adoção homossexual

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Adoção homossexual Podemos resumir do seguinte modo a linha de argumentação mais comum contra a adoção por parte de homossexuais: ainda que os casamentos entre homossexuais devam ser legalizados, porque a intimidade das pessoas só a elas diz respeito, não lhes deve ser permitido adotar crianças, porque: a homossexualidade é imoral, e viver com um casal homossexual pode fazer com que a criança se torne homossexual; independentemente de a homossexualidade ser ou não imoral, pode-se ver pelo comportamento de todas as outras espécies da natureza que as crianças devem ser educadas por um pai e por uma mãe; mesmo que a homossexualidade não fosse imoral e que uma criança pudesse ser feliz com um casal homossexual, há que levar em conta que tal criança seria gozada pelas outras, o que constituiria uma experiência traumática para esta. A homossexualidade é imoral? Viver com um casal homossexual pode fazer com que a criança se torne homossexual? Este é um mau argumento por duas razões. Em primeiro lugar, parece falso que o facto de ter pais homossexuais possa levar uma criança a tornar-se homossexual. Afinal, a maior parte dos homossexuais são filhos de casais heterossexuais, mas não se tornaram por isso heterossexuais. Que razão temos, então, para pensar que o facto de crianças heterossexuais serem educadas por casais homossexuais as levaria a tornar-se homossexuais? Em segundo lugar, suponhamos que, contra todas as aparências, por mais improvável que pareça, serem educadas por um casal homossexual leva as crianças a tornar-se homossexuais. E daí? Ser educada por um casal rabugento, ou que goste de música pimba, pode levar uma a criança a tornar- se rabugenta ou a gostar de música pimba. Será essa uma razão para impedir que pessoas rabugentas ou que gostem de música pimba adotem crianças? É óbvio que não. Do mesmo modo, mesmo que ser educada por um casal homossexual levasse a que uma criança se tornasse homossexual o que,

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Adoção Homossexual - Crónica

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Adoção homossexual

Podemos resumir do seguinte modo a linha de argumentação mais comum

contra a adoção por parte de homossexuais: ainda que os casamentos entre

homossexuais devam ser legalizados, porque a intimidade das pessoas só a

elas diz respeito, não lhes deve ser permitido adotar crianças, porque: a

homossexualidade é imoral, e viver com um casal homossexual pode fazer

com que a criança se torne homossexual; independentemente de a

homossexualidade ser ou não imoral, pode-se ver pelo comportamento de

todas as outras espécies da natureza que as crianças devem ser educadas por

um pai e por uma mãe; mesmo que a homossexualidade não fosse imoral e

que uma criança pudesse ser feliz com um casal homossexual, há que levar

em conta que tal criança seria gozada pelas outras, o que constituiria uma

experiência traumática para esta.

A homossexualidade é imoral?

Viver com um casal homossexual pode fazer com que a criança se torne

homossexual?

Este é um mau argumento por duas razões. Em primeiro lugar, parece falso

que o facto de ter pais homossexuais possa levar uma criança a tornar-se

homossexual. Afinal, a maior parte dos homossexuais são filhos de casais

heterossexuais, mas não se tornaram por isso heterossexuais. Que razão

temos, então, para pensar que o facto de crianças heterossexuais serem

educadas por casais homossexuais as levaria a tornar-se homossexuais?

Em segundo lugar, suponhamos que, contra todas as aparências, por mais

improvável que pareça, serem educadas por um casal homossexual leva as

crianças a tornar-se homossexuais. E daí? Ser educada por um casal

rabugento, ou que goste de música pimba, pode levar uma a criança a tornar-

se rabugenta ou a gostar de música pimba. Será essa uma razão para impedir

que pessoas rabugentas ou que gostem de música pimba adotem crianças? É

óbvio que não. Do mesmo modo, mesmo que ser educada por um casal

homossexual levasse a que uma criança se tornasse homossexual — o que,

como disse, é altamente improvável — essa não seria uma boa razão para

impedir a adoção por parte de casais homossexuais. Só pode pensar o

contrário quem estiver a partir do princípio de que o estado deve tomar posição

sobre que estilos de vida considera melhores, favorecendo-os em detrimento

de outros. Mas o estado não deve fazê-lo.

Este é um mau argumento porque, de modo a sermos coerentes, se não

permitíssemos que um casal homossexual adotasse uma criança porque as

crianças devem ser educadas por um pai e por uma mãe, então deveríamos

retirar a custódia dos filhos aos divorciados, aos viúvos e aos pais solteiros.

Como é óbvio, não devemos fazê-lo. Logo, o argumento não funciona.

