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Anais IV SIPEQ ISBN - 978-85-98623-04-7 1 A ENTREVISTA FENOMENOLÓGICA Leandro Penna Ranieri Universidade de São Paulo Cristiano Roque Antunes Barreira Universidade de São Paulo Apoio: FAPESP Resumo O propósito deste trabalho é tematizar a entrevista fenomenológica como procedimento metodológico em pesquisa qualitativa, elucidando suas características principais e sua implicação com outros momentos da pesquisa fenomenológica. Tematizar este instrumento permite observar as implicações entre as etapas de pesquisa, também revelando, a partir de seus elementos essenciais, os princípios deste tipo de investigação. Palavras-Chave: Entrevista fenomenológica, pesquisa qualitativa, procedimentos metodológicos. Abstract The purpose of this study is to develop the theme of phenomenological interview as a methodological procedure in qualitative research, explaining its main features and its implication with other moments of phenomenological research. Thematize this instrument allows to observe the implications among the stages of research, also revealing, from its essential elements, the principles of this genre of research. Keywords: Phenomenological interview, qualitative research, methodological procedures. INTRODUÇÃO As rápidas mudanças sociais a partir do século XX exigiram, historicamente, o posicionamento de novas perspectivas investigativas, em diferentes áreas e para diferentes objetos ou, pelo menos, outras faces dos mesmos. As ciências tradicionais, como as ciências naturais, passaram a não dar conta de explicar e, sobretudo, compreender os fenômenos que se dão na realidade. Novas perspectivas epistemológicas começam a surgir, a partir de metodologias próprias de investigação. Nesse sentido, para o estudo empírico, a pluralização das esferas de vida exige uma nova sensibilidade do ato de pesquisar, demandando também um apego rigoroso a essas esferas que são estudadas. Portanto, os próprios fenômenos e sua complexidade impõem um enfrentamento investigativo diferente (FLICK, 2004). Nesse contexto, as ciências humanas e sociais ganham maior amplitude de atuação. O desencantamento do mundo e da ciência, a qual busca, através de métodos quantitativos e padronizados, objetividades causais, deixam de lado a preocupação com o homem e a situação. As ciências humanas e sociais visam preencher esta lacuna, a qual também representa um dos limites da pesquisa quantitativa. Nesse sentido, ganha espaço a subjetividade e as experiências humanas como objetos de investigação, como componentes das práticas cotidianas. Assim, o objeto é tomado em sua complexidade e em seu contexto e possibilita uma abertura metodológica: o objeto determina o método (FLICK, 2004). As ciências tradicionais alegam ter uma objetividade maior ao fazer pesquisa, controlando variáveis, testando hipóteses e mensurando aspectos de determinado fenômeno. De outro lado, as ciências de natureza qualitativa também apresentam preocupações em relação ao rigor do pesquisar: delimitação precisa do objeto e construção metodológica adequada à natureza do mesmo. No caso de investigações que tomem a subjetividade como objeto de pesquisa, a necessidade de se ter um caminho apropriado para alcançar as experiências das pessoas por si só já configura um problema próprio de investigação. Que tipo de procedimento possibilita o acesso às experiências das pessoas? Pesquisar a subjetividade enquanto tal não é

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  • Anais IV SIPEQ ISBN - 978-85-98623-04-7 1

    A ENTREVISTA FENOMENOLGICA

    Leandro Penna Ranieri Universidade de So Paulo Cristiano Roque Antunes Barreira Universidade de So Paulo

    Apoio: FAPESP

    Resumo O propsito deste trabalho tematizar a entrevista fenomenolgica como procedimento metodolgico em pesquisa qualitativa, elucidando suas caractersticas principais e sua implicao com outros momentos da pesquisa fenomenolgica. Tematizar este instrumento permite observar as implicaes entre as etapas de pesquisa, tambm revelando, a partir de seus elementos essenciais, os princpios deste tipo de investigao. Palavras-Chave: Entrevista fenomenolgica, pesquisa qualitativa, procedimentos metodolgicos.

