afetividade na educação infantil

13
AFETIVIDADE E EDUCAÇÃO INFANTIL: O OLHAR WALLONIANO RODRIGUES, Sílvia Adriana – CPAN/UFMS [email protected] Eixo Temático: Educação Infantil Agência Financiadora: não contou como financiamento Resumo O presente texto apresenta os resultados da investigação acerca das manifestações afetivo/emocionais de crianças durante a primeira infância em contextos coletivos, mais especificamente no ambiente da educação infantil. Tendo como objeto de estudo as manifestações afetivo-emocionais nas interações criança-criança estabelecidas no contexto educativo e, apoiando-se na teoria psicogenética walloniana, buscou-se examinar as interações criança-criança objetivando apreender os tipos de manifestações afetivo- emocionais individuais que ocorrem no contexto educativo; examinar os recursos expressivos utilizados pelas crianças nas interações com seus pares, bem como apontar e refletir sobre possíveis direções que propiciem um ambiente produtivo e satisfatório para o desenvolvimento da criança. Para tanto, o estudo, com nuances etnográficas, teve como participantes crianças na faixa etária entre o um e três anos, de um agrupamento de berçário II de uma instituição de educação infantil de Presidente Prudente-SP, onde foram realizadas observações assistemáticas no ano de 2008. A análise de 15 episódios interativos, permitiu verificar a exuberância expressiva das crianças. Notou-se ainda que os recursos expressivos que marcam o período de oposição ocorrem mais precocemente do que postula a teoria walloniana, confirmando que as características e os estágios de desenvolvimento importantes para a formação do ser humano não são demarcados pela idade cronológica, mas pelas experiências sociais e afetivas vivenciadas individualmente. Além disso, os dados corroboraram as teorias que apontam tanto para o fato de o processo de desenvolvimento infantil se realizar nas interações, que objetivam não só a satisfação das necessidades básicas, como também a construção de novas relações sociais, com o predomínio da emoção, como para o fato de a interação criança-criança representar um espaço promotor do desenvolvimento, fortalecendo a idéia de que a criança é interlocutora e protagonista de seu desenvolvimento. Assim, reitera-se o importante papel desempenhado pelas instituições de educação infantil, no sentido de garantir que as interações em seu interior se pautem na qualidade, a fim de ampliar o horizonte da criança e levá-la a transcender sua subjetividade e se inserir no social. Palavras-chave: interação criança-criança. manifestações afetivas. teoria walloniana. Introdução

Upload: luciana-chaves

Post on 08-Nov-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

artigo Educaçãoinfantil

TRANSCRIPT

  • AFETIVIDADE E EDUCAO INFANTIL: O OLHAR WALLONIANO

    RODRIGUES, Slvia Adriana CPAN/UFMS [email protected]

    Eixo Temtico: Educao Infantil Agncia Financiadora: no contou como financiamento

    Resumo

    O presente texto apresenta os resultados da investigao acerca das manifestaes afetivo/emocionais de crianas durante a primeira infncia em contextos coletivos, mais especificamente no ambiente da educao infantil. Tendo como objeto de estudo as manifestaes afetivo-emocionais nas interaes criana-criana estabelecidas no contexto educativo e, apoiando-se na teoria psicogentica walloniana, buscou-se examinar as interaes criana-criana objetivando apreender os tipos de manifestaes afetivo-emocionais individuais que ocorrem no contexto educativo; examinar os recursos expressivos utilizados pelas crianas nas interaes com seus pares, bem como apontar e refletir sobre possveis direes que propiciem um ambiente produtivo e satisfatrio para o desenvolvimento da criana. Para tanto, o estudo, com nuances etnogrficas, teve como participantes crianas na faixa etria entre o um e trs anos, de um agrupamento de berrio II de uma instituio de educao infantil de Presidente Prudente-SP, onde foram realizadas observaes assistemticas no ano de 2008. A anlise de 15 episdios interativos, permitiu verificar a exuberncia expressiva das crianas. Notou-se ainda que os recursos expressivos que marcam o perodo de oposio ocorrem mais precocemente do que postula a teoria walloniana, confirmando que as caractersticas e os estgios de desenvolvimento importantes para a formao do ser humano no so demarcados pela idade cronolgica, mas pelas experincias sociais e afetivas vivenciadas individualmente. Alm disso, os dados corroboraram as teorias que apontam tanto para o fato de o processo de desenvolvimento infantil se realizar nas interaes, que objetivam no s a satisfao das necessidades bsicas, como tambm a construo de novas relaes sociais, com o predomnio da emoo, como para o fato de a interao criana-criana representar um espao promotor do desenvolvimento, fortalecendo a idia de que a criana interlocutora e protagonista de seu desenvolvimento. Assim, reitera-se o importante papel desempenhado pelas instituies de educao infantil, no sentido de garantir que as interaes em seu interior se pautem na qualidade, a fim de ampliar o horizonte da criana e lev-la a transcender sua subjetividade e se inserir no social.

