adriana armony e o desafio de construir um...

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[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano V - número 16 - teresina - piauí - janeiro fevereiro março de 2013] 1 ADRIANA ARMONY E O DESAFIO DE CONSTRUIR UM MUNDO: JUDITE NO PAÍS DO FUTURO Alfredo Monte MOTE “Entendo que para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores. Constrói-se um rio, duas margens, e na margem esquerda coloca-se um pescador, e se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha pena pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um pescador? Pesca... E depois o que acontece? Ou há peixes que mordem a isca ou não há. Se há, o pescador os fisga e vai para casa todo contente. Fim da história. Se não há, como ele é temperamental, talvez se irrite, talvez quebre a vara de pescar. Não é muita coisa, mas já é um esboço. Entretanto existe um provérbio indiano que diz: Senta-te à beira do rio e espera, o cadáver de teu inimigo não tardará a passar. E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver já que esta possibilidade está implícita na área intertextual do rio? Não se pode esquecer que o meu pescador tem uma ficha pena suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Que fará? (...) Com se vê, bastou mobiliar com pouca coisa nosso mundo e já se tem o início de uma história. Temos também o início de uma história. Temos também o início de um estilo, porque um pescador pescando deveria impor-me um ritmo narrativo lento, fluvial, escandido de acordo com sua espera, que deveria ser paciente,mas também de acordo com os sobressaltos de sua cólera impaciente. O problema é construir o mundo, as palavras virão quase por si sós...” (Umberto Eco, Pós-Escrito a O Nome da Rosa) I Tudo em Judite no País do Futuro (publicado pela Record em 2008) convidava ao clichê e à facilidade (mesmo se levarmos em conta as necessárias “pesquisas históricas”). Afinal, tratava-se de uma história de imigração, e de uma história sobre as agruras do povo judaico no século XX, e de uma história de gerações; ou seja, veios narrativos exaustivamente explorados, geralmente como “sagas familiares”. Além do mais, havia um aspecto ambivalente no sentido das possibilidades de aproveitamento romanesco: parte da história se baseava em experiências reais

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ADRIANA ARMONY E O DESAFIO DE CONSTRUIR UM

MUNDO: JUDITE NO PAÍS DO FUTURO

Alfredo Monte

MOTE

“Entendo que para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais

mobiliado possível, até os últimos pormenores. Constrói-se um rio, duas margens, e

na margem esquerda coloca-se um pescador, e se esse pescador possui um

temperamento agressivo e uma folha pena pouco limpa, pronto: pode-se começar a

escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um

pescador? Pesca... E depois o que acontece? Ou há peixes que mordem a isca ou

não há. Se há, o pescador os fisga e vai para casa todo contente. Fim da história. Se

não há, como ele é temperamental, talvez se irrite, talvez quebre a vara de pescar.

Não é muita coisa, mas já é um esboço. Entretanto existe um provérbio indiano que

diz: Senta-te à beira do rio e espera, o cadáver de teu inimigo não tardará a passar.

E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver—já que esta possibilidade está

implícita na área intertextual do rio? Não se pode esquecer que o meu pescador tem

uma ficha pena suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Que fará?

(...) Com se vê, bastou mobiliar com pouca coisa nosso mundo e já se tem o início

de uma história. Temos também o início de uma história. Temos também o início de

um estilo, porque um pescador pescando deveria impor-me um ritmo narrativo lento,

fluvial, escandido de acordo com sua espera, que deveria ser paciente,mas também

de acordo com os sobressaltos de sua cólera impaciente. O problema é construir o

mundo, as palavras virão quase por si sós...” (Umberto Eco, Pós-Escrito a O Nome

da Rosa)

I

Tudo em Judite no País do Futuro (publicado pela Record em 2008)

convidava ao clichê e à facilidade (mesmo se levarmos em conta as necessárias

“pesquisas históricas”). Afinal, tratava-se de uma história de imigração, e de uma

história sobre as agruras do povo judaico no século XX, e de uma história de

gerações; ou seja, veios narrativos exaustivamente explorados, geralmente como

“sagas familiares”.

