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Adão, Eva e seu Carro: as Diferenças entre Homens e Mulheres no Processo de Decisão de Compra de Automóveis

Autoria: Roberta Dias Campos, Fabricio Molica de Mendonça Resumo

O caso descreve a véspera de uma importante reunião de estratégia da FIAT. O gerente de pesquisa reúne resultados das pesquisas sobre consumo feminino e masculino para apresentar aos demais executivos. Ele seleciona alguns trechos de entrevistas em profundidade, para fornecer uma leitura mais próxima da voz dos consumidores. As estatísticas da indústria apontam para uma crescente participação feminina na compra do automóvel familiar, porém este é um território historicamente masculino. As entrevistas desenham um quadro de consumo de gênero ainda mais complexo. O caso discute a relação gênero / consumo, e seus desafios e potencialidades estratégicos.

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INTRODUÇÃO

Marcelo Fantini, gerente de pesquisa da FIAT, tinha em cima de sua mesa as últimas pesquisas de mercado sobre um tema que há muito interessava à empresa: as diferenças entre homens e mulheres no consumo de automóvel. Muitas pesquisas realizadas pela própria FIAT ou mesmo noticiadas na imprensa apontavam para uma tendência entre as famílias brasileiras de maior participação da mulher nas decisões de compra do domicílio, mesmo naquelas categorias tradicionalmente dominadas pelos homens. Sem dúvida, a família moderna havia mudado muito nas últimas décadas, apresentando casos de inversão, mistura ou sobreposição dos papéis femininos e masculinos: mães que trabalhavam enquanto os pais cuidavam da casa, mulheres em profissões “masculinas” e homens em profissões “femininas”.

No setor automobilístico, essa situação era particularmente curiosa. No passado, a compra do automóvel era quase sempre protagonizada pelo homem, sendo uma categoria cercada de valores masculinos. Hoje, no entanto, as mulheres também ocupavam papéis importantes, assumindo muitas vezes um lugar central no processo de decisão de compra do automóvel familiar. As campanhas publicitárias da indústria, entretanto, ainda pareciam refletir o passado da categoria, relegando, muitas vezes, as mulheres a um papel secundário, sendo retratadas de maneira estereotipada como “objeto de desejo” masculino, que se torna mais acessível aos homens a partir da aquisição do consumo do automóvel.

No conjunto das pesquisas a serem analisadas, estava um trabalho recente desenvolvido por um núcleo de pesquisa de uma universidade. Basicamente, o material reunia e analisava o discurso e o comportamento de consumo de homens e mulheres a respeito do processo de troca do automóvel. Naquele momento Fantini procurava selecionar algumas falas das entrevistas em profundidade realizadas, que haviam chamado a sua atenção, na apresentação do relatório pelos pesquisadores. Por se tratar de um tema complexo, decidira adotar uma nova estratégia para discutir com a equipe de marketing, comunicação e produtos, no workshop que realizariam no dia seguinte. No lugar de apresentar resultados fechados das pesquisas, decidira apresentar extratos das entrevistas em profundidade, que o núcleo de pesquisadores realizara. A ideia era trazer de volta a experiência “viva” do consumidor para a “mesa dos executivos”. Fazer com que eles lidassem não apenas com os dados quantitativos das pesquisas, mas principalmente com o relato das experiências e dos processos de compra dos consumidores.

A partir dos extratos de entrevistas selecionados, Fantini pretendia discutir com os gestores alguns temas fundamentais para a estratégia da marca FIAT: homens e mulheres comprariam automóveis de maneira diferentes? Existiria uma lógica “feminina” no consumo do automóvel? Se sim, que aspectos eram fundamentalmente diferentes em relação à forma como os homens compravam seus automóveis? Haveria uma maneira única de falar a homens e a mulheres? Em que pé estaríamos hoje quase cinquenta anos após o movimento feminista? E como essa evolução vem se refletindo no consumo do automóvel. Fantini entendia que essa discussão poderia ter impacto em diversas iniciativas da empresa, que incluíam a estratégia de desenvolvimento de novos produtos, mas, principalmente, a comunicação e as abordagens de vendas nas concessionárias. O desafio estava em pensar o caminho para se comunicar com homens e mulheres dos dias de hoje no mercado automotivo.