    Palavras-chave: interao criana-criana. manifestaes afetivas. teoria walloniana.

    Introduo

  • 6756

    Uma das premissas da teoria psicogentica do desenvolvimento humano de Henri Wallon, cujas contribuies se mostram singulares para o entendimento das transformaes da ontognese da criana, a de que as manifestaes afetivas, das mais diversas ordens, so funcionais. Isto , fazem parte mesmo do processo de construo do EU, da personalidade da criana, sendo recursos necessrios ao desenvolvimento pleno.

    Sua proposta de aproximao entre a pedagogia e a psicologia, e a inovadora viso de desenvolvimento promovido pelo entrelaamento das dimenses motoras, afetivas, e cognitivas, apontando as emoes como importante fator de mediao na formao do psiquismo, faz com que sua teoria seja aporte imprescindvel nos estudos que pretendem depreender a relevncia da afetividade na constituio do sujeito, ou seja, que tencionam olhar os componentes afetivos como fatores funcionais.

    Compreendendo a criana como protagonista de aes, orientada para a interao social, a formao de vnculos afetivos e construo e compartilhamento de significados com o meio sociocultural onde gradativamente se insere, entende-se o desenvolvimento como sendo constitudo por redes complexas de relaes da criana consigo mesma, com seus pares e com os adultos em ambientes sociais.

    Neste sentido, olhar a criana em contexto educacional assume a perspectiva de processo, de movimento e transformaes que suscitam interpretaes. neste contexto que este estudo se situa e busca investigar a criana em interao com seus pares no ambiente da educao infantil, uma vez que este parece ser rico para o desenvolvimento pleno da criana, pois se trata de um espao intencionalmente planejado visando oferecer mltiplas oportunidades de expresso e aprendizagens infantis.

    Desenvolvimento do estudo

    No ano de 2008 observou-se um agrupamento de berrio II, formado por 20 crianas, composto por nove meninas e onze meninos; a idade, no incio do perodo de observao, o ms de maro de 2008, variava entre 16 e 26 meses.

    Nos primeiros contatos com o grupo o olhar esteve voltado para a observao das aes de todas as crianas; foi somente aps algumas semanas que elegeu-se seis crianas como focais, que foram escolhidas primeiro devido regularidade da presena e tambm porque apesar de a teoria walloniana apontar esta idade como sendo a do estgio sensrio-

  • 6757

    motor e projetivo, estas crianas j apresentavam caractersticas da etapa personalista. Esta concluso tirada, principalmente pelo fato de que todas as crianas do agrupamento ainda no dominavam totalmente a linguagem oral, comunicavam-se mais freqentemente com gestos e palavras isoladas; mesmo as crianas mais desenvolvidas neste aspecto ainda no formulavam frases completas, usando as chamadas pr-frases, ou seja, palavras ordenadas segundo a importncia afetiva que a criana lhes d (DELDIME; VERMEULEN, 2004).

    Dentre as situaes de rotina registradas, selecionou-se 15 episdios que tematizavam e evidenciavam os recursos expressivos das crianas. Cabe salientar que o denominado como episdios so excertos de situaes maiores, e que para recorte e seleo destes buscou-se privilegiar os momentos que apresentavam interao espontnea entre criana-criana, com

    ou sem a presena da pesquisadora na cena. Assim, os recursos expressivos utilizados pela criana na interao com seus pares e

    objetos o elemento colocado em evidncia nesse estudo. A forma dinmica de a criana se relacionar com o universo fsico e social de significados a sua volta se revela a partir de recursos expressivos motores e afetivo-emocionais; so estes recursos os instrumentos que

    comunicam suas intenes e sentimentos, traduzem sua vida mental e do suporte ao mesmo tempo para sua socializao e individualizao e que so analisados na investigao.

