adélia prado - antologia

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 Adélia Prado ANTOLOGIA Impressionista Ensinamento Dia  Objeto de Amar Pranto Para Comover Jonathan Parâmetro Poema Começado no Fim Exausto Explicação de Poesia sem Ninguém Pedir Casamento  A Serenata Com Licença Poética Dona Doida  A Maçã no Escuro Cantiga dos Pastores  Cacos Para um Vitral Corridinho Dolores Moça na sua Cama No Presépio  Os Componentes da Banda  Rodando IMPRESSIONISTA Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo. CASAMENTO Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil" "prateou no ar dando rabanadas " e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva. ENSINAMENTO Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: "Coitado, até essa hora no serviço pesado". Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

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 Adélia Prado

ANTOLOGIA 

Impressionista  • Ensinamento • Dia • Objeto de Amar • Pranto Para Comover Jonathan • Parâmetro •

Poema Começado no Fim • Exausto • Explicação de Poesia sem Ninguém Pedir • Casamento • A Serenata •Com Licença Poética • Dona Doida • A Maçã no Escuro • Cantiga dos Pastores • Cacos Para um Vitral  •

Corridinho • Dolores • Moça na sua Cama • No Presépio • Os Componentes da Banda • Rodando 

IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como "este foi difícil"

"prateou no ar dando rabanadas"e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vezatravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:somos noivo e noiva.

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.Não é.A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,ela falou comigo:

"Coitado, até essa hora no serviço pesado".Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.Essa palavra de luxo.

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 DIA

As galinhas com susto abrem o bicoe param daquele jeito imóvel

- ia dizer imoral -

as barbelas e as cristas envermelhadas,só as artérias palpitando no pescoço.Uma mulher espantada com sexo:

mas gostando muito.

OBJETO DE AMAR 

De tal ordem é e tão preciosoo que devo dizer-lhes

que não posso guardá-losem que me oprima a sensação de um roubo:

cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva.Quanto a mim dou graças

pelo que agora seie, mais que perdôo, eu amo.

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Os diamantes são indestrutíveis?Mais é meu amor.O mar é imenso?

Meu amor é maior,

mais belo sem ornamentosdo que um campo de flores.Mais triste do que a morte,

mais desesperançadodo que a onda batendo no rochedo,

mais tenaz que o rochedo.Ama e nem sabe mais o que ama.

PARÂMETRO

Deus é mais belo que eu.E não é jovem.

Isto sim, é consolo.Poema Começado no Fim

POEMA COMEÇADO NO FIM

Um corpo quer outro corpo.Uma alma quer outra alma e seu corpo.Este excesso de realidade me confunde.

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Jonathan falando:parece que estou num filme.

Se eu lhe dissesse você é estúpidoele diria sou mesmo.

Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passeareu iria.

As casas baixas, as pessoas pobres,e o sol da tarde,imaginai o que era o sol da tarde

sobre a nossa fragilidade.Vinha com Jonathan

pela rua mais torta da cidade.O Caminho do Céu.

EXAUSTO

Eu quero uma licença de dormir,perdão pra descansar horas a fio,

sem ao menos sonhara leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vidafoi o sono profundo das espécies,

a graça de um estado.Semente.

Muito mais que raízes.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR 

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,

mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,atravessou minha vida,virou só sentimento.

(in Bagagem)

A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerâniosele viria com boca e mão incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exproboo que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

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Quando ele vier, porque é certo que ele vem,de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta,

anunciou: vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa me casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza

e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.Minha tristeza não tem pedigree,

 já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina,

choveu grosso, com trovoada e clarões,exatamente como chove agora.Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos.Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove.

A MAÇÃ NO ESCURO

Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo,empilhado até o meio de seu comprimento e altura

com sacas de cereais. Eu estava lá dentro,era escuro, estando as portas fechadas

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como uma ilha de sombra em meio do dia aberto.De uma telha quebrada, ou de exígua janela,

vinha a notícia de luz.Eu balançava as pernas, em cima da pilha sentada,

vivendo um cheiro como um rato o viveno momento em que estaca.

O grão dentro das sacas, as sacas dentro do cômodo,o cômodo dentro do dia dentro de mimsobre as pilhas dentro da boca fechando-se de fera felicidade.

Meu sexo, de modo doce, turgindo-se em sapiência,pleno de si, mas com fome,em forte poder contendo-se,

iluminando sem chama a minha bacia andrógina.Eu era muito pequena, uma menina-crisálida.

