afolabi, n. contra-memória e violação da imaginação - alegorias (supra)nacionais n'o eleito do...

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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 24-25-26: 311-327, 2002/2003/2004/2005 * Tulane University, USA. 1 Este artigo representa a versão ampliada da palestra proferida no Congresso Internacional sobre As ilhas atlânticas: realidades e imaginário, na Universidade de Rennes 2, Haute Bretagne (France), 21-23 de Outubro de 1999. 2 Cf. OSÓRIO, 1987: 528. 3 Cf. FERREIRA, 1989: 285. 4 Cf. LABAN, 1992: 528. Contra-memória e violação da imaginação: Contra-memória e violação da imaginação: Contra-memória e violação da imaginação: Contra-memória e violação da imaginação: Contra-memória e violação da imaginação: alegorias (supra)nacionais n’O eleito do sol legorias (supra)nacionais n’O eleito do sol legorias (supra)nacionais n’O eleito do sol legorias (supra)nacionais n’O eleito do sol legorias (supra)nacionais n’O eleito do sol de Ar de Ar de Ar de Ar de Arménio Vieira e n’A casa da água ménio Vieira e n’A casa da água ménio Vieira e n’A casa da água ménio Vieira e n’A casa da água ménio Vieira e n’A casa da água de Antônio Olinto de Antônio Olinto de Antônio Olinto de Antônio Olinto de Antônio Olinto 1 Niyi Afolabi * Só os rebeldes (ou os poetas) chegam à loucura. O homem do povo se resigna, o artista se rebela. 2 [Oswaldo Osório] Decidi que ser poeta a sério implicava uma espécie de suicídio. 3 [Arménio Vieira] Você situa-me muito em Cabo Verde mas estou no mundo! 4 [Arménio Vieira] Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Using Elisabeth Wesseling’s Writing history as a prophet as a theoretical support, this comparative study between Arménio Vieira’s O eleito do sol and Antonio Olinto’s A casa da água, examines the similarities and contrasts between Capeverdean and Afro-Brazilian

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    * Tulane University, USA.1 Este artigo representa a verso ampliada da palestra proferida no Congresso Internacional sobre Asilhas atlnticas: realidades e imaginrio, na Universidade de Rennes 2, Haute Bretagne (France), 21-23 deOutubro de 1999.2 Cf. OSRIO, 1987: 528.3 Cf. FERREIRA, 1989: 285.4 Cf. LABAN, 1992: 528.

    Contra-memria e violao da imaginao:Contra-memria e violao da imaginao:Contra-memria e violao da imaginao:Contra-memria e violao da imaginao:Contra-memria e violao da imaginao:aaaaalegorias (supra)nacionais nO eleito do sollegorias (supra)nacionais nO eleito do sollegorias (supra)nacionais nO eleito do sollegorias (supra)nacionais nO eleito do sollegorias (supra)nacionais nO eleito do sol

    de Arde Arde Arde Arde Armnio Vieira e nA casa da guamnio Vieira e nA casa da guamnio Vieira e nA casa da guamnio Vieira e nA casa da guamnio Vieira e nA casa da guade Antnio Olintode Antnio Olintode Antnio Olintode Antnio Olintode Antnio Olinto11111

    Niyi Afolabi *

    S os rebeldes (ou os poetas) chegam loucura.O homem do povo se resigna, o artista se rebela.2

    [Oswaldo Osrio]

    Decidi que ser poeta a srioimplicava uma espcie de suicdio.3

    [Armnio Vieira]

    Voc situa-me muito em Cabo Verdemas estou no mundo!4

    [Armnio Vieira]

    Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Using Elisabeth Wesselings Writing history as a prophet as a theoretical support,this comparative study between Armnio Vieiras O eleito do sol and Antonio Olintos Acasa da gua, examines the similarities and contrasts between Capeverdean and Afro-Brazilian

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    Contra-memria e violao da imaginao: alegorias (supra)nacionais ...

    5 A Editorial Caminho (Portugal) dedicou uma srie especial ao aniversrio do 25 de Abril de 1974(data do golpe do Estado em Portugal e o fim do Salazarismo) em que convidou uma dezena de autorespara escrever obra de fico tendo como tema o 25 de Abril. Desta dezena, contam-se apenas dois escritoresafricanos, nomeadamente, Germano Almeida (Dona Pura e os Camaradas de Abril) e Mia Couto (Vintee Zinco). Se Portugal se preocupa com o simbolismo do 25 de Abril, resta saber o que fizeram os africanospara o aniversrio analgico relativo independncia da frica do jugo do colonialismo.6 Ver, por exemplo, APPIAH, Kwame Anthony Is the post-in postmodernism the post-in postcolonial?,In: Monga, Padmini (ed.). Contemporary postcolonial theory: a reader. London: Arnold, 1996, p. 63;SHOAT, Ella. Notes on the post-colonial. Social Text, 31-32: 99-113, 1992; e HAMILTON, Russel. Aliteratura nos PALOP e a teoria pscolonial.7 A verso inglesa est atualmente sendo empreendida pela editora inglesa Heinemann, que j traduziuautores como Luandino Vieira, Pepetela, Mia Couto, Lus Bernardo Honwana, entre outros, mas at agorano tem sequer um autor cabo-verdiano por ela traduzido e divulgado.

    imaginaries. On the one hand, the Capeverdean island serves as a supra-national allegorywhile the reverse diasporic journey by the protagonists in A casa da gua revisits the invertedtranslantic journey following the abolition of slavery in Brazil in 1888.

    KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: violation, imaginary Capeverdean, Afro-Brazilian imaginary memory, supranationalallegory, the magic realism, fantastic trip, Egyptian mythology.

    IIIIINTRODUONTRODUONTRODUONTRODUONTRODUO

    Os ltimos vinte e cinco5 anos da independncia dos pases africanosde lngua portuguesa marcam-se pela busca da reconstruo espiritual comoestrutural depois de um sem nmero de anos da escravido e explorao eco-nmica relativos dominao colonial. Para alm da luta armada que levou independncia nos meados dos anos 70, os escritores africanos de lngua por-tuguesa encontram-se preocupados ainda com a questo da identidade tantonacional como regional e at certo ponto, internacional. A problemtica daglobalizao e as exigncias da (ps)modernidade e da (ps)colonialidade quej geraram muitas controvrsias6 continuam no meio da preocupao intelectual,assim como a problemtica scio-econmica, poltica e cultural da frica lusfona.Preocupao essa que se deu devido igualmente necessidade de sobrevivnciatanto do mercado internacional como do cultural. Portanto, por mais que seprocure negar a memria cultural e nacional, alguns escritores se esforam emresgatar essa memria mesmo que por meio de um mecanismo subversivo.

    Numerosas so essas obras subversivas, inclusive Lueji de Pepetela,Neighbours7 de Llia Mompl, Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa, Vinte e

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    8 Ver o catlogo especial da California Newsreels Library of African Cinema de 1999 que capta dez anosdo cinema africano lusfono. Nesta coletnea, vale registrar o fato de que no h nenhuma referncia ao cinemasantomense ndice talvez da ausncia de cinema indgena nesta ilha ou do reconhecimento da sua presena.9 Ver por exemplo a proposta do comparatismo triangular de Salvato Trigo em Ensaios de literaturacomparada: afro-luso-brasileira (p. 21-34); A emergncia da intertextualidade afro-brasileira em O dis-curso no percurso africano (p. 139-186), e a tese de doutoramento de Ramiro Silva Matos Neto intituladaAs influncias da literatura brasileira sobre as literaturas africanas de lngua portuguesa, publicada em1996, 603p., pela EGBA, Salvador, sob o pseudnimo Gramiro de Matos.

    zinco de Mia Couto e A eterna paixo de Abdulai Silai entre outras narrati-vas ps-coloniais. Mas em O eleito do sol de Armnio Vieira que se encon-tra o arqutipo da alegoria supranacional e da violao da imaginao. Odesafio da reconciliao e reconstruo depois das guerras civis em Angola eMoambique leva muitos escritores a se apoiarem na mitologia e na subversoda histria como um desvio estratgico da norma narratolgica e romanesca.O mecanismo contextualmente mais efetivo nos parece a exploso do cinema8

    luso-africano ou afro-lusfono em que se contam, entre outros, O testamentodo senhor Napumoceno (Cabo Verde), Fintar o destino (Cabo Verde), MortuNega (Guin Bissau), Udju Azul di Yonta (Guin Bissau), O olhar dasestrelas (Moambique), e Rostov-Luanda (Angola). Estes filmes facilitam oentendimento da situao colonial e os desafios da condio ps-moderna.Mesmo violando a imaginao da escrita, torna-se muito difcil ainda negar amemria captada pelo fio cinematogrfico.

    Embora no seja o nosso intrito primrio neste ensaio, a questo daintertextualidade9 entre a literatura caboverdiana e afro-brasileira j foi assuntode investigao por muitos estudiosos. Os laos mais comuns e muito citadosgiram em torno da influncia do regionalismo brasileiro sobre a gerao deClaridade e tambm sobre o Neo-Realismo portugus. Autores como JorgeAmado, Jos Lins do Rego, Graciliano Ramos e at certo ponto, GuimaresRosa, so considerados importantes nas literaturas africanas de lngua portu-guesa. Na mesma linha, autores como Castro Soromenho, Antnio LoboAntunes, Rui Knopfli, entre outros, encontram-se na fronteira entre o nacio-nal e o supranacional. Em relao a Cabo Verde, sobretudo Manuel Ferreirano seu artigo incisivo A emergncia da intertextualidade afro-brasileira, fazessa aproximao de uma maneira sucinta:

    Entre as duas literaturas, por motivos de ndole contextual a relativaproximidade sociocultural da realidade cabo-verdiana da realidade nordestina

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    brasileira , existia uma visvel semelhana, um certo parentesco temtico-linguistico (FERREIRA, 1989: 181).

    A escolha de textos de Armnio Vieira e Antnio Olinto motiva-sealm deste contexto, embora Olinto esteja traando a viagem do nordeste doBrasil costa da frica. No entanto, a intertextualidade nas duas narrativasem considerao reside na circularidade da construo narrativa. A viagemfantstica pelo mundo combina com a rebeldia da narrao para fornecer aoleitor obras geniais e magistrais de todos os tempos.