    Referencial terico

    A opo pela teoria walloniana como base terica deste estudo se d por esta voltar-se fundamentalmente para a investigao da psicognese humana, buscando compreender a formao da pessoa e as transformaes que possibilitam as mudanas evolutivas no beb (GALVO, 2005). E ainda por ser uma teoria marcada pela originalidade ao descrever o papel da afetividade no desenvolvimento humano (TRAN-THONG, 1987).

    A partir do desenvolvimento de estudos centrados na criana contextualizada, Wallon elabora uma psicognese da pessoa completa, em aspectos de integrao e contexto dos diferentes fatores constitutivos do indivduo. D origem, a partir desta concepo, a uma viso do desenvolvimento humano como uma construo progressiva, gradual, onde diversos domnios afetivo, motor e cognitivo constituem a pessoa. Buscando compreender o ser humano de forma complexa, Wallon cria uma teoria que ultrapassa a simples explicao do desenvolvimento pautada em delimitar com exatido os passos evolutivos do homem, pois se empenha em apreender esse processo de constituio do ser humano de uma perspectiva

  • 6758

    dialtica, na qual as foras que impulsionam a evoluo humana esto marcadas por intensos conflitos de ordem tanto emocional como afetiva, cognitiva e motora. (BASTOS, 2003)

    Na tarefa de apreender o ser humano, o autor nega a concepo de desenvolvimento que v o indivduo como fruto de uma simples justaposio de fatores e aquisies motoras e cognitivas, e o engendra como sendo derivado da vivncia de etapas sucessivas que ocorrem de forma irruptiva, descontnua, marcadas por rupturas, retrocessos e reviravoltas, evoluindo de sistema para sistema. A sucesso das etapas uma modificao constante onde as atividades que predominam num momento so reduzidas ou muitas vezes surpimidas em outro.

    As condies para as configuraes especficas de cada etapa so determinadas por fatores de duas ordens: orgnicos e sociais. Para o autor, tanto o indivduo quanto o meio social so componentes inseparveis de um sistema e, assim, ambos igualmente influenciam o processo de desenvolvimento; a fisiologia humana determina o que pode ser o indivduo, mas a imerso em grupo social num dado momento histrico e cultural que propicia ou no a concretizao das possibilidades do ser humano e as caractersticas especficas de cada estgio de desenvolvimento por qual passa, pois as condies orgnicas do ser humano daro condies deste interagir com o meio fsico e social; mas, o meio fsico e social tambm oferece recursos e exigncias para que a adaptao acontea, numa evidente relao complementar e recproca entre orgnico e social. Deste modo, na criana, opem-se e implicam-se mutuamente, fatores de origem biolgica e social. (WALLON, 1995, p. 49).

    Isto implica dizer que o indivduo pensante resultado de determinantes de duas ordens, o inconsciente biolgico e o inconsciente social, que operam uma sntese que vai produzir as idiossincrasias do psiquismo. Assim, a estutura fisiolgica do ser humano no a nica responsvel por produzir o homem, visto que a programao orgnica uma semiprogramao, uma vez que no se realiza apartada do ambiente social.

    Em outros termos, por um processo de constituio dialtico que a criana ir se formar; seus comportamentos transformam-se e retratam vontades e necessidades especficos em cada faixa etria. A cada perodo h o estabelecimento de formas particulares de interao com o ambiente, onde processos cognitivos e afetivos desenvolvem-se integrados e influenciando-se reciprocamente: so construdos e se modificam de um perodo a outro, sofrendo ainda influncia do ambiente cultural e social.

  • 6759

    Entre as diferentes funes (afetivas, motoras e cognitivas) sempre h choque, na medida em que uma precisa ser reduzida ou momentaneamente suprimida para que a outra possa prevalecer; ao mesmo tempo este movimento promove uma colaborao, pois uma funo vai enriquecer a outra, sendo os benefcios integrados no processo de evoluo da pessoa como um todo. neste sentido que afirma-se que entre a emoo e a actividade intectual existe a mesma evoluo, o mesmo antagonismo (WALLON, 1995, p. 143).