ANTECEDENTES

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Com o movimento feminista e a entrada da mulher no mercado de trabalho a partir dos anos 60 e 70, a configuração de papéis de gênero dentro das famílias vem enfrentando contínuas modificações (Alves, 2000). Este movimento segue seu curso até os dias de hoje, onde as mulheres apresentam uma ampla presença tanto no universo profissional como no espaço de consumo, onde cada vez mais representam um importante tomador de decisão do domicílio. Uma pesquisa do Instituto Data Popular, publicada pelo site Infomoney, em 2011, apontou que 82% dos homens entrevistados admitem influência da mulher no planejamento doméstico, e 68% disseram que as mulheres influenciam até mesmo a compra de automóveis. A própria FIAT havia noticiado este movimento, em reportagem ao G1de 2008, quando afirmou que as mulheres influenciam cerca de 80% das compras de automóveis da marca e são responsáveis diretas por 42% das vendas de automóveis da FIAT no país. Números similares vinham sendo divulgados também por concorrentes, como a Volkswagen.

Diante das pesquisas recentes, parecia haver para Fantini uma clara ascendência da participação feminina na compra de automóveis, fosse através de influência sobre maridos e namorados, fosse por consumo próprio. E esta ascendência vinha crescendo. Se esse ritmo se mantivesse, na próxima década o consumo de automóveis entre as mulheres se tornaria tão grande quanto o dos homens. No entanto, atuar neste cenário não seria uma tarefa tão simples. Itens como espaço interno, compartimentos para armazenagem de objetos, espelho retrovisor para ver as crianças no banco de trás, por exemplo, atraíam as famílias nas concessionárias da empresa, e especialmente as mulheres. No entanto, em pesquisas anteriores, os executivos da FIAT haviam aprendido que nem sempre a mulher busca um carro inteiramente feminino, mesmo porque muitas vezes decide pelos homens da casa. Há que se pensar sobre como esta consumidora recebe e consome as mensagens da indústria, que está habituada a se comunicar majoritariamente com homens há décadas.

A categoria SUV (Sport Utility Vehicle) trazia mais elementos para pensar essa questão. São carros altos, com rodas grandes, tração 4X4, amplo espaço interno, e com design mais esportivo que as peruas e minivans para famílias. Este modelo havia trazido uma grande mudança no mercado, pois se tornaram uma alternativa, nos segmentos de luxo, aos modelos sedan, que por comparação, passaram a ser associados a “carro de tiozão”. Objeto de desejo entre os homens, nas pesquisas recentes, o SUV é associado à potência, presença, sofisticação e poder, mesmo mantendo traços de jovialidade. Os homens declaravam em pesquisas que finalmente podem ter um carro que lhes dava prazer e status, ao mesmo tempo em que transportam a família confortavelmente. Um entrevistado, em um focus group, explicou: “não precisamos mais abrir mão de nosso prazer de consumir carros esportivos quando temos família. Podemos ter um carro com cara de homem, mas que transporta todo mundo. A gente não precisa mais ser motorista de van porque casou e teve filhos”. No entanto, se as pesquisas mostravam a aderência dos homens ao consumo de SUV, as estatísticas de venda do setor apontam para a existência de um grupo de mulheres que se rendem ao segmento e passam a preferir este tipo de carro também. O que estas mulheres estariam buscando?

Havia vários desafios em todas essas páginas de pesquisa. Como líder de mercado no Brasil, a Fiat não podia ignorar essas questões. Queria aprender a se comunicar com as mulheres sem “perder a mão” com o mercado masculino. Com esta preocupação na cabeça, Fantini selecionou quatro extratos de entrevistas que representavam, para ele, exemplos importantes para pensar essa temática. Ele queria mostrar, com esse exercício, a complexidade do tema, que não pode ser entendido apenas na base da dualidade homem / mulher. Havia homens e mulheres muito diversos nas páginas das entrevistas e esta diversidade precisava ser entendida e trabalhada na estratégia da empresa. Antes de dar o dia por encerrado, resolveu reler os trechos de entrevista selecionados.

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Lara e seu primeiro carro

Aos 23 anos, Lara decidiu comprar o primeiro automóvel da sua vida. Morando com os pais no Rio de Janeiro, ela começava a dar os primeiros passos de sua carreira profissional em uma corretora de seguros. Sentia falta de um carro para viajar com os amigos e o namorado e ir à praia nos finais de semana. Acostumada desde pequena a andar em carros grandes - já que o pai, dono de pet shop, sempre teve picapes para carregar materiais - Lara sonha em um dia ter uma caminhonete ou jipe. Por conta de sua experiência, Lara associava muito o tamanho do carro a uma forma de se obter respeito no trânsito:

“Eu dirigi outros carros pequenos, Palio... e as pessoas gritavam: "mulher no trânsito". Porque você não tem experiência e tal. E quando você está com um carro grande, ninguém te fecha, ninguém reclama, ninguém nada... E eu falava, pai, com o carro do Senhor ninguém reclama de mim no trânsito...”