    Pergunta-se se de fato, ao procurar no violar a memria do passado ouao procurar resgatar o passado, a memria no , sem querer, violada. Comodiria Michael S. Roth, the past is necessarily violated in narrative memoryand in history writing, and so the very act of remembering can seem like aninfidelity (The ironists cage, p. 13). Assim sendo, uma certa ambivalnciaentra em jogo entre o lembrar e o esquecer. A prpria escrita ou narrativa, aocaptar momentos lembrados ou lembranas inventadas e selecionadas, ten-de mais a negociar a liberdade imaginativa e a tica da fidelidade histrica. Atransgresso implcita nessa negociao obriga o leitor a pr sempre em ques-to os motivos de cada escritor na sua manipulao da memria. Para MichelFoucault, contra memria reside na negao/problematizao da verso ofi-cial da histria em busca constante de verses alternativas (FOUCAULT, 1995:111-196; DAVIS e STARN, 1989: 1-149).

    Quem examina a literatura cabo-verdiana contempornea dos fins dosanos 80 at hoje, percebe uma tendncia inovadora de interpretar e mistificarem vez de retratar a realidade da ilha como tal. Conforme essa orientao ps-modernista est o rumo universal e intertextual em que a narrativa procura nose limitar problemtica nacional, mas sim, parte da mesma para atingir ouniversal, ou seja, uma aparente fantasia literria passa a ter conseqnciaspolticas supranacionais. O imaginrio da ilha deixa de ser uma verdade exclu-siva, mas uma alegoria de vrias verdades tanto nacionais como tambmuniversais. Na mesma linha, a literatura afro-brasileira busca definir a sua iden-tidade dentro da problemtica da democracia racial e do jugo do racismo mas-carado ou cordial. A similitude que se tem estabelecido entre a literatura cabo-verdiana e a literatura regionalista brasileira, sobretudo em relao problemtica da seca se v substituda por uma troca de preocupaes polticas

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    e econmicas como a corrupo das elites antes revolucionrias, mas atual-mente desiludidas. Este estudo procura situar O eleito do sol de ArmnioVieira dentro desta tendncia contrastiva e subversiva usando como refernciacomparativa A casa da gua do autor brasileiro, Antnio Olinto, em que omito e a histria se confundem com a realidade numa viagem transatlnticainvertida.

    AAAAARMNIORMNIORMNIORMNIORMNIO V V V V VIEIRIEIRIEIRIEIRIEIRAAAAA EEEEE A A A A ANTNIONTNIONTNIONTNIONTNIO O O O O OLINTOLINTOLINTOLINTOLINTO: : : : : REBELDESREBELDESREBELDESREBELDESREBELDES PSPSPSPSPS-----MODERNISTMODERNISTMODERNISTMODERNISTMODERNISTAAAAASSSSS

    A aproximao que se faz entre escritores nem sempre se justifica pelavida que eles levaram, mas em termos da semelhana do seu imaginrio. Nocaso de Armnio Vieira, cabo-verdiano, e Antnio Olinto, brasileiro, a seme-lhana reside no no regionalismo brasileiro, nem no Modernismo brasileiroque marcou a primeira gerao de Claridade cabo-verdiana, mas naautoconscincia da rebeldia narrativa. A irreverncia tpica da esttica moder-nista capta-se num poema de Vieira, Toti Cadabra, dedicado ao longo poe-ma de Joo Cabral de Melo Neto, Vida e Morte Severina, e revela a vida secade Cabo Verde simbolicamente figurada na personagem de Toti Cadabra: TotiCadabra / de vida macabra / j eras cadver / bem antes da morte. / Bem antesda morte / j eras cadver / Toti Cadabra / de vida sinistra. / No enterro deToti / nem padre nem gente / na campa de Toti / nem flor de finado (50 PoetasAfricanos, p. 282). Esta iluso intertextual do nordeste brasileiro na obrapotica de Armnio Vieira situa o escritor como aliado dos regionalistas e dasua problemtica agonizante do meio-ambiente. A fascinao de Vieira pelonada, pela imagtica da priso, ressoa em outro poema pessimista, Caviar,champanhe & fantasia, em que a voz potica sonha com a morte num mo-mento de celebrao o seu aniversrio: Pelo que ficou dito / e pelo que no / talvez fosse oportuno morrer aqui e agora (p. 284).

    Tal preocupao com o meio rido que influi sobre a conscincia poticado poeta nos anos 80 se espalha para alm de Cabo Verde e procura se libertarna mitologia egpcia nos anos 90 com a estria ficcional de O eleito do sol.

    A preocupao com a mitologia grega no uma novidade na literaturacabo-verdiana. Sessenta anos antes da publicao da obra magistral de Vieira,O eleito do sol, verifica-se na poesia de Manuel Lopes a mesma tendnciamistificadora como no poema Encruzilhada:

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    Que disse a Esfingeaos homens mestios de cara chupada?............................Ilhas de herosmos e derrotas e esperanasque a Histria no escreveonde a hora longae o dia breve... (No Reino de Caliban I, p. 106).

