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1 Superstição e Autoengano, Aforismos e Outros textos A capacidade de produzir crenças e de se ludibriar Mauro Cardin

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Superstição e Autoengano,

Aforismos e Outros textos

A capacidade de produzir crenças e de se ludibriar

Mauro Cardin

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2015

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário do direito autoral.

Edição do autor

Impressão e encadernação: Portal PerSe (www.perse.com.br)

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“Como doentes em um hospital,

não fazemos senão mudar de leito,

ir de uma loucura a outra.”

(Emerson)

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SUMÁRIO

Apresentação .......................................................................... 5

Superstição e Autoengano ..................................................... 7

Segunda parte: Outros textos ............................................... 29 Coisas que não existem ........................................................ 31 Carpe Diem ............................................................................ 34 Círculo vicioso ....................................................................... 37 Portabilidade ........................................................................... 40 Intensidade e Estilo ............................................................... 42 Sem volta ................................................................................. 46 Barreira natural ...................................................................... 48 Dois mundos .......................................................................... 51 O clichê do mundo melhor ................................................. 54 Provocativo modo de dizer .................................................. 57

Terceira parte: Aforismos e outros escritos ........................ 61

Bibliografia ............................................................................. 114

O autor ................................................................................... 117

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Apresentação

Em Superstição e Autoengano, primeira parte do livro, analisam-se a capacidade que o ser humano tem de ludi-briar-se e como tal fenômeno se dá na superstição religio-sa, isto é, no âmbito das crenças populares e das que, de certo modo, são objeto do consentimento ou da tolerância das seitas.

O ponto de partida é a obsessão humana de produzir crenças, tendo como motivação para isso o medo e a espe-rança, o egocentrismo e a sensação de desamparo.

Se, de um lado, para evitar divagações, procurou-se ali-cerçar as reflexões em ocorrências concretas e na realidade cotidiana (como se poderá ver já no início), por outro, bus-cou-se ilustrá-las com a intervenção de vários autores, mui-tos dos quais grandes nomes do pensamento universal.

Na segunda parte, vêm textos sobre outras questões. Dois exemplos: Coisas que não existem, a respeito de nossa dependência da fantasia; Barreira natural, sobre o ódio do corpo à abstração, ao raciocínio e à leitura.

A parte final, Aforismos e outros escritos, trata de as-suntos bastante variados, recorrentes no dia-a-dia, em fra-ses curtas e pequenos parágrafos, sempre buscando o má-ximo de objetividade e concisão.

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Superstição e Autoengano

“A imaginação cria mecanismos de consolo e fuga, por meio dos quais o homem pretende encontrar,

na fantasia, o prazer que a realidade lhe nega.”

(Rubem Alves)

Num encontro de rua, conversavam três velhos conhe-cidos.

„A coisa que eu e minha mulher mais queríamos era ter um filho. Já tínhamos vários anos de casados, e nada de ela engravidar. A gente já havia ido a diversos médicos! Até que, certa ocasião, apesar da dificuldade em que viví-amos, ajudamos uma mãe muito pobre cujo filho de um ano estava desenganado pelos médicos. Tanto fizemos, tan-to ajudamos, que acabamos salvando a criança. Foi então que minha esposa engravidou‰, contou o primeiro cidadão.

„E daí?‰, inquiriu o segundo. „Uma coisa tem tudo a ver com a outra! Pelo bem que

fizemos àquela criança, fomos agraciados com um filho‰, argumentou o primeiro.

„Claro, claro!‰, ironizou o terceiro. „Você não é obrigado a acreditar. O bem é recompen-

sado com o bem e o mal, punido com o mal. Assim são as coisas! Quando você estiver diante de uma pessoa orgu-lhosa, que só pensa em dinheiro, em passar os outros para trás, pode ter certeza de que, lá na frente, no futuro, ela vai pagar em doença, solidão, sofrimento... Alguma desgraça vem em cima dela!‰, garantiu o primeiro.

„Você, certamente, está falando que o insensato acaba se danando em consequência de sua própria falta de cons-ciência, não é mesmo?‰, intervém o terceiro.

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„Não é bem isso. Quero dizer que ele vai ser punido pelo que fez, como castigo!‰, corrige o primeiro.

„E quem controla isso? Há anjinhos escriturando tudo lá no céu: quem deve pagar muito, quem deve pagar pou-co, quem não deve pagar nada e quem deve ser recompen-sado? Haja anjinhos!‰, brincou o terceiro.

Foi aí que o segundo interveio: „Se tem anjinho contro-lando eu não sei, só sei que quem faz coisa ruim, na outra vida, vai pagar. Ah, isso vai!‰

„Como? Não entendi. Outra vida?‰, fez o terceiro, fin-gindo-se surpreso.

