo da cadeia. No diminura de vibrar, destramelada. J ento a patulia de especuladores, vendilhes, piratas, contrabandistas e safardanas de oportunidade voltava ao povoado. A polcia afrouxara os garres e a praga dos extraviadores brotava de novo, sem medo do violento Pamplona, que Deus conservasse longe. 30 Como os Quintos estivessem atrasados j de dois anos, desde 1762, falavam com pnico no recurso da derrama. A derrama! Todos os impostos cobrados em dobro, de uma vez, sem justificao, pela sanha desumana dos leguleios reinis, nas mos tiranas dos executores de El-Rei, garantidos pelos Drages e, pior ainda, pela brutalidade dos Voluntrios Reais que eram os mastins desalmados da Coroa. Falar em derrama era falar no dilvio, em mil vulces vomitando lama, no prprio terremoto de Lisboa! Pois o Padre Felix comeou a alertar o povo contra o absurdo extremo da cobrana dos impostos... Descrevia a tragdia de sua execuo, a dureza perversa da Lei, sem portas falsas para fuga, sem recurso e sem perdo. Todos os espritos, feridos na carne viva, estavam aptos a acolher solues radicais contra o ultraje da medida. A pregao do Pequenino tinha receptividade em todos os prias a serem eviscerados pela vermelha grosseria dos meirinhos. O Capito-General mandara prend-lo, a pedido do Cabido de Mariana, para amedront-lo, amorda-lo. Foi pior. Viajou, semeando prdicas espinhosas contra as ordens rgias, contra os alvars, procurando adeses, exagerando os atos da tirania. Falava pelos cotovelos mas acabou convencendo a quase todos, nos garimpes. Como sabia que o Serto de Farinha Podre era de Minas Gerais havia trinta anos, concebeu o plano luciferino pelo qual se livraria da vigilncia dos superiores da cidade de Nossa Senhora do Carmo e da fiscalizao tributria do Reino. As foras do Exrcito Portugus eram poltico-marciais, verdadeira polcia de opresso e pirataria. O Padre no falava sem conhecimento da coisa, no murmurava em vo sem saber da verdade, pois a derrama veio, violentssima, em 1767 e 1768! Antes de ser proclamada pelos bandos, a toque de tambores, Pequenino espalhou que a derrama s atingiria Minas Gerais, ficando isenta de tal execuo a Capitania de Gois! E num milagre espaventoso, digno do diabo, levou Vila de So Joo de El- Rei da Vila Boa de Gois 120 habitantes do Arraial das Abelhas, e os apresentou ao Capito-General Governador goiano, como gente que lhe ajuda a fazer a descoberta do ouro do Arraial do Rio das Abelhas que ele Padre Felix havia fundado!... O Governador DOM Joo, que no gostava das Minas Gerais, mandou imediatamente despejar a populao mineira do referido Arraial, que noaderira ao Pequenino! Escorraou a precria justia local, toda a guarda militar de Minas e seu Comandante SargentoMor, o Vigrio, o Vigrio Gondim - e o resto... 31 Ato contnuo, obteve de Maria a Louca1 urgente alvar, criando o Julgado de Nossa Senhora do Desterro das Cabeceiras do Rio das Velhas do Desemboque, passando assim todo o Serto do Novo Sul a pertencer, por fora de Lei, Capitania de Gois. Minas perdia assim, cannica e juridicamente, 94.500 quilmetros quadrados de terra, por trinta anos reconhecidas como legtimas da Capitania das Minas Gerais e j demarcadas, antes de Gois ser Capitania, quando ainda o solo goiano era pertencente a Minas! O Padre Felix, por miservel questincula com o Cabido da Cidade de Nossa Senhora do Carmo, derrogara antigas portarias, regulamentos e demarcaes feitos pelos Capites-Generais Governadores das Minas, com poderes hbeis para tanto. Mostrou que tinha cabea para maquinaes infernais, no dando importncia s autoridades mineiras, clero, nobreza e povo... Instalando-se o Julgado, em 1766, Padre Felix fez o que sempre desejou: vingar-se do Bispo e mostrar quem era. Passou a regulo do territrio usurpado e por esse prmio viu-se, por nomeao, vigrio da Capela do Senhor Bom Jesus, erigida pelos fundadores do Arraial das Abelhas, com licena do Bispo da Cidade de Nossa Senhora do Carmo e da Vara. Essa capela no era a de Nossa Senhora do Desterro, a primeira do lugar, mas a segunda, erguida por votos de faiscadores enriquecidos, por bambrrio, no Rio das Abelhas. Estando o serto livre dos Araxs e de alguns quilombos, expandia-se a criao dos rebanhos. Os Governadores das Minas e agora de Gois nas terras roubadas, distribuam sesmarias a mancheias. O Governador Lus Diogo Lobo da Silva concedeu 250; DOM Jos Lus de Menezes Abranches de Castelo Branco e Noronha, Conde de Valadares, 275; o Coronel Antnio Carlos Furtado de Mendona, 27 ... A terra ia sendo retalhada em maquias para quem requeresse ou para quem favorecesse as