    Assim, se faz importante reafirmar a no linearidade do processo de desenvolvimento humano na psicogentica walloniana. A afirmao de que a afetividade vai designar os processos cognitivos no significa que isto ocorre seqencial e justapostamente. A anterioridade indica conflito e oposio permanente; as condutas cognitivas surgem e so subordinadas s afetivas, alternando-se em fases ora voltadas para si mesmas (centrpetas), ora voltadas para o mundo externo, humano ou fsico (centrfugas), numa elaborao do objetivo sobre o subjetivo e vice-versa. Neste sentido, a evoluo se d por rompimento e no por continuidade ou filiao progressiva e organizada. (DUARTE & GULASSA, 2006, p. 28)

    Desta forma, Wallon prope uma seqncia de estgios por quais passa o indivduo desde o nascimento at a idade adulta. Em cada um destes estgios h um tipo de atividade dominante que fixada pelas aptides que a criana possui para interatuar como o meio.

    Cabe salientar que na obra original de Wallon so propostos seis estgios, sendo eles: de impusividade motora, emocional, sensrio-motor, do personalismo, do pensamento categorial e da puberdade e adolescncia (WALLON, 1976b). No entanto, tendo em vista que os dois primeiros estdios so orientados por funes afetivas, neste em outros trabalhos consultados1 so considerados cinco estgios, sendo eles: impulsivo-emocional (0 a 1 ano); sensrio-motor e projetivo (1 a 3 anos); do personalismo (3 a 6 anos); categorial (6 a 11 anos), e; da puberdade e da adolescncia (11 anos em diante).

    Os comportamentos que predominam em cada estgio so determinados pelas habilidades atuais da criana, pois cada idade da criana como um estaleiro onde certos rgos asseguram a actividade presente, enquanto edificam massas importantes que s tero a sua razo em idades ulteriores. (WALLON, 1995, p. 50). Na passagem de um estgio de desenvolvimento a outro deflagram-se crises de origem endgena que dizem respeito a movimentos reflexos ou impulsivos provocadas por situaes internas (biolgicas ou

    1 Cf. TRAN-THONG (1987); GALVO (2005); MAHONEY e ALMEIDA (2006); entre outros.

  • 6760

    orgnicas) de desconforto, geradas pelos efeitos da maturao nervosa; e de origem exgena quando so relacionadas aos desencontros entre as aes da criana com o mundo exterior.

    Desta forma, o desenvolvimento considerado como um processo inacabado, implicando movimentos constantes, sendo os conflitos que se instalam nesse processo os elementos que vo afetar as condutas da criana, ou seja, os propulsores do desenvolvimento desta.

    Consideraes finais

    Na maioria das situaes as manifestaes afetivo-emocionais das crianas so interpretadas de forma negativa, elas so difceis de serem acolhidas e o adulto acaba por consider-las como traquinagem, principalmente se expressarem alguma agressividade. No entanto, sob a tica walloniana, as manifestaes emocionais da criana, inclusive as agressivas, so viscerais, so parte constitutiva da espcie humana, alm de serem essenciais para o processo de formao da personalidade. Neste sentido, cabe apontar que patologizar as reaes infantis um engano que se comete devido ao fato de que quando um adulto observa uma criana o faz somente a partir de seu ponto de vista, esquecendo-se de que a criana no est somente brincando ou sendo teimosa, ela est vivendo plenamente as situaes com todas as funes e emoes de que dispe no momento. (TARDOS; SZANTO, 2004).

    Com relao ao agrupamento de berrio II num todo, percebeu-se que a maioria das crianas manipula os objetos explorando-os em atividades circulares, buscando apreend-los, assim como no brinca com os pares; grande parte das interaes criana-criana ocorre com disputa de objetos; no entanto, com exceo de quatro crianas focais, quando o objeto afastado da criana h a perda de interesse por ele. Isto porque, segundo Wallon, nesta etapa em que se encontram as crianas (sensrio-motor e projetiva) o movimento o suporte da representao. Inicialmente, os objetos do mundo so excitantes que o sujeito pode manipular para apreciar suas caractersticas (tato, audio, viso), p-los em relao e classific-los, mormente em atividades circulares. No entanto, a explorao dos objetos no de natureza analtica; constitui-se no reconhecimento de uma estrutura significativa posta em relao com outras estruturas, inclusive espacialmente. Essas diferentes combinaes vo configurar a chamada inteligncia prtica ou inteligncia das situaes, definida pela formulao de

  • 6761

    solues nem verbais, nem mentais, mas intuitivas, a partir das relaes que existem ou podem existir no espao.