Quando começa a trabalhar, Lara pensa em juntar dinheiro para a compra do automóvel, mas acaba gastando seu salário em atividades de lazer como viagens e shows. Com o tempo, ela vai criando uma rotina de poupança e controle dos gastos, que lhe permite abrir espaço em seu orçamento para a compra de seu primeiro carro. Apesar de ter realizado a compra do carro com seu próprio dinheiro, Lara descreve com frequência o processo de compartilhamento da decisão com seus pais e namorado.

“Eu conversei muito com meus pais, com meu namorado, antes. E eu fiquei com muito medo. Se os meus pais não me apoiassem, e dissessem, não, Lara, não é a hora, por mais que eu achasse que era a hora, sozinha, eu não iria. Sou muito assim. Meus pais, por mais que eu tenha 23 anos, eles têm que dar o aval. No primeiro mês o meu pai falou, não, não vai comprar. Ele foi comigo até ver os carros nuns lugares, mas falou, não, não vai comprar, Lara. Eu falei, então está bom. Fiquei triste, mas está bom. E ele falou, não, agora a gente pode comprar este mês.”

Mesmo assumindo partes importantes da compra, como o pagamento e a negociação de preço na concessionária, Lara sempre descreve a presença e apoio do pai ou do namorado. Quando Lara decide concretizar a compra, foi o namorado, Márcio, quem fez o testdrive no carro, e insistiu que Lara experimentasse o Ford Ka antes de comprar. Depois de alguns dias de negociações por telefone com a concessionária, cujas idas e vindas eram compartilhadas com o pai, Lara concretizou a compra de seu primeiro carro, e no mesmo dia saiu para comemorar com os pais e o namorado.

Roberto e o carro de seus sonhos

Médico de 31 anos, casado e sem filhos, Roberto mora em Minas gerais com sua esposa, Sara – uma estudante de direito de 23 anos. Roberto descreve o carro como um bem de grande centralidade em sua vida.

“A gente sempre trabalha, e a gente sempre tem a ambição de ter um automóvel melhor, a gente sempre procura ter um luxo, um automóvel para gente poder viajar, para gente poder passear, então sempre que eu posso, dentro das condições, eu tento melhorar um pouco e ter um automóvel melhor.”

Desde cedo Roberto associava o automóvel a um sentimento de conquista, incentivado desde sua juventude por seu pai, através da promessa de um carro caso entrasse na faculdade

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de medicina:

“Foi uma das maiores emoções da minha vida, eu tinha passado no vestibular, e meu pai me prometeu um carro. Depois que eu passei no vestibular, no dia seguinte ele me acordou, me pedindo para vir no hospital com ele, porque ele tinha que passar uma visita, e aí ele mudou o trajeto e me levou na Fiat, quando chegou lá, tinha muitos Palios, e pediu para que eu escolhesse o meu carro, e aí eu não consegui nem falar, foi uma emoção maravilhosa.”

O carro marca diferentes momentos de sua vida e sempre é descrito com muita paixão e envolvimento. Cada novo modelo, cada nova compra é também um momento de realização e de prazer. Roberto cultiva uma paixão secreta por modelos de design mais destacado, planejando a cada nova compra uma aproximação do “carro de seus sonhos”, sonhos esses alimentados pela leitura de revistas especializadas e pela observação na rua e concessionárias.

“E eu era apaixonado por um New Beetle, e ai um dia eu fui lá e vi chegando um Beetle vermelho no Paulinho Automóveis, e ele me ligou e no dia que fui lá para ver, eu comprei. Já deixei o Punto lá, liguei para ela (esposa), e falei: “Ó, estou trocando o carro aqui”. Ai fui e peguei o Beetle, era um carro mais caro, melhor e era um carro dos meus sonhos. Pelo design, era um carro que eu adorava ver em revista e pelo design dele, pela beleza. Sabe o tipo de carro que passa na rua e todos olham, por ser um carro diferente.”