tranquibmias dos dignos Governadores. Quando chegou a derrama... o incndio, o pesadelo de toda Capitania das Minas ... Quando chegou a derrama, os oficiais do fisco portugus caram sobre o povo indefeso; o bando sinistro dos meirinhos veio como uma nuvem de milhafres, de vampiros sugadores de sangue sobre a populao assombrada. Mas, irriso, a derrama no atingiu apenas a Capitania de Minas e tambm toda a Colnia, onde houvesse ouro descoberto... O polvo abraou tambm Cuiab e Gois... Minas era o celeiro das arcas portuguesas; com o nosso ouro cunhavam-se lisboninias do nobre metal, para pagamento das tropas, magistratura, funcionrios, professores volantes ... Tambm Cuiab produzia ouro, ainda discreto, as minas 32 goianas comeavam a derramar tambm ouro. Ali chegou a derrama, com as garras sangrentas e a corda da forca suspensa, vista de todos... Partiu a comitiva do saque dos meirinhos protegidos pelos Voluntrios Reais, para pesar o ouro das catas do Rio das Abelhas. Expulsos do agora Julgado de Nossa Senhora do Desterro das Cabeceiras do Rio das Velhas do Desemboque, pela Companhia de Infantaria de Pedestres as autoridades da Igreja, fora militar e inimigos do Padre Felix seguiram para a Parada da Laje para atingirem a Vila de Nossa Senhora da Conceio do Rio das Mortes. Essa Companhia de Drages goianos era composta de ps-rapados, pretos e mulatos sem disciplina, borra militar, ao contrrio da Companhia de Drages de Cavalaria de Minas, onde s se admitiam brancos. No primeiro pouso daestrada onde os expulsos pernoitaram, Padre Gondim e o Sargento-Mor conversavam a ss, numa pedra, perto do rancho. Na noite escura ouviam-se canguus rondando os retirantes. Seus urros cavos assombravam os peregrinos. Acenderam fogueiras no campo, em frente do arranchamento, para espant-las. O Padre estava abatido: - Os Guaicurus acreditavam que as almas dos malvados so compelidas a reencarnar nas feras do mato. Sendo assim a alma do Padre Pequenino pode reencarnar em raposa... E balanando a cabea, com melancolia: - isso, Sargento-Mor, acabou-se o nosso Arraial das Abelhas. .. Mudou at de nome... fomos botados fora. - , meu vigrio, Deus assim quis. O vigrio sorriu, com tristeza: - Deus assim quis, fala o senhor. Eu digo: assim quis o SargentoMor Manoel Gondim... O militar ps assustado a mo aberta no peito: - Eu, Reverendo?! - Sim, o senhor. O senhor teve preso o autor dessa complicao toda... acostumado a lavrar atos de resistncia de facinorosos. O Sargento caiu em si: - verdade, a'culpa minha... Aquela peste! Exato que eu podia ser mais rigoroso, mais claro de idias! O Padre deplorava: - Agora, fomos tocados, expulsos, jogados longe... Esse miservel talvez no tenha o talento contundente de um Pombal, mas possui a matreirice de Richelieu. Diplomata astucioso, no sabe brilhar nas salas faustosas, dizer coisas belas, ler os livros 33 fesceninos: seu batente de trabalho a boca das minas e a conversa fiada ao p do ouvido. O militar esquentava-se: - Ah, cachorro, se te apanho agora que te entendo, sem a fora do Capito- General DOM Joo... O senhor tem razo: estou habituado a abater homens e deixei fugir o sacripanta, ele que merecia ser garroteado pela bestialidade pombalinal - Matou nosso arraial para fazer, com folga, seu contrabando. Homem de flego de sete gatos, sabe roubar tambm com as unhas do gato. - Venceu os Governadores, o Rei DOM Jos I, Dona Maria I... Dona Maria I Nossa Senhora Serenssima queria? Ele no queria. Fz-se-lhe a vontade caprichosa. Gondim, amargurado: - Seu golpe de morte no Cabido da Cidade de Nossa Senhora do Carmo no foi de um sacerdote mas de palhao calejado de golpes cnicos. Enfim... vamos viver nossa vida em outras plagas... estou velho e s desejo morrer em paz. Comeou a chover, peneirado. - Vamos sair do sereno, Sargento. Vamos esquecer os pecados alheios. Parece que vai chover muito. E mudando de tom: - No esperemos justia... Ele afundou na lama a Coroa, cujo preo foi o sangue dos valentes dos campos de Ourique, de Montes Claros e Aljubarrota, onde foi erguida pelas lanas do Mestre de Aviz e, em Valverde, pela coragem bravia de um Condestvell Hoje, empurra-a com um p, o demnio da savana... Em 1770 a Aldeola de So Domingos dos Araxs erguia com lentido, no planalto, os tetos de taipa das casas humildes. A pobre terreola ficou includa na Sesmaria do Barreiro, concedida pela Serenssima Rainha Dona Maria I a Alexandre Gondim e irmo. A sesmaria era de 60 alqueires e foi mais tarde doada pelosconcessionrios ao futuro Julgado de Arax. Depois de muitas andanas de luntico perigoso, o nome do Padre Felix