    Ainda sobre as crianas no focais, cabe dizer que elas pouco brincavam umas com as outras nas diferentes situaes cotidianas se envolviam individualmente; percebeu-se ainda a forte presena do movimento e do choro, tambm caractersticas do perodo sensrio-motor e projetivo.

    Com relao ao choro o que chamou a ateno a intensidade deste; quando choram as crianas pareciam estar mergulhadas num estado intenso de dor e dilaceramento, como se o fato de terem sido privadas de algo, objeto ou ateno, as tivessem privado de uma parte de si mesmas. Esta caracterstica corrobora o que a teoria walloniana preconiza como marcante no estgio sensrio motor e projetivo quando aponta que a criana vive a fase de sociabilidade sincrtica, pois a personalidade permanece ligada a um determinado objeto, devido a ainda indiferenciao do eu psquico. (WALLON, 1971).

    Neste momento as interaes sociais so de natureza predominantemente afetivo-emocional, onde preciso haver uma consonncia mnima de gestos e expresses para o encadeamento de aes individuais; h tambm uma grande suscetibilidade ao contgio emocional, o que tambm explica outra caracterstica deste perodo observado nas crianas no focais, que diz respeito incontinncia motora. Com grande freqncia as crianas esto inseridas numa atmosfera de excitao generalizada e agitao motora; a atividade mais freqente correr de um lado para outro da sala; quando uma criana iniciava esta atividade, era rapidamente imitada por outras.

    Com relao s crianas focais, o cime foi manifestao expressiva recorrente em todas elas, confirmando-se aqui o postulado walloniano de que o cime, em sua manifestao mais primitiva, pode ser observado j a partir do primeiro ano de vida. Esta uma interao essencialmente tridica, onde o prottipo est numa situao em que o adulto deve dividir-se para duas crianas. H exemplos nos episdios selecionados em que uma criana alvo de solicitude e uma segunda observa a cena para em seguida protestar de alguma forma, manifestando sua frustrao por no ser aquela que recebe um afago ou contemplada.

    Embora neste momento o cime reflita e produza um estado de fuso eu-outro por apresentar um estado ainda mal diferenciado da sensibilidade, tambm responsvel por introduzir um contraste emocional que anuncia o incio da individualizao. Sobre este processo, no grupo de crianas focais observou-se condutas de afirmao do eu como o uso

  • 6762

    do pronome possessivo meu e das situaes em torno da disputa por um objeto na tentativa de fazer valer o seu direito de posse. O uso de pronomes possessivos e na primeira pessoa do singular so caractersticas bsicas do perodo de oposio. A oposio uma das fases da etapa personalista, que deve ser compreendida como o incio da afirmao de si, de um eu que gradativamente diferenciar-se- do outro. Segundo Dourado (2005), as relaes de conflito e oposio so momentos em que se evidencia e melhor se visualiza a importncia do outro para a constituio da pessoa.

    A concluso a que se chega que incidncia destas expresses est relacionada a inmeros fatores, dentre eles o contexto em que se do as interaes, os recursos materiais disponveis, mas principalmente os recursos expressivos com os quais as crianas podem contar neste momento, pois a partir deles que so dados os significados de posse e uso dos objetos para a faixa etria em questo.

    Diante desta colocao e dos dados obtidos possvel apontar que as caractersticas de oposio ocorrem mais precocemente do que postulam alguns estudos amparados na teoria walloniana, ficando claro que as caractersticas e os estgios de desenvolvimento importantes para a formao do ser humano no so demarcados pela idade cronolgica, mas pelas experincias sociais e afetivas vivenciadas individualmente que deflagraro regresses e conflitos que propiciem, reformulem e ampliem conceitos e funes.

    Segundo a teoria walloniana a criana constri o significado das coisas, das pessoas e de si mesmo partilhando situaes, construindo afetos e conhecimentos e diferenciando pontos de vista; assim, as crianas negociam os significados atribudos aos outros e os que lhe so atribudos; na convivncia com pares da mesma idade h o processo de construo compartilhada da noo de si e da individualidade dos outros.

