afasta_de_mim_este_cale_se

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    AFASTA DE MIM ESTECALE-SE

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    AFASTA DE MIM ESTECALE-SE

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PR-REITORIA DE ASSUNTOS ACADMICOS

    NITERI, 2006

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    Copyright by Joo Batista de Abreu, Maria Luiza Muniz, Renata Cunha

    Direitos desta edio reservados PROAC - Pro-Reitoria de Assuntos Acadmicos

    Rua Miguel de Frias, 9 - 2 andar - Icara - CEP 24220-000 - Niteri - RJ - Brasil

    Tel.: (21) 2629.5068 Fax: (21) 2629.5324

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da PROAC.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao - (CIP)

    A162 Abreu, Joo Batista de; Muniz, Maria Luiza; Cunha, Renata.Afasta de mim este cale-se: o encontro de memrias e histrias sobre o

    regime militar/Joo Batista de Abreu, Maria Luiza Muniz, Renata Cunha Niteri:Pr-Reitoria de Assuntos Acadmicos da Universidade Federal Fluminense,

    2006

    56 p. : 21cm.

    1. Memria. 2.Histria. 3.Ttulo

    CDD 900

    Capa: Frederico Lopes

    Projeto Grfico/Diagramao e superviso grfica: Marcos Antonio de JesusEdio e reviso de texto: Joo Batista de AbreuCoordenao executiva: Maria Luiza MunizCoordenao Geral: Jos Antonio Fortuna Nogueira (Subcoordenadoria de Prtica Discente daCAEG/PROAC)

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Reitor: Ccero Mauro Fialho RodriguesVice-Reitor: Antnio Jos dos Santos Peanha

    Pr-Reitora de Assuntos Acadmicos: Esther Hermes Lck

    Instituto de Arte e Comunicao Social: Antonio A. Serra

    2006

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    SUMRIO

    APRESENTAO:

    QUANDO OS FIGURANTES VIRAM PROTAGONISTAS...................7Joo Batista de Abreu

    VLADO, UM BOM COMPANHEIRO ...........................................................................9Breno Costa

    QUANDO A TESTEMUNHA VIRA VTIMA ........................................................... 13Ana Carollina Leito

    PROFESSOR REVIVE HISTRIAS DOS TEMPOS DALUTA ARMADA ........................................................................................................... 18Palloma Menezes

    1975, O ANO DA FORMATURA QUE NO TERMINOU .................................. 21Anna Carolina Cardoso

    NAS LENTES DO CORONEL, AS RECORDAES DE

    UM PASSADO DE ORDEM ...................................................................................... 26Pedro Henrique Soares

    GRITOS E LEMBRANAS DE UMA HSPEDE DA RUA TUTIA .................. 31Renata Machado

    SRGIO RICARDO, DE VOLTA AO PONTO DE PARTIDA ................................. 33Raquel Campos

    TORTURA NUNCA MAIS, A ROTINA DA BUSCA PELOS ... DESAPARECIDOS36Stephanie Borges

    MEMRIAS DE MILITANTES .................................................................................. 39Maria Luiza Muniz

    A ODISSIA DE ULISSES, UM METALRGICO ................................................... 47

    Vitor Moretto

    VASCULHANDO OS ESCANINHOS DA MEMRIA .......................................... 49Maria Luiza MunizRenata Cunha

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    QUANDO OS FIGURANTES VIRAM

    PROTAGONISTAS

    O historiador Marc Bloch, membro da resistncia francesa na

    2 Guerra Mundial, desenvolve um pensamento peculiar sobre oconhecimento. Preso pela Gestapo em Lyon, espera de ser fuzilado,escreve para o filho de seis anos respondendo pergunta sobre porque estudar Histria. Primeiro questiona a idia de que um conhe-cimento profundo evitaria que se repetissem os erros do passado.

    Se assim fosse, no haveria o nazismo. Diante da argumentao deque a Histria serve para corrigir as injustias sociais, Bloch diz que,se assim fosse, no estaria ele prestes a ser fuzilado.

    Histria e jornalismo costumam caminhar de mos dadas,bebem na mesma fonte, percorrem caminhos semelhantes, em-bora nem sempre cheguem ao mesmo destino. Os jornalistas, comoVladimir Herzog, costumam ser vistos como cronistas do cotidiano,e o cotidiano feito por pessoas annimas; brasileiros que pagamimpostos, ouvem rdio, vem TV, lem jornais e votam quandolhes permitem.

    A idia deste projeto, realizado com os estudantes de umadisciplina de Redao do curso de Jornalismo da Universidade Fe-deral Fluminense, recuperar um episdio de nossa Histria 30 anosdepois, a partir de relatos de pessoas que viveram aquele momento.No celebridades, autoridades ou intelectuais, mas gente comum,

    que s vezes desempenha o papel de protagonista, mas quase sem-pre consta nos crditos apenas como figurante. So atores da vidacotidiana. Professores, estudantes, msicos, funcionrios pblicos,

    jornalistas, metalrgicos, testemunhas de episdios marcantes doregime militar. As pautas e as fontes das matrias foram propostaspelos alunos, que se encarregaram da apurao e do texto final,claro que com um discreto copy final.

    A publicao recupera ainda relatos sobre as mortes dos ope-rrios Santo Dias da Silva e Manoel Fiel Filho, assassinado em janeirode 1976, tambm no DOI-Codi e em circunstncias semelhantes sde Herzog. curioso que este e outros crimes no sejam lembra-dos com a mesma nfase pelos meios de comunicao, embora

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    na poca o episdio de Fiel Filho tenha provocado a demisso docomandante do 2 Exrcito, general Ednardo Melo Dvila. Questode classe? Corporativismo? Est a uma boa pauta para jornalistase um bom tema de pesquisa para historiadores.

    O filho de Marc Bloch talvez perguntasse para que serve estetrabalho. Serve para mostrar que em tempos de arbtrio, seja qualfor o matiz da ditadura, direita, esquerda, crist ou muulmana, osabusos no atingem apenas aqueles que se colocam claramentecontra o regime e pegam em armas, mas tambm quem, por pen-sar diferente ou por qualquer ironia do destino, se v no caminhode autoridades ambiciosas, fanticas ou despreparadas para oexerccio do poder.

    A Histria serve tambm para divergir. Quem conhece osfatos do passado aprende, no necessariamente a evitar sua repe-tio, mas a entender por que s vezes eles se repetem.

    Joo Batista de Abreu*

    Niteri, 26 de Janeiro de 2006

    * Professor do Instituto de Arte e Comunicao Social da UFF e atual chefe do Departamentode Jornalismo. Dout.r em

    Comunicacao pela UFRJ. Bacharel em Cincias Sociais e Co-municao Social

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    VLADO, UM BOM COMPANHEIRO

    Breno Costa

    s 18h10min do dia 25 de outubrode 1975, o capito Ubirajara entra numa dascelas localizadas no prdio do DOI-Codi deSo Paulo. Morto, sua frente, est VladimirHerzog, diretor de jornalismo da TV Cultura.A alguns milhares de quilmetros dali, naglida e distante Estocolmo, capital da Sucia,um homem de 32 anos prepara-se, depoisde dois anos em solo escandinavo, para ir aPortugal. Mas uma notcia o deixaria abalado.O velho amigo Vlado fora assassinado peladitadura brasileira. Seu nome, Luiz AlbertoSanz.

    Cineasta, ex-membro do Partido Comunista Brasileiro, con-

    tando 61 anos de vida, calando chinelos no conforto de sua casano bairro de Itaipu, em Niteri, Sanz volta no tempo por algumashoras e relembra o convvio com o companheiro.

    Conheci o Vlado atravs do cinema. Ele era crtico do Estadode So Paulo e eu, do Jornal do Commercio, no Rio. Tnhamos maisou menos a mesma idade, ramos da mesma gerao. O Minis-trio das Relaes Exteriores promoveu um curso de cinema noRio de Janeiro, que era a capital cultural do pas. Isso foi em 1962.Inscreveram-se no curso Nelson Xavier, Jos Wilker, Herzog, CarlosHenrique Escobar, Dib Lutf, muita gente - recorda o ex-militante daUnio Nacional dos Estudantes (UNE).

    Luiz Alberto Sanz rodou muito por a, conheceu muita gente,pegou em armas e perdeu muitos companheiros.

    Quando eu estava na cadeia, no presdio Tiradentes, em SoPaulo, mantinha na minha parede uma lista de companheiros mor-tos. A um trotskista do Rio Grande do Sul, ex-sargento da BrigadaMilitar, olhou para mim e disse: Voc vai manter essa lista a? Umdia no vai ter mais parede para isso - conta, com o olhar perdidoem algum ponto do cu, que se destaca, azul, a partir da varanda

    Foto cedida por Luiz Alberto Sanz

    Sanz no exlio

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    no segundo andar de sua casa.

    Apesar de ter conhecido Vlado por meio do cinema, Sanzressalta o Herzog poltico, segundo ele, dono de uma tica extrema,convices inabalveis, mas dotado de cabea aberta.

    Nossas relaes no se estabeleceram por sermos ou nodo partido. Ele sempre foi uma pessoa extremamente coerentee aberto politicamente. Mesmo as pessoas que tinham rompidocom o PCB, ou eram liberais burgueses, e at algumas de direita, sedavam bem com ele. Mas ele tinha suas convices polticas e aspunha em prtica. Era uma das pessoas com maior capacidade deabrir a cabea das pessoas. Eu li num desses jornais, nesse episdio

    das fotos, que o Vlado era uma pessoa filiada, mas sem atividadeno PCB. Isso, naquela poca, no existia. Quem tem filiado sematividade o PPS hoje. Voc podia ser simpatizante, que outracoisa. Ele era militante ativo - assegura Sanz, que conviveu seismeses com Vlado na poca do curso de cinema no Rio e depois so encontrou esporadicamente pelas esquinas da vida. Um dessesencontros aconteceu no Chile, em 1973, onde Sanz estava exiladodesde 1971, quando foi banido do Brasil, trocado no seqestro do

    embaixador suo Giovanni Enrico Bucher. Vlado foi ao Chile em 72 ou 73, de frias, acompanhado de

    Clarice e de uma jovem nissei e, l, fez questo de encontrar seusvelhos amigos, no importava onde eles estivessem. Ns comemosum dos pratos tpicos e raros do Chile, chamado curanto. A nsrestabelecemos um canal de comunicao nosso. Ele me mandava arevista Viso e outras informaes e eu mandava para ele notcias dagente. Depois do golpe do Chile, ns perdemos o contato de novoe a prxima notcia que eu tive dele foi sua morte, lamenta Sanz,como que pausando sua fala na tentativa de rememorar imagensperdidas no tempo. Ele poderia ter tido o mesmo destino de Herzog,

    j que tambm foi torturado no DOI-Codi paulista.

    Fui detido em maio de 70. O DOI-Codi era um hotel semestrelas. Uma experincia que eu no renego, mas que no dese-

    jo a ningum conta Sanz, que passou oito meses preso entre

    o DOI-Codi (Operao Oban), DEOPS de So Paulo e o presdioTiradentes.

    O ex-companheiro de Carlos Lamarca na Vanguarda PopularRevolucionria (VPR), quando soube da morte de Vlado, entendeuo que ele tinha sentido.

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    Quando estava preso, j sabia que aquilo poderia acon-tecer comigo. Porque mais humano matar do que torturar.Ento, quando a gente era preso, a gente sempre construa aesperana, no nosso imaginrio, de morrer - em combate ou em

    circunstncias mais amenas do que ser longamente torturado.A verso oficial de suicdio de Herzog nunca foi explicada.