A compra de automóveis seguindo uma motivação hedônica culmina com a compra do Veloster, um carro novo, seu “novo sonho”, que o obriga a ter que achar um lugar para seu “sonho” anterior, o New Beetle. O vendedor como seu parceiro e quase cúmplice avisa da chegada de um exemplar do sonhado carro. E o New Beetle torna-se então o carro da esposa:

“Eu já tinha visto na televisão, eu estava apaixonado e o meu novo sonho era ter um Veloster, e ai o Paulinho me ligou um dia, dizendo que estava trazendo um Veloster lá de Goiânia, tinha acabado de lançar, veio em uma carreta cheia de balões, e no dia eu estava lá para resolver uma coisa do seguro do carro dela, e o carro tinha chegado. Aí o carro estava no alto, e todo mundo olhando, todos babando no carro, parecia que tinha acontecido um evento. Eu fui, deixei o carro dela lá, o Crossfox, passei o Beetle para ela e comprei o Veloster. Falei: “É meu, é meu, vou levar para minha casa, sem documento, sem placa, sem nada”. Trouxe ele pra cá, ficou guardado até colocar a placa e tudo.”

Ao longo da entrevista, Sara seguia comentando o relato de Roberto, pontuando a narração do marido com seu ponto de vista. Roberto, no entanto, segue falando de maneira independente, quase “surdo” às colocações da esposa, que conta, por exemplo, que preferia o Crossfox ao Beetle, demonstrando que o marido não a consultara sobre a troca. Durante a entrevista, a dinâmica de negociação no casal tinha um caráter hierárquico, onde Roberto, provedor da casa e apaixonado por carros, realizava uma gestão individual dos carros do casal, pautada por suas preferências pessoais.

Karla e o carro de status intermediário

Karla é uma advogada de quarenta anos, casada, e com uma filha de cinco anos. Ela é sócia de um escritório de advocacia paulista, sendo responsável por dirigir a filial do Rio de Janeiro. Seu marido é bancário. Em sua casa, o carro é comprado inteiramente por ela, que

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usa o veículo para os passeios de final de semana da família. O marido tem uma motocicleta para seus deslocamentos. Ao descrever o seu consumo de automóveis, Karla apresenta uma primeira visão mais pragmática, de um uso racionalizado e funcional do carro.

“Quando eu tinha 18 anos eu morria de vontade de ter um carro, para sair com as amigas, significaria sinônimo de status. Agora, nessa minha idade é conforto, porque você perde dinheiro. Hoje para mim carro é um utensílio, ele fica na garagem. Eu uso metrô para trabalhar. Eu uso carro no final de semana para passeios.”

“Eu não sou individualista, mas como ele não contribui muito, ele não dá muito palpite. Ele falou: você que vai pagar, você resolve.”

Há três anos, Karla conta que se “apaixonou” pelo Sentra através da propaganda de televisão. Seus primeiros meses de satisfação com o carro são abalados pela experiência com a primeira revisão. A concessionária lhe apresenta uma conta de oito mil reais na revisão em seu primeiro ano de uso. Karla resolve então vender o carro e se surpreende com o preço de revenda oferecido pela própria Nissan: um terço do valor original. A consumidora recorre então ao vendedor da Honda que havia lhe vendido um Honda Fit anos antes. Combina a venda do Sentra e a compra de outro Honda por telefone, sem nenhuma participação ou comunicação com o marido:

“Eu comprei o meu carro quase por telefone. Estou indo ai, quero um carro assim, assim e assim, eu fui para comprar outro Fit, mas como eu gostei do Sedan, eu vi o City e gostei.”

Ao descrever seus carros, Karla faz também um paralelo com as diversas fases vividas em sua vida. O carro sedan representa um estágio mais maduro em seu ciclo de vida pessoal e familiar. Além disso, o carro cumpre uma função de apresentação profissional, seguindo, no entanto, um parâmetro aceitável de gasto. É um modelo com um luxo que “dá conta do recado” sem precisar comprar o modelo mais caro da linha. Ela explica que depois da experiência do Sentra, opta por não realizar mais compras emocionais e busca um equilíbrio racional no seu consumo de carro:

“A coisa da idade, virei “tiazona”, não sou mais adolescente, eu sou mãe, profissional, é outro estagio da vida, você amadurece, é o perfil que me encontro hoje. Essa é a prioridade, por que optei? Por isso, pela questão profissional, você precisa ter um carro apresentável, que é superior aos demais. O City é o mais simples dessa linha. É o mais simples, que dá conta do recado.”

Fernando e a paixão racional

Fernando é um engenheiro de trinta e dois anos, brasiliense que se mudou para o Rio de Janeiro a trabalho e acabou conhecendo a namorada, Isa, uma curitibana de trinta anos com quem mora há seis meses, depois de dois anos de namoro. No começo do relacionamento, Fernando tinha um Corolla e Isa um Idea, mas quando decidiram morar juntos, Fernando optou por vender seu carro:

“Resolvi ficar com um carro só, não era muito racional. Aí vendi o Corolla, porque ela tinha garagem e eu não tinha. Eu fui para o apartamento dela, pela questão da garagem.”