„É, na outra vida, na reencarnação! Por que é que você acha que nasce tanta gente com defeito físico, tanta gente de cabeça fraca?‰, observou o segundo.

„Não seria por razões biológicas?‰, sugeriu o terceiro. „Nada disso! Por que você nasceu com saúde e o seu vi-

zinho não? Um motivo há de ter!‰, disse o segundo, abrin-do os braços, tentando explicar que falava do óbvio.

„Claro, Claro! Mas, vamos gente, vamos tomar um ca-fezinho!...‰, convidou o terceiro, sem se preocupar em dis-farçar que, na verdade, o que queria mesmo era dar fim àquela conversa.

O episódio deu-se em novembro de 2013. Para o primeiro sujeito, ainda que ele não tenha cons-

ciência disso, existe um grande tribunal que premia os bons e castiga os maus aqui mesmo, „neste mundo‰. O segundo não disse que não é assim, mas tem „certeza‰(?) de que real-mente exista um tribunal, ainda que numa outra vida. „Por que você nasceu com saúde e o seu vizinho não? Um motivo há de ter!‰ Esse motivo, para ele, só pode ser que o desafortunado tenha sido mau na „vida anterior‰. Para mui-tos, essa é a explicação para a pessoa ter nascido com defi-ciência, como se o problema com que ela tem de conviver não seja suficiente: é preciso ainda garantir que tenha sido

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má e que mereça o problema de que padece. Das fantasias de que aqui tratamos, essa é a mais cruel.

Negação do acaso “O acaso vai me proteger

enquanto eu andar distraído.”

(Titãs)

Esses tribunais imaginários (que na prática são um só, já que ambos são guardiães da justiça e da moralidade) têm lá suas falhas. „Então aquelas 242 pessoas que morre-ram queimadas na boate no sul do país1 teriam sido pos-tas no evento estrategicamente para serem punidas todas de uma vez? E por que os outros moradores da cidade não? Algum motivo há de ter!...‰, poderia plagiar o sujeito amante da razão, sem estar sendo indelicado. „Esse motivo chama-se acaso; por acaso, foram aquelas 242 pessoas que estavam na boate que pegou fogo, e não outras‰, conclui-ria, sem medo de errar.

Quando decidimos viajar de carro, nós „apostamos‰ (ou pelo menos acreditamos) que todos os mil motoristas com os quais cruzaremos nas rodovias não vão deixar seu caminhão ou seu carro vir em cima de nós. Caso contrá-rio, não iríamos. Assim também é nas outras coisas. Nós acreditamos, tomamos a decisão, mas boa parte da emprei-tada quem decide são as variáveis que não estão sob nosso controle. O imponderável não deixa de ser assustador. Existimos agora e deixamos de existir no momento se-guinte sem que tenhamos feito nada errado.

O senso comum cria uma infinidade de discursos para explicar e até negar os acasos. No fundo, a pessoa simples não aceita o fortuito, não o reconhece como tal, e imagina uma mão invisível, que precisa ser permanentemente afa-

1 Referência à tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS), em janeiro de 2013

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gada, para administrá-lo do modo que ela, pessoa, deseja. Por um conjunto de fatores, alguns administráveis, ou-

tros não, as coisas acontecem. Esse fato as pessoas não querem aceitar. Talvez até se deem conta dessa realidade, mas preferem não a acolher, então imaginam uma força sobrenatural para interferir nos acontecimentos.

„Nada acontece por acaso!‰, dizem os mais crédulos, como se tudo fizesse parte de um roteiro pensado nos mí-nimos detalhes por alguém ou algo fora de nós. Essa enti-dade seria extremamente justa, utilizando os acontecimen-tos que programa para nós como meio de punição ou de recompensa pelo que fizemos ou deixamos de fazer.

As pessoas têm dificuldade de admitir até mesmo as coincidências, atribuindo-as a essa força sobrenatural que a tudo programaria. Curiosamente, não veem nenhuma presunção nesse modo de pensar, que supõe alguém de uma outra dimensão, dia e noite, planejando coisas para nossas vidas: com quem vamos cruzar num passeio de rua; o nú-mero do bilhete de loteria que vamos comprar; se o sapato novo vai nos provocar dor nos pés...

Tenhamos acaso aqui como ocorrência que não é re-sultado de nossa ação. Por exemplo, está chovendo; esse fe-nômeno tem sua lógica, suas leis físicas, suas relações de causa e efeito, é um fato que me atinge mas independente de mim. Nesse sentido, o acaso é o pano de fundo da rea-lidade.