    O que eu acho que aconteceu foi o seguinte: eles no ti-raram informaes relevantes do Vlado. Eles buscavam o resto daestrutura do PC e, sobretudo, os quadros do PC na imprensa. Elesodiavam a imprensa. Quando o Vlado morreu, a linha-dura do IIExrcito estava sofrendo derrotas no plano nacional. O [Ernesto]

    Geisel entrou, mas ele no era um santinho, democrata, liberal. Oque acontece que a conjuntura fazia com que fosse necessrioiniciar um processo de distenso no Brasil, que foi chamado deabertura. E o Geisel j tinha iniciado esse processo. E sua eleio,que no agradava ao Mdici, foi garantida pelo ministro do Exrcitodo Governo Mdici (general Orlando Geisel), que era irmo do Gei-sel. E, at hoje, a linha-dura do Exrcito considera a imprensa umacoisa negativa e perigosa e considerava que a grande imprensa era

    dominada pelos subversivos, pelos comunistas.Mas seria a TV Cultura, rede pblica, uma representante da

    grande imprensa, uma inimiga em potencial da ditadura?

    Os militares de extrema-direita, que dominavam a mquinada ditadura, viam o Paulo Egdio, governador de So Paulo, que eraliberal, como uma pessoa no confivel. E eles viam o fato de a TVCultura, da Fundao Padre Anchieta, ter vrios esquerdistas em

    seus quadros, como uma coisa perigosa. Eles queriam desmontaressa mquina. A TV Cultura sempre teve uma certa influncia, pelofato de ser a nica produo cultural alternativa nos meios de comu-nicao. Voc queria ver um noticirio com o mnimo de dignidade,voc ia para o Herzog, voc no ia para a TV Globo.

    Vrias pessoas morreram durante a ditadura. Nenhuma mor-te, contudo, repercutiu tanto quanto a do jornalista Vladimir Herzog.Mas Sanz esboa uma careta quando ouve a palavra mrtir.

    Ele no era muito conhecido publicamente. Tornou-se mui-to mais conhecido depois da morte. A morte dele repercutiu maisporque a imprensa ficou indignada. E ningum acreditava que fossesuicdio. O prprio setor conservador que domina a imprensa no

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    Brasil se considerou atingido. Era impossvel acreditar, para quemo conhecia, que o Herzog tinha sido assassinado por sua militnciacomunista. Para mim, o Herzog era o comunista. Ele era absoluta-mente tico. As pessoas que lidavam com ele sabiam que estavam

    lidando com uma pessoa honesta. Isso fazia com que, at o donoda revista Viso, que era um burgs milionrio, o Henry Maksoud,sabia que podia confiar no Herzog.

    As saudades de Herzog e de seus velhos companheiros per-manecem. Quebrando o ritmo da voz embargada, d a sentena:

    Foi o Estado burgus que matou o Herzog. Vamos parar debrincadeira. No foram os militares.

    O Vladimir Herzog, nascido sob os auspcios de Cncer emjunho de 1937 e assassinado em outubro de 1975, aos 38 anos, jno existe mais. Mesmo assim, Sanz ainda consegue enxergar, nosdias de hoje, herdeiros da tica herzogiana.

    Existem muitos Herzogs por a - acredita Sanz. Aindabem.

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    QUANDO A TESTEMUNHA VIRA VTIMA

    Ana Carolina Leito

    Pelo corredor do ptio externo da escola, o coordenador dis-ciplinar do Colgio Pentgono, em Vila Valqueire, desfila com carade mau, como diz. O trabalho de Humberto Maos Guimares cuidar para que todos os alunos das turmas do Ensino Fundamentale Mdio estejam na sala para assistir aula. Beto, como chamadopor funcionrios e estudantes, primeira vista mostra-se um sujeitonervoso, mas isso talvez seja herana da perseguio que sofreu

    durante o regime militar.Os cabelos brancos, coerentes com a aparncia de um ho-

    mem de 62 anos, surgiram ainda na dcada de 70. A gagueira foioutra marca deixada pelas repetidas sesses de tortura psicol-gica que sofreu por ser considerado um subversivo. Beto, que sedeclara apoltico, passou de vtima a suspeito diante dos olhos daditadura.

    A manh de 29 de junho de 1973 tornou Humberto Guima-res suspeito de cumplicidade de um assassinato do qual nadasabia. Beto trabalhava no curso pr-vestibular que funcionavadentro do Colgio Veiga de Almeida, na rua So Francisco Xavier,Tijuca. Ele conta que por volta de 11h estava na secretaria do prdioquando foi rendido por um dos dois homens que invadiram a sala.Estavam procura do professor de Histria sentado mquina deescrever, datilografando as questes de uma prova. O professor

    da PUC Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, um dos maisrespeitados mestres de Histria na poca, foi executado com trstiros ali mesmo. O crime tornou o funcionrio simultaneamentetestemunha e vtima do regime militar.

    A banana ficou comigo - recorda, referindo-se aos proble-mas decorrentes daquela manh.

    Quando foram embora, os assassinos deixaram no muro

    pintado em spray a sigla ALN. (Ao Libertadora Nacional). Napoca, jornais como O Globo relataram a existncia de um terceirohomem, mas Beto diz que no o viu. Aps o episdio, entrou emestado de choque. Naquele dia, foi para casa levado por dois pro-fessores que chegaram depois de tudo ter acontecido e, por isso,

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    nem foram identificados pelos policiais. No podia imaginar que ofato presenciado lhe renderia seis meses de noites mal dormidas,visitas de agentes policiais em seu trabalho, seqestros-relmpagoe uma constante tortura psicolgica.

    No sei como no sumiram comigo. Naquela poca, pega-vam as pessoas, colocavam em um navio e jogavam no mar.

    Os problemas comearam to logo voltou para casa. Apsser deixado por dois professores, um minuto depois algum tocoua campainha.

    At pensei que fosse algum deles - recorda. Mas percebeuque no quando viu dois homens entrarem em sua casa:

    Um grando de bluso vermelho e cabea raspada e outromagrinho, moreno de terno listrado. Levaram dois pequenos lbunscom fotos de integrantes da esquerda.

    Queriam que Beto, que s conseguia balanar a cabea(todo o corpo estava adormecido pelo choque), reconhecesse oprofessor Jacques.

    Me mostravam a foto e perguntavam: E esse com barba?Imagine ele sem barba.

    Segundo Beto, essa visita foi da esquerda. Queriam saberquem realmente tinha sido assassinado, por isso o lbum com asfotos.

    O episdio fez com que ele se escondesse na casa de uma tia.Da rua Luis Barbosa, perto do atual shopping Iguatemi, foi para VilaIsabel ajudado pelo cunhado e pelo porteiro do prdio. Beto fugiada imprensa. Sabia que sua foto no poderia figurar nos jornais.Globo, Dia e Jornal do Brasil queriam seu depoimento. Escapou daperseguio dos reprteres mas no da dos militares.

    O Exrcito achava que eu era cmplice - recorda.

    As visitas dos agentes eram sistemticas. Tinham hora e lugarcertos: pela manh, na sala do diretor Mario Veiga de Almeida. Todosos dias, Beto era interrogado.

    Queriam saber o que o professor fazia l fora. Foram cincomeses na grosseria e um ms no carinho. Tentaram me fazer con-fessar por bem.

    Alm disso, era seqestrado e levado para os QGs da repres-

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    so - quartel da Polcia do Exrcito, na rua Baro de Mesquita, naTijuca, presdio da Ilha das Cobras, na Baa de Guanabara, sob aguarda do Centro de Informaes da Marinha (Cenimar) e Delegaciade Ordem Poltica e Social (DOPS).

    Gaguejando mais que o normal o carburador fica entupi-do o coordenador disciplinar conta que da primeira vez que olevaram foi para reconhecer o assassino do professor de Histria.Os agentes o conduziram ao quartel da PE e lhe mostraram umhomem magro e barbado.

    Ele no tinha condies de sair para matar ningum - lem-bra Humberto. Foi deixado numa rua atrs do Veiga de Almeida.

    Tudo isso fazia parte da tortura psicolgica aplicada pelo regimemilitar.

    Um dos piores momentos para Humberto Guimares foi serencapuzado no ptio do colgio no qual trabalhava.

    Pensei que fosse morrer.

    A descarga de tenso foi tamanha que urinou na prpriaroupa. Dessa vez foi levado, tambm pela manh, para a Ilha das

    Cobras. No sabe dizer exatamente quanto tempo passou l emmais uma sesso de interrogatrios. Segundo ele, aps quase amanh inteira foi abandonado em um lugar desconhecido e teveque pegar um txi para chegar em casa. Essas incurses apenasaumentavam o grau de tenso do homem de 31 anos preocupadocom sua famlia (a mulher Edir e o filho de seis meses).

    Outra incurso pelas dependncias militares aconteceu quan-

    do foi levado ao DOPS, na rua da Relao, no Centro. Sempre ouviaas mesmas perguntas, com a inteno de obrig-lo, pelo cansao,a confessar um crime do qual tambm fora vtima. Na Delegacia,a prpria estrutura do prdio j lhe causava medo. Acompanhadopor dois homens, subiu em um elevador. Nos corredores, ouvia obarulho das portas que fechavam atrs de si. Depois de inquisiosemelhante s anteriores, foi deixado na Praa Tiradentes, ondepegou um nibus e, mais uma vez, voltou para casa aps mais um

    sumio repentino.Observando-se os muitos casos de desaparecimento durante

    a ditadura militar, quase um milagre que Humberto esteja vivo

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    hoje. Por menos, um amigo do coordenador disciplinar, Ivan, desa-pareceu. Parecendo surpreso com a prpria sorte, ele conta que oamigo trabalhava como ascensorista no nmero 31 da Rua Mxico.Passava pela Cinelndia, palco dos embates entre estudantes e

    militares, quando se viu em meio a uma manifestao. SegundoBeto, no dia, Ivan vestia coincidentemente uma camisa vermelha, oque era uma espcie de identificao dos comunistas. Apesar disso,seu amigo no pertencia a nenhuma faco poltica. Assustadocom todo o tumulto, tentava fugir quando foi confundido commilitantes de esquerda. A partir desse dia, Beto nunca mais tevenotcias do amigo.

    Por mais que se declare apoltico, Humberto sempre traba-lhou em um meio efervescente durante aquele perodo poltico: oscursinhos de pr-vestibular. Outro episdio que data de 1969, nocurso Hlio Alonso, no Centro, envolveu um professor de Biologiaque Beto julgava ser seu amigo. Ele conta que o professor, coronelda Marinha, fazia questo de estar sempre prximo dele.

    Os alunos achavam que algum de ns dois era gay.

    O professor pagava seu lanche durante o recreio e sempredescia para o ptio abraado com o inspetor.

    Quando amigo, voc no percebe nada porque amigo.Confia na pessoa.

    Assim, nem o fato de o coronel da Marinha pintar a barba e obigode de caju e entrar armado em sala chamava-lhe a ateno.

    Achei que a arma no era nada demais para um coronel-justifica.

    Beto diz que depois que o regime terminou, descobriu, pelojornal, que o to cordial professor de Biologia era um dos maiorestorturadores do Brasil. Era ele o mdico que determinava quantode tortura o prisioneiro ainda suportaria. Seu interesse era terBeto como um escudo. Um amigo leal que o defenderia em casode perigo.