desaparece por encanto das crnicas de antanho, dos palimpsestos do sculo XVIII. Vendo as coisas pretas, julgou melhor pr-se ao fresco. Pulou de lado, o pulo difcil tambm dos gatos, desapareceu... Disseram que fugiu para a Vila Risonha de Santo Antnio da Manga de So Romo, l embaixo, no So Francisco, mandando matar o feitor Barba Seca, pelo caminho. O mal que imaginou fazer Capitania de Minas estava feito: representou bem, ficou riqussimo, era seu melhor sonho. Antes 34de ser vaiado, o comediante mambembe saiu de cena, respeitvel no seu descaramento. O Serto do Novo Sul, escamoteado das Minas Gerais por fora do direito pertencia agora Capitania de Gois. Quem teve razo foi o meganha acusado por ele como cristo-nvo: o trem fedia a enxofre e tinha ps de chibarro. Da maneira pela qual furtava acabou por burlar a prepotente linhagem divina da Casa de Bragana, obra de seus olhos de gavio, nariz de bode e apurado faro de hiena. Como veio, no se sabe de onde, passou sem se saber para onde foi Ajuntara montes de ouro, isto : ficara livre e poderoso. Boquejaram que fugiu, com receio do Bispo, quem no temeu a prpria Rainha. No teve medo da ona, quanto mais da sombra desse bicho... III OS PEREGRINOS Era quase noite quando uns peregrinos chegaram ao rancho de tropas do subrbio de Santa Rita, no Arraial de So Domingos. O velho apeou-se primeiro, depondo antes no cho a neta de 5 anos que viajava numa almofada, na cabea de sua gereba. Ajudou depois a descer a uma senhora ainda moa. A menina, com as pernas entorpecidas por cinco dias de marcha, estava com sono. O ancio ajudou a arriar as canastras de duas mulas de carga. Formando um couro com seu ponche, deitou a neta. A tropa enlameada resfolegava faminta, procurando toucas de capim aos lados do rancho. O viajante, velho tso, alto e espadado, alisava as barbas alvas, enquanto o escravo desarriava os animais de sela. Depois, colocou o arreiame sob a coberta com os suadouros para cima, apanhando a raspadeira. O velho colocara os embornais com milho no focinho dos bichos e com um canivete rombo, de folha larga, comeou a destacar as cascas de velhas pisaduras no lombo de um macho. Feito isso, falou pela primeira vez: - Moiss! Toma conta do rancho. Vou procurar hospedaria. E subiu apressado a rampa, em procura do arraial que comeava ali, no rancho de desarreio. A senhora, sentada, em silncio ao lado da filha (era sua filha), enxugava o rosto do suor poeirento e, com calma, comeou a passar um pente pelos cabelos castanhos. A filha adormecera. Moiss raspou a tropa, que se afastava, bufando alto, a retouar o capim do campo. Quebrou gravetos para o fogo do caf. 35 Arrumou a tripea de ferro, pondo gua a ferver, e acendeu um cigarro furtivo, impossvel de fumar na presena do senhor. Quando este voltou, sempre digno at no andar, o escravo serviu o caf nos coits encardidos pelo uso. Acordou a neta, que bebeu, calada, a infuso. Depois de umas ordens ao escravo sobre a bagagem, tomou com delicadeza a pequena, queencostou no ombro. Chamou, spero, a filha: - Vamos! Subiram para o centro da aldeia. J anoitecera. Ainda era tempo das chuvas grandes, mas a noite, muito limpa, exibia na porcelana antiga do cu lavadas estrelas fulguras. O grupo entrou numa hospedaria, casa humilde de telhas vs. Veio o jantar. A neta comeu cansada e a moa amargava, em sua perptua mudez, visvel tristeza. Comiam calados. Terminado o jantar, o velho foi buscar a bagagem, levando um carregador. Instalados, a dona da penso afeioou-se logo pequena. - Como se chama, bem? No respondeu. A me, por ela: - Ana... A proprietria insistia, alisando-lhe os cabelos: - Tem o nome pequenino como voc mesmo. Tem o nome da me de Nossa Senhora. A moa justificava, sorrindo, a timidez da filha: - muito matuta diante de estranhos. Em casa, conosco, viva e buliosa. A dona da casa voltava: - Que idade tem voc, Aninha? A ela se desatou: - Cinco anos. - Muito bem; voc muito bonita e vamos ficar amigas. A me se comovia com as delicadas palavras filha. A nova amiga de Ana adivinhou a razo de sua quietude: - Est cansada, com sono. melhor deit-la. Quando o av se desfez da bagagem, entrou no quarto para beijar a neta, que dormia. A filha pediu a bno, recolhendo-se. Ele foi para a sala, onde conversavam dois hspedes. O pretexto de um torrado que o velho tomava fez a apresentao dos trs. Os outros provaram o p. - O senhor mesmo que fabrica, amigo? - Este no. Fabrico, mas um menos cheiroso. Este fbrica de minha terra. - De onde o senhor? 