    A figura da Esfinge, smbolo da renascena e da esperana, significapara o escritor claridoso o consolo de que Cabo verde renascer das cinzas daseca, da insularidade e da necessidade evasionista. Esse esprito patritico,nacionalista e cultural que marcou Claridade (anos 30/40) v-se retomado nagerao de Sl (anos 60) ao qual pertence Armnio Vieira, embora seja decunho existencial e filosfico. O contexto social em que viveu no ser respon-svel pela fascinao do escritor com a mitologia e a filosofia? Alguns dos seuspoemas refletem essa preocupao metafsica como em Narciso e a esttua deVnus e Ssifo. Ambos os poemas revelam o absurdo onde Narciso temquatro olhos em vez de dois, e Ssifo tem olhos tristes. A vida que levouArmnio Vieira sempre foi aflitiva, tendo sido preso pela PIDE, numa cons-tante fuga e regresso sua cidade natal, Praia, onde continua exercendo aprofisso de jornalista.

    Enquanto Armnio encontra sua esttica na mitologia grega e egpcia, na mitologia e religio africana (candombl) que Olinto mergulha, recebendoe dando axs (benos) aos Orixs (deuses africanos no Brasil). Poeta, jorna-lista, adido cultural das embaixadas brasileiras em Lagos e Londres; premia-do em 1994 com o Prmio Machado de Assis da Academia Brasileira deLetras e eleito membro da mesma em 1997, Olinto representa mais do que umintrprete da cultura afro-brasileira. Com A casa da gua, Olinto capta a me-mria histrica e cultural dos descendentes africanos no Brasil que voltaram frica depois da abolio da escravido. Nesse sentido, Armnio Vieira eAntnio Olinto so rebeldes e inovadores. Procurar alm das fronteiras nacio-nais, o que h de nacional e procurar no nacional o que h de transnacio-nal retoma uma das propostas ps-modernistas. Embora seja problemticoo propsito recuperativo atravs de rumos novos, no tradicionais, e trans-cendentais, j que sugere uma certa fuga dos problemas reais e concretos, orealismo mgico que ambos os escritores empregam para explicar situaes

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    polticas pode servir como proposta reconciliadora em que o dilogo leva snovas revelaes.

    CCCCCONTRONTRONTRONTRONTRAAAAA-----MEMRIAMEMRIAMEMRIAMEMRIAMEMRIA: : : : : SUBSUBSUBSUBSUBSDIOSSDIOSSDIOSSDIOSSDIOS PPPPPARARARARARAAAAA UMAUMAUMAUMAUMA TEORIATEORIATEORIATEORIATEORIA

    A memria elemento fundamental na ao de documentar a realidadeimediata e histrica. Assim sendo, a tentativa de captar a mesma realidade poroutros meios leva ou a uma falsificao propositada dos fatos ou at a recriaoda realidade pela violao da imaginao. Em Writing history as a prophet deElisabeth Wesseling, prope-se a conjetura contra-fatual histrica (p. 157)como uma estratgia narrativa em que a histrica oficial subvertida pela frag-mentao, permitindo muitas possibilidades de relatar a mesma verdade. Ouseja, no se pode falar numa verdade nica e sim em muitas verdades. Nessesentido a subverso da histria oficial ou cannica passa a ter uma finalidadepardica que se pode chamar de ordem utpica alternativa (p. 156) la Bakhtin.

    Verificam-se essas histrias alternativas que procuram subverter tantoa memria pela imaginao como a histria pela fragmentao em O eleito dosol do cabo-verdiano Armnio Vieira e A casa da gua do brasileiro AntnioOlinto. As duas obras servem de alegoria supranacional para uma reinterpre-tao da realidade nacional. No caso dO eleito do sol, trata-se da realidadeintracontinental, quer dizer, Cabo Verde em relao ao Egito e no caso dAcasa de gua, trata-se da realidade intercontinental, quer dizer, Brasil em rela-o frica ou mais especificamente, Nigria. Nas duas obras verificam-seigualmente o motivo herico da parte dos protagonistas e narradores.

    O O O O O ELEITOELEITOELEITOELEITOELEITO DODODODODO SOLSOLSOLSOLSOL: : : : : UMAUMAUMAUMAUMA VIOLVIOLVIOLVIOLVIOLAOAOAOAOAO DODODODODO IMAIMAIMAIMAIMAGINRIOGINRIOGINRIOGINRIOGINRIO

    Se Hora di bai (com base na seca de 1943), de Manuel Ferreira j foiqualificado como romance de tpica sntese caboverdeana (CANIATO, 1989:207-212) em que o discurso gira em torno da histria objetiva, temos em Oeleito do sol outra perspectiva e tendncia dos anos 90 que se pode denominarde uma tpica sntese ps-modernista caboverdeana em que a histria inverti-da e fragmentada. Nesta nova sntese, o discurso gira em torno de uma aventu-ra fantstica de um escriba egpcio que tem como tarefa contar sua prpria

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    10 Para uma elaborao mais detalhada dessas preocupaes, ver Panorama da literatura cabo-verdiana.Vrtice 55 (1993: 25-32) de Arnaldo Frana e Cape Verde. The postcolonial literature of LusophoneAfrica [179-233] de David Brookshaw.

    histria. Na epgrafe que abre a novela, Armnio Vieira, o autor, diz: Inme-ros sero os teus trabalhos. Para que no enlouqueas, ns, deuses imortais,ofertamos-te a imaginao e o riso (p. 7). Nesta advertncia, o autor alerta oleitor para o cunho proftico da obra. Em outras palavras, e como o prlogotambm avisa, trata-se de uma histria antiga, de h cinco mil anos, em que oescriba se tornou fara atravs de um sonho (p. 9). Estes elementos desonho, de profecia e de imaginao combinam para situar o leitor no nvel deviolao da memria e da imaginao.