    Todo esse contato intenso com a realidade de Regime Militar

    institudo no Brasil a partir de 64, fez com que Beto passasse dezanos sem querer falar, ler ou ouvir sobre poltica. Diz que em 1975,quando o jornalista Vladimir Herzog morreu nas dependncias doDOI-Codi em So Paulo, nem acompanhou a notcia tamanha eraa rejeio a tudo que pudesse lembr-lo dos dias de perseguio.

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    Hoje, lida melhor com o que sofreu. Exemplo disso a aula especialque d aos alunos da 8 srie do Ensino Fundamental no ColgioPentgono. Em 45 minutos, o coordenador de disciplina transmiteaos adolescentes sua experincia.

    Quando toco nesse assunto fico mais leve, mais calmo -diz, em uma das salas do colgio em que trabalha, onde concedeua entrevista. Humberto Maos Guimares entrou com processo pormeio da Grupo Tortura Nunca Mais.

    Humberto entrou com processo contra o Governo do Estadodo Rio de Janeiro, mas acredita que ter xito em relao ao Gover-no Federal. Segundo ele, algumas pessoas j ganharam em Braslia.Os prejudicados pleiteiam penso vitalcia ou uma indenizao. O

    reparo moral fundamental na medida em que Humberto Guima-res acredita que toda a tenso sofrida no passado desencadeouo aparecimento de um cncer de bexiga descoberto em 1992,durante uma visita de rotina ao mdico. Passou por tratamento dequimioterapia e, atualmente, faz exames de seis em seis meses.

    Beto quer uma compensao do Estado pelos danos moraissofridos. o nmero nove nos processos encaminhados ao GovernoFederal. Acompanha a tramitao pela Internet. Sua ao foi aceita

    depois do envio, a Braslia, de uma carta com exames mdicos, de-poimento de um amigo de infncia, Deusmar Joo de CarvalhaesPinheiro, que o acompanhou nas visitas ao mdico Jos Viana. Ofilho caula, de 25 anos, advogado, teve acesso pequena sala queserve de depsito dos documentos do DOPS, no Arquivo Pblico,na Praia de Botafogo. L encontrou o registro n 516 que tratavado caso de homicdio qualificado como Justiamento praticadopor subversivos. O prprio documento revela o descaso com aapurao e desorganizao da estrutura militar. O registro data de

    dois dias depois do que aconteceu. Aparecem informaes que noforam dadas por Beto. At uma segunda testemunha foi includano processo.

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    PROFESSOR REVIVE HISTRIAS

    DOS TEMPOS DA LUTA ARMADA

    Palloma Menezes

    Com passos lentos, uma pasta em uma das mos e um cigar-ro na outra, entra na sala de aula um homem de cabelos e barbasbrancas. Seu nome, Noeli Correia de Melo Sobrinho. Professor h30 de seus 58 anos, ele se prepara para dar mais uma de suas aulasde Cincia Poltica, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ).

    Noeli ingressou na Faculdade de Direito da Universidade doEstado da Guanabara (UEG) logo aps o golpe de 64 e ainda hojeparece no se sentir muito vontade para falar sobre o perododa ditadura. Em relato conciso e sem muitos detalhes, em meio asegui-das tragadas de cigarro, o professor universitrio conta queassim que entrou para a UEG comeou a partici-par do movimentoestudantil e, em pouco tempo, j estava indiretamente ligado ao

    Partido Comunista Brasileiro Revolucionrio.A proposta geral do PCBR consistia na formao de um novo

    partido marxista que reformulasse a linha tradicional do PartidoComunista Brasileiro (PCB) a respeito da necessidade da aliana coma burguesia nacional. No entanto, o partido que Noeli apoiava nopretendia abraar a bandeira de uma revoluo socialista imediata,como fariam, por exemplo, os dissidentes fundadores do MovimentoRevolucionrio 8 de Outubro (MR-8).

    A estratgia do PCBR no divergia muito do plano estrat-gico da Ao Libertadora Nacional (ALN). Baseava-se na escolha darea rural como palco mais importante da luta rumo a um governopopular revolucionrio.

    Na poca, a ateno de Noeli no estava to voltada para azona rural. O envolvimento maior do estudante de Direito concen-trava-se com a luta armada urbana. A preocupao com as questes

    sociais, em 68, levou-o a prestar vestibular novamente e comeara cursar Histria no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais (IFCS)da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No incio de 1969, juntocom outros integrantes do PCBR, participou de operaes armadas

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    urbanas, voltadas para a propaganda.

    O envolvimento com o PCBR levou Noeli a ser preso pelaprimeira vez em 1969. O jovem ficou trs meses no DOPS. Devido priso, Noeli acabou sendo expulso da UFRJ. Contudo, mesmocom medo de ser preso outra vez e de voltar a ser torturada porpoliciais, Noeli no abandonou o PCBR.

    Apesar de todas as ameaas, eu no podia deixar de lado ocompromisso que eu tinha com a revoluo - relembra ele, ajeitandoos culos de lentes espessas.

    Em janeiro de 1970, a represso atingiu fortemente o PCBRcom a priso de Salatiel Teixeira Rolim, um dos integrantes do par-

    tido. Mais uma vez Noeli foi encarcerado. Nessa ocasio, foi levadode sua casa direto para o DOI-Codi, onde passou uma semana tendoque responder a interrogatrios sob torturas e maus tratos.

    Em 1971, Noeli pde voltar a cursar Histria graas ajuda deum padre que aceitou sua transferncia para a PUC e lhe ofereceuuma bolsa de estudos. No mesmo ano, logo aps se formar emDireito, o jovem foi preso novamente, ficando detido por quatro

    meses no Regimento de Cavalaria. Apesar de deixar claro quenesse incidente mais uma vez sofreu tortura, Noeli prefere omitiros detalhes.

    Fumando um cigarro atrs do outro e gesticulando sem parar,o professor lembra do risco que corria durante todo perodo daditadura. Sempre estava sujeito a ser preso e poderia, dessa for-ma, acabar morrendo na priso, como aconteceu com o jornalistaVladimir Herzog, em outubro de 1975, e com o operrio ManoelFiel Filho, em janeiro de 1976. Apesar de no ter lembranas muitoclaras sobre os dois casos, Noeli comenta o episdio:

    A morte dos dois foi muito estranha, porque em 75 o pre-sidente Geisel j propunha o incio de uma abertura poltica. Tantoforam estranhos esses casos que, diferente do que acontecia antes, arepercusso deles acabou gerando a deposio de um comandante- explica Noeli, referindo-se ao afastamento do general Ednardo

    dvila Melo, substitudo pelo general Dilermando Gomes Monteirono comando do 2 Exrcito, em janeiro de 1976.

    A polmica sobre a abertura dos arquivos da ditadura noparece despertar grande interesse ao professor universitrio.

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    As Foras Armadas fazem e continuaro fazendo semprepresso para que as atrocidades cometidas durante o perodo daditadura no apaream.

    Passados 40 anos do golpe militar, Noeli no parece maisaquele homem to idealista quanto era na poca da ditadura. Noacredita mais na possibilidade de uma revoluo comunista.

    Pelo menos no no Brasil. Quem sabe em outros povosmais ativos? - diz ele, com uma expresso desanimada no rosto. Ofuturo do Brasil visto com ceticismo e ironia.

    O Brasil ser sempre o pas do futuro. Futuro que nuncachega. Parece que nosso pas permanecer deitado eternamente

    em bero esplndido ao som do mar e luz do cu profundo.

    Assim, com um olhar distante, Noeli encerra o relato sobrealgumas de suas lembranas do passado. Por alguns momentosparece viajar em seus pensamentos, mas logo volta a focar a turmaque o espera para o incio de mais uma aula.

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    1975, O ANO DA FORMATURA QUE NOTERMINOU

    Anna Carolina Cardoso

    O ano era 1975. Em Niteri, uma turma de jornalismo do Ins-tituto de Arte e Comunicao Social (IACS) da UFF estava s voltascom os preparativos de sua formatura, prevista para dezembro. Nacapa do convite, numa pgina de classificados, os jovens jornalistasse ofereciam ao mercado de trabalho. Para patrono, fora escolhido

    Alceu Amoroso Lima, que sob o pseudnimo Tristo de Athaydeassinava uma coluna na pgina de Opinio do Jornal do Brasil,em que denunciava atos de desrespeito aos direitos humanos.Para paraninfo, o professor Carlos Henrique Escobar, ameaadode demisso porque no conseguia obter o atestado ideolgico,documento expedido pelo DOPS e exigido pela Universidade paracontratao de docentes. Ainda no convite, uma homenagem ps-tuma ao jornalista morto no DOI-Codi.

    A turma completava o curso em um perodo em que serjornalista no era exatamente uma coisa fcil.

    Mas nada era fcil naquela poca. Ser brasileiro era difcil.Fazer jornalismo nesta poca era s mais um desafio - comentaDante Gastaldoni, na poca formando e escolhido orador da turma.Hoje Dante professor de Fotojornalismo da UFF, da UFRJ e daUniversidade Gama Filho.

    Quando o convite comeou a ser distribudo surgiram osproblemas.

    Ocorreram reveses de toda ordem. Vrios lugares que j tinham concordado em sediar a cerimnia, como o SESC e oColgio Salesiano, mudaram de idia. A formatura comeou a serembarreirada. Em parte, pelo peso do Amoroso Lima e, em parte,porque, na viso de certas autoridades, um grupo de fedelhos re-

    cm-formados queria homenagear um cara que a ditadura haviamatado - conta Dante, em um jardim de inverno da ECO, a Escolade Comunicao da UFRJ.

    Depois de algumas recusas, os alunos finalmente conse-guiram que a Associao Fluminense de Jornalistas cedesse o

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    auditrio, na rua Maestro Felcio Toledo, no centro de Niteri. Masno dia 17 de dezembro, os estudantes tiveram uma surpresa de-sagradvel.

    Eu me lembro muito bem, inclusive porque tinha umdiscurso para ler. Ns chegamos Associao e grossas correntese cadeados fechavam as portas. Os parentes parados na calada,policiais paisana. Ningum deu uma explicao de por que aformatura no aconteceu - recorda.

    As portas trancadas daquele dia no foram, no entanto, oprimeiro contato do professor com o arbtrio do governo militar.Em 1971, quando ainda estudava Engenharia na PUC, chegou a ser

    detido pelo Polcia Militar. Estava perto do Diretrio Acadmico,onde havia uma reunio de que sequer participaria, quando doiscarros da PM entraram pela contramo e encostaram vrios estu-dantes na parede.

    Isso uma descrio da poca. Um dos policiais apon-tou para mim, disse que eu estava em uma manifestao que eunem sabia onde era. Me empurraram para o camburo com umametralhadora nas costas porque eu era cabeludo. O nvel de arbi-trariedade era uma coisa que a gente foi sentindo na pele - lembrao professor, que se livrou de uma encrenca maior dizendo que erafilho de militar.

    Era verdade. O prprio Dante havia estudado sete anos noColgio Militar. Seu pai, brigadeiro e aviador do Correio AreoNacional (CAN), tinha-se reformado em 1964, justamente por noconcordar com os rumos que o Exrcito estava tomando. A noo

    do que se passava no perodo no era, no entanto, to clara quantoparece 30 anos depois.

    A conscincia mesmo da situao, da densidade da situao,foi adquirida dentro da universidade, com os professores sendocassados, por exemplo - lembra. Depois de sair da PUC, ao descobrirque cincias exatas no era sua rea, Dante prestou novo vestibulare foi para o IACS, em Niteri.