36 - Sou natural de Formiga-Grande. Morava, ao vir para aqui, em Nossa Senhora do Carmo de Pains, distrito. O interlocutor: - Ah, Nossa Senhora do Carmo de Pains, j ouvi falar. O ancio, inquiridor: - No esteve l... - No, senhor; conheo apenas por ouvir falar. Falam muito de suas terras, da mata de Pains. - So terras boas. Terras afamadas para tudo. So, alis, terras de matas que o senhor fala. - So muito grandes? - Quase todo o distrito de matas. Muitas matas de madeiras de lei, muito procuradas! - O senhor morava na roa? O velho pigarreou, cruzando as pernas: - Morava e no morava. Tnhamos uma fazenda quase na sede do distrito. Meia lgua... - Plantava ou criava? - As duas coisas. Tinha lavoura e um pouco de criao. - E essa zona boa para criar? - das melhores. Tem o defeito de embernar muito o gado. As matas... - E as matas so virgens?- Matas virgens. H poucas derrubadas, o distrito ainda tem pouca gente... Sob a claridade do lampio acamaradavam-se, em conversa cordial. O novo amigo alongava-se: - Trouxe tambm a famlia... - Sim, senhor, trouxe a famlia, que pequena: filha e neta. - Quer dizer que vivo. - Sim, sou vivo, infelizmente. Minha mulher morreu h cinco anos. O outro comentou, sentindo-se penalizado, como se monologasse: - Pois eu tambm sou vivo e tenho oito filhos. No h nada pior na vida de um homem que a viuvez, quando h filhos. Eu sempre digo: Antes viver preso do que ficar vivo com filhos. O velho suspirou: - muito triste! Vivi casado 25 anos, s tive uma filha, que aqui est, assim mesmo nascida anos depois de casado. Minha filha est com 25 anos, feitos. - Seu genro no veio... O ancio descruzou as pernas, com visvel mal-estar: - Tambm no tenho mais genro. 37 Agitava-se porque ia mentir, contra seu hbito: - Minha filha tambm viva... - Enviuvou cedo! - Enviuvou. - E que idade tem o senhor? - Eu tenho 65 anos graas a Deus. Casei com 35 e a mulher com 20. O companheiro de penso era perguntador: - E seu genro com que idade morreu? - Com 40... Morreu moo, umas febres... Um homem como Joo (era o seu nome) no mentia nunca, mas, por pundonor, era obrigado a torcer a verdade ali, entre estranhos. Sua filha nunca fora casada e aquela inverdade que dissera levava-lhe sangue ao rosto que ardia, queimando. O outro vivo sabia o que era perder a esposa. - Pois o que lhe digo: viuvez mais morte para quem fica do casal, do que para quem morre. Joo suspirou, s para ele: - verdade. A gente fica to isolado no mundo que, no fossem os apegos de filhos... a gente pedia a Deus para nos levar tambm. Vivi em paz com a defunta e a morte dela foi um fracasso para mim. E de olhos baixos: - A velhice est a. A gente se prende aos hbitos, que tambm so vcios. Eu, pelo menos, perdi parte da coragem para trabalhar, viver. Costumo dizer aos amigos que os sofrimentos matam mais do que as doenas. Se eu fosse moo, no casava mais depois da viuvez. A gente casa uma s vez na vida. Precisa honrar as cinzas de quem morreu. Mas acho que o homem enviuvado cedo e no tendo filhos deve de novo se casar. Para o homem de responsabilidade, ficar vivo o mesmo que cair no escuro, num buraco bem fundo e que no foi pressentido. - O senhor tem razo... - O senhor moo... - No, tenho 50 anos e nunca vi tanta coisa certa como em suas palavras. Se no tivesse filhos era capaz de me matar... - Isto no, porque a vida de Deus Todo Poderoso, A vida no nossa, temo-la apenas emprestada por ele. Suicidar jogar fora um objeto que est emprestado conosco e somos responsveis por ele. Ningum pode brincar com a alma, que uma coisa sria. Eram 9 horas e chegavam outros hspedes para dormir. Dona Arminda levou sala o caf noturno, caf simples. Procurava se familiarizar com Joo:38 - Gostei muito da Aninha, meu senhor. muito linda, muito simptica... - Obrigado, dona. Minha netnha... Dizem que os avs so corujas: pois seja, eu tambm acho a neta bonita! - Brinquei com ela que seu nome do tamanho dela: Ana... Joo, sorridente, cofiava com a mo direita as grandes barbas mal tratadas: - O nome dela at grande: Ana Jacinta de So Jos... - O nome, todo, maior do que ela... - Mas a senhora no sabe que a netinha tem um apelido... Ela parou, com a bandeja nas mos: - Apelido? Qual ? - Bja... - Ah, pois amanh no quero mais saber a no ser do apelido. Bja... O novo amigo de Joo bocejava: - Por que o apelido de Bja? - Esse apelido de minha neta vem de pequenina. Corria, pulava, pegava em minhas barbas, apanhava as flores todas que encontrava por perto. Um dia eu lhe falei: Voc no pode ver flor que no corra logo para cheirar e trazer para casa. Voc parece um beija-flor. Comecei a chamar a neta de beija-flor e os de casa tambm. Depois passou a ser chamada somente de Bja.1 E