    Abstract

    The purpose of this study is to develop the theme of phenomenological interview as a methodological procedure in qualitative research, explaining its main features and its implication with other moments of phenomenological research. Thematize this instrument allows to observe the implications among the stages of research, also revealing, from its essential elements, the principles of this genre of research. Keywords: Phenomenological interview, qualitative research, methodological procedures.

    INTRODUO

    As rpidas mudanas sociais a partir do sculo XX exigiram, historicamente, o

    posicionamento de novas perspectivas investigativas, em diferentes reas e para diferentes objetos ou, pelo menos, outras faces dos mesmos. As cincias tradicionais, como as cincias naturais, passaram a no dar conta de explicar e, sobretudo, compreender os fenmenos que se do na realidade. Novas perspectivas epistemolgicas comeam a surgir, a partir de metodologias prprias de investigao. Nesse sentido, para o estudo emprico, a pluralizao das esferas de vida exige uma nova sensibilidade do ato de pesquisar, demandando tambm um apego rigoroso a essas esferas que so estudadas. Portanto, os prprios fenmenos e sua complexidade impem um enfrentamento investigativo diferente (FLICK, 2004).

    Nesse contexto, as cincias humanas e sociais ganham maior amplitude de atuao. O desencantamento do mundo e da cincia, a qual busca, atravs de mtodos quantitativos e padronizados, objetividades causais, deixam de lado a preocupao com o homem e a situao. As cincias humanas e sociais visam preencher esta lacuna, a qual tambm representa um dos limites da pesquisa quantitativa. Nesse sentido, ganha espao a subjetividade e as experincias humanas como objetos de investigao, como componentes das prticas cotidianas. Assim, o objeto tomado em sua complexidade e em seu contexto e possibilita uma abertura metodolgica: o objeto determina o mtodo (FLICK, 2004).

    As cincias tradicionais alegam ter uma objetividade maior ao fazer pesquisa, controlando variveis, testando hipteses e mensurando aspectos de determinado fenmeno. De outro lado, as cincias de natureza qualitativa tambm apresentam preocupaes em relao ao rigor do pesquisar: delimitao precisa do objeto e construo metodolgica adequada natureza do mesmo. No caso de investigaes que tomem a subjetividade como objeto de pesquisa, a necessidade de se ter um caminho apropriado para alcanar as experincias das pessoas por si s j configura um problema prprio de investigao. Que tipo de procedimento possibilita o acesso s experincias das pessoas? Pesquisar a subjetividade enquanto tal no

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    simplesmente produzir conhecimentos sobre ela, mas aproximar-se experiencialmente dela para s depois produzir um discurso expressivo (AMATUZZI, 2006, p. 96). Um dos caminhos propostos para o acesso s experincias vividas a solicitao atravs de questionrios e entrevistas, pois, segundo Amatuzzi (2006), atravs da relao dialgica entre sujeito e pesquisador que possvel aproximar-se da experincia vivida.

    A pesquisa fenomenolgica possui peculiaridades que deixam em evidncia o problema da entrevista em pesquisa qualitativa. Um primeiro aspecto so os princpios que norteiam a pesquisa. Por no partir de teorias prvias para se aproximar dos fenmenos, a fenomenologia exige um posicionamento radical e rigoroso. Um segundo aspecto que as prprias redues solicitam uma crtica e uma definio precisa do caminho investigativo (emprico) para se chegar aos fenmenos e suas essncias. Sendo assim, o objetivo desta investigao tematizar a entrevista fenomenolgica como procedimento metodolgico de coleta em pesquisa qualitativa, elucidando suas caractersticas principais e sua implicao com outros momentos deste gnero de pesquisa cientfica.