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Ao descrever seu processo de decisão, Fernando inicia com uma longa descrição dos modelos considerados, comparados em planilhas, mas por fim, ao longo da entrevista, mostra que deixa de lado os argumentos racionais de conforto e segurança que havia estipulado para si mesmo e parece tomar uma decisão mais emocional:

“Eu pelo menos não presto atenção, se eu estou procurando para comprar, fico olhando carro na rua, senão eu desligo. Aí achei este carro bonito, fui na Mitsubishi, fiz o testdrive, fiquei num dilema, porque não era o melhor custo / benefício, comparado com o Renault Fluence que é um carro de 80 mil, mas que tem tudo. Tinha um carro compatível com os mesmos acessórios, mesma segurança, mesmo conforto, perdia na questão design, mas a diferença de preço era muito grande.”

O trecho abaixo nos dá um indício importante do que estaria por trás do processo de decisão de Fernando ao comprar o ASX da Mitsubishi:

“A Nissan tem um convênio com a Petrobrás e tem desconto, mas aí fiz o testdrive e não achei nada demais assim. Não era um carro que iria me dar prazer. Se eu quisesse um meio de transporte, acho que era ele, mas queria prazer.”

Isa, a namorada de Fernando, parece ter bastante influência no processo de decisão da compra do carro do casal, inclusive fazendo Fernando considerar uma nova categoria de veículo.

“A Isa não gosta (de Sedan), ela fala que é carro de velho. Ela queria um carro mais alto. Cheguei a olhar aquele da Ford, é bonito para caramba, o Fusion. Aí ela: “um carro mais alto”. Na verdade, mulher é difícil saber o que elas querem, cada hora elas querem uma coisa. No começo ela queria um carro barato, não vai gastar dinheiro com carro que não vale a pena. E ela está certa. Mas, depois ela falou, já que você vai gastar, que compre um carro alto. Aí eu vi que (o SUV) é um carro que tem mais a ver com a gente.”

Contudo, apesar de tentar escutar e respeitar o ponto de vista da namorada, ele parece hesitante entre os desejos dele e as ponderações dela, tentando encontrar um equilíbrio entre o que ambos procuram: ele “prazer” e ela “transporte”. No fim, mesmo cedendo um pouco na escolha entre Sedan e SUV, Fernando parece ter a palavra final na decisão, insistindo na compra de um carro mais caro e com aparência mais masculina, que pudesse lhe dar o prazer que ele buscava.

“Ela queria um meio de transporte, mas viu que não ia me demover da ideia... A gente viu o Sportage e o Kia Soul, ela até gostou, mas eu achei carro de menina, feminino. E agora ela está feliz da vida com o carro.”

A DISCUSSÃO COM O GRUPO

Ao encerrar sua leitura, Fantini pensava o quanto havia a discutir no workshop do dia seguinte. Enquanto saía do escritório, procurava listar os pontos que seriam centrais e precisam ser amadurecidos pelo grupo. Mulheres estavam liderando a decisão? Ou os homens ainda são os capitães deste mercado? Ou ainda haveria uma negociação democrática entre os

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dois lados? Seria tão democrática assim? O crescimento da participação das mulheres no mercado consumidor de automóveis não podia ser ignorado, mas como aproveitar essa oportunidade sem fazer com que os homens se sentissem deixados de lado? Além disso, qual seria o equilíbrio estratégico ideal?

Mais do que um debate sobre consumo de homens e mulheres, Fantini sabia que no dia seguinte o grupo se depararia com uma questão particular. No consumo de automóvel, homens e mulheres se encontravam, atravessavam fronteiras de territórios de gênero, realizavam movimentos de imitação e de diferenciação uns dos outros. O processo de decisão da compra do automóvel parecia ser o palco de intensas negociações de papéis e significados sociais, compondo uma intricada trama, de limites frágeis. Uma boa estratégia precisava entender os dois lados, mas acima de tudo, era essencial aprender a navegar nas fronteiras.

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NOTAS DE ENSINO

Resumo

O caso descreve a véspera de um importante workshop de estratégia da FIAT, em que o gerente de pesquisa reúne resultados das pesquisas sobre consumo feminino e masculino, para apresentar aos demais executivos. Ele opta por levar trechos de entrevistas em profundidade, para fornecer uma leitura mais próxima da voz dos consumidores. As estatísticas da indústria apontam para uma crescente participação feminina na compra do automóvel familiar, porém este é um território historicamente masculino. As entrevistas desenham um quadro de consumo de gênero ainda mais complexo. O caso discute a relação gênero / consumo, e seus desafios e potencialidades estratégicos.