Além do mais, havia um aspecto ambivalente no sentido das possibilidades

de aproveitamento romanesco: parte da história se baseava em experiências reais

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da avó da narradora. Não bastasse tudo isso, era ainda por cima o segundo

romance da autora, Adriana Armony, momento sempre delicado.

Por se basear numa ancestral, a autora carioca já tinha a pedra fundamental

da construção do mundo do seu romance. Também havia o “grão de sal”:

constatara-se na sua estreia no gênero, A Fome de Nelson (2005) certo pendor para

contrariar expectativas: tinha-se, ali, a junção Dostoiévski & Nélson Rodrigues

praticamente convidando ao hiperbólico, ao “carregado”, a uma coisa à Lúcio

Cardoso e, não obstante, ela nos apresentava um texto sóbrio até em excesso,

“medido”, de radical contenção, como se os três autores aludidos passassem pelo

ácido dissolvente de um Graciliano. Para o bem ou para o mal, foi uma opção

ousada e inesperada. Ela tinha a pedra fundamental para “mobiliar” seu universo, o

sempre extremado Nelson, e pelo que sei já o estudara com relação a Dostoiévski

em sua tese de doutorado, mas ao tomar a decisão de mostrar as conseqüências do

“cadáver passando pelo rio”, preferiu —pelo menos no campo estilístico-narrativo —

evitar certos recursos óbvios, a não ser num determinado nível paródico (um colega

de sanatório de tuberculosos de Nelson que adota o tom de Memórias do Subsolo).

Em seu segundo romance, novamente ela tinha não só o fundamento —a

personagem Judite— como certas práticas recorrentes na ficção, às quais poderia

recorrer com segurança. Não foi outra coisa o que fez Nélida Piñon em A República

dos Sonhos (1984), romance de imigração e gerações que se baseia fortemente nos

antepassados reais da autora, a qual colocou de lado quase que alegremente

quaisquer veleidades de ficcionista “experimental” (sua reputação até então) para se

valer dos mais batidos recursos dos best sellers e romances convencionais.

Antes de mostrar para o meu leitor se Adriana Armony consegue se furtar aos

confortos do esperado tão solertemente quanto o fez em A Fome de Nelson, preciso

ainda colocar mais um dado importante: ela é uma autora que gosta de contar

histórias, que gosta de narrar eventos. O que eu quero dizer é que, mais uma vez

sendo “contra a corrente”, ela não quer dissolver seus enredos e trajetórias de

personagens em uma escrita “intimista”, com as marcas de gênero que definiriam a

“escrita feminina”.

Adriana Armony é uma mulher que escreve romances. Parece rebarbativo e

tolo afirmar tal obviedade, mas creio que isso é muito importante, até por causa de

todos os estereótipos pós-Clarice Lispector que se delinearam na ficção brasileira

das últimas décadas.

Pronto: já coloquei os meus próprios fundamentos: tenho todo o equipamento

de que preciso para visitar e quiçá mapear o universo mobiliado de Judite no País

do Futuro.

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Pedra fundamental do universo, Judite nos é apresentada com o “destino

fechado”, pelo menos aparentemente. Em 1984, já a matriarca de uma família

formada no Brasil (“Tanta gente gravitara à sua volta”) , ela, que sente o peso da

velhice (“Meu Deus, as ausências já tinham chegado; os pequenos

esquecimentos, os lapsos, tudo aquilo que fazia os jovens se rirem por trás da

nuca dos velhos, agora tratados como crianças; agora tinha chegado a sua

vez”), sozinha no seu pequeno apartamento, sente-se mal, “abraçada pela

escuridão”. É a morte, a conclusão de uma trajetória que o leitor ainda não conhece,

aquela indesejada das gentes que “transforma a vida em Destino”? A princípio, não

se saberá. De todo modo, mesmo antes da onda de mal estar físico, o leitor pôde

perceber que a vida interior da macróbia Judite encontra-se bem desassossegada:

“Ela, que escapara de uma guerra, que criara os filhos sozinha, com a dureza

inevitável e certeira nascida do seu medo, olhava agora os galhos que saíam

do seu tronco como se fossem ramos de outra árvore, flores de um mundo

desconhecido.”