    FENOMENOLOGIA

    Edmund Husserl (18591938), considerado o pai da fenomenologia clssica, constituiu

    uma cincia voltada para o estudo daquilo que se manifesta conscincia intencional (conscincia de). Fenomenologia como cincia e mtodo terico-filosfico rigoroso visa a reflexo sobre os fenmenos, aquilo que se manifesta, isto , as experincias vivenciais. Numa explanao sumria, no tocante aos seus objetos e objetivos, o trilhar metodolgico da fenomenologia predispe o pesquisador a entrar em contato com o contedo da vivncia pr-reflexiva, deixando de lado paulatinamente tanto o posicionamento prvio de uma cincia e suas teses, como aquilo que define e valora o objeto de estudo, como pr-conceitos ou pr-juzos. Como uma atitude ou converso fenomenolgica, h o esforo de partir sem pr-teorias ao olhar para o objeto, observando aquilo que , deixando as coisas mesmas se manifestarem. Para que se possa chegar vivncia, esta manifestada em primeira pessoa pela narrativa, necessria uma nova maneira de se orientar, inteiramente diferente da orientao natural1 na experincia e no pensar (HUSSERL, 2006, p. 27) e retorna-se s coisas mesmas (HUSSERL, 2001) momento este denominado de reduo fenomenolgica ou eidtica , na tentativa de atingir a constituio do objeto investigado, a fim de compreend-lo e descrev-lo (ALES BELLO, 2004). A partir desse caminho, pode ser possvel identificar os significados das experincias vividas na vida de sujeitos tpicos sujeitos reconhecidos por terem vivenciado determinadas experincias , na tentativa de compreender como estas experincias se configuram existencialmente e como so constitudas intencionalmente. FENOMENOLOGIA E METODOLOGIA

    Amatuzzi (1996) e Amatuzzi et al. (2006) apontam esquematicamente alguns passos

    norteadores da pesquisa e do mtodo em pesquisa fenomenolgica, incluindo e localizando a etapa de coleta de dados. Manzini (2004) tambm apresenta, de maneira mais diluda, o local e o papel da entrevista em pesquisa qualitativa. Esta seo destaca aspectos da elaborao lgica da pesquisa cientfica, vistos sob a tica fenomenolgica e orientados pesquisa qualitativa e em fenomenologia.

    Primeiramente, preciso destacar o papel da definio do objeto e do objetivo dentro do processo investigativo. Pode-se ter previamente uma curiosidade de se conhecer como se configura alguma experincia; esta curiosidade expressa por meio de um problema; ou tem-se

    1 A orientao ou atitude natural pode ser considerada como um nvel de considerao sobre objetos/fenmenos de investigao. Caracteriza-se na superfcie do fenmeno, tipicamente mbito de pesquisa das cincias naturais, orientadas pela lgica causal e espao-temporal, cercando o fenmeno a partir dessas objetividades. A converso fenomenolgica se configura pela mudana de atitude: da atitude/orientao natural (aspectos factuais do fenmeno) atitude fenomenolgica (aspectos essenciais do fenmeno).

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    a experincia e elabora-se a questo da pesquisa a partir dela. Em ambos os movimentos, a experincia ou algum aspecto dela o objeto da investigao. O objetivo, fenomenologicamente, colocar o objeto em movimento ou tom-lo de determinada forma. Sendo assim, o objetivo expresso como um verbo aplicado ao objeto. A ttulo ilustrativo, em pesquisa fenomenolgica, respeitando as variaes de vertentes deste caminho epistemolgico, identificar e compreender so verbos que, aplicados aos objetos, se adquam ao tipo de caminho e princpio proposto pela fenomenologia. So momentos que expressam as etapas do mtodo fenomenolgico e sua implicao: identificar pode corresponder reduo fenomenolgica, visando identificar a essncia do fenmeno, e compreender pode estar mais em correspondncia com a reduo transcendental, sendo, grosso modo, a etapa de compreenso dos momentos de constituio da experincia na conscincia do sujeito. Por fim, a delimitao de um objetivo de pesquisa de certo modo contm todas as etapas da mesma. Alm do objeto e o tipo de olhar sobre ele, o objetivo contm o recorte contextual da rea de conhecimento em que ele se insere e, como problema de pesquisa, como est vinculado a esta rea ou reas, seguindo uma tendncia atual de interdisciplinaridade na cincia. Este momento elaborado na introduo do trabalho, contendo a reviso bibliogrfica. Depois, os prprios verbos definidos no objetivo j indicam o modo de abordar e considerar o objeto; estes modos j indicam o mtodo da pesquisa, incluindo os procedimentos e instrumentos para tal.