Objetivos educacionais

Este caso pode ser usado em cursos de mestrado e programas executivos, em disciplinas como comportamento do consumidor, pesquisa de marketing, ou gerência de marketing. Ele tem como objetivo suscitar uma discussão sobre gênero e consumo, através da exposição dos alunos a resultados de pesquisas que apontam para um cenário de ambiguidades e conflitos. Sua utilidade está em aproximar a agenda estratégica da empresa de questões contemporâneas e estruturais do comportamento do consumidor. Neste sentido, os objetivos específicos de ensino do caso incluem:

• Explorar o efeito das transformações da estrutura de gênero ao longo das últimas décadas e seu impacto na revisão das práticas de posicionamento e segmentação da indústria automobilística.

• Estimular a postura crítica sobre a questão de gênero, através da substituição de uma visão essencialista e universalista do conceito, por uma abordagem relativista, que permita enxergar a complexidade do fenômeno.

• Introduzir conceitos que permitam pensar como inserir a questão de gênero dentro do processo de marketing, como o trickle-down (McCracken, 2003) e a noção de negociação de fronteiras (Avery, 2012).

• Familiarizar os alunos com o universo das pesquisas qualitativas através do exercício analítico de trechos de entrevistas em profundidade.

Fonte de informações

As informações utilizadas para a elaboração deste caso de ensino foram obtidas de fontes primárias e secundárias. Entre as fontes primárias estão entrevistas com os executivos Marcelo Fantini e Cely Cordeiro, do departamento de pesquisa de mercado da FIAT, e de entrevistas feitas com consumidores de carros entre os meses de Janeiro e Julho de 2012. As fontes secundárias incluíram websites de revistas, artigos acadêmicos e outras fontes de informações sobre o comportamento do consumidor de carros e em geral.

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Temas centrais para discussão

1. Que características, atitudes e normas são tradicionalmente associadas ao comportamento masculino? E ao feminino?

2. Que papéis são usualmente associados aos homens? Que papéis estão relacionados ao feminino?

3. De que maneira os aspectos relacionados ao gênero influenciam o consumo em geral? E o consumo de automóveis? Homens e mulheres são diferentes nos seus processos de consumo?

4. De que maneira as mudanças culturais sofridas nos últimos cinquenta anos afetam as categorias de gênero na nossa sociedade?

5. Como os desafios contemporâneos relacionados a gênero afetam a categoria de automóvel? Que estratégias de marketing vêm sendo desenvolvidas por montadoras para lidar com as questões de gênero?

Plano de ensino sugerido

Gênero é um dos mais importantes critérios de segmentação em marketing. Assim, para a abertura do caso, o professor deve levar os alunos a pensar, a partir da prática das empresas, o que constitui a segmentação por gênero e suas implicações. Ao elencar diferentes produtos que tendem a se especializar em função dos gêneros (por exemplo, nutrição, saúde, cuidado pessoal e estética), o professor deve estimular os alunos a compreender que mais do que em aspectos biológicos, a questão de gênero está centrada em definições culturais e que podem variar de categoria para categoria.

A) Estruturando diferenças: A turma pode caminhar a partir de uma discussão inicialmente polarizada, estabelecer diferenças em atitudes, normas, papéis e processos de consumo que estejam presentes em uma abordagem tradicional de gênero. Que características, atitudes e normas são tradicionalmente associadas ao comportamento masculino? E ao feminino? Que papéis são usualmente associados aos homens? Que papéis estão relacionados ao feminino? Homens e mulheres seriam diferentes nos seus processos de consumo? A discussão pode levar o professor a construir um quadro similar ao apresentado abaixo:

Masculino Feminino

Identidade de gênero Independência, assertividade, orientação para objetivos competitividade, controle, força, razão, materialismo, orientação instrumental.

Interdependência, compreensão, cuidado, orientação para processos e relacionamentos, integração social, alimentação, consideração, intuição.

Papéis de gênero Protagonista no consumo de tecnologias e bens duráveis.

Protagonista no consumo de beleza, lazer e de presentear.

Processo de Consumo Busca de informação mais objetiva (centrada em poucos

Diversidade de critérios e aspectos analisados no

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critérios e pistas). processo de escolha.

B) Relativizando a visão universal de gênero: Depois de construir essas visões baseadas no ponto de vista dos alunos, o professor deve servir como elemento de questionamento das visões estruturadas de gênero, levando os alunos a refletirem sobre mudanças, novas fronteiras e “apropriação” de significados de outros grupos (momentos em que mulheres buscam se apropriar dos significados masculinos e vice-versa).