    O eleito do sol redefine o realismo mgico no sentido rigoroso do termo.O sobrenatural se mistura com a fantasia numa viagem do estilo de ritos depassagem em que o heri o escriba egpcio e narrador, enfrenta muitos desa-fios, ultrapassa-os com um esprito guerreiro, se descobre, e enfim, acaba setransformando em fara, ou seja, um rei do antigo Egito. O humor s vezestenta suavizar a meta ridicularizante da trama fragmentada. Pergunta-se o queessa aventura tem a ver com a realidade cabo-verdiana contempornea. Emnvel alegrico supranacional, O eleito do sol pode ser considerado como umafuga poltica realidade cabo-verdiana como meio de atacar parodicamente asinfra-estruturas polticas num dilogo disfarado entre os poderosos no poder eos intelectuais que possuem o poder da palavra e da imaginao. Como obser-va Manuel Veiga:

    Para Armnio Vieira, os tempos so outros e a literatura tambm tem que seroutra. A temtica do terra-longismo, da mame-terra, da chuva-madrasta ebraba, do mar-priso-liberdade, da seca malfadada, da fome-ingrata e da leique manda fincar os ps no cho, j teve o seu tempo. Muito mais do que asdez ilhas ou parte de um continente, Cabo Verde, hoje, est e faz parte douniverso (VEIGA, 1998-A: 193).

    Aqui se insere resumida e dialeticamente, as constantes polmicas queseparam a obra de Vieira das preocupaes anteriores,10 abrindo caminho paranovas possibilidades da prosa de fico cabo-verdiana.

    A moderna fico cabo-verdiana at o fim dos anos 70 preocupou-secom a viso fatalista da cabo-verdianidade que se verifica nos exemplos de

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    Manuel Lopes (O galo que cantou na baa, 1959), Baltazar Lopes(Chiquinho, 1947) Manuel Lopes (Os Flagelados do vento leste, 1960),Manuel Ferreira (Hora di bai, 1962), Lus Romano (Famintos, 1962),Teixeira de Souza (Ilhu de contenda, 1975), Orlanda Amarilis (Ces-do-Sodr t Salamansa, 1974) e Gabriel Mariano (Vida e morte de JooCabafume, 1977) entre outros. Com os anos 80, comea o que se pode cha-mar de onda ps-modernista e esttica universal em que Cabo Verde seintegra ao mundo l fora sem se limitar apenas problemtica insular, asaber, a seca e a emigrao. A viso esttica e estilstica como a depuraoda linguagem, a multiplicidade de vozes e o uso da pardia como nos exem-plos de Germano Almeida (O testamento do sr. Napumoceno da Silva Ara-jo, 1988), Antnio Aurlio Gonalves (Noite de vento, 1998) e ArmnioVieira (O eleito do sol, 1992) consagra a literatura cabo-verdiana dentro daproblematizao da verdade atravs do humor e do engajamento univer-sal. O risco dessa tendncia reside na falsificao ou violao da histriapor metas puramente estticas. Seria interessante ver o impacto dessas novasdirees daqui a cinqenta anos no sentido de poder avaliar a memria cole-tiva em relao sua negao e subverso.

    NO eleito do sol, h todo um ambiente de magia e de mito ao correrdas aventuras do escriba egpcio cuja identidade passa a ser um elemento pri-mordial para a sua funo honrosa de contador de histrias do antigo Egito. curioso o fato de Armnio Vieira, um cabo-verdiano, escolher o Egito antigo eno a ancestralidade cabo-verdiana que se pode captar na oralidade e nocrioulismo. Sem dvida, a escolha tem a ver com a busca das origens que nose encontram em Cabo Verde, j que a maioria da populao mestia conta-secomo portugueses que acabam emigrando a Portugal. Por isso que ao escribafoi concedido um prazo de cinco dias para descobrir a sua prpria identidadej que no Egito sagrado no se pode ter dvida, ou h certezas ou no h (p.16). Fazendo uma viagem grande pirmide para falar com a Esfinge, eledescobre sua identidade, mas acaba vencendo assim a Esfinge que se transfor-ma numa esttua de pedra. A conversa entre os dois revela toda uma troca desabedoria e de truques em busca da identidade do escriba:

    Sbia das sbias, filha dileta do divino Amon, diz-me se sou neto daqueleque proveio da grande rvore nascida da cabea do divino Toth e que nasterras sagradas do Egito o segundo em grandeza e poder...

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    Contra-memria e violao da imaginao: alegorias (supra)nacionais ...