    Ao definir o recorte do objeto e objetivo, tem-se tambm o perfil de sujeitos que comporo a amostra. Alm disso, pode-se ter uma delimitao mnima do nmero de entrevistados, configurando-se e justificando-se a partir de dois aspectos relacionados com este tipo de investigao. Primeiro, e sobretudo, observa-se, no tocante coleta, transcrio e anlise em pesquisa qualitativa e, principalmente, no caso da pesquisa fenomenolgica, a caracterstica invivel e prescindvel da tentativa de se aplicar alguma tcnica de amostragem a qual defina estrita e estatisticamente o nmero de sujeitos para a participao das entrevistas. O tipo de entrevista proposto, bem como os ajustes epistemolgicos, buscam atingir aspectos relacionados com a vida dos sujeitos, ou seja, tem como meta sua dimenso existencial favorecendo-se o acesso analtico vivncia da prpria pessoa e a compreenso da interioridade constituinte deste objeto enquanto convertido fenomenologicamente, isto , enquanto fenmeno, aquilo que se d conscincia. Desse modo, todo o propsito como o critrio de validade das pesquisas quantitativas so incompatveis com os pressupostos filosficos que pautam este tipo de investigao (GIORGI, 2008).

    ENTREVISTAS FENOMENOLGICAS

    A elaborao do instrumento de coleta busca condizer com o tipo de investigao, isto , a natureza do objeto e do objetivo solicita determinado instrumento. No caso da pesquisa envolvendo as experincias vividas de pessoas, remete-se a um meio que permita a narrao das mesmas: tal instrumento pode ser denominado de entrevista fenomenolgica. O instrumento de coleta no definido como mtodo da investigao; mtodo o caminho para se chegar em determinado lugar cumprimento do objetivo e resposta do problema da pesquisa , valendo-se de procedimentos e instrumentos adequados e especficos. As entrevistas podem ser baseadas em roteiros ou questionrios, compostos de perguntas ou tpicos. Sinteticamente, esses roteiros podem ser organizados a partir do nvel de estruturao: de no-estruturados a estruturados, havendo ainda o hbrido semi-estruturado (MANZINI, 2004). A estruturao se configura pelo nmero de questes e a relao entre elas, incluindo uma ordem lgica elucidativa de solicitaes gerais a especficas durante a entrevista e/ou de complexidade de questes mais simples para mais complexas. Esta tipificao esquemtica se dirige mais ao processo de elucidao e aprofundamento prprio deste recurso metodolgico da pesquisa qualitativa, no se confundindo com outros objetivos restritivos, como a comprovao de fatos e coleta de dados informativos. Estes cuidados especficos e relativos elaborao de questionrios e roteiros, bem como a compatibilidade entre os objetivos da pesquisa e os roteiros de entrevista, so bem esquematizados por Manzini (2004) e Kidder (1987).

    Segundo Dale (1996, p. 310), a entrevista do tipo fenomenolgica tem incio a partir de uma questo que guiar o processo de coleta; ou seja, uma questo norteadora e disparadora

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    da entrevista, estritamente implicada com o objetivo da pesquisa. Outra possibilidade, como exemplifica Stelter (2000), a utilizao de uma situao escolhida no momento da entrevista; o entrevistador solicita que a pessoa traga situaes compatveis com o propsito da entrevista e ambos combinam em partir de determinada experincia escolhida, como temtica situada a ser explorada na continuidade da entrevista. O pesquisador/entrevistador, segundo Dale (1996, p. 313), encoraja o entrevistado a refletir sobre sua experincia e detalh-la o mximo possvel. Para tal, no decorrer do relato, destaca-se a ateno ao contedo relatado por parte do pesquisador/entrevistador, direcionando a entrevista ao contedo buscado e para elucidar possveis pontos obscuros durante a narrativa. Quer-se o relato detalhado por parte do entrevistado de forma espontnea, possibilitando o acesso primeiro s experincias e percepes do sujeito. Sendo assim, h no somente a liberdade da manifestao deste tipo de contedo subjetivo na entrevista, mas a prpria inteno de que assim seja para que se garanta o acesso fenomenolgico pretendido.