sorrindo, delicado: - Todos conhecem Bja e ningum sabe que Ana... O sonolento, distrado, sem disposio para mais prosa: - engraadinha. O av babava-se: - Veio cansada. Trouxe-a na cabea da sela. No tem costume de viajar e , por isso, acanhada. Logo que tenha liberdade com as pessoas aqui, o senhor ver que foguete minha neta. ( Todos estavam sonolentos, menos Joo, sempre vivo, pronto. A conversa morria na moleza dos primeiros cochilos. Houve um silncio e, para despertar: - O senhor est de passagem? Joo esclareceu: - Vim ver se me arrancho por aqui. Tenho boas informaes e vendi os possudos em Nossa Senhora do Carmo de Pains, para recomear a vida longe de minha terra. O companheiro do outro vivo, at ento calado, sentenciou: - bom mudar de terra. Eu gosto de mudar de terra. Nova terra, vida nova. 1 em verdade pronncia comum entre os mineiros: bja-flor. Entre gente Inculta essa transformao gramatical de uso corrente. Consiste em sncope, queda de letra no vocbulo. 39 Joo resistia: - Acho que os velhos no devem mudar: eu mudei... Mostrou-se indeciso para o resto: - ... arrancando pedaos da minha carne. fora. O aparteante com as mos nos bolsos, esticando as pernas: - Ora, toda terra nossa terra. O lugar em que vivemos em paz que devemos amar. A cabea da gente s vezes como os morros cheios de neblina. Na madrugada de minhas tristezas estou precisando de um p-de-vento para levar as neblinas, que me fazem ficar abatido. O vivo dos oito filhos sorriu, conhecedor das dores humanas: - Isso falta da velha, meu amigo... - ; pode ser. Ergueu-se, esquecido do tempo. Consultou o pesado relgio de prata:- Quase 10 horas. Vou ver se descanso. Boa noite para os senhores. Ambos responderam, corteses. Joo, afastando-se, sempre digno, para seu quarto, vizinho do da filha, despiu-se e apagou a luz. A noite fria do planalto araxano obrigava a cobertores de l de carneiro, tecidos no Arraial. Joo no dormiu logo. s 11 horas, ventos estabanados uivavam nos oites da casa, ventos que trouxeram chuva repentina. As goteiras despejavam gua no cho batido da rua. O corao do velho apertava, sentia frio. Ouvia os coqueiros do quintal, remexidos pelos ventos e barulho triste das palmas reagindo s rajadas do chuveiro. O rudo das goteiras foi-lhe sossegando as preocupaes, sentiu a cama amansando-lhe o corpo dolorido. Adormeceu. s 5 horas foi ao rancho, ver a tropa. Bebeu o caf do Moiss e parou em frente do rancho, olhando o dia clarear. Aparecia direita a Serra das Alpercatas, sem pontas ptreas, boleada em suaves elevaes. esquerda, o Morro da Mesa ainda pouco visvel sob nevoeiros errantes. Bem perto, depois de ribeiro Santa Rita, no fim da rampa, frio, escuro, o pau-da-frca se erguia patente de encontro ao cascalho da colina. Perto dele o velho leo vermelho abria a saia verde da copa redonda, tecida de folhas midas muito juntas. Esse leo se confundia com o pau-da-frca, dois postes altos de aroeira, ligados em cima por uma trava. Dali pendia, quando preciso, a corda na ponta de que morreram h tempos dois escravos. Foi a nica safra do absolutismo sinistro, em So Domingos. 40 Em frente, longe, corria o crrego Choro, entre extensos palmares penteados por ventos desabridos. Os campos gordos do geral provavam que eram ricos, pois os animais amanheceram de barriga cheia. Ia clareando aos poucos e uma luz amarelada espanava as derradeiras penumbras da noite. Eram aqueles os campos do planalto. As rvores eram as mesmas de Nossa Senhora do Carmo de Pains, robustas e esgalhadas, sombreando o cho gordo. Regressou devagar, olhos embebidos na paisagem farta dilatada para horizontes alegres. O casario ainda modesto, mal alinhado, guardava lugar para os palcios do futuro. Na porta da hospedaria animais de viagem comiam, nos embornais sujos. que os amigos da vspera iam partir. Um deles saudou, expansivo, o ancio: - Bom dia, amigo. madrugador! - Com o louvor de Deus! Sou madrugador por hbito. Em minha terra s 4 horas j tomava caf. O vivo viajante: - Que tal o lugarejo? - Pelo que vi parece bom; terras frteis: eu venho de terras ricas mas este planalto uma beleza! - As guas daqui so muito finas... - o que temos de mau em Formiga-Grande. So salobras, como todas as guas de boas terras. - Mas aqui os terrenos so bons, dizem, e as guas - no h melhores. Joo, de olhos faiscando vida: - um privilgio de So Domingos! A dona da penso, que os ouvia, aparteou orgulhosa: - A prova que o clima daqui especial este ar leve, fcil de respirar, e os ventos, os centenrios que vivem aqui. Em So Domingos viver 100 anos a coisa mais fcil...Entraram para o caf. J na mesa Joo quis saber particularidades dos viajantes: - O senhor de onde ? - Sou natural de Farinha Podre. Venho da Vila do Prncipe, onde tenho um filho. Viajo agora e aguardo suas ordens. - Que Deus o leve em santa paz! Nisto Bja chegou porta, friorenta, em seu capotinho de l. V, bna? Estendeu a mozinha. O av beijou-a na testa, no pescoo. Joo voltou-se para os outros" - Aqui est a razo nica de minha vida, senhores! 