Há uma frase interessante de Millôr Fernandes sobre nosso assunto, não porque represente alguma verdade, mas pelo seu valor poético e ilustrativo. É melhor citá-la lite-ralmente:

„Deus criou o sol. E as árvores, e os animais, e os mi-nerais. Mas de repente, para absoluta surpresa sua, olhou e viu, maravilhado, que cada coisa tinha uma sombra. Nes-sa, francamente, ele não tinha pensado.‰

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Se estou certo, o escritor quer mostrar que até mesmo nas ações do Criador o acaso se manifesta. Contudo, é de Millôr ainda esta frase irônica: „É evidente que o Universo foi feito por acaso – como a represa de Assuã [barragem egípcia tida, de início, como impraticável], a Crítica da Razão Pura e a Capela Sistina.‰ Aqui, o escritor brinca com quem não dá o devido valor à competência, ao talen-to e ao esforço. Ou seja, como não poderia deixar de ser, ele assume a casualidade mas reconhece suas limitações. É de se notar também que o autor carioca, falecido em 2012, embora se manifestasse cético em relação à existência de Deus, na segunda frase admite que o Universo não teria sido obra do acaso.

Egocentrismo “Só há uma coisa mais forte que o amor

materno, é o amor de si próprio.”

(Machado de Assis)

O curioso é que, segundo cada pessoa, a mão invisível cuida dela (pessoa) nos mínimos detalhes, mas não evita que várias crianças sejam soterradas no deslizamento de um morro na cidade vizinha ou que um ônibus repleto de passageiros despenque na ribanceira perto dali.

O jogador Pedro pede ardentemente que seu time ga-nhe o jogo e que, de preferência, ele seja o destaque da par-tida; até se benze ao entrar em campo. A mesma coisa faz João, do time adversário, e os demais companheiros de equipe. Tanto um quanto o outro têm a esperança de que, como pediram fervorosamente, as coisas vão correr a seu favor (a favor de cada um). Quer dizer, aquilo que eu que-ro precisa prevalecer sobre o que meu adversário quer. Por quê? (Voltaremos a essa questão daqui a pouco, no tópico Consolo.) No lugar da resposta a essa indagação sempre fica um vazio. Não se fala sobre isso. Aliás, essa pergunta

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sequer é formulada. „O maravilhoso da guerra, essa em-presa infernal, é que cada chefe dos matadores faz benzer suas bandeiras e invoca solenemente a Deus antes de ir exterminar o próximo‰, ironiza Voltaire.

A pessoa se confunde, por si mesma e induzida pelas fantasias que ouve, fecha-se num hipotético e intimista diálogo interior com um ser idealizado sob encomenda para suas necessidades cotidianas, que estaria a seu serviço o tempo todo, como se nada ou ninguém mais existisse além dela própria e de seus interesses.

Tal relacionamento assemelha-se ao do pai com o fi-lho, no qual o amor do pai àquele que gerou é incondici-onal e a tudo justifica. De certo modo, o místico é uma criança nos seus clamores íntimos. É particularmente nas músicas religiosas que as pessoas se mostram mais ingê-nuas, carentes e inseguras. A letra autocompadecida e a me-lodia lenta e suave, que lembra cantigas de ninar, sugerem uma ternura e uma humildade que não se conhecem no mundo real.

O exclusivismo de que falávamos há pouco mostra uma contradição, um involuntário sacrilégio até. Não se discute que o Criador seja justo e bom, então como pode-ria favorecer um dos seus em detrimento de outros, senão sendo injusto? Ou proteger alguns e deixar outros entre-gues à própria sorte, ao acaso? Por que não pediram direi-to! Essa não seria uma resposta sensata.

Centro do universo “Somos enganados mais vezes pelo nosso

amor-próprio do que pelos homens.”

(Marquês de Maricá)

Como qualquer animal, o ser humano é introspectivo: só vê a si próprio, tem dificuldade de sentir aquilo ou aquele que não está vendo, tocando, ouvindo, ou mesmo,

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de que não esteja próximo. Provavelmente venha dessa sen-sação o exclusivismo do crédulo, o fato de cada um de nós achar-se especial.

Os outros indivíduos são pensamento, só nos vêm à cabeça quando os chamamos, e não ficam mais do que um instante: são milhões, enquanto cada um de nós é único. Roland Barthes explica melhor: „O outro está em estado de perpétua partida; é, por vocação, migrador, fugidio; eu, por vocação inversa, sou sedentário, imóvel, à disposição, à espera, plantado no lugar, em sofrimento, como um pa-cote num canto obscuro da estação.‰

Como a vida é „vivida‰ por dentro, nosso interior é então o palco de nossas maiores encenações, nas quais, a um só tempo, fazemos as vezes de protagonista, roteirista e diretor, mas nunca de coadjuvante(s). „Não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um ar-ranhão em meu dedo‰, diz David Hume.