Após esse prólogo de poucas páginas, digamos, a colocação do pescador, da

pesca, e do “cadáver passando pelo rio”, o universo de Judite no País do Futuro

começa a se tornar elástico e verdadeiramente fluvial: recuamos para os anos 1910

(o ano-referência da primeira parte, Êxodo, é 1916, ou seja, no meio da Primeira

Guerra; e o espaço-referência é Tzfat, “típica comunidade judaica ortodoxa no

norte da Palestina”). Em cerca de uma centena de páginas, haverá vários

deslocamentos, muitas perdas de membros da família, fome, doença, opressão,

emigração (do pai) para o Brasil: “A decisão veio da mesma forma que vieram a

guerra, a fome e a doença da mãe: como uma fatalidade. O pai emigraria para o

Brasil, aonde diziam que a guerra nunca chegaria—um país que Judite

imaginava como um quadro vagamente borrado e exuberante, em tons de

verde e azul, onde se viam bichos ferozes e homens mansos”. E a “ficha suja”

do pescador, a marca: o judaísmo.

Todavia, apesar do seu dramatismo, e do virtuosismo conseguido pelo tom

conciso e cirúrgico com que Adriana Armony narra as desventuras da família de

Judite como representante do destino trágico de tantas famílias judias, não acho que

esse seja o ponto crucial de interesse dessa primeira parte. O que me encanta

nesse passo do relato é que, de forma sorrateira e não-linear, é delineado um

processo pedagógico, isto é, acompanhamos um sibilino e oblíquo “romance de

formação” de Judite (e que passa por—mas vai além—das dificuldades específicas

de educação de uma mulher, por conta das fortes tradições e preconceitos judaicos:

“Quando sua mãe a mandou pela primeira vez para o pequeno prédio azul e

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branco da escola, ele sentou-se na soleira da porta disposto a impedir que ela

saísse.”1).

“Olhos limpos e cabeça alerta”, Judite aproveita o sono do avô para ler

“espantada” as palavras sagradas, principalmente pela figura de Deus que se

desenha através delas: “Um sujeito tirânico, ciumento, cheio de malícia... talvez

bêbado!”, quer dizer, muito próximo do avatar de masculinidade que ela mesma

conhece bem, ali no seu rincão. E como qualquer pessoa imaginativa, ela toma

gosto por “inventar ou florear” histórias.

Ao mudar para a casa de uma tia, em Tveria (sob domínio turco): “Judite só

sentia falta dos livros: não conseguia nenhum desde que chegara. Mas logo

teve o que ler. Na casa particular onde foi trabalhar, encontrou textos bem

diferentes dos que havia na sua casa em Tzfat. Eram jornais e revistas,

traduções de romances franceses ou russos, narrativas de amor e de guerra.”

Enquanto parece que o mundo se encolhe, pela penúria e pelas perdas, ele—

disfarçadamente—também se expande. Com o filho da patroa, Israel, discute os

rudimentos do bolchevismo e da Revolução Russa (sem falar nas teorias da Física).

E do sionismo.

Armony não perde, entretanto, o foco sobre as necessidades básicas que

avultam na existência da jovem Judite e que são como que o limite do seu horizonte,

por mais que sua imaginação e seu intelecto tenham sido despertados: “Ela

trancava a comida que conseguia comprar e sempre levava a chave consigo,

com medo que os irmãos famintos a devorassem.”