C) Categorias marcadoras de gênero e iniciativas de travessia de gênero: O professor pode ainda realizar uma discussão sobre as categorias que são tradicionalmente utilizadas pelos atores marcadores de gênero, como moda e beleza para mulheres e automóveis para homens. Este levantamento pode conduzir a uma reflexão sobre exemplos de empresas que posicionaram suas marcas e produtos para o gênero oposto, por exemplo, marcas de cosméticos para homens ou marcas de cervejas femininas. Ou ainda grupos de consumidores do sexo oposto que passam a consumir categorias marcadoras do gênero oposto. O professor pode buscar comparar essas iniciativas de travessia de gênero pelas marcas e consumidores e discutir suas especificidades. Existem diferenças entre marcas masculinas que se feminizam e marcas femininas que se masculinizam? Que efeito essas práticas exercem sobre as marcas?

D) Estratégia e gênero: Por fim, os alunos devem ser levados a relacionar as questões de gênero e as iniciativas estratégicas empresariais, refletindo sobre como as estratégias de marketing devem lidar com as nuances da questão de gênero contemporânea. O professor deve levar os alunos a refletirem particularmente dentro do contexto específico da indústria automobilística, identificando de que forma a questão de gênero pode exercer um papel chave para a definição estratégica da empresa.

Análise do caso com suporte da literatura

Questão 1. Diferenças e semelhanças do significado do automóvel para homens e mulheres

O movimento feminista e as revisões dos significados de gênero em nossa sociedade nas últimas décadas têm feito os papéis de homens e mulheres convergirem em muitas esferas, e assim como os homens estão conhecendo mais os produtos domésticos, as mulheres estão aprendendo a comprar carros, aparelhos eletrônicos e ferramentas elétricas (Crispell, 1992). Nessa busca por igualdade de sexos, o consumo parece exercer um papel fundamental, não apenas psicologicamente, mas socialmente. Histórica e culturalmente, a categoria de automóveis tem sido dominada pelos homens, que apresentam um envolvimento emocional com essa categoria bastante acima da média. Existem poucas posses tão importantes para um homem adulto quanto seu carro (Belk, 2004).

Nesse sentido, os homens ainda detém grande parte do interesse e conhecimento sobre a categoria, o que os torna uma referência na compra para grande parte das mulheres. Belk (2004) afirma que o sexo masculino em geral apresenta uma identificação extrema com automóveis, e isso faz com que muitos utilizem o consumo da categoria como uma forma de expressão pessoal. Muitos homens tratam seus carros como se fossem seres vivos, como se fossem uma amante ou criança, e ao contrário da maioria das mulheres, para os homens a categoria de automóveis funciona também como ferramenta de socialização (Belk, 2004). Dessa maneira, podemos afirmar que a relação do sexo masculino com seus carros parece ser

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muito mais próxima, relevante e emocional do que para o sexo feminino (Avery, 2012).

O professor deve abrir a discussão buscando elencar com os alunos os significados do automóvel para os diferentes entrevistados, buscando estabelecer os limites entre os significados para homens e mulheres. Há especificidades, semelhanças, diferenças na maneira dos entrevistados de verem seus carros em particular e a categoria em geral? O entrevistado Fernando, por exemplo, apresenta uma postura racional de decisão, e ao longo da entrevista, parece se apaixonar pelo seu veículo, ao contrário de sua esposa. Para Roberto, o automóvel é a realização de um sonho, a compra de um objeto de desejo. Lara, por outro lado, sonha, mas espera os cálculos indicarem que é o momento de comprar. Karla encara o carro de maneira utilitária, como veículo de status profissional, mas ao reconhecer que esse status é mais para os outros do que para ela, a consumidora opta por um carro intermediário, deixando seu dinheiro livre para outros consumos percebidos por ele como mais relevantes.

Questão 2. Que categorias e princípios culturais regem o consumo de gênero na categoria de automóveis? O que podemos dizer que é específico de homens e de mulheres a partir das entrevistas?

Segundo McCracken (2003), a cultura, como sistema classificatório da realidade, ordena a experiência humana segundo sistemas de valores específicos a cada grupo sociocultural. As categorias culturais são coordenadas fundamentais de significado, que apresentam as distinções básicas utilizadas pela cultura para organizar a realidade. Por exemplo, cada cultura constrói suas próprias categorias culturais para organizar, por exemplo, o tempo, status social, gênero, idade e ocupação. Apesar de invisíveis, as categorias culturais são estruturantes para a organização das práticas humanas. Os princípios culturais são as idéias organizadoras segundo as quais as categorias culturais são constituídas. É através dos princípios que os fenômenos podem ser classificados, comparados e organizados. Assim, quando o vestuário apresenta uma diferenciação homem / mulher (duas categorias culturais distintas), ele traz também elementos da natureza desta distinção (delicadeza / força), que são os princípios culturais.