41 Empurrou a menina, de manso, para a frente: - Cumprimenta os amigos, Beja. Ela, parecendo ensaiada para delicadeza: - Bom dia! O vivo de Farinha Podre: - Bom dia, Beja. Como voc bonita, voc uma gracinha. E para o av: - Que cabelos mais lindos! O senhor tem razo, sua netnha uma estampa... Dona Arminda chegou com a bandeja, que deps na mesa grande. E satisfeita, falando para Joo: - Beja agora minha amiga... Dirigindo-se aos mais: - Vejam que olhos lindos ela tem... So verdes, grandes, fulgurantes! O homem de Farinha Podre, como pai: - Que Deus a crie! Joo, desconsoladamente vaidoso: - Amm. tudo que me resta da vida... Os viajantes partiram, na rota de Farinha Podre. Joo alugara pasto para os animais e procurava se ambientar em palestras com gente do arraial sobre a compra de fazendola, pois tendo pouco recurso no almejava fazenda de encher os olhos. Porque era salvado de um incndio, incndio, da morte da esposa, a serena Dona Nhanh. Sofreu porm, se possvel, paixo maior: Maria, sua filha, ainda solteira apareceu grvida. A esposa ainda vivia, flafelada de males sempre crescentes. Joo, severo lutador, homem e sangue limpo, incapaz de mentir, no sabia ainda do acontecido. A educao da mulher, em Minas do sculo passado, era to rigorosa que as filhas no tinham liberdade de conversar na mesa dos pais. Viviam mais com as escravas que com as prprias mes. Quando essas mes-pretas eram africanas, possuam lealdade incorruptvel; boas conselheiras, e amavam as sinhzinhas. A mestiagem perverteu esse sentimento e as escravas mulatas eram cnicas, sensuais e falsas. A educao sexual das mocinhas era ministrada por essa gente. Cresciam na moral das escravas e, desde meninas, presenciavam a vida reservada dessas mes-de-criao e os homens por quem se apaixonavam. As mes legtimas no permitiam a menor palavra relativa maternidade, em presena das filhas. Quando mocinhas, o noivo quase sempre pedia uma donzela em casamento pelas notcias do seu tipo, ou porque a sabia viva em determinada casa. Contratavam casamento de criaturas que se desconheciam e s vinham a conhecer no p do altar. As jovens 42 cresciam incultas, apenas com os preceitos de cega obedincia. No discutiam as deliberaes dos pais. Certa vez uma jovem da Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui ficou noiva sem conhecer nem de vista o pretendente. Encontraram-se, por chocante acaso, na residncia de uma tia da noiva e conseguiram trocar algumas palavras. Faltavam oito dias para ocasamento. O rapaz no conseguira ver nem os ps da noiva, mesmo calados, pois a larga saia os ocultava. - Deixe-me ver ao menos a ponta de seus ps... Como resposta, rubra de pejo, a noiva puxou mais para baixo a barra da saia comprida. Ora, quando Maria, grvida, no podia mais ocultar seu estado, a me trancou-se com ela num quarto, exigindo a confisso, em frente da Imagem de Nossa Senhora. Maria, chorando, no respondeu s perguntas da me. No pde saber qual o namorado da filha, quem seria o pai de seu futuro neto! S ameaa gravssima de contar tudo ao esposo, o que seria caso difcil de saber-se o fim, amoleceu o corao da moa. - Minha filha, voc est grvida? Como nica resposta a me viu a jovem balanar a cabea, dizendo sim. Desse instante para a frente, Maria se tornou para sempre condenada s vistas da pobre me. Estava em desterro na prpria famlia, cometera erro to grande que infamava todos os parentes. Perdera, com aquele balancear afirmativo de cabea, todas as prerrogativas de unignita do casal: comparava-se a uma leprosa, desonrara a virtude espartana da me e ia matar o pai, com certeza. A esposa de Joo recorreu a beberagens que sabia fazer; deu filha para engolir coisas infames; recorreu a prticas de africanos, com garrafadas imundas. Tudo em vo. A gravidez aumentava, a carne amadurecia o fruto, dava-lhe foras, vida. A doena agravou-se-lhe com aquele desastre e a fazendeira teve o extremo cuidado de ocultar aquilo ao marido. A me de Maria pouco deixava a cama, chorando. O esposo no sabia mais que fazer: procurara boticrios, entendidos, curiosos. Viajara mesmo at longe, em busca de recursos. Tudo fora perdido. A esposa minguava, morria aos poucos. A filha, quando de passagem ou a chamado, aparecia ao pai, toda espantada, no lhe dera notar o estado. Uma tarde surgiu gente na fazenda do Major Joo. Como pedissem pousada, ele recebeu o hspede, escoteiro, que viajava para a Vila da Borda do Campo. Ceiou e, na sala, bebendo o caf da hospitalidade, logo se entenderam os dois velhos. 