    A UFF, como as outras universidades, no escapava da re-presso. Vrios professores foram afastados e, para que assumissemdeterminados cargos, era necessrio apresentar um atestado deidoneidade moral assinado por um militar. Apesar das adversidades,

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    que nossa misso era reflorestar idias, ideais e vontades o pas.Mas o discurso era muito ingnuo - reconhece, confessando que,tempos depois, quando o releu, se emocionou. Ainda mais tarde,quando quis reler mais uma vez Dante j no pde porque o havia

    perdido junto com outros documentos num temporal que inundousua casa em Niteri.

    O discurso perdido jamais foi lido em pblico. A cerimnia deformatura jamais aconteceria. Mas o professor que no teve direito colao de grau diz no ser esta uma grande frustrao.

    No chega a ser um trauma. Quando vou formatura dosmeus alunos, me formo um pouco porque no tive a minha. No

    lugar da frustrao, ficou a sensao de dever cumprido. Hoje, atacho mais importante a formatura no ter havido. Eu no estariacontando essa histria.

    De fato, da poca da ditadura, as histrias mais marcantesparecem ser as de coisas que no aconteceram.

    Parodiando Zuenir Ventura, 1975 foi, para ns, o ano queno terminou - compara Dante.

    Apesar de sua no formatura no ser, hoje, to frustrante, areao que teve ao se deparar com as portas do local da cerimniafechadas no foi a de algum conformado.

    Eu fiquei puto. Voc pode botar que a expresso essamesmo. Fiquei completamente puto. Transtornado. Queria bater noque estivesse na minha frente. Depois, quando cheguei em casa,meu pai e eu tivemos uma discusso muito bonita e acabamos

    chorando juntos pela total impotncia diante da situao, relembra.No dia seguinte, os grandes jornais, como O Globo e Jornal do Brasildedicaram duas pginas transcrio do resultado do inqurito do2 Exrcito sobre as circunstncias da morte de Vladimir Herzog.Concluso do inqurito: o jornalista tinha-se enforcado na cela.

    Alguns dias depois, a turma de 1975 teve uma recompensa:Alceu Amoroso Lima publicou no JB o discurso que fizera, expli-cando que a formatura havia sido impedida.

    Pela segunda vez a nossa no formatura me fez chorar.Foram dois momentos em que me emocionei muito. Um, pela sen-sao de impotncia e a outra quando li o discurso do Alceu. Teve

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    pelo menos um lado bom nessa formatura. Eu pensei: Puxa! Aindabem que no tive que ler o meu junto com o dele - recorda e ri.

    O episdio pode no ter sido to traumtico, mas a lembranaque o professor descreve no deixa de ser dramtica. Lembra, emespecial, de uma colega, Roseana de Seixas Brito, cujos pais tinhamvindo de Belm para a formatura.

    A cena era de um filme de Fellini. Meninas de vestido lon-go, rapazes de terno, parentes. Alguns chorando, outros nervosos,outros achando que era perigoso ficar ali e a Roseana, de vestido

    azul, na calada, com os pais.Como explicar aquele Brasil para

    pais que haviam atravessado opas para ver a filha se formar eesbarraram em um cadeado? Euera um orador com o discursodebaixo do brao, Alceu Amoro-so Lima era um patrono que nopde ler seu discurso e VladimirHerzog era um jornalista morto.

    Foto Pedro Capeto

    Reflorestar idias

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    NAS LENTES DO CORONEL, ASRECORDAES DE UM PASSADO

    DE ORDEM

    Pedro Henrique Soares

    Atrs das lentes que corri-gem a hipermetropia, um olharrspido e severo, de quem dedi-cou ao Exrcito boa parte da vida.

    Mantm estampada a disciplinano semblante, e s alarga a facecom um sorriso quando algumconhecido passa e o cumprimen-ta. Sobre a mesa, uma garrafa decerveja, um copo nunca vazio e uns cubos de queijo, que petiscanum pequeno prato. Desde que se tornou coronel da reserva em1995, Jefferson Jesus Cavalcanti Daniel Mendes, 60 anos, passa boa

    parte do tempo com o crculo fechado de amigos na confeitariaJulcina, esquina da rua Lus Beltro com a Poos de Caldas, nobairro de Vila Valqueire, seguindo o estilo bomio e suburbano docarioca. Nesta entrevista, esperava sozinho, calmamente, como serememorasse os tempos de oficial.

    Expe-se alm do que se imaginava. O carter disciplinarchega a ditar as frases, da mesma maneira como a censura duranteo regime costumava fazer com a imprensa:

    Pode colocar a a seqncia das patentes em ordemcrescente: tenente, capito, major, tenente-coronel, coronel...- diz,preocupado em no esquecer todo o priplo que percorreu at che-gar a coronel. Jefferson, a princpio, nega a influncia paterna para acarreira militar sempre fui de gostar de disciplina, ordem masdepois confessa que houve influncia. O pai tambm era oficial eo filho segue a carreira, como 1 tenente de artilharia do Exrcito.

    Como todo pai orgulhoso, no perde a oportunidade para citar ocasamento do filho no sbado seguinte, alm de sua habilidade noconhecimento de armas:

    Meu filho est sabendo de um armamento militar russo

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    anti-areo que est vindo para o Brasil. muito custoso, tem vali-dade de cinco anos - diz, orgulhoso pelo conhecimento do filho.

    A carreira militar comeou em 1967, quando Jefferson foiaprovado para a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), emResende, no sul fluminense. Foi enviado para So Paulo no incio dadcada de 70 para a cidade de Bauru. Serviu na tropa de artilharia doExrcito e diz que teve pouco envolvimento com o Destacamentode Operaes de Informaes Centro de Operaes de DefesaInterna (DOI Codi) por ser de uma patente inferior:

    O ideal era ser tenente, capito.

    Por estar em So Paulo, talvez tenha visto o capito Ramiro,

    comandante do DOI-Codi no dia 25 de outubro de 1975, no prdioda rua Toms Carvalhal, no bairro do Paraso, em So Paulo, ondemorreu Herzog. Porm Jefferson diz que no o conhecia. Afirma queteve contatos com presos civis: mdicos, advogados, professores,mas nega envolvimento com torturas.

    Graas a Deus no tive envolvimento. Eles tinham umesquema muito bem montado, era impossvel ter acesso s infor-

    maes.A responsabilidade pela insurgncia atribuda a quem foi

    contra o regime. Da o apoio irrestrito ao golpe militar de 64, mo-vimento que iria assegurar a ordem do pas, segundo seu pontode vista. As justificativas so em seguida apresentadas por Jeffer-son, que conta com desenvoltura sua verso da histria. Apesarde desconhecer as foras ocultas que afastaram Jnio Quadrosda presidncia e no se conformar com as milhares de pessoaspresentes no discurso das Reformas de Base de Joo Goulart, emmaro de 1964, o oficial reformado afirma que a populao viviasob o caos e sob a constante ameaa comunista, vista por ele comoa demonizao de uma sociedade. Ele compara o perodo jacobinoda Revoluo Francesa, comandado por Robespierre:

    O povo estava junto com os militares! Em Belo Horizonte, atradicional famlia mineira caminhou na passeata Com Deus para

    a Democracia por isso. Eles queriam que os militares restitussema ordem pblica.

    Quando so mencionadas as aes do regime militar elediscorda que seja uma ditadura:

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    Ditadura o que Fidel Castro faz em Cuba o coronel Je-fferson entra em contradio. Para ele, a insegurana e o descaso dehoje so muito piores que antes e relembra do crescimento econ-mico nos tempos de milagre, do aumento do poder de consumo

    da populao, da construo da Ponte Rio-Niteri, da campanhado Ame-o ou deixe-o (cpia da campanha norte-americana Liveit or leave it), da ordem imposta nas ruas. Os insurgentes estavampresos. Eram insurgentes os artistas, msicos, poetas, estudantes, ouseja, pessoas de profisses anormais, desocupados e comunistas. Amordaa nos profissionais de imprensa tambm justificada. Erampessoas que queriam aparecer, ter seus quinze minutos de fama.Para o coronel reformado, o fim da censura s piorou os meios de

    comunicao. Veja o tanto de baixaria que se passa gratuitamente na tv

    de hoje! Tem que dar liberdade, mas tem que dar freio.

    Anti-comunista ferrenho, ele prope que se estabeleamhoje no Brasil apenas dois partidos: o do governo e o da oposio,da mesma forma que ARENA e MDB:

    Tambm nos Estados Unidos existem dois partidos e elesso o pas mais desenvolvido do mundo - na realidade, os EstadosUnidos tm diversos partidos, mas apenas dois, Conservador eLiberal, se alternam no poder.

    Quando o reprter argumenta que o partido da oposio foiconstitudo pelo prprio governo militar, o ex-oficial se demora umpouco nas explicaes:

    , tem razo que a esquerda bem diversificada.. Muitospartidos tambm viviam na clandestinidade, n?

    Exatamente. Muitos partidos como o Partido ComunistaBrasileiro, o PCB, do qual fazia parte Vladimir Herzog, insurgentecomunista.

    Erros so comuns a todos. Jefferson os reconhece. Acha queo maior deles foi permanecer 20 anos no poder.

    Deveria ter tempo suficiente para tirar essa cambada todae a sim provocar eleies diretas.

    Essa cambada como ele chama os insurgentes a que se

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    referia. Em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nmero5, assinado pelo presidente Costa e Silva, anularia o sonho docoronel.

    No poder teriam ficardo alguns insurgentes, entre eles ocapito Carlos Lamarca, colega de farda de Jefferson.

    Ele roubava bancos, as armas do BIB (Batalho de InfantariaBlindada). Foi tambm um insurgente e merecia ser pego.

    Mas o coronel considera exceo na lista de insurgentes, Vla-dimir Herzog, jornalista , amante de artes em geral, principalmenteteatro, editor-chefe da TV Cultura de So Paulo. Ele reconhece quese tratou de um assassinato, diferentemente da verso oficial, que

    apresentou um laudo de suicdio assinado pelo mdico legistaHarry Shibata. Tempos depois, Shinata teve seu registro de mdicocassado pelo Conselho Regional de Medicina de So Paulo.

    Ao analisar as aes do regime militar, Jefferson descrevebem como era a situao das ruas:

    Voc no podia estar sentado que nem estamos agora,numa mesa de bar, bebendo um chope. Se parasse algum carro

    de chapa fria, suspeito da esquina, era certo que algum iria sercapturado.

    O coronel entra em consonncia com as injustias cometidascom os presos polticos, que ficavam sob tortura. A lista de exceesde insurgncias, nesse momento, cresce:

    Houve muitas injustias sim, no h dvida - ele mesmoconta que teve um amigo torturado, vtima da chamada cadeira do

    drago. O instrumento de tortura consistia numa cadeira metlica,onde o presto, nu, era obrigado a se sentar. Prendiam-lhe um fiode cobre na ponta do pnis e outro na orelha. Depois de molhara cadeira metlica, acionava-se o voltmetro. Este instrumento detortura, segundo depoimentos de Srgio Gomes, jornalista presono prdio da rua Toms Carvalhal, em outubro de 1975, e tambmtorturado, possivelmente foi o utilizado na tortura de Vlado.