    As perguntas que surgem durante a entrevista demonstram o interesse e a curiosidade pelo o contedo narrado, no sendo possvel estipul-las prvia e restritamente. O despertar das perguntas nasce de um desconforto, de um vazio compreensivo que corresponde a um sentido no preenchido intuitivamente, no captado explicitamente naquilo que o faz, o sustenta, mas captado apenas como sentido aludido, referido, sinalizado, indicado ou insinuado. A questo retoma algo desse sentido vazio solicitando justamente que a experincia que implicitamente o faz seja dita a fim de que se o preencha. Assim como as perguntas pr-definidas e que constituem o roteiro, estas questes buscam suscitar no sujeito a retomada das experincias ou o aprofundamento/elucidao no momento da entrevista, e sua conseqente descrio. Assim, a ttulo ilustrativo, as perguntas que podem ser adequadas e podem favorecer tal intento se iniciam pela construo o que e como construes com pronomes assumidas na forma interrogativa , sempre remetendo vivncia da pessoa (p. ex., como voc vivenciou/vivencia...?; como foi/ para voc...?; o que essa experincia para voc?).

    Alm das perguntas estipuladas previamente, as quais constituem o roteiro de entrevista, essas perguntas dirigidas no pr-determinadas partem daquilo que aparece durante o relato; a funo destas perguntas nesse processo aberto de coleta prprio da pesquisa qualitativa de ir evidenciando o fenmeno e este se evidencia justamente porque a pergunta o solicita. Ento, a pergunta se articula ao fenmeno. No pretende partir de interpretaes ou lampejos cognitivos de um dos interlocutores da entrevista, mas ela confirma o vnculo intersubjetivo presente. O aprofundamento durante a entrevista, nessa articulao fenmeno-pergunta, se d por meio de um processo de retomada, confirmao e especificao do contedo relatado. O relato do sujeito pode se configurar, muitas vezes, em torno do fenmeno, sem aprofund-lo ou adentr-lo efetivamente na narrativa; o pesquisador/entrevistador, em sua postura atenta, busca dirigir e solicitar ao sujeito, por meio da pergunta, que aprofunde sua narrativa. Como propostas sugestivas da natureza deste tipo de questo, ver Stelter (2000) e Dale (1996).

    A gravao e a posterior transcrio na ntegra da entrevista tm como objetivo fundamental a leitura dos relatos no momento da anlise, permitindo ao pesquisador, num primeiro momento, a leitura atenta sobre o contedo e, posteriormente, j durante a anlise, tentar apreender e descrever como se manifesta o objeto investigado. Alm disso, este registro grfico das entrevistas pode ser anexado pesquisa, no caso de dissertaes, teses e livros. Estes momentos da pesquisa tambm so destacados dentro do contexto de pesquisa em fenomenologia por Amatuzzi (1996) e Amatuzzi et al. (2006).

    O esforo necessrio para a coleta do relato do sujeito condiz com a caracterizao do mtodo desde a postura inicial do pesquisador/entrevistador para que esteja sempre atento no momento da entrevista, principalmente, ao relato do sujeito, testemunhando a experincia vivida do outro. O posicionamento do pesquisador/entrevistador fundamental neste tipo de entrevista, segundo Stelter (2000, p. 69); a ateno para chamar a experincia se relaciona com a caracterstica do aprofundamento em tal dimenso, segundo autor, quieta, tcita. O acesso ao estrato originrio de uma experincia vivida, isto , ao estrato corporal da experincia, no deve pretender tematiz-lo objetivamente, o que daria um carter reflexivo a uma dimenso da experincia que no tem essa qualidade, embora nem por isso no se mostre, no se manifeste, mas pr-reflexiva (p. 67), e, por tal peculiaridade, no emerge de maneira imediata e

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    racionalizada, exigindo etapas preparatrias metodologicamente bem orientadas segundo a fundamentao da fenomenologia.