43 Quando soube da situao de Dona Nhanh, doente h tanto tempo, compadecido, prometeu trazer na sua volta um remdio de boticrio muito aprovado l. O Major no sabia como agradecer. Falava trespassado: - Meu amigo, este ano de 1799 vai terminando para mim, como ano fatdico. Imagine o amigo que sou casado h muitos anos e nunca vivi to atormentado como agora. A mulher no resiste mais: no dorme seno madornas, no se alimenta - geme. Apenas geme. S fala se lhe perguntam. J confessou e quer ser ungida, o que est nos casos. Se ela morrer fico com a filha nica solteira, louvado seja Deus. Minha mulher tem tanta certeza de seu fim que mandou j fazer seu balandrau para enterrar. Comprei o pano, o mais pobre (ela pediu assim), mandou cortar o hbito, discutiu com a costureira as medidas (mangas bem estiradas), e a mortalha est pronta. O senhor sabe, estou velho e esta serenidade da esposa me feriu fundo no corao! Fez uma pausa pesada. E enxugou os olhos no leno ramado: - Ora, estou velho e no tenho parentes aqui, nem os tem a mulher. Somos paulistas, menos a filha, que de Formiga-Grande. Estou para o que Deus determinar. Minha doente no quer mais remdio, diz que seu remdio morrer. Quando tem agonias, dolorosas agonias, bebe um ch de folhas de maracuj, s. O viajante ouvia, tristonho: - Pois dentro de poucos dias eu lhe trago as mezinhas. Uma molava outra. Deus h de fazer com que tudo se resolva pelo melhor. Na manh seguinte o hspede partiu. Maria pernoitava no quarto da me. Naquela noite, bem tarde, Joo ouviu gemidos. Foi ver o que era, certo de que a esposa piorara. No era ela que gemia. - A filha est com cmaras de sangue, Joo. As escravas davam-lhe escalda-ps, apunham-lhe na barriga da perna um sinapismo de casca de laranja. - Mais esta, pensou o velho, retirando-se. A esposa, engelhada, encolhida na cama, sob rumas de cobertores, agarrava- se a um tero com as mos trmulas. Rezava no para si: para a filha. Joo voltou ao quarto, estava desorientado: - Vou a Formiga-Grande buscar remdio para a filha. Dona Nhanh sentiu-se aliviada com aquela solicitude: - Vai, Joo, e que Deus o leve e traga. Pela madrugada chegavam as drogas. No valeram. O Major, desassossegado, para no ouvir os gemidos, saiu para os arredores andando toa. Voltando varanda, ainda ouvia os gemidos espaados, mal contidos, de Maria. Extenuado pelos dissabores, deitou-se na espreguiadeira e adormeceu, vencido. Ainda no 44 amanhecia quando acordou com gritos agudos de criana. Correu ao quarto. A esposa, de joelhos, abriu-lhe os braos, prendendo-lhe s pernas: - Joo, vou morrer! Meu ltimo pedido que voc perdoe de corao nossa filha infeliz! Amoleceu os braos, numa sncope. A indignao que borbulhava no corao do velho mudou-se, num milagre, em compaixo pelas doentes. A esposa no ouvia muito bem mais. O velho abaixou-se sobre ela: - Nossa filha est perdoada. Deus te perdoe, minha filha! Estava de p, esttico, entre a filha e a esposa. Maria, que tapava com um pano os olhos, estendeu o brao, tomando a mo do pai que beijou, sfrega. O velho como resposta alisou com a mo tremente o rosto da filha. Chorava, sem soluos, pela gua escorrendo dos olhos frios. A criana choramingava, enquanto as escravas compunham o quarto. Dona Nhanh parecia dormir mas no dormia; gemendo, num letargo, procurava ar, para no morrer. Joo, ao chegar varanda, caiu em soluos largos e sacudidos. Depois, se acalmando: - Estou vivo, vencido e desonrado! Aquele varo digno, extremado em honra, capaz de matar a filha se soubesse da sua gravidez; homem que era um lobo para defender seu lar, estava dobrado pelo vagido de uma criana. Sentia ondas de sangue escaldante queimar-lhe o rosto plido. Falava sozinho e, em face dos acontecimentos, suspirava amide: - Estou vivo, vencido e desonrado! Uma criana apenas nascida comandava o bravo lutador, tomava conta das trincheiras de defesa de uma famlia onde a honradez humilde no dava quartel a nenhum ato contra a moral. Pela manh, Dona Nhanh despertou da prostrao, vivificada. Sorriu para a menina. Sentou-se na cama, tomou a neta nos braos, beijou-a no rosto, expansiva na sua franqueza de agonizante perptua. Mandou chamar o marido, recebendo-o como antes, cheia de jbilo: - Olha, Joo: A nossa neta vai se chamar Ana; sua afilhada e de Nossa Senhora e quem vai ficar