    Adivinhaste, e com isso eu fiquei arrumada. Tanto pior para Amenfis.Grandes coisas vais tu realizar, s a reencarnao daquele heri cujo nomeno ouso pronunciar. Sou prodgio destes tempos, eis a concluso disse o escriba em voz muitoalta, embora falasse agora consigo mesmo.Quando olhou para a Esfinge, viu que ela se convertera numa esttua depedra (VIEIRA, 1992: 18).

    Apesar desta aparente certeza, ao conversar com o fara, este sentiudvidas na descoberta do escriba e foi novamente concedido outro prazo detrinta dias para descobrir sua identidade sem dvidas.

    O fenmeno da verdade absoluta que explora Vieira pode ser relaciona-do teoria da contra-memria. Na mitologia egpcia, entende-se que a verda-de, para que ganhe a consistncia de uma certeza absoluta, tem de apresentarduas faces igualmente claras (p. 23). Vieira, de fato, no est procura daverdade absoluta da realidade cabo-verdiana, mas verdades mltiplas. porisso que esse elemento de dvida percorre a narrativa como um todo. Trata-sede uma estratgia questionar a realidade histrica como meio de dialogar coma histria oficial e transgredir os seus limites.

    Outro episdio fantstico tem a ver com a doena da mulher do gover-nador Ramsis em que o escriba passa a ser o mdico indicado para cur-la. Aprpria doena, resultado da mordedura da mulher de Ramsis por um ratodo Nilo, estranha. Chamar um escriba, que no tem diploma de mdico paracurar a mulher do governador pura fantasia. Para consultar o divino Toth, onico com a receita de cura, exige-se dois gatos um preto, o outro branco ,um fogo, uma cadeira de trs ps, uma faca de esfolar coelhos, uma botijacom gua sagrada do Nilo e o dcimo terceiro tomo do Livro de Toth. Estaoferenda ao divino Toth to mgica e fantstica como a cura, sugerida pelodivino Toth. Aqui est a receita da cura:

    D trs beijos referida senhora um na boca, outro no p esquerdo e oterceiro num stio tua escolha, que febre lhe passa logo (VIEIRA, 1992: 50).

    Apesar de o governador Ramsis hesitar, a maior vontade dele era cu-rar a sua mulher. Ao cumprir a tarefa dos beijos, o escriba egpcio descobrealgo espantoso: a mulher de Ramsis havia mudado de sexo. Na sua perplexi-dade, o escriba confessa:

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    Nunca imaginei que a veneranda esposa do respeitvel Ramsis fosse algumdo meu sexo... Confesso-me perplexo e decepcionado... em ltima anlise,tudo o que existe, aqui como em qualquer outro ponto do Universo, tantopode ser realidade como pura fantasmagoria (VIEIRA, 1992: 58).

    Enfim, o escriba cumpre a receita do divino Toth, dando o terceiro beijona marca de Ado da esposa do Ramsis e assim curando-a. Um tal epis-dio fantstico, tanto ertico como mgico revela a problemtica da relao depoder entre o governador Ramsis e o escriba. Apesar do seu poder, o gover-nador se encontra numa situao de sem-poder j que depende do escribapara curar a sua esposa. Contextualizando este episdio dentro da realidadecabo-verdiana contempornea, Vieira ridiculariza o poder poltico, retratandoo intelectual como a salvao e o poder maior nesse jogo de poderoso e sempoder. Vieira no s humoriza os poderosos pela caricatura e pela irreverncia.O leitor lida com um afastamento do autor do modelo cannico em que se falade temas como a seca, a emigrao, saudades e a insularidade entre outrasproblemticas de Cabo Verde.

    A originalidade de Vieira est na capacidade de fugir da realidade ime-diata e histrica de Cabo Verde, usando a histria universal e fantstica parainvocar e problematizar a realidade cabo-verdiana. As aventuras do escriba,da descoberta da sua identidade, da cura da esposa do governador Ramsis,da explicao dos unicrnios e bicrnios a Ramsis, sua liderana da granderebelio, at a sua ascenso a fara, se traduzem numa violao da linearidadee da trama tradicional. O que se pode extrapolar desta trama fragmentada efantstica a metfora do sol e do ser eleito como o ttulo sugere. O sol simbo-liza os deuses e a universalidade enquanto o eleito o intelectual cabo-verdiano. Assim sendo, o intelectual cabo-verdiano passa a ser o eleito dosdeuses e no os polticos corruptos e medocres.

    A A A A A CCCCCAAAAASASASASASA DDDDDAAAAA GUAGUAGUAGUAGUA: : : : : UMAUMAUMAUMAUMA ALEGORIAALEGORIAALEGORIAALEGORIAALEGORIA DDDDDAAAAA VIAVIAVIAVIAVIAGEMGEMGEMGEMGEM FFFFFANTSTICANTSTICANTSTICANTSTICANTSTICAAAAA

    EEEEEnquanto O eleito do sol apia-se na mitologia egpcia, manipulando econtrapondo a figura dos reis antigos com a figura do escriba que se transfor-mou em Fara para representar a realidade cabo-verdiana, A casa da gua deAntnio Olinto, reconstri a saga de uma famlia afro-brasileira da Bahia quevoltou Nigria depois da abolio da escravido no Brasil. uma histria

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    quase pica que cobre quatro geraes numa aventura de volta alegre terra me. A dimenso mitolgica do romance resumida por Gabriel Perousequando diz que Eis o romance que uma epopia e, na multiplicidade deseus episdios e de seus personagens, lembra a catalogao de heris feita porHomero (A casa da gua, p. 8). Narrada do ponto de vista de Mariana, aneta da av Catarina que fundou a casa de gua ao chegar Nigria e tornou-se uma comerciante bem sucedida.