Mas vejamos, ainda assim, a razão mais frequentemente avançada a favor

deste argumento: é antinatural casais homossexuais adotarem crianças: nunca

se viu focas ou elefantes homossexuais a adotar crias órfãs, por exemplo. Esta

foi a posição defendida por Miguel Sousa Tavares em vários artigos para

o Público, pelos quais foi justamente ridicularizado por Ricardo Araújo Pereira

no blog Gato Fedorento em 15 de Março de 2004, que observou que os cães

comem o próprio vómito, mas isso não é razão para o fazermos nós.

Vale a pena desenvolver pormenorizadamente esta resposta a Miguel Sousa

Tavares. O seu argumento padece do seguinte problema: procurar orientação

no comportamento de outras espécies não é boa ideia porque certas práticas

de outras espécies são más, e certas práticas que são apenas dos seres

humanos são boas. E é inconsistente procurar orientação no comportamento

de outras espécies para umas práticas, mas não para outras; logo não

devemos procurar orientação no comportamento de outras espécies. Dou de

seguida alguns exemplos: abandonar os velhos e doentes à sua sorte é prática

comum entre animais não humanos; é frequente as manadas de herbívoros

deixarem para trás esses elementos, não atrasando assim a sua marcha, o que

traria um risco acrescido de cair nas garras de predadores. Mas

consideraríamos imoral abandonar seres humanos velhos ou doentes à sua

sorte. Por outro lado, fazer transplantes de coração para salvar vidas é uma

prática exclusiva dos seres humanos — não há outra espécie que o faça; mas

é moral. Logo, o facto de uma certa prática ser ou não adotada por animais não

humanos é irrelevante para determinar se os seres humanos devem adotá-la.

Mesmo que a homossexualidade não fosse imoral e que uma criança

pudesse ser feliz com um casal homossexual, há que levar em conta que

tal criança seria gozada pelas outras, o que constituiria uma experiência

traumática para esta.

Segundo este argumento, ao adotar uma criança, um casal homossexual está

a causar-lhe dano porque a expõe à crueldade das outras crianças. Para ver

que este é um mau argumento, basta pensar no seguinte: uma criança branca

que fosse adotada por pais negros na América ou na África do Sul, quando

ainda havia segregação racial, seria gozada pelas outras crianças. Seria essa

uma razão para impedir que pais negros adotassem uma criança branca? É

óbvio que não.

Nem seria preciso dar um exemplo tão extremo. Basta pensar nisto: as

crianças podem ser muito cruéis, e provocam-se frequentemente por razões

mesquinhas e lamentáveis. Não é difícil imaginar crianças a gozar outras

crianças por terem pais numa cadeira de rodas ou cegos. No entanto,

obviamente, essa não é uma boa razão para impedir que pessoas cegas ou

que estejam numa cadeira de rodas adotem crianças.

Não devemos estar reféns da crueldade inevitável das crianças ou da

existência de preconceitos arreigados.

Em jeito de conclusão, é bom notar que os defensores da adoção por parte de

homossexuais não precisam de defender que é tão bom para uma criança

estar com um casal heterossexual como com um casal homossexual; precisam

apenas de defender que é melhor para uma criança estar com um casal

homossexual do que numa casa de acolhimento — o que parece óbvio. Porém,

Luís Villas-Boas, um dos responsáveis pela atual lei da adoção e diretor do

refúgio para menores Aboim Ascensão, declarou, em Março de 2004,

no Público, que é preferível que uma criança passe toda a vida numa

instituição ou em famílias de acolhimento do que sofrer a "infelicidade de ser

educada por homossexuais". Num comunicado de imprensa divulgado em 2002

pela Associação Americana de Psiquiatria, em que se pode ler que "A

investigação realizada ao longo dos últimos 30 anos mostrou consistentemente

que as crianças educadas por homossexuais ou lésbicas demonstram o

mesmo nível de desempenho emocional, cognitivo e social do que as crianças

educadas por heterossexuais. A investigação indica também que o

desenvolvimento ideal das crianças não se baseia na orientação sexual dos

pais, mas sim em laços estáveis com adultos dedicados e carinhosos."

A vontade de impedir a legalização do casamento entre homossexuais e da

adoção por parte de homossexuais deriva, em grande medida, de uma

tendência lamentável para tentar impor aos outros o estilo de vida que

consideramos melhor — uma tendência infelizmente entranhada na sociedade

portuguesa. A única liberdade que merece o nome, é a liberdade de procurar o

nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os

outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos seus esforços para o alcançar.

Cada qual é o justo guardião da sua própria saúde, tanto física, como mental e

espiritual. As pessoas têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe

parece bem a si, do que forçando cada um a viver como parece bem aos

outros.

Fábio Augusto Simões