A vida prática domina a história, nesse passo, pelo menos na superfície do

“universo mobiliado” (e os conhecimentos adquiridos por Judite são como brechas,

tornando poroso esse universo aparentemente monolítico). Também é interessante

que Judite pressinta a importância da memória, de ser aquela que guardará e

organizará a experiência vivida: “Às vezes, acontecia de Judite conscientemente

congelar uma cena qualquer e pensar: disso eu vou me lembrar. Em geral

escolhia momentos neutros, como quem desafia as leis da memória e do

esquecimento: as oliveiras molhadas pela chuva, a mãe cantarolando

distraída, o som da natureza ressoando nas sombras de uma rua.”

Embora os “fatos” se imponham. O cadáver boiando no rio continuará sendo

a necessidade de emigrar para o Brasil e reunir a família novamente. Antes disso,

sofrimento, morte e peregrinação (a narrativa nos leva para Constantinopla e para

Odessa). Nessas peripécias nada épicas, antes terríveis justamente pela falta de

ressonância épica, como se não fosse dado às mulheres viver aventuras

“verdadeiras”, Judite conhece o dr. Klausner, ideólogo do sionismo:

1 No Prólogo, aliás, Judite lembra brevemente da sua vida como professora que aplicava

métodos alternativos com os alunos, numa época bem mais tradicional e “careta”.

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“E ali estava a menina Judite , passageira de terceira classe, conversando

com aquele grande homem. Seu pai não acreditaria; ela mesmo não acreditava.

O dr. Klausner perguntou de que cidade ela era e se sempre falava em

hebraico. Sim, sua língua era o hebraico, embora ela também soubesse

iídiche. O iídiche, ele disse, era a língua do exílio, feita dos retalhos dos

sofrimentos da diáspora. Precisavam da pureza do hebraico, de edificar o

novo povo sobre a língua original dos judeus...”

Só que Judite não está destinada a esse esforço épico de fundação do novo

sobre o ancestral, embora essa perspectiva (e as discussões todas decorrentes

dela) roce sua trajetória algumas vezes. Ela está mesmo destinada ao êxodo e ao

exílio, e não ao retorno: “Em vez de participar da construção de uma nova terra,

lutava para se manter à tona...” E é assim que ela, enfim, chega ao País do

Futuro: uma moça que precocemente assumiu os encargos de cuidar de uma

família, e com esse peso todo nas costas, teve sua “educação” (no sentido

goethiano do termo) como que à revelia dos fatos.

III

A segunda parte, Exílio, tem como ano-referência 1942, e o Além Paraíba

como referência espacial da nova vida, “brasileira”, de Judite. Não deixa de ser

sintomático que a autora utilize novamente um ano marcado pela guerra mundial

(como não é por acaso que a Judite macróbia sinta mal estar em 1984, ano do

movimento das Diretas Já).

No início desta nova etapa, parece que a rotina e a regularidade finalmente

alcançaram —para o bem ou para o mal— a protagonista do relato, cuja trajetória

fora tão instável. Mas, entremeando-se à rotina e à regularidade, há como que uma

antecipação de fatalidade (a qual parece ser constitutiva da biografia de Judite), o

peso da “ficha suja” do pescador:

“As horas passam, parecem todas iguais. E, no entanto, devagar, como o

musgo que cresce nas frestas de uma pedra, alguma coisa se prepara.

As crianças correm pela casa. O relógio soa a cada hora, inevitável e

musical. Sentada na poltrona, Judite olha através da janela. Logo o marido

chegará para o almoço, trazendo uma goiabada comprada no caminho ou uma

nova amostra de tecido. Ele não está atrasado, não ainda, e Judite não precisa

se preocupar. Lá fora, sopra uma brisa suave. A cozinha está em ordem, a

roupa está em ordem. Ela espera.”

Ela espera. Portanto, há a expectativa de uma regularidade, de que tudo

esteja em ordem lá fora, como está em ordem na casa. As horas passam, e todas

parecem iguais. E no entanto...

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O marido de Judite, Salomão, é um pequeno comerciante. Eles têm três filhos (Uri,

Débora, José) e uma empregada “schwartze” (negra). Nossa heroína está longe da

pária que parecia destinada a ser no mundo das suas raízes.