Até hoje sei quem me pensa com pensamento de homem:a parte que em mim não pensa

e vai da cintura aos pés reage em vagas excêntricas,vagas de doce quentura de um vulcão que fosse ameno,

me põe inocente e ofertada,

madura pra olfato e dentes,em carne de amor, a fruta.

CANTIGA DOS PASTORES

À meia noite no pasto,guardando nossas vaquinhas,

um grande clarão no céuguiou-nos a esta lapinha.

Achamos este Menino

entre Maria e José,um menino tão formoso,precisa dizer quem é?

Seu nome santo é Jesus,Filho de Deus muito amado,em sua caminha de cochodormia bem sossegado.

Adoramos o Meninonascido em tanta pobreza

e lhe oferecemos presentesde nossa pobre riqueza:a nossa manta de pele,

o nosso gorro de lã,

nossa faquinha amolada,o nosso chá de hortelã.

Os anjos cantavam hinoscheios de vivas e améns.A alegria era tão grandee nós cantamos também:Que noite bonita é esta

em que a vida fica mansa,em que tudo vira festa

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e o mundo inteiro descansa?Esta é uma noite encantada,

nunca assim aconteceu,os galos todos saudando:O Menino Jesus nasceu!

CACOS PARA UM VITRAL

No caderno de Glória: um romance é feito das sobras. A poesia é núcleo. Mas é precisopaciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas,enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos. Será este pensamentovaidoso? Por certo. Quero ser um poeta extraordinário e desejo poder escrever umteatro muito engraçado pra todo mundo rir até ficar irmão.

Glória decifrou o garrancho na nota de um cruzeiro: "Ontem fiz quinze anos e fui aprimeira vez na Figueirinha. Dei Cr$ 50,00 pra mulher ela ainda me deu troco. Nãotava ruim nem bom."

Juca entrou esfregando as mãos: — Tá um frio de matar velho! — Se quer capote, nasegunda prateleira da cozinha tem. Juca bebeu e saiu. Tivesse ou não, brigado com aNaná, a cada dia ele bebia mais. Estará certo, pensou Glória, facilitar desse modo acachaça do Juca? Estarei sendo leviana? Estava.

Ritinha: — Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: — Ih! Choro até secar.

Glória ouviu de relance os peões almoçando na obra: — Rico tinha que nascer tudomorfético. — Tem rico legal, sô! — Tem não.

Ritinha chegando da escola: — Mãe, eu laía e a Fostina envinha. Ela envinha aqui? —Que é isso? Existe o verbo lair e envir? — A senhora também fala assim. — Falo

mesmo. — Então... — Então nada. É porque eu gosto muito da minha filhinha equando a gente gosta, chateia um pouquinho.

Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matildepediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim.

— Dona Glória, eu fiquei incurvida. — O quê? — É, sobrou pra mim a obrigação decatar neste quarteirão as esmolas pro Natal dos pobres. — Ah! — O apostolado, cujaeu sou membra é que me incurviu. — Entra, Fostina. — Não, se eu delatar, atrasa pramim.

A placa indicava na estradinha de chão: Sítio do AU PURO. Alguém tinha consertado:

Sítio do AR PURO. Gabriel parou o carro e escreveu em baixo, sítio do AL PURO. Nolugar voava sem pressa uma linda borboleta amarela e preta.

Copiado por Gabriel, do sanitário da rodoviária: PEDE NÃO HORINAR NO VÁS.

Remexendo papéis, Glória achou uma notação com sua letra: "retalho de poesia dáexcelente prosa." Não se lembrava mais por que escrevera aquilo. "Retalho de poesiadá excelente prosa, como retalho de hóstia dá excelente sopa", descobriu escrito maisembaixo. Ainda: "Privada pública" é uma impropriedade. Empregada chama as amigas

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invariavelmente de colegas. Deus é fiel, no entanto vacilo, amo com reservas, deixoque pequenas nódoas confundam minha alegria. Quando serei evangelicamentegenerosa, confiante como um menino para quem o Reino está preparado?"

Extraído do livro "Cacos Para Um Vitral", Editora Rocco, 1989.

CORRIDINHO 

O amor quer abraçar e não pode.A multidão em volta,

com seus olhos cediços,põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.O amor usa o correio,o correio trapaceia,a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,desembarca do trem,

chega na porta cansadode tanto caminhar a pé.Fala a palavra açucena,pede água, bebe café,

dorme na sua presença,chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.Mas água o amor não é.

Texto extraído do livro " Poesia Reunida ", Siciliano 1991. 