    No ano passado fotos divulgadas como sendo de Herzogreabriram as discusses sobre os anos sombrios. Para Jefferson, nopassou de revanchismo e aproveitamento financeiro:

    Interessa a quem descascar a ferida? - questiona. A falsidade

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    das fotografias foi comprovada: elas no eram de Herzog. Serviramde rememorao ao consentimento geral de que um dia houveinsurgentes que lutaram contra um regime ditatorial, e que amordaa foi banida. Jefferson resume numa frase estes anos de

    sofrimento e dor, inesquecveis em pginas negras da histria na-cional: H uma frase muito importante, que sempre utilizo: Queresconhecer o homem, d poder a ele. Talvez o coronel no saiba oautor da frase, o teatrlogo Bertolt Bretch, era um dos cones daesquerda alem nos anos 30.

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    FotocedidaporMarinilda

    Marinilda: um inferno de 28 dias

    GRITOS E LEMBRANAS DE UMA HSPEDEDA RUA TUTIA

    Renata Machado

    Jornalista h 36 anos, MarinildaSiqueira Carvalho, 58 anos, pode ser con-siderada uma das sobreviventes da poca

    de chumbo. Ex-militante do PCB, foiseqestrada na madrugada do dia 9 desetembro de 1975, em Braslia, jogadana traseira de um camburo e, 21 horasdepois, desembarcada no DOI-Codi darua Tutia, em So Paulo.

    Fui obrigada a tirar a roupa toda e, apesar do medo, conteicuidadosamente: 31 brucutus estiveram na salinha em que fui ex-posta, a maioria assoviando ou dizendo sujeira lembra a jornalista,com passagens por veculos importantes da imprensa brasileira,

    como Jornal do Brasil, Dirio de Notcias, Correio da Manh, ltimaHora e revista Isto . Hoje trabalha como editora-assistente doObservatrio da Imprensa.

    Uma amiga, aps haver sido barbaramente torturada,falou sobre Marinilda na poca trabalhando na revista Veja como vinculada ao partido clandestino. Durante 28 dias elaviveu naquele inferno, onde a maior tortura era ouvir os gritos dostorturados.

    Marinilda se diz preocupada com as tentativas de acobertarcrimes ocorridos durante o regime militar.

    Se as fotos (inicialmente atribudas a Vladimir e depoisidentificadas como sendo de um padre) no so do Vlado, significao qu? Que os militares no despiam as pessoas, no humilhavam,torturavam, matavam? A lei da anistia existe e a respeito, mas anistiasignifica que o poder pblico perdoou os torturadores. Os tortura-

    dos no perdoaram contesta. Para ela, os torturados aguardama exposio de todos os documentos da ditadura num museu dademocracia (como os alemes fizeram com os nazistas).

    O abalo diante das imagens de Vladimir Herzog, fotografado

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    naquele longnquo outubro de 1975 por seus prprios torturadoresnos pores do DOI-Codi da rua Tutia, em So Paulo, cede lugar aconvices cristalinas:

    Vlado aparece vivo numa repartio do 2 Exrcito; es-tava bem fisicamente, apesar de ultrajado; protegia seu rosto dofotgrafo, uma reao psicologicamente saudvel; era clara e cate-goricamente um civil desarmado. Um civil rendido, bem distante deconflitos armados. Ele no estava inerte. E, um preso nu no achaum cinto para se enforcar. O fato implacvel que depreende destasfotos que Vladimir Herzog, que se apresentou voluntariamente aTutia, foi executado.

    Para Marinilda. essas certezas representam o xito jornalsticomaior da srie publicada em outubro do ano passado pelo CorreioBraziliense, que merece uma chuva de elogios.

    A matria, fruto da pesquisa do reprter Rudolfo Lago, des-mascara a verso dos representantes do regime militar e de seusremanescentes nas Foras Armadas.

    O Pas deve ao bom jornalismo a queda de uma das farsas

    mais maquiadas da histria do Brasil, que ainda hoje convenceingnuos e permite ao Ministrio da Defesa negar, quase 30 anosdepois, os assassinatos por tortura em dependncias militares.

    Segundo a editora do Observatrio da Imprensa, programada TVE, nada escapava dos registros dos militares.

    O reprter que escreveu a matria do caso Vladimir Herzogcom base nos documentos encontrados lembra Marinilda, contou

    que esto entre os informes at prosaicas atividades de um filiadodo MDB no Mobral de Mogi das Cruzes, em So Paulo, citado comoo comunista fulano de tal... Sob a surrealista rubrica Psico-social,constam os presos de cada ms do DOI-Codi de So Paulo.

    Numa tabela com os acumulados das mortes de outubro,que originalmente eram 47, soma-se mais um o Herzog.

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    SRGIO RICARDO, DE VOLTA AO PONTO DEPARTIDA

    Raquel Campos

    A divulgao da morte do jornalista Vladimir Herzog na mdia,sob a verso oficial de suicdio, fomentou a retomada da cultura decontestao. A evidncia de que era falso o pronunciamento daUnio levou segmentos da sociedade a eclodir num grito geral, atento sem precedentes no regime militar. No teatro, o caso vestiu

    a forma de fbula medieval, o que permitiu contornar a censurae ganhar os palcos brasileiros com a emocionante pea Ponto dePartida, de Gianfrancesco Guarnieri.

    Herzog tornou-se smbolo dos direitos humanos e, posterior-mente, da redemocratizao.

    O estarrecimento era total. At mesmo Geisel resolveuacelerar o processo de abertura - observa o cantor e compositor

    Srgio Ricardo, 72 anos, um dos expoentes das canes d eprotesto e autor da trilha sonora da pea de Guarnieri, emque tambm atuou.

    Do nosso lado, por causa da violncia, que se mos-trou excessiva e desnecessria, Herzog virou o smbolodo Basta.

    A resistncia poderia tudo, inclusive partir para a

    ignorncia, mas o clmax do regime de exceo tevena cultura um desdobramento esttico impres-sionante.

    Para dobrar a Censura, ns, artistas,tnhamos desenvolvido uma linguagem deresistncia, eficiente mas que j chegavaao desgaste. Com a morte de Herzog ga-nhamos novo flego, um impulso ainda

    mais forte - afirma Srgio Ricardo.Desde o princpio, Gianfrancesco

    Guarnieri, membro do Partido Comu-

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    nista Brasileiro, manifestou-se contra a verso da Unio. Foi comSrgio Ricardo, pioneiro nos circuitos universitrios, que surgiu oprojeto de Ponto de Partida.

    amos faz-la em dueto, mas de nossos encontros s pin-

    tava comdia.

    A mulher de Guarnieri (Vnia) insistiu na importncia e nabeleza do projeto e os dois artistas logo dividiram papis. O ator,diretor e dramaturgo, enviaria o primeiro tratamento a Srgio, quefaria a rplica. O que no foi necessrio.

    A pea estava pronta! Linda! Responsabilizei-me, ento,pela trilha sonora, mas Guarnieri foi mais longe. Exigiu que fizesse

    o Ferreira, personagem do pai de Vladimir.

    Srgio Ricardo, admirador dos artigos do jornalista, no co-nheceu Vladimir. Ao rememorar os tempos de represso, a sensaode desconforto recorrente. Emociona-se ao lembrar do sucessoda estria. A pea ficou muitos meses em cartaz e percorreu grandeparte do Pas, desafiando todo dia o elenco a no chorar.

    Estvamos todos revoltados com o Brasil, e fazamos de

    tudo para viv-lo sem capitular, como aconteceu ao querido Vlado.A pea, por ser baseada em um fato contundente, levava todos ns comoo. J na primeira cena, eu entrava e via o meu filho mortonuma praa. Essa cena era to desgastante que l pelo quinto msno pude mais e pedi licena para sair da pea.

    Sobre a polmica das supostas fotos de Vladimir, divulgadasem 2004 pelo Correio Braziliense, que geraram uma crise entre o

    governo e as Foras Armadas, Srgio taxativo: Temos que saber de todos os detalhes, tortura por tortura.

    No por masoquismo, mas porque de toda ao dramtica retiram-se ensinamentos. O Brasil no avanar se no souber sobre Herzog,sobre a represso. Devemos ter a grandeza de chorar sua morte,afinal faz parte da compreenso de nossa histria. Temos de olharnosso passado, ler a Carta de Pero Vaz de Caminha, saber quemfoi Pedro lvares Cabral, o que aconteceu a Herzog, a Lamarca, a

    Marighella e a outras tantas vtimas da tortura. a nossa origem!

    Em 2004, Ponto de Partida foi reencenada em maro, noCentro Cultural Banco do Brasil de So Paulo. Essa reviso, segundoSrgio, representou ao mesmo tempo homenagem e iniciativa

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    poltica fundamentais para que as novas geraes possam se en-tender e se renovar.

    So os elos culturais e polticos que se romperam com aditadura, que impedem o entendimento das manifestaes pas-sadas e o surgimento de movimentos futuros. Hoje l-se a Histriapulando captulos. Falar de poltica virou tabu e o que se copioufoi a atomizao da nossa gerao e produo cultural, resultadode dcadas de represso. A nossa inteligncia foi castrada pelacensura e cada um se virou como pode para salvar, primeiro, a vida,segundo, o prprio destino.

    Para o autor de sucessos dos anos 60 como Zelo, os resul-

    tados deste comportamento se refletem em centros acadmicosparados, sem a retomada dos centros populares de cultura, a identi-dade nacional em dilema, a poltica panfletria e esvaziada, a culturaenlatada e a incompreenso dos processos histricos.

    Pulando-se da Bossa-Nova ao Tropicalismo, no ser pos-svel compreender a msica de protesto - frisa Srgio. Para ele, aresistncia em abrir os arquivos confidenciais dos rgos de segu-rana das Foras Armadas tambm compromete o entendimentode Ponto de Partida, uma fbula verdica como a de tantas outrastragdias. Vladimir Herzog: smbolo duas vezes, da abertura demo-crtica e agora, quem sabe, da memria justa.

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    TORTURA NUNCA MAIS, A ROTINA DABUSCA PELOS DESAPARECIDOS

    Stephanie Borges

    Diante da entrada da sala de reunies, um grande muralchama a ateno porque exibe fotografias em preto e branco dosdesaparecidos desde 1964. a sede do Grupo Tortura Nunca Maisdo Rio de Janeiro, bem em frente ao cemitrio So Joo Batista, emBotafogo. Ali, to prximo do campo santo, encontram-se pessoas

    que reivindicam o direito de saber o que aconteceu com seusfilhos, pais e familiares, para, quem sabe um dia, poder sepultarseus mortos.

    As reunies abertas ao pblico costumam ocorrer nas noitesde segunda-feira. Na de 25 de outubro de 2004, a pauta discutia ocaso das fotos reconhecidas como do jornalista Vladimir Herzog, noDOI-Codi de So Paulo, publicadas pelo Correio Braziliense em 17 deoutubro, e a polmica levantada pela nota do Exrcito classificando

    a divulgao dessas fotos como uma atitude revanchista.Aps os avisos, a pauta abordada. A presidente do Grupo,

    Elizabeth Silveira e Silva, inicia a discusso comentando a se-gunda nota do Exrcito, divulgada em 19 de outubro, em que ocomandante, general Francisco Albuquerque, lamenta a morte deHerzog. Elizabeth diz que no sabe o que pior, o tom autoritrioda primeira nota ou a tentativa de reparao da nota seguinte.

    Embora pela primeira vez o Exrcito se manifestasse sobre o casocom ares de retratao, vergonhoso, segundo Elizabeth, que issos acontecesse a pedido do presidente Lula.