    H, no tocante relao pesquisador/entrevistador-entrevistado durante a entrevista, um posicionamento emptico/entroptico frente ao outro que autorizado a relatar sobre a sua experincia vivida. Husserl e Edith Stein (18911942), sua aluna e assistente, mostram que h um imediato colocar-se em relao aos outros mediante a empatia (PEZZELA, 2003, p. 113). Segundo a mesma autora, ao falar dos escritos de Stein, necessria a abertura ao outro como um primeiro grau para a compreenso, possibilidade de entendimento, e s onde h a abertura e disponibilidade, existe a possibilidade de fundar uma comunidade que possa verdadeiramente dizer-se humana (p. 115).

    Ales Bello (2004) aborda a empatia/entropatia na relao entre os seres humanos, pois assim, reconhecendo no outro um outro eu (alter ego) o outro se manifesta como outro semelhante a mim: semelhante, no idntico (ALES BELLO, 2004, p. 118) e como modo no qual os sujeitos humanos se reconhecem reciprocamente tais, sujeitos e no objetos (ALES BELLO, 2003, p. 44) , manifesta-se a intersubjetividade e, conseqentemente, o reconhecimento da vivncia estranha. Simplesmente, no se trata propriamente de uma identificao, mas da possibilidade de uma proximidade (ALES BELLO, 2004, p. 119) no presente caso, a se destacar na relao entre o sujeito e o pesquisador. O ato da empatia, portanto, fenomenologicamente, :

    Um instrumento natural, imediato, tipicamente humano atravs do qual se consegue colher e compreender os outros seres humanos, as suas vivncias, os seus estados de alma, os sentimentos. No uma prtica que se aprende ou aplica quando h necessidade, mas co-natural ao ser humano, o que consente o compartilhamento de prazer e dor com outros de maneira imediata (PEZZELA, 2003, p. 110).

    Em relao ao papel da intersubjetividade e empatia, pode-se abordar a elaborao de

    Ales Bello (2003, p. 46) sobre uma aquisio gradual da conscincia prpria atravs de uma contnua troca com o outro. Como bem trata Ales Bello (2004): ns nos comunicamos no nvel das estruturas, mas no quanto aos contedos (p. 119-120) porque ns temos as mesmas estruturas, porm cada um vivencia contedos diferentes, especificidades prprias, peculiaridades prprias (p. 119). Husserl, ento, colocava que a importncia da vivncia estava na sua estrutura fundamental (essncia), que universal, no no contedo, este ltimo diverso de um ser humano para outro.

    De fato, quando me coloco em contato com aquele que considero outro de mim, mas semelhante a mim, alter ego, colho, intuo, apreendo, enfim empatizo aquilo que est vivendo, a sua vivncia; nesta apreenso eu me dou conta de que ele/ela est vivendo, por exemplo, uma emoo, um sentimento, ou simplesmente uma percepo, mas est vivendo tudo isso em primeira pessoa como fato totalmente originrio para ele ou para ela, mas no originrio para mim; para mim originrio somente o fato que empatizo a sua situao, mas certamente no vivo o contedo de sua vivncia que incomunicvel (ALES BELLO, 2007, p. 79).

    Uma comunicao entre a relao emptica e o momento da entrevista est naquilo que

    suscitado junto ao entrevistador pela experincia relatada do entrevistado, chamando sua ateno para o esclarecimento intersubjetivo que se faz num ir e vir dialgico. Seguindo um caminho diverso das conversaes comuns e cotidianas, orientadas em grande parte por um dilogo do tipo explicativo e informativo, h a importncia da curiosidade pela experincia vivida correlativa ao objeto, isto , a nfase para que a fala do sujeito acerque e adentre as suas experincias vividas. Ao mesmo tempo, alm da postura atenta do entrevistador, o interesse pelo seu objeto enquanto fenmeno deve estar focado, isto , ele reconduzir a entrevista para a experincia vivencial, caso haja o desvio para a experincia imprpria, contedos objetivados ou para temas alheios ao interesse da pesquisa.