DOLORES

Hoje me deu tristeza,sofri três tipos de medo

acrescido do fato irreversível:não sou mais jovem.

Discuti política, feminismo,a pertinência da reforma penal,

mas ao fim dos assuntos

tirava do bolso meu caquinho de espelhoe enchia os olhos de lágrimas:

não sou mais jovem.As ciências não me deram socorro,

não tenho por definitivo consoloo respeito dos moços.Fui no Livro Sagrado

buscar perdão pra minha carne soberbae lá estava escrito:

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"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,se tornou capaz de ter uma descendência..."

Se alguém me fixasse, insisti ainda,num quadro, numa poesia...

e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,

das que jamais verão seu nome impresso e no entantosustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignasnão recusam casamento, antes acham sexo agradável,

condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabeloe varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus.

Extraído do livro " - Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991. 

MOÇA NA SUA CAMA 

Papai tosse, dando aviso de si,vem examinar as tramelas, uma a uma.

A cumeeira da casa é de peroba do campo,posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,

tomo a bênção e fujo atrás dos homens,me contendo por usura, fazendo render o bom.

Se me tocar, desencadeio as chusmas,os peixinhos cardumes.

Os topázios me ardem onde mamãe sabe,por isso ela me diz com ciúmes:

dorme logo, que é tarde.

Sim, mamãe, já vou:passear na praça em ninguém me ralhar.

Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,moa de moços no bar, violão e olhos

difíceis de sair de mim.Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,os moços marianos vão me esperar na matriz.

O céu é aqui, mamãe.Que bom não ser livro inspiradoo catecismo da doutrina cristã,posso adiar meus escrúpulos

e cavalgar no torpordos monsenhores podados.

Posso sofrer amanhãa linda nódoa de vinho

das flores murchas no chão.As fábricas têm os seus pátios,

os muros tem seu atrás.No quartel são gentis comigo.Não quero chá, minha mãe,

quero a mão do frei Crisóstomome ungindo com óleo santo.

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Da vida quero a paixão.E quero escravos, sou lassa.Com amor de zanga e momoquero minha cama de catre,

o santo anjo do Senhor,meu zeloso guardador.

Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

Extraídos de "Poesia Reunida", Editora Siciliano, 1991.

NO PRESÉPIO

Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vairepetir este ano: "Nada como um frango com arroz depois da missa". Minha irmã choraporque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar unsfestões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quersaber de encher a geladeira com mortadela e cerveja. Talvez, por isto, ou porque me

achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queriamuito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu queestremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eutambém. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora umsofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E aindaque quisesse, por destino, não posso. Este musgo entre as pedras não consente, émuito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia-noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estãopulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Voufazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da "luz que não fere osolhos" abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos,banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em

Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber ovinho da alegria, porque deste lugar, onde "o leão come a palha com o boi", estacerteza me toma: "um menino pequeno nos conduzirá".

Texto extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001.

OS COMPONENTES DA BANDA

O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigadobem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se asenhora quer vender umas panelas pra ela." Me desgostou muito a forma de pedir, opedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas

panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a doOsmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minhacara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, euos farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam nobarracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por queentão não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coraçãoexultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: aspanelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendoque eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor

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panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pratampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi umabondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventeium meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que odono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos sãolimpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha

desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxinanas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não.Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coraçãopedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigono que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, praDona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alhopagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisassesem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se mepedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entralá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim:"Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meuDeus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas ficodizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras

bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateadacom a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu viviaacudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agoraenvém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo maisuma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquersacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos daterra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive.Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: "do-o-na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?" Este batidodurou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depoisfoi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira comDona Alvina. Bibia falava: "mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a

senhora e o pai muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguromatutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa daAlvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, masonde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questãoda mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido maisedificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar ataxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que elearranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem selembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele éinteira.

Texto extraído do livro "Os componentes da banda", Editora Rocco, 1988

RODANDO

Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interiordo Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verderebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato!Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco,que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o courorodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado

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com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa deuma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu netotambém passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde?Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão deum jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube

Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA!Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúradas roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usaraquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e duplasertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos,lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada depalavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricandogozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados,lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, omundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não,quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tomdo choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertavaraivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava

muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botara menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodavamacio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem aomenos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostandosinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta.Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida porestar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmonascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas demiseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra,os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobrecaridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão depedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira

da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdadodaqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio:vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Paraisto vale nascer.

Extraído do livro "Filandras", Editora Record, 2001