    Alguns participantes da reunio contam sentir-se novamentenos anos 70, diante do discurso contido nas notas. O advogado JosCarlos Trtima diz que a manuteno do status das Foras Armadas,mesmo com o final do regime militar, no tem mais razo. Para ele,pases como a Argentina, com o trmino do regime militar, no

    permitem que altas patentes das Foras Armadas justifiquem queos atos da ditadura visavam manuteno da ordem.

    Membros do Grupo demonstraram decepo pelo fato dea presena no Governo de ex-presos polticos, como o ministro

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    da Casa Civil, Jos Dirceu, no ter facilitado as investigaes sobreos desaparecidos. Ceclia Comibra contou que ouviu em Brasliapromessas sobre aberturas de arquivos, mas com cautela, comodeclarou o ex-presidente da Cmara dos Deputados, Joo Paulo

    da Cunha. Querem uma abertura lenta, segura e gradual nos moldes

    do Geisel.

    Para Flora Abreu, se algum dia esses arquivos forem abertos,isso ser feito quando a maioria das pessoas que viveram durante aditadura e os parentes dos desaparecidos estiver morta.*

    Arco da Maldade, projeto de monumento feito por Oscar Niemeyer para o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

    http://www.torturanuncamais-

    * Ao final de 2005, alguns documentos da ditadura foram transferidos para o Arquivo Na-cional, onde estaro disponveis para consulta.

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    Extrado do acervo da Assossiao Brasileira de Imprensa (ABI)

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    MEMRIAS DE MILITANTES

    Maria Luiza Muniz

    A Comisso de Direitos Humanos da Associao Brasileirade Imprensa (ABI) constatou que 350 jornalistas foram presos eprocessados no Brasil entre 1964 e 1982; muitos deles tiveramseus diretos suspensos por at 10 anos. Alguns foram torturadose depois exorcizaram seus demnios em livros, como o jornalistalvaro Caldas, autor de Tirando o Capuz. Outros no sobreviveram,morreram sob tortura. Entre eles, David Capistrano da Costa, Mrio

    Alves e Vladimir Herzog.Nilo Srgio Gomes e Jesus Antunes, passados 30 anos da

    morte do jornalista Herzog, relembram o envolvimento poltico,a censura e a represso que sofreram. Nilo Srgio Gomes, 54 anos,formou-se em Jornalismo em 1975, ano em que Herzog morriavitima de tortura sofrida no Destacamento de Operaes de In-formaes Centro de Operaes de Defesa Interna (DOI-CODI)de So Paulo.

    Nilo Srgio se prope a empreender uma viagem at a d-cada de 60.

    Naquele tempo, a permanncia na Universidade era umaforma de contribuir com o movimento social e com a organizaodos estudantes. Eu sou do Rio de Janeiro, mas fui para Braslia em68 por causa do movimento estudantil, da perseguio poltica, fotono jornal, essas coisas. Naquela poca as pessoas iam caindo, em67, 68. Eu era independente, era simpatizante do Partido ComunistaBrasileiro, da Dissidncia da Guanabara. Eu no era uma pessoa or-ganizada, ento me senti muito fragilizado. Fui para Braslia, presteivestibular, passei, mas antes de comear a estudar na Universidadeeu tambm ingressei no jornal O Globo, na sucursal de Braslia.

    Duas semanas depois da primeira entrevista com Nilo Gomes,outro jornalista, presidente do Conselho Fiscal da ABI, tambm re-

    lembrou um pouco de sua trajetria nos tempos da ditadura militar.Jesus Antunes concluiu a graduao em Jornalismo na dcada de80, mas interrompeu sua atividade profissional em decorrncia deseu engajamento poltico. Disciplinado ao longo de alguns anos pelacondio de militante clandestino, Antunes diz que ainda hoje se

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    levanta s cinco horas todo dia. Em uma manh, na sua sala, no 11andar no prdio da ABI, centro do Rio, antes mesmo que o gravadorfosse ligado Antunes comeou a contar sobre sua participao naCampanha da Legalidade, analisando os acontecimentos que leva-

    ram ao golpe e recordando a conjuntura repressiva que causou amorte do jornalista Vladimir Herzog.

    No incio da dcada de 60, Jesus Antunes, aos 18 anos deidade, participou da Campanha da Legalidade, aps a renncia deJnio Quadros em defesa da posse do vice, Joo Goulart, e lideradapor Leonel Brizola no sul do Pas. O movimento constituiu-se naocupao militar das rdios Guaba e Farroupilha e no comando de104 emissoras de rdios gachas, catarinenses e paranaenses. Napoca, Antunes estudava no Colgio Jlio de Castilhos, segundo ele,um foco de discusses e mobilizaes polticas.

    Para voc ter uma idia, Porto Alegre virou uma praa deguerra, voc no ia nem para casa...Aquela mobilizao era pelaquesto da legalidade, n? Estudando depois ns vamos ver que arevoluo brasileira deveria ter-se dado em 61 e em 64 era o trocoque eles davam. Os militares derrubaram um governo nacionalista.

    O governo do Jango era um governo nacionalista. Da a traio dosmilitares se unindo aos americanos. Sendo que grande parte dasforas armadas foi cassada; eram os nacionalistas.

    Nilo Srgio se manteve atuante como jornalista durante operodo do regime militar e chegou a atrelar sua profisso resis-tncia.

    Sa do Jornal do Brasil em 76 e fui trabalhar no jornal

    Opinio e a eu estabeleci um relacionamento com a imprensa al-ternativa. Trabalhei no Opinio at 78, como reprter e depois comorevisor. Escrevi para o jornal Movimento e em 78 ns fundamos naZona Oeste do Rio um jornal chamado Arranco. Havia tambm um

    jornal da Baixada Fluminense. Ns ramos ligados ao Movimentopela Emancipao do Proletariado (MEP), que tinha bases principal-mente no movimento estudantil... Uma organizao de esquerda,clandestina, originria da Poltica Operria (Polop).

    Um pouco antes, em 1968, que termina com a decretao doAto Institucional n5, o militante Jesus Antunes, envolvido politica-mente com uma organizao da dissidncia do PCB, via-jou para oRio de Janeiro ao perceber que o cerco se fechava em Porto Alegre.Antunes conta um episdio vivido ainda no Sul que fizera a morte

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    do jornalista Herzog assumir um significado parte. Ele compraraum espao na TV local, Piratini, e apresentava ao vivo aos domingoso programa Panorama estudantil, s 13h. Depois de trs meses, nodia em que um lder do movimento estudantil, perseguido por suas

    aes consideradas subversivas seria entrevistado, o programa foitirado do ar. Antunes, durante o intervalo, foi chamado para compa-recer direo. Ele sabia do perigo que corria se permanecesse ali.Ao reconhecer os oficiais que estavam no prdio, decidiu ir embora,sem escala, rumo clandestinidade. Era 25 de dezembro de 1968.

    Eu cheguei aqui no Rio e fui preso. Estava clandestino aquino Rio de Janeiro.

    A priso um espao comum na trajetria dos trs jornalis-tas citados. Alm disso, vale ressaltar que nenhum deles foi presoestritamente por questes relativas profisso, mas por um posicio-namento poltico que defendiam ainda que de formas diferentes.

    Quando o MEP caiu o MEP caiu em abril de 78 eu co-mecei a olhar com mais intensidade para o movimento operrioporque no havia dirigentes no movimento operrio. Ns (daorganizao poltica) tnhamos muito interesse no movimento

    operrio. Em 79, eu j estava no movimento operrio, fazendo umtrabalho de organizao de fbricas. O jornal Arranco, fundado emsetembro de 78, se uniu ao jornal Berro, que era o Berro da Baixada,e deu origem a um s jornal, o Berro, jornal popular independente.Ento, criamos diversos contatos em fbricas e em comunidadespopulares relembra Nilo Srgio.

    Antunes estava na clandestinidade, no exercia a profisso de

    jornalista e participava de uma dissidncia que se colocava contrao legalismo do PCB.

    - Eu fui de uma dissidncia que era contra aquele legalismodo partido. O partido era contra a luta armada. Eu acho at queeles estavam certos nisso, porque eu estava contra tambm. Nsnunca fomos contra a luta armada, s no achvamos que era ahora. Fui convidado para ir para Cuba, mas antes de eu sair daquieles j estariam sabendo. E eles (os militares) se infiltravam. O

    maior perigo nessa poca era a infiltrao. Eles infiltravam algumcomo se fosse... Era um agente. Agora, no movimento estudantilera mais fcil porque voc sabia quem era seu colega. Ento, nohavia relao entre determinados setores na clandestinidade. Era

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    uma questo de segurana. Quem era operrio era operrio l,quem era estudante era estudante. E o Partido sempre tinha umatradio muito grande de ter algum no meio intelectual, era umagrande influncia. Eu no sei dizer se ele (Herzog) era quadro do

    partido ou se era simpatizante. Eles (os militares) receberam umainformao; deve ter sido de algum que falou sob tortura. Nosei se o entregaram porque ele no era de importncia interna noPCB, mas ele tinha importncia fora porque ele era jornalista, eraum cara que estava na TV.

    No muito longe dos espaos de tortura ficavam os espaosde produo da notcia. Se naqueles a lgica era segurar ao mximoa informao, resistir em silncio ou abrir informaes e nomesmenos relevantes e comprometedores para a organizao, no es-pao da redao a lgica era inversa. Jesus Antunes apresenta suaviso da censura e dos reflexos sobre a sociedade:

    Naquela poca ningum podia escrever nada, no seescrevia nada. O Estado de So Paulo, quando a censura ficoumuito violenta, colocava algumas poesias de Cames e o Jornalda Tarde, receitas de bolo. Quem que l o Estado de So Paulo?

    O povo no l. No l nem hoje. O povo no l nem O Globo nemJornal do Brasil. Quem l jornais a classe mdia. Burgus no lnada. Burgus s viaja. Quem l a classe mdia; so os chamadosintelectuais, acadmicos, universitrios. O nmero de jornais quese vende baixssimo. Algumas coisas eram to violentas que nose podia publicar. Era como se fosse um cdigo. Tinha que dizer averdade, fulano foi assassinado. Nenhum jornal fez isso, a no seros alternativos, que eram perseguidos, fechados.

    Nilo Srgio recorda uma pequena esperteza da turma dosjornais alternativos.

    - A gente saa da grfica e a polcia pegava as edies. Daprimeira vez eles pegaram, mas da segunda a gente aprontou umaarmadilha e eles caram. A gente colocou 500 dentro do carro e elesapreenderam os 500 jornais. Depois ns fomos para o botequim,ficamos enrolando durante algum tempo e voltamos para grfica,

    onde pegamos o restante da edio. A represso para- militar seguiaa gente, seguia minha companheira, seguia outros companheiros- conta Nilo, que distribua os jornais pelas fbricas.

    A tarefa de denncia das arbitrariedades do regime ditatorial

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    que a imprensa alternativa tomou para si foi negligenciada, muitasvezes, pelos grandes meios de comunicao.

    Setores da mdia difundiram que era mesmo suicdio. Hdeterminadas coisas que tem um limite, tico ou moral. Por issoeu digo que o jornalista no pode virar chapa branca. O 2 Exrci-to deu uma nota dizendo que ele (Herzog) havia se suicidado. OInstituto Mdico de So Paulo emitiu um laudo dizendo que erasuicido. Ento, era uma mentira generalizada. O Globo e os outrosdifundiram tudo isso lembra Jesus Antunes.