A pessoa sabe que, por justiça, devem passar num con-curso os candidatos de maior mérito e vencer um jogo os mais aptos; tem consciência de que qualquer medida que se tomar para que as coisas não sejam assim é proteção, ou seja, injustiça... quer dizer, se o beneficiado não for ela ou um dos seus!

Ninguém aceita ser qualquer um, e „qualquer um é exa-tamente o que somos‰, lembra André Comte-Sponville. Certamente, por trás desse egocentrismo está o instinto de autopreservação.

Esperança e Medo “Não há esperança sem medo

nem medo sem esperança.”

(Baruch de Espinosa)

Para Espinosa, a superstição é uma paixão negativa da imaginação que, impotente para compreender as leis do

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universo, oscila entre o medo dos males e a esperança dos bens. Segundo o filósofo racionalista, a superstição faz surgir uma religião em que a divindade é um ser colérico ao qual se deve prestar culto para que seja sempre benéfi-co. A afirmação faz sentido, mas merece um reparo. Em geral, a pessoa não idealiza um ser colérico, mas sim bom e justo, ainda que influenciável.

As seitas não só organizam as superstições e lhes dão respeitabilidade, como também são fontes de novas cren-dices. Algumas delas criam uma casta de iluminados (e privilegiados), diante dos quais uma imensa quantidade de pessoas humildes, temerosas e frágeis erguem os braços e entram em delírio. Ali se vendem perdão, esperança e „mi-lagres‰, mas também, paradoxalmente, se excitam os me-dos que, desde a pré-história, atormentam nossa espécie.

Diz Pascal: „Aqueles que têm esperança na salvação são felizes por isso, mas têm como contrapeso o medo do in-ferno‰; ou seja, quem acredita numa tem de acreditar no outro: a esperança do céu traz consigo o medo do inferno.

Geralmente, não é a razão e o comedimento que vigo-ram nesses ritos, mas a emocionalidade e a exasperação de sentimentos, não só pelo tom cerimonioso com que tudo se dá e pelas músicas emotivas, como também por altos bra-dos, clamores, encenações retóricas e demonstrações de nar-cisismo do orador. O estímulo a uma vida reta, ao apri-moramento pessoal e à evolução cultural não entra em pauta; quando entra é de modo parcial e, quase sempre, „apenas‰ para lembrar a cada um que seus desvios são passíveis de terríveis castigos nesta e na outra vida; ou seja, para aumentar ainda mais o autorrebaixamento, a comise-ração e o temor. É difícil não ver nesses líderes um nego-ciante, cujo maior argumento de venda é o medo.

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Numa tirinha de André Dhamer2, o palestrante diz: „Não basta sentir medo. É preciso passar o medo para ou-tras pessoas.‰ Alguém da plateia questiona se isso não po-deria gerar pânico. „Se o pânico também der lucro, sim‰, conclui o orador. São três quadrinhos que ajudam a expli-car boa parte do que se pode ver diariamente na TV.

É preciso dizer, contudo, que, enquanto uma parte das religiões proclama suas verdades por meio de orador agi-tado e aos brados, a outra, um grupo restrito e bem defi-nido, o faz com preposto comedido. Na primeira, os ritu-ais são uma sucessão de espasmos e milagres; na segunda, um continuum de recolhimento e compenetração, sem curas sobrenaturais. O cidadão, embora tenha uma infinidade de seitas à disposição, antes de escolher em qual delas vai buscar seu conforto psicológico, tem de se decidir entre a agitação e a serenidade, o arrebatamento e a resignação.

Linguagem “O mito é uma fala.”

(Roland Barthes)

„Enquanto você não admitir, perante você mesmo, os seus medos, pondo-se em guarda, mediante difícil esforço de vontade, contra o poder que eles têm de criar mitos, você não poderá pensar corretamente sobre questões im-portantes, sobretudo as que se referem a crenças religio-sas‰, diz Bertrand Russel, que também vê no medo a prin-cipal fonte de superstição.

O medo, como a inveja, não se confessa. E, como ela, tem uma importância fundamental na organização hu-mana. Se uma causa rancores, o outro produz mitos. Se a inveja arquiteta hábeis artifícios para se esconder de quem

2 Folha de S. Paulo, 29.04.14, caderno Ilustrada