Até chegar a este ponto, a vida fora insegura e trepidante. Vítima da úlcera

(consequência da má alimentação), Judite procurara tratamento no Rio de Janeiro

(inclusive um milagreiro), depois em Paris e em Jerusalém (o narrador não se

preocupa em nos explicar de onde vieram os recursos para tais viagens, após tantas

agruras econômicas, praticamente a miséria, na primeira parte, na qual a

movimentação geográfica era toda pontuada por privações, quando não

humilhações): “Naquela altura, a vida de Judite se concentrava toda no ponto

dolorido do seu estômago; como um ralo, ele absorvia seu corpo, suas

emoções, seus pensamentos.”

Um detalhe que não nos pode escapar é que, apesar da sua condição, Judite

continua interessada na discussão de idéias e ideais. Freqüenta conferências e ali,

em Jerusalém, conhece o futuro marido.

Confesso que achei a atmosfera política, tal como relatada nesse passo do

romance, meio confusa e precisei recorrer a pesquisas além-Judite no País do

Futuro. Apesar de sempre citar como uma máxima um trecho de Osman Lins

(“romance: mundo imerso no mundo”), essas pesquisas são o único momento

em que o “universo mobiliado” do romance de Adriana Armony se mostrou

desestabilizado, e mais que imerso no mundo, pareceu dependente do mundo de

referências extra-texto.

Felizmente, o cerne dessa segunda parte reside bem longe das contendas

entre árabes e judeus nos anos 1920-30, em Jerusalém. Interessa mais a tal

“estabilidade” conseguida por Judite e Salomão, e a qual, como toda situação

estável, comporta elementos de tédio e insatisfação, mesmo porque, como todas as

pessoas imaginativas, principalmente numa época burguesa, há um ingrediente de

“bovarismo” na nossa heroína (também há a comédia humana à volta dela, como o

desconhecimento dos brasileiros em geral sobre os judeus, ou as mazelas

matrimoniais de uma vizinha mais chegada, ou ainda as características próprias de

cada filho, e suas relações conflituosas, tudo isso fazendo parte da “vida besta”2)—e

2 Há um episódio expressivo, que concentra os pólos da cotidianeidade e de um certo

“estrangeirismo” com relação à vida de todo dia:

“Quando as batatas já haviam sido devidamente repartidas e todos já estavam comendo,

José soltou um grito terrível:

__ Minha batata!

__ O que aconteceu, filho? Queimou a boca?—sobressaltou-se Judite.

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eu uso o termo com o sentido de que as experiências parecem estar do outro lado

de uma grade (como se a nossa pessoa específica merecesse “experimentar

mais”—que será alimentado pela entrada em cena de João Ramalho, recém-

formado em direito (“trazia em si as marcas da cidade grande: uma

desenvoltura, uma largueza de movimentos e de pensamentos que

fascinavam”), com quem trocará leituras (enquanto joga xadrez com Salomão). E

as leituras compartilhadas, naquele mundinho provinciano, se tornarão atração

mútua (apesar de refugada por ela). O moço é insidioso: entre os livros que

empresta a ela está uma tradução de Ana Karenina! Seria um jovem Léon para uma

Emma Bovary de Além-Paraíba?

O que é importante notar é que aí temos o reverso da primeira parte: a ação é

concentrada e caseira, o tablado do palco por assim dizer se reduz, e de “romance

de formação” passamos ao romance da “educação sentimental” da personagem. É

como se da grande angular e da perspectiva histórica passássemos para o close up,

o plano mais fechado, e como se a história ficasse muito longínqua, mais um eco,

lida em manchetes de jornais: “dois navios nacionais foram bombardeados por

submarinos alemães; Stefan Zweig, o escritor de Brasil, país do futuro, matou-

se, com sua esposa Lotte, em Petrópolis, onde será realizado o sepultamento.