    Neste caso, a entrevista acerca da experincia vivencial, busca, sobretudo, a fala autntica do sujeito, aquele silncio que se rompe e expressa no relato algo que parece uma

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    nova coisa des-coberta, provavelmente nunca dita nem refletida, que a vivncia. Assim como abordado por Amatuzzi (2001b), van der Leeuw (1964) remete ao ato de des-cobertura da vivncia, em que o fenmeno se revela progressivamente (p. 529); o fenmeno no um produto do sujeito, mas o fenmeno est junto de um objeto que se refere ao sujeito, e de um sujeito relativo ao objeto (p. 529). Vale destacar que a empatia uma questo implcita para essa entrevista fenomenolgica. O fenmeno recordado no momento da entrevista no a vivncia vivida novamente, mas trazida tona, com sua intensidade relativa e prpria. Contudo, s h tal possibilidade devido presena de um vnculo emptico entre o sujeito entrevistado e o entrevistador, este ltimo tambm atuante como pessoa atenta, indagadora e curiosa, sobretudo para poder compartilhar e testemunhar a experincia narrada do outro. O momento da entrevista permeado pela relao emptica entre os dois que se desdobra na possibilidade da intersubjetividade, isto , de um compartilhar algo essencial do movimento subjetivo. A empatia entendida aqui como uma vivncia, no como um estado psquico relacionado simpatia. Essa concepo tem como fundamento as anlises fenomenolgicas feitas por Edith Stein, que tratou o tema da empatia como objeto de sua tese de doutorado, publicada no formato de livro em 1917 (STEIN, 1998). A empatia, diferentemente de outras definies presentes na psicologia, uma vivncia que possibilita o reconhecimento do outro como outro eu, o dar-se conta imediato (irrefletido e, portanto, no representativo) de que o outro um ser humano, com possibilidades vivenciais iguais s minhas, mesmo que estas vivncias sejam em seus contedos divergentes. Dessa feita, no momento da entrevista h a possibilidade da abertura ao outro, sua experincia presente na narrativa, e de um momento de testemunho da vivncia do outro. Portanto, determinante uma preparao para o momento da entrevista e a elaborao de um roteiro de perguntas que permita o acesso experincia do outro.

    Amatuzzi (1992 e 2001a) aborda o tema da fala do sujeito, juntamente com a teorizao de Maurice Merleau-Ponty (19081961), com duas distines: a fala primria originria ou autntica e a fala secundria. Esta ltima seria uma fala repleta de pr-definies, opinies j conhecidas, como as chamadas frases feitas, o que caracteriza este tipo de fala como sem nenhuma novidade para o sujeito falante, um pensamento sobre pensamentos j realizados. A fala secundria se localiza na orientao pessoal ou existencial, isto , j no se enquadra num tipo de orientao natural, constituda de fatos e pr-definies do tipo causa e efeito, mas composta por contedos subjetivos, elementos que vo constituir a esfera da dimenso existencial, a qual objeto de identificao no momento inicial de sntese dos relatos (primeira etapa analtica deste tipo de pesquisa). J a fala autntica aquela que ultrapassa certo silncio e manifesta-se, durante o discurso, como algo novo tanto para o sujeito como para o pesquisador, ocupando uma orientao fenomenolgica. O relato nessa orientao permite que, aps tomado o conjunto de entrevistas submetidas ao cruzamento intencional, haja a emergncia do elemento constante e universal entre todas as experincias. Aponta-se, ento, para a presena da empatia desdobrada como apreenso intersubjetiva imediata como o movimento vivencial que possibilita tambm a apreenso e a diferenciao intuitivas de ambos os tipos de fala, justamente no momento da entrevista. Esse reconhecimento pode-se dar, eventual e inicialmente, a partir de elementos textuais presentes no discurso, como a utilizao dos pronomes pessoais em primeira ou terceira pessoa do singular e suas conjugaes prprias, o que pode apontar para a fala autntica ou a fala secundria, respectivamente. Outros elementos a serem percebidos podem ser o tipo de narrativa sobre a experincia, podendo ser mais um relato acerca da experincia, em que o sujeito a trata como objeto de reflexo, no ativando de fato uma recordao em primeira pessoa na tentativa de re-viver a experincia2. No obstante, esses elementos mais discursivos, mesmo podendo contribuir inicialmente para as anlises, no representam a atuao do movimento vivencial da empatia se desdobrando intersubjetivamente na compreenso da experincia alheia justamente naquilo que nela existe de compartilhvel, de estruturalmente comum, sendo este movimento mais implcito e indicando um tipo de apreenso

    2 Para orientaes relacionadas s estratgias em relao aos procedimentos de entrevista em pesquisa fenomenolgica, ver Stelter (2000).