    A histria comea em 1880 quando a av Catarina, levada ao Brasilcomo escrava durante sua adolescncia em Abeokuta (na Nigria), e depoisemancipada no Brasil, decidiu voltar Nigria. Ao chegar a Lagos, a entocapital da Nigria, Mariana passa a ser a herona da histria e da famlia. Deseus esforos para obter uma boa educao e fazer negcios surgiu-lhe a idiade abrir um poo para tirar gua j que havia escassez da gua, e da o ttulo daobra. Alm da histria da Mariana, da documentao genealgica da sua fa-mlia, o motivo da viagem fantstica percorre a obra. O romance est divididoem quatro partes. A primeira retrata a viagem do Brasil Nigria, a segundafocaliza a vida conjugal e maternal de Mariana, a terceira relata o comercialismoda casa enquanto a quarta acompanha a poltica de Sebastian, filho de Marianae sua ascenso presidncia da repblica imaginria de Zorei.

    Apesar da euforia da libertao no Brasil, a famlia de Mariana chegoua Lagos em plena era colonial em que os ingleses tinham total controle e o pasna altura era chamado Protetorado britnico. Esta mudana de um local delibertao para outro de proteo colonial meio irnica embora tivesse umameta espiritual para a famlia. Mesmo assim, a crise de identidade faz partedos desafios da famlia como num episdio em que Mariana, ainda adolescen-te pergunta para a sua me se eles eram brasileiros ou africanos. A respostafoi: As duas coisas, minha filha (OLINTO, 1999: 86), sugerindo assim umaidentidade hbrida de ser afro-brasileira. Outro momento foi quando avCatarina protestou seu nome e se lembrou do nome africano que tinha antes deser escravizada:

    Meu nome Ain. Como, mame? Ain. Sempre me chamei Ain. No Brasil que trocaram meu nome,fiquei sendo Catarina, mas tenho nome: meu nome Ain...

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    Puxou a mo de Mariana, que estava perto, e continuou: Devia ser proibido trocar os nomes das pessoas. Meu nome Ain (OLINTO,1999: 88).

    Em vez do esquecimento ideal que se exige para se livrar da lembranahorrorosa do passado escravagista no Brasil, a av transformou a experincia euma parte da memria numa crtica contra a mudana de nomes. De fato, onomear um aspecto muito importante na cultura ioruba e africana por exten-so. Perder seu nome perder suas razes, sua identidade. Em vez de violar aimaginao da av Catarina, parece que a escravido e a libertao cutucarama memria dela. A memria o que levou Mariana a pensar em abrir um poocomo no Brasil onde servia de fonte de gua na roa. Embora todos descon-fiassem da vontade de Mariana, acabaram concordando com ela e at empres-taram dinheiro para ela realizar o projeto, que passou a ser conhecido comoA casa da gua.

    Quando nasceu Sebastian, o filho de Mariana que vai ser presidente darepblica anos depois, a cerimnia do nome lembra a cultura ioruba como se afamlia estivesse bem integrada na sociedade nigeriana nesta altura, em 1910,trinta anos depois de sair do Brasil. Seu Justino, o mais velho, fez a cerimnia,usando uma bacia de gua e trs de sal, mel e azeite de dend respectivamente:

    Seu Justino pegou no menino... ps um dedo na gua, molhou com ela oslbios de Sebastian dizendo: A gua a base de tudo, a coisa mais importante do mundo, que a vida domenino seja calma e serena como gua... O sal limpa as coisas, que o menino seja limpo e justo... O mel adoa a vida. Que o menino tenha uma vida cheia de doura e dealegria... O leo da palmeira sinal do que comemos. Que durante toda a sua vida omenino tenha sempre o que comer e que nisto sinta alegria... Tu s Sebastian (OLINTO, 1999: 165).

    Esta cerimnia muito significativa porque assegura o futuro da crianapelo menos do ponto de vista da crena ioruba.

    O crescimento de Sebastian foi rpido, adquirindo uma educao bur-guesa em Frana para depois voltar para a repblica de Zorei onde foi eleitopresidente. Com uma educao europia, Sebastian parece representar a fam-

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    lia afro-brasileira que se integrou na vida e cultura ioruba, mas uma elite que jadquiriu o discurso demaggico tpico dos lderes e polticos africanos da eraps-independncia. Segundo Sebastian:

    A independncia d uma euforia na gente. legtimo que assim seja. legtimoe bom. Mas tambm perigoso. Nossa tendncia imaginarmos que, comisso, todos os problemas esto automaticamente resolvidos. Ficamosindependentes e como se um poder do cu resolvesse tudo... Ora, sabemosque isso no vai acontecer. Ao contrrio, com a independncia nossosproblemas sero aumentados... Precisamos, por isto, chegar a um estado deconscincia, temos de compreender que a data da independncia foi apenas ocomeo da luta verdadeira da independncia (OLINTO, 1999: 349-350).