O nazi-fascismo estava fazendo suas primeiras vítimas no Brasil; mais cedo ou

mais tarde, a declaração de guerra seria inevitável.” E, sendo um eco intertextual

no próprio título do romance, a obra de Zweig também é pauta de conversação entre

Judite e o amante virtual.

__ O Uri pegou a minha batata!

Débora sorriu sadicamente.

__ O que aconteceu, Uri?—disse Salomão com didática calma—Você não sabe que

precisamos de tranqüilidade nas refeições?

__ Poxa, era só uma brincadeira.

__ Não está vendo que o seu irmão é pequeno?—disse a mãe, ríspida—Dê uma das suas

batatas para ele, Uri!

__Não adiante, não adianta—José estava inconsolável—Sempre vai ficar faltando aquela

batatinha. Mesmo que você me dê todas as batatas que existirem, aquela batatinha vai

ficar faltando!

À noite, ao lado do corpo sólido do marido adormecido, Judite não pôde deixar de pensar

no que José dissera. Por mais que tivéssemos coisas, por mais que substituíssemos o que

perdemos, aquilo, precisamente aquilo que perdemos ficava sempre faltando...”

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No penúltimo capítulo (dos nove que compõem essa parte do romance),

repisa-se o mote que iniciou a narração dessa fase da vida de Judite: “As horas

passam parecem todas iguais. Uri e Débora vão para a escola, deixando a casa

livre para a exploração de José. Salomão vai e volta do armazém, infatigável:

em época de volta às aulas, o trabalho dobra, produzindo uma feroz

objetividade de dia e um doce cansaço à noite.”

Com todo o bovarismo alimentado por um João Ramalho sempre presente,

nada aconteceu, as inquietações são todas íntimas, a vida exterior prossegue igual,

“besta”, e praticamente não é preciso se reportar à “ficha suja” do pescador: Judite

não precisou chegou aos confins do desespero como Stefan Zweig, que colheu mais

as “sombras” do País do Futuro do que sua luz. Ela também decerto não colhe o

lado mais luminoso, mas permanece numa área de indefinição, como que

anestesiada.

Depois de um tempo no Rio, João Ramalho volta. Sabendo disso, Judite

resolve comprar um vestido, enquanto o marido vai cobrar uma dívida de um freguês

arredio: “O que dirá se ele aparecer de súbito na sua frente? Não fará nada, a

não ser ficar parada na frente dele, engolida pelo seu novo vestido. E depois,

esperar... o quê? É claro que sabia; e isso a fazia sentir-se banal como uma

mulher de Stefan Zweig. Não, nada daquilo aconteceria, a cabeça pensou, mas

o corpo não respondeu.”

Não, nada daquilo aconteceria, mas porque, como uma personagem-

surpresa, aguardando nos bastidores (“algo se prepara”) desse palco tão estreito, a

fatalidade fará com que Salomão seja assassinado pelo devedor. Não é o romance

adúltero que movimentou tantos enredos, entre eles o de Ana Karenina, que vai

romper a “vida besta”, é o elemento trágico num momento em que ele parecia

sobremaneira ausente, neutralizado pela pasmaceira.

Cumpre, antes de abordar a terceira parte, levantar uma questão concernente

aos passos dados por Adriana Armony como escritora: se na primeira parte do seu

segundo romance, ela parece ter desejado mostrar-se dona de amplos recursos de

exploração de peripécias e um largo espectro temporal, não apenas no sentido de

quantidade de tempo, mas de eventos históricos ali contidos (e como que colados à

pele das personagens), ainda que ela recuse o colorido épico padrão (ou seja, ela

recusa a “saga”, a meu ver), na segunda parte, ela parece mostrar que, ao mesmo

tempo, não prescinde da exploração mais focada e centrada, como em A fome de

Nelson.

É importante atentar para esse movimento pendular, pois ele será crucial para

a aferição das qualidades da terceira parte.