    Neste sentido, os dados reforam o postulado de que o processo de desenvolvimento infantil se realiza nas interaes, que objetivam no s a satisfao das necessidades bsicas, como tambm a construo de novas relaes sociais, com o predomnio da emoo sobre as demais atividades. Reitera-se ento o importante papel desempenhado pelas instituies de educao infantil no sentido de garantir que as interaes em seu interior ampliem o horizonte da criana e leve-a a transcender sua subjetividade e se inserir no social.

    Os dados tambm comprovam o quanto as interaes constituem um campo rico de significados, que se intercruzam, complementam-se e apresentam amplas possibilidades de relaes; buscando apreender as motivaes subjacentes s expresses das crianas chega-se a

  • 6763

    concluso de que em grande parte das interaes, na maioria dos episdios e em situaes no relatadas, o fator desencadeador destas foram os objetos. Tambm no grupo de crianas no focais a interao mais significativa foi da criana com os objetos e menos com seus pares, assim entende-se que pelo objeto que a criana vai iniciando o processo de diferenciao.

    Estes so dados que nos remetem a organizao do espao, ao ambiente e a importncia deste no processo de desenvolvimento infantil. Segundo Barbosa (2006), o ambiente um espao construdo, definido nas relaes humanas por ser organizados simbolicamente pelas pessoas responsveis pelo seu funcionamento, mas tambm pelos seus usurios. Ainda segundo a autora, o ambiente fundamental na constituio dos sujeitos por ser um mediador cultural, tanto em aspectos cognitivos e motores quanto sociais e afetivos.

    Para Wallon (1979), pr-escola cabe o papel de preparar a emancipao da criana, reduzir a influncia exclusiva da famlia e promover o seu encontro com outras crianas da mesma idade. Esclarece que as relaes a serem mantidas entre os pares de crianas e tambm com os adultos sero muito elementares, o que ocasiona ser a disciplina deste ambiente diferenciada dos outros nveis escolares.

    Ora desta forma que se defende ser a Educao Infantil um espao de mediao da insero social e cultural das crianas ao mundo dos adultos, mas que tem como foco a criana em si mesma, a diversidade de capacidades (intelectual, esttica, motora, emocional, etc.) e necessidades prprias desta faixa etria. Desta forma, no um apndice do Ensino Fundamental, instncia especfica com identidade e finalidade prpria, finalidade esta de promoo da criana, de auxlio ao crescimento e desenvolvimento infantil, de aprendizagem, de construo de conhecimento, de formao integral de seus atores; sendo assim, complementar e no substituta das funes que so e devem ser exercidas pela famlia.

    preciso tambm reconhecer a intencionalidade da atuao docente nesta modalidade de ensino, uma vez que necessrio ao profissional que atua diretamente com a criana, no desempenho de sua funo, uma aproximao, mas tambm um distanciamento do cuidar materno instintivo, dada a especificidade de sua tarefa. Esta caracterstica uma constante na prtica da educao infantil e elemento bsico na identidade de seus profissionais, uma vez que ao integrar outros papis est envolto por inmeras complexidades.

    As manifestaes infantis das crianas focais observadas na investigao sinalizam para condutas de oposio em relao aos pares tais como disputa de objeto, espao, propriedade, imposio de desejo, colocao de limites e cumplicidade. Atravs desses

  • 6764

    recursos a criana confronta seu ponto de vista, busca a posse das coisas, aprende a tirar proveito das situaes, defende objetos e lugares como se fossem propriedade sua. Neste sentido, as crianas observadas esto organizando um primeiro esboo de seu EU, mesmo nas condies no muito adequadas para a rotina de crianas num ambiente coletivo; ou seja, a anlise aponta que as condies da creche no que diz respeito a organizao do tempo-espao educativo demonstra que ele compreendido e organizado para sujeitos-alunos e no para sujeitos-crianas.