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    e testemunho intuitivo por parte do pesquisador, o que significa to somente a captao do sentido manifesto.

    Todo o processo de anlise pode ser desenvolvido de maneira proveitosa, seguindo os pressupostos metodolgicos da fenomenologia, a partir de uma boa fundamentao e orientao da coleta dos relatos. Para isso, necessrio possuir um instrumento de coleta apropriado para que todo o fluir da narrativa esteja a todo o momento despertando contedos vivenciais, estes inseridos no contexto especfico da experincia dos sujeitos. A elaborao de um roteiro de entrevista aberto direcionado s experincias vividas, juntamente, e, sobretudo, com o papel do pesquisador/entrevistador para direcionar a entrevista para a prpria experincia do sujeito, so procedimentos de coleta que possibilitam o acesso s mesmas. Portanto, o esforo necessrio para a coleta do relato do sujeito condiz com a caracterizao do mtodo desde a elaborao do instrumento de coleta. De certo modo, a anlise fenomenolgica vem numa seqncia adequada aps a entrevista. A anlise o momento para se realizar a reduo fenomenolgica; na entrevista, ocorrem redues de outra ordem: so direcionamentos que emergem a partir da prpria resposta do sujeito. O momento da entrevista limita avanos e aprofundamentos de cunho mais analtico, ou seja, os aspectos essenciais da anlise da entrevista inspiram, mas no se confundem com os direcionamentos experincia no momento da entrevista. CONSIDERAES FINAIS Tematizar a entrevista fenomenolgica como um procedimento metodolgico em pesquisa qualitativa, orientada pela fenomenologia, possibilita ter como foco o processo como de pesquisa como um todo. Emerge-se da a presena implicada de todas as etapas da investigao, atentando para o rigor de se defini-las e articul-las adequadamente. Elucidar os aspectos essenciais implcitos neste instrumento de pesquisa, como o caso do vnculo emptico, possibilita perceber que, alm do rigor estrutural do fazer pesquisa, h o destaque e ateno para aquilo que humano, enfatizando uma dimenso tica fundamental, propsito das cincias humanas quando fiis atenciosidade pelo outro. Porm, o diferencial da perspectiva fenomenolgica justamente poder tematizar localizando, identificando, diferenciando, confirmando tanto o objeto foco da pesquisa, como os passos da mesma, sem escapar do mbito da mesma investigao. A elucidao de um dos passos da pesquisa, como foi a tentativa deste caso, permite observar toda a vinculao da investigao cientfica. Este movimento revela a preocupao constante com o rigor em pesquisa, a inteno de voltar s coisas mesmas. BIBLIOGRAFIA: ALES BELLO, A. Edith Stein: la passione per la verit. Pdova: Messaggero Padova, 2003. ______. Fenomenologia e Cincias Humanas: psicologia, histria e religio. Bauru: Edusc, 2004. ______. Luniverso nella coscienza: Introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: Edizioni ETS, 2007. AMATUZZI, M. M. O silncio e a palavra. Estudos de Psicologia, v. 9, n 3, p. 77-96, 1992. ______. Apontamentos acerca da pesquisa fenomenolgica. Estudos de Psicologia, v. 13, n 1, p. 5-10, 1996. ______. Pesquisa Fenomenolgica em Psicologia. In: BRUNS, M. A. T.; HOLANDA, A. F. (Orgs.). Psicologia e Pesquisa Fenomenolgica: reflexes e perspectivas. So Paulo: Omega Editora, 2001a. p. 15-22.

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