    O Boletim da ABI de novembro e dezembro de 1985 (AnoXXIV) afirma que arbitrariedades como aquela cometida contra

    Herzog eram banalizadas pela censura ou pela indiferena e que,quando isso ocorre, noticiado em magro registro de uma colunanos jornais. Contudo, Nilo Gomes ressalta o papel exercido pelosilncio e pela omisso em determinadas situaes.

    s vezes o silncio fala. s vezes a lacuna, a omisso exprime.Temos que estar sempre atentos a isso na anlise do discurso, naanlise das falas, porque muitas das vezes aquilo que no dito,aquilo que silenciado fala com muito mais vigor do que o quedito.

    Muitas das vezes voc lia l no pezinho da matria ou natransversalidade da notcia e ali voc obtinha informaes a respeitode rebeldias, de alteridades, de vozes outras.

    Nilo reconhece que muitas vezes repetiu, em seu trabalhona grande imprensa, o discurso oficial. Eu escrevia o fato que oministro disso isso e aquilo. O ministro Delfim Neto acaba de infor-mar que a inflao brasileira... Segundo o ministro Delfim Neto...- afirma Nilo, gesticulando como se estivesse batendo nas teclasda mquina de escrever.

    Tanto Jesus Antunes quanto Nilo apresentam uma visocrtica quanto ao jornalismo feito nos dias de hoje. Gomes afirmaque a liberdade de imprensa no foi conquistada, mesmo aps ofim da ditadura:

    Tenho certeza de que no existe liberdade de imprensa.No existe nem nos organismos da sociedade civil. H certas mdias,rdios e TVs comunitrias... No estou falando somente da grandemdia no. Mesmo entre ns outros, nem sempre h liberdade para

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    eu dizer o que eu penso. Se eu digo o que penso, eu estou arriscadoa perder meu emprego.

    A respeito da reportagem sobre a priso de Vladimir Herzog,Jesus Antunes critica a postura do Correio Brasiliense.

    Achei muito estranho que tanto a mulher (Clarice Herzog)quanto o jornal tenham entrado numa armadilha dessa, porqueno eram fotos do Herzog. O jornalismo tem que ser investigativo. OCorreio Brasiliense pensou em dar um furo e deu uma barrigada.

    Mas Nilo Srgio diz que a repercusso sobre a reportagemfortaleceu a campanha contra o esquecimento.

    Sou a favor de uma lei de anistia que anistie sim, mas noos assassinos. Quem matou Herzog tem que pagar pelo crime quecometeu. Quem matou Manuel Fiel Filho, quem torturou, quem fezas barbaridades, as perversidades, as sevcias. Imagine voc presonum pau-de-arara. Eles fazem tudo de voc. Voc no pode falarnada, s chorar e orar, se voc tiver alguma religio. O resto, vocno pode fazer nada, vo fazer tudo com seu corpo.

    Jesus Antunes compartilha com Nilo Srgio o mesmo ponto

    de vista em relao necessidade de tornar pblico os documen-tos e os detalhes dos processos contra aqueles que aps seremindiciados por infringir a Lei de Segurana Nacional acabaramsumariamente condenados segundo a lei da tortura.

    Eles torturaram gente que no tinha nada a ver. Os caraseram loucos. Herzog no foi preso por causa do que fez, disse oupermitiu na TV. Ele seria membro do PCB. Alguns dizem que ele

    revelou isso para a prpria mulher, mas no se falava disso comningum, nem com a mulher. Voc sabia que corria risco, porqueeles te pegavam e a primeira coisa que faziam era te pendurar.Primeiro eles te davam uma porrada, dependendo do seu nvel deenvolvimento. Se voc era uma figura secundria davam meia dziade tapas, qualquer coisa, te jogavam no canto.. Agora, se voc fossemembro dos quadros de importncia da organizao ou se voctivesse destaque em alguma parte, ai eles te penduravam - aifrma

    Antunes, o 80 na lista de pessoas a serem indenizadas pelo Governoem funo dos abusos cometidos durante o regime militar.

    No ano da morte de Herzog, um culto ecumnico reuniu

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    500 pessoas na ABI s 16h do dia 31 de outubro. Ao final do cultosilencioso, o ento presidente da ABI, Prudente de Moraes, pediu aotodos que deixassem a sede da Associao em grupos e em ordem.Entre os presentes estava Jesus Antunes. Na rua Arajo Porto Alegre

    estavam dois choques da PM e vrias veculos do Departamentode Ordem Poltica e Social (DOPS) e da Delegacia de Policia Polticae Social (DPPS).

    Passados 20 anos do trmino da ditadura, Jesus Antunes crna manuteno de servios de informao capazes de investigara vida de qualquer pessoa e aponta os atuais perigos latino-ame-ricanos contra os quais ainda hoje os EUA estariam atuando: Cuba,Venezuela e Haiti. Em relao poltica nacional, Antunes se opeao governo que ajudou a eleger, enquanto Nilo, jornalista respon-svel pelo site oficial do PT-RJ, reconhece que quando no poder preciso tomar cuidado.

    De repente ns viramos exatamente aquilo que comba-tamos.

    Nilo Srgio critica a participao da imprensa no processode distenso poltica no perodo final da ditadura.

    Foi sempre a sociedade que empurrou a mdia e entoa mdia foi e fez o papel dela - afirma o jornalista que, citando osversos de Maurcio Tapajs e Paulo Csar Pinheiro, explica metafo-ricamente como o silncio fala.

    Que medo voc tem de ns.../ Olha a/ Voc corta um ver-so e eu escrevo outro/ Voc me prende vivo e eu escapomorto.(Msica Pesadelo)

    Quando eu escapo morto o silncio que fala. O SantosDias (operrio morto em So Paulo em manifestao de rua, em1979) estava convocando uma assemblia e foi morto. Um policialatirou nele. At hoje o policial no foi descoberto. Mas a morte doSantos Dias acabou reverberando tanto, se tornou um discurso to,alardeou tanto que foi muito pior para os algozes matar Santos Diasdo que deix-lo vivo. Ele talvez no fosse to ouvido quanto foi

    sendo morto. Vladimir Herzog, apesar de nunca ter editado jornaiscomunistas, acabou falando muito mais atravs da morte do vivo.Ento voc me prende vivo e eu escapo morto, porque atravs daminha morte, da minha ausncia eu vou dizer muito mais do que

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    eu diria com a minha presena. Mat-lo calar uma voz cujo siln-cio ser muito mais atordoante do seria se essa voz continuasseemitindo sonoridades.

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    A ODISSIA DE ULISSES, UM METALRGICO

    Vitor Moretto

    Quando a ditadura militar se instaurou no Brasil, em 1964,Ulisses Lopes tinha mais de 40 anos. Metalrgico e diretor sindical,Seu Ulisses, que era ligado ao Partido Comunista do Brasil, dali emdiante viveu anos conturbados em meio a prises, invases ao sin-dicato, assassinatos de amigos seus e um perodo de nove anos na

    clandestinidade. Perodo em que descobriu a morte de um outropersonagem que enfrentara o regime: Vladimir Herzog.

    No lembro bem como tomei conhecimento da mortede Herzog. Naquela poca, condenado e foragido, escondia-me etrabalhava como desenhista numa fbrica de mveis.

    No entanto, Ulisses, ao saber da morte do jornalista, lembraque o sentimento de revolta o tomara em um misto de tristeza evitria. Numa forma impecvel de se expressar, de palavras certeirase poticas, recorda-se:

    quela altura [da morte de Herzog] j havia perdido,mortos ou desaparecidos, bons companheiros e um dileto amigo[Joo Massena Melo]. A ditadura no tinha nada a oferecer que nospermitisse alimentar qualquer dose de iluso. Seus crimes no mesurpreendiam.

    A parcela vitoriosa de sua explicao concentra-se numaanlise digna de um lder revolucionrio:

    Deles [dos crimes] tomava conhecimento, revoltado, massempre me mantinha tranqilo. Estava convencido de que o recru-descimento da represso era indcio de fraqueza, embora pudesseparecer o contrrio.

    Tinha razo. A morte de Vladimir Herzog desencadeou umarevolta na sociedade onde, pela primeira vez, ficava explcito aosolhos dos leigos e desinformados que havia tortura, represso emorte aos que, de alguma forma, se pronunciavam contra o regimemilitar.

    Ulisses Lopes, aos 81 anos, faz crticas imprensa de uma

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    forma geral no que diz respeito ao acesso que a populao tems informaes sobre aquela poca. Paradoxalmente, a mesmamdia a qual pertenceu o jornalista hoje se diz contra a aberturados arquivos da ditadura.

    A meu ver, a discusso sobre a abertura dos arquivos notem tido na imprensa o destaque que merecia. Lamentvel querespeitados articulistas no se pronunciem sobre o assunto ouo abordem apenas en passant, enquanto outros, to enrgicos epersistentes na condenao de indenizaes e aposentadoriasabusivas, silenciem sobre o que igualmente, ou mais importante,o conhecimento da verdade sobre quem foi quem na hora da mortee da tortura - analisa.

    Ulisses alerta para a contradio entre a morte de um jornalis-ta pela represso e a gravidade do silncio da mdia. Atualmente, oex-metalrgico faz parte do Grmio de Veteranos do Sindicato dosMetalrgicos do Rio de Janeiro. Informado, l jornais diariamente,tanto os impressos quanto pela Internet, sobre os mais variadosassuntos: desde os esportes, onde acompanha notcias de seu Vascoda Gama, at poltica internacional.

    Faz crticas ao governo Lula, principalmente ao que chamoude balaio de alianas para que chegasse ao poder.

    Seria ingenuidade supor que a redemocratizao poltica,por si s, promovesse uma lavagem cerebral redemocratizantenos coraes e mentes de todos os cidados brasileiros - comple-menta.

    Ao final da entrevista, fala da necessidade de informaopara que as novas geraes no mais permitam que tempos comoaquele possam voltar.

    necessrio que no se lhes soneguem a verdade, nua,crua, transparente - defende. E termina, citando Dom Paulo EvaristoArns, cardeal emrito de So Paulo:

    Ainda h muito o que fazer para que toda a verdade venha tona. Ainda h muito que fazer para que nossa juventude jamaisse esquea destes tempos duros e injustos.

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    VASCULHANDO OS ESCANINHOS DAMEMRIA

    Renata CunhaMaria Luiza Muniz

    Como beber dessa bebida amarga

    Tragar a dor, engolir a labuta

    Mesmo calada a boca, resta o peito

    Silncio na cidade no se escuta

    Clice Gilberto Gil e Chico Buarque

    O regime instaurado a partir do golpe civil-militar de 1964deixou marcas profundas na Histria do pas. Muitos dos que seopuseram ao governo ditatorial escreveram em suas biografias

    anos de exlio, clandestinidade, estudos e profisses interrompidos,inexplicveis desaparecimentos, suicdios forjados; enfim, anos desilncio. Assim, inmeras histrias e memrias das arbitrariedadesforam caladas diante do medo e da ao repressiva do Estado.

    O silncio pode ser visto como resistncia ao excesso dediscursos oficiais, mas tambm como uma espcie de capa prote-tora contra violncias sofridas no passado esclarece a professoraIclia Thiesen, do Programa de Ps-Graduao em Memria Socialda Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Se-gundo ela, o silncio produz lacunas, distores e o esquecimento,resultado de negociaes e disputas que ocorrem na sociedade.Para a professora o no-dito no necessariamente esquecido, maspermanece nos escaninhos da memria, nos redutos familiares ounas instituies mais fechadas, aguardando as condies favorveispara se tornar pblico.