    Neste sentido, se faz necessrio que as propostas pedaggicas para educao infantil enfatizem a importncia das interaes entre crianas, criando, intencionalmente, situaes que permitam contatos entre grupos variados e situaes interativas que favoream o desenvolvimento da autonomia baseando-se no respeito pelas caractersticas prprias da inteligncia infantil, bem como nas necessidades especficas de cada grupo, sendo necessrio uma concepo de escola infantil como espao de comunicao e trocas permanentes, onde a coerncia, a unidade dos princpios e as concepes comuns sobre valores instaurem um clima facilitador do desenvolvimento, num ambiente acolhedor e aconchegante.

    Salienta-se ainda que a organizao do espao e de atividades em funo das necessidades da criana, bem como o respeito por aquilo que ela faz, proporcionar o enriquecimento de sua personalidade, o desenvolvimento da segurana afetiva, a conscincia e a sua auto-estima. Tal discusso nos remete a apontar novamente o papel dos educadores de crianas nessa faixa etria. Aos profissionais que lidam com a criana na primeira infncia, seria de grande utilidade recursos tericos que os sensibilizassem para os traos expressivos da conduta das crianas - olhar, qualidade dos gestos, variaes posturais - por meio dos quais se podem obter indcios dos estados afetivos e sobre diversos aspectos da atividade cognitiva.

    Tomando como referncia as profissionais da instituio observada, cabe apontar que nenhuma delas tem formao especfica para atuar junto criana pequena, todas apontaram que ao prestar o concurso para assumir o cargo no tinham clareza das funes atribudas este, bem como no receberam nenhum tipo de formao ou preparo prvio antes de iniciarem as atividades profissionais. Ainda declararam estarem satisfeitas com a profisso; no se vem como educadoras, mas percebem a importncia e complexidade de sua tarefa que implica mais que simplesmente prover a criana de cuidados de higiene, alimentao e conforto.

    Bondioli (2004) aponta que no trabalho com crianas da educao infantil, preciso consider-las como seres afetivos, com necessidades fsicas e emocionais de fortalecimento

  • 6765

    da auto-estima, de vnculos afetivos, de toques corporais e de muitas atenes para que possam desenvolver plenamente sua personalidade; sendo as crianas formadas (ou deformadas) do ponto de vista das relaes que mantm com coisas e pessoas, e no apenas instrudas.

    No entanto, enfatizar que as prticas educativas da educao infantil devem privilegiar a construo do sujeito no significa faz-lo em detrimento da construo do conhecimento sobre o mundo; a eliminao deste aspecto da prtica pedaggica da educao infantil representa um retrocesso nos avanos alcanados com relao funo educativa da creche e da pr-escola; o que implica dizer que esses objetivos devem estar integrados na proposta pedaggica da instituio. (OLIVEIRA, 2002).

    Assim, uma educao que pretende olhar para a criana como actores sociais de pleno direito e que interpreta os mundos de vida das crianas nas mltiplas interaces simblicas que as crianas estabelecem entre si e com os adultos (SARMENTO, 2005, p. 18), evidencia a importncia de ter conscincia das necessidades bsicas da criana pequena e as razes das mudanas de comportamento em idades e situaes diferentes, levando em conta o papel que tais comportamentos desempenham na vida presente e futura da criana, no que diz respeito a aquisies cognitivas.

    Pesquisas como as de Pereira (1992, 1998), Almeida (1994), Bastos (1995), Duarte (1997), Nascimento (1997) e Costa (1999) confirmam a importncia de se considerar as implicaes afetivas como forma de favorecer o desenvolvimento global da criana pequena, e principalmente o papel a ser desempenhado pela Educao Infantil nesse processo. Mas o nmero de investigaes acerca da temtica ainda reduzido, havendo necessidade de mais estudos envolvendo crianas na primeira infncia em contextos coletivos. Estes estudos Tambm j alertaram para a necessidade de se incluir a questo das emoes como tema de reflexo pedaggica e principalmente nos espaos de formao do profissional que atua junto as crianas; desta forma, apenas reforo este apontamento, salientando ainda que este tema precisa ser includo com mais freqncia no campo das pesquisas em educao, no sentido de que seja possvel obter mais subsdios acerca dos efeitos da emoo sobre os indivduos e nas interaes ocorridas no contexto pedaggico, visto ser um assunto que instrumentaliza de forma significativa a atuao dos profissionais ligados educao da criana pequena.

    REFERNCIAS

  • 6766

    ALMEIDA, A. R. S. A emoo na percepo do professor pr-escolar. Um estudo com base na teoria de Henri Wallon. 1994. Dissertao (Mestrado em Psicologia da Educao), Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo.