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Proust chamou a atenção para a beleza de uma transição lacunar em A

Educação Sentimental de Flaubert3. Guardadas as devidas proporções, chamo a

atenção para o fecundo ”branco” que se observa entre a segunda e a terceira parte

(Proliferação) de Judite no País do Futuro: enquanto que da primeira para a

segunda, mesmo contando com um intervalo temporal significativo, havia uma

solidariedade forte, um elo cerrado, por assim dizer, entre os acontecimentos, o salto

da segunda para a terceira (que retoma o ano do prólogo, 1984, e tem como espaço

o Rio de Janeiro) é quase um salto mortal, no sentido da “formação” da personagem

e da constituição da sua interioridade para nós.

As alusões serão escassas, a Judite que se tornou viúva nos anos 1940 se

torna a senhora muito idosa que adoece nos anos 1980, mais precisamente na

fronteira entre a época da ditadura militar pós-1964 e a “democracia”, com a eleição

(indireta) de Tancredo Neves, quase em solução de continuidade. Nós chegamos a

ler um “relatório” da sua vida, mas parece que Judite mais se esconde nele do que

aparece. E o corolário, tão convencional (onde está o lado imaginativo da

personagem?): “não se tornara uma inútil: ajudara a criar os netos, depois de

ver com orgulho como seus filhos tinham se aplicado nos estudos e crescido

na vida”. No clímax dessa terceira parte, Judite vai desconstruir o relatório, a coisa

redondinha e acabada, indo atrás dos seus fantasmas.

Chega a ser angustiante para nós, leitores, a obliteração narrativa de 40 anos

da vida da heroína do livro (será que isso não é em si um comentário sobre uma

condição feminina não tão remota assim?; uma condição em que o papel de

protagonista é problemático, a não ser num plano “íntimo”). E em que medida o País

do Futuro se tornou o palco da vida de Judite pós-anseios bovaristas com João

Ramalho, quando ainda era “Exílio”? Não conheceremos o arraigamento, a vida

formada ali, a não ser pelos seus reflexos: os filhos, os netos. E eles, ao proliferarem

do tronco inicial, enfrentarão outras questões, as exigências de outras gerações,

3 “A coisa mais bela da Educação Sentimental não é uma frase, mas um branco. Flaubert

acaba de descrever, de contar, durantes páginas intermináveis, as mínimas ações de

Frédéric Moreau. Frédéric vê um policial avançar com sua espada sobre um insurreto que

tomba morto. Et Fréderic, béant, reconnut Sénécal. Aqui, um branco e, sem sombra de uma

transição, subitamente a medida do tempo tornando-se em vez de quartos de hora, ano,

décadas (retorno as últimas palavras que citei para mostrar essa extraordinária mudança

de velocidade, sem preparação):

Et Frédéric, béant, reconnut Sénécal.

Il voyagea. Il connut la mélancolie des paquebots, les froids réveils sous la tente etc. Il revint.

Il fréquenta le monde, etc…”

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outros tempos (apesar de haver um apêndice à história de Judite que de forma muito

sutil roça esse mistério atávico que é nossa ancestralidade...).

Já adianto que justamente por essa lacuna, quando encontramos Judite já tão

idosa e os filhos já com seus caminhos trilhados, além da “proliferação” (os netos), o

romance de Adriana Armony descostura e desestabiliza a tradicional narrativa de

gerações. É tudo muito abrupto, o Brasil se torna o País do Futuro de uma forma

inesperada, num salto de quatro décadas, para que haja aquela “sucessão” comum

nas histórias familiares. O que há é uma espécie de repto dessa transfusão

geracional, baseada na sucessividade e no confronto de valores e costumes,

justamente a base da “saga” familiar padrão.

Enquanto isso, parece inevitável que Judite morra4. As tensões rodeiam então

os filhos, já bastante maduros (no sentido etário, bem entendido); entretanto

enquanto eles nos conduzem pelo tema tão pungente e contemporâneo de como

lidar com o final dessas vidas que a civilização moderna permitiu (e no caso de

Judite, de um modo bastante irônico, se pensarmos nas suas “perdas” e na sua

trajetória) que durassem tanto (ou seja, como acomodar, nas vidas voltadas cada

vez mais para si mesmas, um genitor macróbio?), o relato vai no encalço da

proliferação que a sobrevivência de Judite propiciou: seus netos, Luísa, Mariana,

Carlos...