    Apesar da sua dedicao e boa-vontade, Sebastian, o presidente darepblica de Zorei foi logo assassinado e assim termina o romance num tompessimista e decepcionador. Neste sentido, a fantstica Repblica do Zoreiserve como um microcosmo da realidade africana ps-colonial e por extensoda realidade afro-brasileira ps-escravagista. Sebastian de fato tem razo, adesiluso que segue a independncia como a escravido sempre leva ao senti-mento de busca permanente que s vezes, se projeta como rebeldia da partedos jovens, ou em certos casos, em golpes de estado que tambm no resolvem.O ar do pessimismo (distopia) no otimismo (utopia) continua sendo uma facade dois gumes.

    AAAAALEGORIALEGORIALEGORIALEGORIALEGORIA ( ( ( ( (SUPRSUPRSUPRSUPRSUPRAAAAA)))))NANANANANACIONALCIONALCIONALCIONALCIONAL NANANANANASSSSS DUADUADUADUADUASSSSS NARRNARRNARRNARRNARRAAAAATIVTIVTIVTIVTIVAAAAASSSSS

    O eleito do sol e A casa da gua como estruturas alegricas suprana-cionais levam a concluses diferentes embora de cunho mitolgico-fantsticosemelhante. No caso dO eleito do sol, a fantasia serve de uma viagem ne-cessria para um escriba descobrir as falhas dos poderosos na sociedade cabo-verdiana enquanto nA casa da gua enfrenta-se a desiluso no s de umafamlia afro-brasileira, mas africana na sua viagem fantstica de reintegraono pas natal. A temtica insular que definia a realidade cabo-verdiana se vsubvertida pela universalidade da mitologia egpcia do mesmo jeito que atemtica de libertao se v problematizada numa realidade ps-escravaturae ps-independncia.

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    Ambos, Armnio Vieira e Antnio Olinto, violaram a imaginao etrabalharam os seus textos como alegorias que fogem das memrias do presen-te e do passado para se consolar no realismo mgico de cunho evasivo e contra-ditrio. Talvez a riqueza da renovao resida mesmo na sua prpria contradi-o. Enquanto nO eleito do sol, Vieira desafia o leitor para desmontar todauma narrativa onde no h nem uma referncia a Cabo Verde nem uma espe-cificidade temporal, nA casa da gua, Olinto se refugia na nomeao e no noanonimato. Em enumerar os nomes prprios de lugares e de personagens comoda especificidade de datas de viagens, a credulidade, lgica e dvida se vemaumentadas. As duas narrativas deixam abertas possibilidades mltiplas eenriquecedoras de leitura.

    Os vinte e cinco anos da independncia nos pases africanos de lnguaportuguesa como os cem anos da abolio no Brasil exigem uma avaliaocrtica da natureza das coisas. No deixa de ser lamentvel por um lado, olegado da decadncia europia herdada pela nova ordem dirigente em fricatais como o nvel precrio do (an)alfabetismo, a corrupo contagiosa em quese mergulham os dirigentes africanos e (afro)brasileiros. mais lamentvelainda por outro lado, que a memria sirva apenas como um mecanismo pol-tico de desvio e de evasionismo. A violao da memria e da imaginao teriatantas possibilidades de enriquecer o patrimnio cultural e histrico se nofosse manipulada por interesses polticos e egostas. A realizao de ArmnioVieira nO eleito do sol abre caminho para novos rumos ps-coloniais da cul-tura cabo-verdiana, aproveitando a teoria foucaultiana do poder-saber (faravs. escriba) como alegoria para provocar um dilogo entre os intelectuais e ospolticos corruptos. Na mesma linha, A casa da gua de Antnio Olinto apro-xima o Brasil e a frica atravs de mitologia, histria, e memria, sinalizandomaiores expectativas do imaginrio afro-brasileiro como na obra recente eprovocativa de Paulo Lins, Cidade de Deus. Ao traar o imaginrio alm dasfronteiras nacionais, no deve se esquecer do poder da memria cultural ecoletiva que, muitas vezes, corre o risco de se perder por detrs das alegoriasque passam a ser mentiras verdadeiras.

    RRRRResumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Apoiando-se em Writing history as a prophet, de Elisabeth Wesseling, este trabalhofaz um estudo comparativo das similaridades e contrastes dos imaginrios cabo-verdiano eafro-brasileiro atravs de O eleito do sol, de Armnio Vieira e A casa da gua, de Antonio

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    Olinto. De um lado, a ilha cabo-verdiana serve de alegoria supranacional no engajamentomitico-filosfico entre o intelectual e o poltico e do outro lado, a viagem transatlntica dosprotagonistas de A casa da gua uma dispora invertida na procura das razes deixadas emfrica pelos escravos aps a abolio em 1888.

    PPPPPalavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: violao, imaginrio cabo-verdiano, memria, imaginrio afro-brasileiro, con-tra-memria, viagem transatlntica, alegoria supranacional, realismo mgico, viagem fantsti-ca, mitologia egpcia.

    BBBBBIBLIOGRIBLIOGRIBLIOGRIBLIOGRIBLIOGRAFIAAFIAAFIAAFIAAFIA

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