    BARBOSA, M. C. S. Por amor e por fora: rotinas na educao infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006.

    BASTOS, A. B. B. I. Interaes e desenvolvimento no contexto scio-educativo da creche. 1995. Dissertao (Mestrado em Psicologia da Educao), Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo.

    ______. A construo da pessoa em Wallon e a constituio do sujeito em Lacan. Petrpolis: Vozes, 2003.

    BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigao qualitativa em educao: uma introduo teoria e aos mtodos. Porto: Porto Editora, 1994.

    BONDIOLI, A. (org.) O tempo no cotidiano infantil: perspectivas de pesquisa e estudo de casos. So Paulo: Cortez, 2004.

    COSTA, L. H. F. M. Oposio e afirmao: um estudo com crianas em creche luz da teoria de Henri Wallon. 1999. Tese (Doutorado em Psicologia da Educao), Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo.

    DANTAS, H.. A infncia da razo. Uma introduo Psicologia da inteligncia de Henri Wallon. So Paulo: Manole Dois, 1990.

    DELDIME, R.; VERMEULEN, S. O desenvolvimento psicolgico da criana. Trad. Maria Helena Ortiz Assumpo. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2004.

    DOURADO, I. C. P. Relaes sociais: estudo a partir da teoria de desenvolvimento de Henri Wallon. 2005. Dissertao (Mestrado em Psicologia da Educao), Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2005.

    DUARTE, M. P. Perodo de adaptao na Educao Infantil: uma anlise a luz da teoria de Henri Wallon. 1997. Dissertao (Mestrado em Psicologia da Educao), Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 1997.

    DUARTE, M. P.; GULASSA, M. L. C. R. Estgio impulsivo-emocional. In: MAHONEY, A. A.; ALMEIDA, L. R. de. (Org.) Henri Wallon Psicologia e Educao. 6 ed. So Paulo: Loyola, 2006, p. 19-30.

    GALVO, I. Henry Wallon. Uma concepo dialtica do desenvolvimento infantil. 14. ed. Petrpolis: Vozes, 2005.

  • 6767

    NASCIMENTO, M. L. B. P. Corpo e fala na constituio do eu: investigao sobre o preldio da pessoa numa creche pblica. 1997. Dissertao (Mestrado em Educao), Faculdade de Educao, USP, So Paulo.

    OLIVEIRA, Z. R. de. A construo social da criana. In: ______. Educao infantil: fundamentos e mtodos. So Paulo: Cortez, 2002, p. 123-142.

    PEREIRA, M. I. G. G. O espao em movimento. Investigao no cotidiano de uma pr-escola luz da teoria de Henri Wallon. 1992. Dissertao (Mestrado em Educao), Faculdade de Educao, USP, So Paulo.

    ______. Emoes e conflitos: anlise dinmica das interaes numa classe de educao infantil. 1998. Tese (Doutorado em Educao), Faculdade de Educao, USP, So Paulo.

    SARMENTO, M. J. Crianas: educao, culturas e cidadania ativa. Perspectiva. Florianpolis: CED/UFSC, v. 23, n. 1, p. 17-40, jan./jul. 2005. Disponvel em: http://www.ced.ufsc.br/nucleos/nup/perspectiva.html. Acesso em: 20/07/2007.

    TARDOS, A.; SZANTO, A. O que a autonomia na primeira infncia? In: FALK, J. (org.) Educar os trs primeiros anos: a experincia de Lczy. Trad. Suely Amaral Mello. Araraquara: JM Editora, 2004, p. 33-48.

    TRAN-THONG. Estdios e conceito de estdio de desenvolvimento da criana na psicologia contempornea. Porto: Edies Afrontamento, 1987, v. 1

    WALLON, H. As origens do carter na criana: os preldios do sentimento de personalidade. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1971.

    ______ . Psicologia e educao da criana. Lisboa: Editorial Vega, 1979.

    ______ . O papel do outro na conscincia do eu. In: WEREBE, M. J. G.; NADEL-BRULFERT, J. Henri Wallon. So Paulo: tica, 1986, p. 158-167. [publicao original de 1946]

    ______ . A evoluo psicolgica da criana. 2. ed. Lisboa: Edies 70, 1995.