em meu lugar, nesta casa. O velho sorriu, surpreso com a melhora da esposa. No queria acreditar. Nhanh melhor, sem dores, feliz...Saiu do quarto, abobado, chorando e rindo, leso... Dona Nhanh passou o dia animada, distribuindo ordens, conversando como s! O marido iluminou-se, com a esperana renascida. Entrava e saa no quarto de sua velha, espantado ao v-la enfaixar a neta, conversar com ela, embalando-a nos braos. Era um milagre, pensava. A casa alvoroou-se como em dias felizes e seu corao 45 tomou-se leve, desabafado. Assim passava o dia da chegada de Ana. A mancha que lhe adviera com o parto da filha dava lugar ao jbilo celeste do chorinho da neta. Sim, era milagre, tomava a pensar: Dona Nhanh, que ele julgava em artigo de morte, estava s, ria! tarde, quando apartava os bezerros, foi chamado por gritos de uma escrava. Correu de novo ao quarto: sua mulher agonizava, com a vela na mo. Fora de repente. Entregando a neta a uma escrava, empalideceu, tombou de costas sobre as almofadas. Joo ajoelhou-se, chamando-a: - Nhanh, minha mulher! Joo, seu marido! Sou eu! Ela gargalhava um catarro mido, tinha os olhos abertos, vidrados. A respirao vinha aos arrancos, a custo. - Nhanh, pelo amor de Deus! seu marido. Todos se ajoelharam, rezando alto. A agonizante parara de respirar. Sua escrava preferida trouxe um espelho, que lhe encostou na boca. No ficou embaado. Joo disparou a soluar como doido. Dona Nhanh morrera. Cinco anos depois estava com a neta Bja e a filha na hospedaria de So Domingos do Arax. Vendera tudo em Nossa Senhora do Carmo de Pains. Ia recomear a vida, aos 65 anos. A neta era sua prpria sombra. Homem correto at mincia da honradez, tinha preocupao do crdito; no precisava assinar documentos, sua palavra era o documento. Nunca falhou nos seus tratos nem chegou depois de qualquer hora marcada. Saindo de Formiga-Grande, nada ficou a dever mas recebeu tambm o que era seu. Sua ltima dvida, pagou-a. Era uma novilha que prometera ao Divino para sua festa do Espirito Santo. No admitia diminuies sua pessoa. Jamais falava mal de algum e o que falasse provava. Agora ali, com recursos medocres, resolveu alugar por 10 anos uma fazenda que visitara. Preocupava-se em deixar filha e neta, sem ser pesadas a ningum. Cristo supersticioso, cheio de f implcita, obediente a tudo que fosse da Divina Vontade, ele tambm renascia do inconformismo de sua situao de homem derrotado no duro carter. Num sbado, dia de sorte, mudou-se para a fazenda de Sobrado, a duas lguas de So Domingos. Tinha 10 anos para trabalhar nas fecundas terras arrendadas. Aos 70, calculava, podia morrer em calma. Sua sade de ferro ainda aguentava o corpo enxuto e firme, nesse esforo para vencer a ltima etapa da vida, trabalhando. 46 Desceu sobre Joo, Maria e Bja uma cortina de silncio. A terra, um gado comprado l, animais de servio e o escravo Moiss, que viera com ele, eram o seu comeo no planalto araxano. A terra do planalto da Serra do Espinhao, de maravilhosa fecundidade, os ares lavados de chuvas pontuais, as guas finas e frias, alm do sossego retirado da fazenda, eram penhor de sua grande confiana. Ele prprio reconhecia: - Deus deu tudo a este rinco. No falta nada para o homem ser feliz em So Domingos do Arax. A terra d vida, Deus d a sade; compete ao homem fazer o resto. Chegaram ao sobrado na manh de sol, quando Deus sorria no azul claro do cu. Cantavam pssaros. Oscilavam ao vento as palmeiras nativas e um cheiro bom de mato errava pelos caminhos. O calor do chogeneroso germinava as sementes. As razes bebiam a seiva fecundante da terra dos Araxs. Cantavam guas transparentes nos ribeires ligeiros. A fartura se abria para todas as bocas. Joo sentia-se estuante de indmita coragem. Maria estava com o corao desanuviado. Bja... Bja sorria. IV - TENGO-TENGO O cativeiro no era apenas vergonhoso: era, antes de tudo, uma indignidade. Considerados oficialmente como gado, aos escravos no era dado viver, mas se aniquilar com doenas, fome, rlho e trabalho duro. Desde que chegou Capitania de Pernambuco, em 1534, uma leva de cativos importados pelo Donatrio Duarte Coelho, s aumentou em toda Colnia essa mancha social, comum alis entre outros povos. Pelo tempo das entradas nas Minas Gerais, esse territrio, ainda ligado a S. Vicente, possua em suas lavras e povoados 29.100 escravos. Laboravam em So Domingos do Arax 4.366, em Paracatu, 2.638 e na Bagagem, 2.963 escravos. Essa escravaria mourejava em todas as catas, nos speros desmontes, nos servios mais vis. S lhes permitiam casamento com ambio das crias, dos flegos vivos. Emparedados na sufocao da s