    Um dos caminhos percorridos no sentido da preservao damemria acerca da ditadura militar a publicao de livros-repor-tagem, como o Dossi-Herzog: Priso, Tortura e Morte no Brasil, deFernando Pacheco Jordo, Manuel Fiel Filho: quem vai pagar poresse crime?, de Carlos Alberto Luppi, e Santo Dias: Quando o Pas-

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    sado se Transforma em Histria. Este ltimo partiu da iniciativa deLuciana Dias, filha do metalrgico Santo Dias da Silva, assassinadoem 1979, durante manifestao grevista realizada em frente f-brica Sylvnia, no bairro paulistano de Santo Amaro. A jornalista e

    coautora do livro, J Azevedo conta que Luciana desejava marcaros 25 anos da morte do pai com a publicao de um livro sobre atrajetria do operrio e militante.

    A obra, lanada em 2004, contm depoimentos de amigos,vizinhos, colegas de militncia e oponentes polticos, mas tambmapresenta um panorama do movimento operrio em So Paulonos anos de 60 e 70. As imagens do livro so da fotojornalista NairBenedicto, uma das primeiras mulheres a cobrir manifestaessindicais. Luciana Dias e J Azevedo reuniram ainda, aproximada-mente, quatro mil documentos relacionados a Santo Dias, que hojefazem parte do acervo do Centro de Documentao e Memria daUniversidade Estadual Paulista (Unesp). O trabalho de pesquisa,que comeou em 2000, foi financiado pelo Centro Santo Dias deDireitos Humanos da Arquidiocese de So Paulo, fundado um anoaps a morte do metalrgico e voltado para aes em favor devtimas da violncia policial.

    A destruio de muitos documentos [sobre a ditadura] foirealizada, no apenas por rgos da represso que tentaram ocultarsuas aes, mas tambm pelos prprios militantes que precisavampreservar suas vidas e a de seus companheiros de luta - afirma Thie-sen, que ressalta a importncia dos documentos escritos ou oraispara a reconstruo da memria sobre o regime militar. Contudo,a professora lana um questionamento:

    Resta saber o que de fato queremos construir como me-mria social.

    Ao falar sobre Santo Dias, J Azevedo deixa sua sugesto:

    Santo Dias viveu e militou numa poca de efervescnciasocial expressiva, apesar da violncia da ditadura militar. Os grupos ecomunidades estavam descobrindo a fora da organizao popular,e eram expressivos na regio sul da capital, precursora de uma sriede movimentos. A Oposio Sindical Metalrgica de So Paulo desa-pareceu da nossa memria histrica. Santo fazia parte dela e morreudefendendo as bandeiras que ela [a Oposio] defendia: liberdadee autonomia sindical, comisses de fbrica, salrios e condies de

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    trabalho dignas. Acho que o livro d essa contribuio de resgatede um passado importante do movimento social.

    Waldemar Rossi, metalrgico aposentado, ainda sindicalistada Oposio Operria de So Paulo. A crena na possibilidade de

    justia social o acompanha desde que ingressou na JuventudeOperria Catlica (JOC), em Sertozinho, sua cidade natal, nointerior de So Paulo. J na capital, concorreu duas vezes (1967 e1972) direo do Sindicato dos Metalrgicos, sendo derrotadopor Joaquim dos Santos Andrade. Conhecido por Joaquinzo, estevelho sindicalista era acusado poca de no se opor ao regime e,segundo Rossi e a jornalista J Azevedo, ligado aos militares.

    Waldemar, 72 anos de idade e 50 de militncia operria, recor-da o impacto da morte de Santo Dias em 30 de outubro de 1979:

    Durante essa greve, em frente fbrica Sylvnia Santo Diasda Silva covardemente assassinado pelo policial militar Herculano.Sua notcia, em plena assemblia na Rua do Carmo, causou fortecomoo e impacto, recrudescendo a tenso e impedindo a mani-pulao pelega pelo final da greve, que se estendeu por dez dias eculminou com o atendimento de boa parte das reivindicaes e o

    reconhecimento de seis Comisses de Fbricas entre as principaisde S. Paulo, tudo isso, revelia da direo sindical e contra as orien-taes do poder militar. A morte de Santo Dias causou impacto emtodo o pas e fora dele, devido aos laos que mantnhamos com v-rios movimentos sociais, principalmente europeus. No dia seguinteao de sua morte, saindo da Igreja da Consolao, onde seu corpofoi velado, e em cortejo at a catedral da S, dezenas de milharesde pessoas estiveram presentes, numa vigorosa e impressionante

    manifestao de solidariedade sua famlia, mas, principalmente,em protesto contra a violncia e em defesa do direito de lutar pelosinteresses dos trabalhadores. Gritos contra a ditadura estiverampresentes durante todo o cortejo.

    Em 1970, Waldemar participou da criao da Pastoral Ope-rria da Arquidiocese de So Paulo, cujo marco inicial foi a Missapelo Salrio Justo, celebrada na catedral da S.

    A Pastoral Operria (PO) o resultado da ao militantejunto s Comunidades Eclesiais de Base de alguns de nossos anti-gos militantes jocistas [da JOC, Juventude Operria Catlica], emparticular do trabalho de formiguinha que Clia [esposa dele] e

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    eu desenvolvemos na periferia da zona leste paulistana. Muitospequenos grupos foram se formando para refletir a vida de f aliada de trabalho e, a partir das exigncias evanglicas da justia e dasolidariedade, agir para conscientizar e organizar os trabalhadores.

    As pastorais operrias se espalharam pelo Brasil, chegando a cons-tituir mais de 100 dioceses - recorda.

    Rossi relata ainda que, em 1974, foi preso com outros quatrocompanheiros durante uma reunio de sindicalistas de oposio,na igreja So Joo, na cidade de So Paulo, sob a acusao depertencerem a um grupo denominado Movimento Popular deLibertao (MPL). Levados para o DOPS, sofreram torturas compau-de-arara, choques eltricos e pancadas. Enquadrados na Leide Segurana Nacional sob investigao do 1 Exrcito, no Riode Janeiro, em 1978, foram absolvidos por unanimidade aps o

    julgamento em duas instncias, mas permaneceram quatro anoscom direitos suspensos.

    O ex-metalrgico avalia os reflexos da represso militar emsua vida e na de outros submetidos truculncia do regime:

    A experincia me ajudou a entender at onde podemchegar os que defendem os interesses do capital explorador eespoliador. Destroem sua prpria personalidade, tornam-se ferassedentas de sangue, se tornam cruis e insensveis. So muitos osque resistem bem, at a morte. Porm, foi possvel entender por queoutros no esto devidamente preparados para esse confronto, jque a sensao de desespero, de sofrimento cruel infinito. Vi genteque se desestruturou humanamente; muitos, pelo contrrio, mos-traram o quanto saram fortalecidos. Contudo, mesmo para quemconsegue resistir, os traumas permanecem para sempre, ainda quecicatrizados. E a f, seja ela poltico-religiosa ou simplesmente pol-tica, se revela como um elemento fundamental diante da tortura.

    H um ano, um grupo de amigos se reuniu, constituindo outroexemplo de tentativa de reconstruo da memria. O Amigos de68, fundado em janeiro do ano passado e j com 190 integrantes,nasceu de uma proposta de reunir ex-militantes de esquerda do

    perodo da ditadura. O objetivo principal o de criar um processo permanente

    de encontros reais e virtuais, visando recuperar e desenvolver asrazes comuns e os laos de amizade e solidariedade que nos unem- afirma Ricardo Pimenta, coordenador do grupo e moderador da

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    lista de discusso na internet.

    A lista virtual, de acesso restrito aos Amigos, tem 177 inscri-tos, que abordam os mais variados temas, de assuntos afetivos adiscusses polticas.

    H depoimentos incrveis, irmos que estavam brigados,separados e que se reencontraram, filhos que passaram a enten-der seus pais, amigos que venceram seu sentimento de culpa porno terem aderido luta armada, outros muito doentes que temna alegria de reencontrar antigos companheiros mais um motivopara viver relata Pimenta.

    Ao mencionar o nome de alguns Amigos, Pimenta os iden-

    tifica pelo curso, a Universidade e o ano em que ingressaram naUniversidade.

    Somos, portanto um Grupo, temos uma identidade, ecircula entre ns uma energia positiva fantstica, muito maior doque a soma da fora de cada um de ns afirma Ricardo, Economia,UFRJ, 67. O jovem universitrio, em fins de 60, militava no movimen-to estudantil, foi membro do MR-8 (ex Dissidncia Guanabara) e

    expulso da Faculdade em maro de 1969, pelo Decreto - Lei 477.O contato entre os Amigos no se restringe grande rede.

    Eles se renem periodicamente.

    Pretendemos fazer um grande encontro a cada ano. Oprimeiro foi em agosto, num condomnio onde a Ana Miranda [es-tudante de Farmcia em 1967], tem casa. Foi sensacional, realizamosum filme, com 30 minutos, produzido pela Maria de Andrade, neta

    da Vera Ach e editado pela Julia Martins, filha do Franklin Martins.Estiveram na festa 128 pessoas, entre participantes do grupo efamiliares; emoo pura - afirma.

    Alm de compartilharem lembranas e sentimentos, os in-tegrantes do grupo planejam atividades que reforcem a memriae identidade dos Amigos de 68. Para 2006, esto previstos a elabo-rao de um site, a publicao de um livro, que vai incluir fotos etextos da poca, e a continuao de uma srie de debates polticos,iniciada em 2005.

    A srie ter o nome de Ciclo Apolnio de Carvalho, talvezum dos maiores exemplos de dedicao vida revolucionria,

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    alm de ter sido um ser humano para l de especial. Um dos filhosdele, o Ren de Carvalho, banido dentre os 70 trocados pelo Em-baixador Suo, tambm est aqui no Amigos de 68 - conta RicardoPimenta.

    A historiadora Iclia Thiesen explica que grupos de pesquisae de discusso, publicaes, recursos audiovisuais, outros materiaise espaos so suportes da memria individual, coletiva e social queservem de apoio s lembranas de um tempo passado. No entanto,ela ressalta que tais suportes no determinam o resgate de umamemria social perdida, mas possibilitam sua reconstruo:

    A memria social precisa ser reconstruda, em diversos

    nveis, segundo a vontade dos envolvidos, as aes de organismosgovernamentais e no-governamentais e a presso dos pesquisa-dores para a liberao dos arquivos militares. No um processosimples, pois envolve interesses pesados, que comprometem aimagem de diversas instituies e de indivduos atrelados aos pro-cessos de represso.

    Ao telefone, a voz do Bispo Dom Anglico Sndalo Bernardino a de um homem bem-humorado, porm indignado, preocupadocom o direito dos explorados. O Bispo diz que aos 72 anos suamemria apresenta falhas. Contudo, descreve dois importantesepisdios de uma Histria recente, embora esquecida por muitos.O primeiro foi o encontro de vrias religies na missa de stimo diado jornalista Vladimir Herzog e o segundo, tambm uma missa, foicelebrada por ele prprio. Na ocasio, em janeiro de 1976, se reu-niram membros da Pastoral Operria e militantes de outras reas,todos atnitos com as circunstncias da morte de Manuel Fiel Filho.Segundo Dom Anglico, hoje em Blumenau, Santa Catarina, dizia-se poca que aquele operrio era um comunista, como se estaopo ideolgica o desqualifica-se de alguma forma. Entretanto, oBispo afirma que sua preocupao era com o trmi