Tudo acaba confluindo em um comício pelas Diretas Já. O mundo mobiliado

se mostra a um só tempo amplo e encapsulado, pois é um evento catalizador,

mesmo que visto de forma parcelar. Novamente, a trajetória de Judite à órbita de um

fato histórico. Mas para ela (que “fugiu” da casa da filha) é como se fosse um sonho,

já é um “tempo histórico” do qual já não faz parte, nesse País do Futuro.

Em contrapartida, a narrativa pinça um momento-chave, um rito de

passagem, dos descendentes da imigrante: assim, temos a neta Mariana caindo

naquela cilada da adolescente deslumbrada (um garoto charmoso, metido a

“intelectual”, por quem ela foi ao comício, faz com que ela o chupe—é a primeira

experiência sexual dela—num canto fétido, e depois some na multidão), enquanto o

neto faz seu rito de passagem como “homem” ao espreitar a empregada (com a

cumplicidade dela), quando a família está toda ausente (à procura de Judite).

Tudo delineado a pincel fino, sem aquele peso detalhista que um romanção

de gerações daria, das mudanças de costumes e valores, das diferenças entre os

sexos, etc. A “lacuna” já aludida continua proliferando nas elipses que o texto

executa. No final, avó e neta estão no mesmo espaço, ambas “perdidas” de certa

forma (Judite não consegue chegar à rodoviária—ela tinha o vago plano de ir para

4 Não é o caso, no momento, mas seria interessante um paralelo entre a situação de Judite

nessa terceira parte e a da matriarca da família de Diner at Homesick Restaurant (1982), de

Anne Tyler, e suas repercussões na família.

Page 11: ADRIANA ARMONY E O DESAFIO DE CONSTRUIR UM …desenredos.dominiotemporario.com/doc/16-ensaio-AlfredoMonte.pdf · deveria ser paciente,mas também de acordo com os sobressaltos de

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Além-Paraíba, ou seja, em busca do passado, do qual não sabemos como se

distanciou; a neta, vagando por ali, ainda está sob impacto daquele momento

patético-crucial da sua “formação” como mulher contemporânea):

“Nunca conseguiria atravessar a avenida apinhada e chegar na rodoviária (...)

Além do mais, estava tão fraca! Alguma coisa se multiplicava dentro dela,

incontrolável, alguma coisa estranha que acabaria por roê-la inteira. E, no

entanto, tivera toda uma vida [só que ela resolveu ir atrás da vida que não tivera,

da miragem de uma existência paralela]; será que conseguiria morrer como os

velhos patriarcas, cercada pelos filhos, certa de que sua herança seria levada

adiante? (...)

Um rapaz passa puxando pela mão uma moça (é impressão ou é mesmo sua

neta Mariana?), o ar urgente de namorados. O amor continuaria seguindo seus

caminhos com seus abraços doces, sua garganta morta de sede.

Era bonita a multidão, agitando as bandeiras sob o céu glorioso e indiferente.

Como eram vivos, como faziam força para existi!

Terá tempo de encontrar um orelhão e ligar para casa. Mas não ainda. Queria

contemplar o futuro apenas por mais um momento.”

Ainda haverá um salto temporal, contudo não quero privar o meu leitor do

prazer da descoberta das últimas peças de mobília que Adriana Armony dispõe

nesse universo de distensão e concentração, de encapsulamento e proliferação, de

fatos e eventos, sonhos e fantasias, tão sólido e tão pronto a se desmanchar no ar.

Um dos universos mais belos de se percorrer da atual paisagem da ficção brasileira.

Alfredo Monte é professor e leitor, doutor em Teoria Literária e Literatura

Comparada pela USP. Escreve no blog Monte de Leituras.