Tomando as noções de categorias e princípios culturais, o professor deve convidar os alunos a construírem um sistema classificatório do gênero masculino e feminino, a partir das entrevistas, seja com base no exemplo do próprio entrevistado ou de pessoas que ele descreve (esposa, pai, namorado). Assim, em um primeiro momento, o grupo passa a discutir características específicas e pontos de diferenciação para homens e mulheres, chegando aos princípios culturais mais gerais. Possivelmente, os alunos trarão exemplos que logo serão confrontados a contraexemplos (Ex: a mulher é mais voltada para a família / Karla é uma alta executiva e o seu carro é um símbolo de boa advogada).

Esse movimento abre a discussão para um segundo momento do exercício, em que os alunos podem construir categorias e princípios dos diferentes tipos de feminino e masculino. A ideia com esse exercício é construir um sistema de gênero com mais nuances que a simples distinção homem / mulher, mostrando que há maneiras diferentes de ser mulher e de ser homem. Um caminho de análise para as categorias de feminino, como exemplo, pode se inspirar no quadro abaixo, e o mesmo exercício pode ser realizada para as categorias de masculino:

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Categorias culturais de

feminino

Mulher totalmente

independente

Mulher aprendiz Mulher negociadora

Mulher dependente

Princípios culturais

ordenadores do feminino

Responsável por seu próprio

sustento, que tem um projeto

de consumo individual.

Responsável pela compra, mas toma a

decisão amparada no

aconselhamento masculino.

Mulher autônoma

financeiramente, mas que constrói

patrimônio de maneira coletiva.

Mulher dependente

financeiramente, que vive uma relação onde o marido toma sozinho as decisões.

Exemplo nas entrevistas

Karla Lara Esposa de Fernando

Esposa de Roberto

Essa discussão pode buscar retornar, a partir da construção de categorias de feminino e

de masculino, ao debate das categorias de gênero mais amplas. Há elementos específicos das mulheres e dos homens em geral? Elementos como a função do aconselhamento, a relação entre sustento financeiro e liderança da discussão, a função de provedor podem ser trazidas a tona para serem pensadas. Essa discussão pode conduzir ainda a uma discussão de categorias culturais de casais, pois as categorias femininas e masculinas dialogam em uma negociação familiar específica. Dessa maneira, a discussão se adensa ao incluir uma reflexão sobre os processos de negociação entre homens e mulheres.

Categorias culturais de

casais

Interação democrática

Interação unilateral masculina

Interação demarcada

Princípios culturais

ordenadores

Decisão compartilhada no casal, com

pesos equivalentes para a voz

masculina e feminina. O sustento

financeiro da casa também é compartilhado.

O homem conduz o

processo de consumo dos

carros do casal.

O homem é o responsável pelo

sustento financeiro do

domicílio.

A mulher conduz o

processo de consumo do

carro familiar, sem escutar o

marido por este não participar

financeiramente da compra do

carro. Cada um tem um terreno

próprio. Exemplo nas entrevistas

Fernando e esposa

Lara e namorado

Roberto e esposa

Karla e esposo

Por fim, os alunos podem ser convidados a pensar a categorização dos espaços de compra e consumo de automóvel (a concessionária, o trânsito, a internet, a oficina mecânica) e buscar responder, para encerrar esse bloco, que valores de gênero são predominantes nestes espaços. Ou seja, mesmo que as mulheres se façam cada vez mais presentes durante a compra, em espaços como o trânsito, elas precisam se disfarçar em carros grandes para passarem por homens e serem respeitadas.

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Questão 3. O que poderia explicar a dinâmica da interação entre homens e mulheres no ambiente de consumo?

A literatura de gênero oferece algumas chaves de leitura para discutir os espaços de encontro e negociação entre categorias de gênero. As dinâmicas apresentadas por estes conceitos podem nos auxiliar a projetar a dinâmica que pode estar em operação no mercado de automóveis. O primeiro destes conceitos é a noção de trickle-down (McCracken, 2003) que surge para descrever a dinâmica presente no mercado de moda, mas que pode ser usado para pensar interações de consumo entre categorias culturais. O conceito parte da existência de dois grupos que se encontram em diferentes níveis de legitimidade na hierarquia social: um grupo superordenado (maior legitimidade) e o grupo subordinado. Enquanto o grupo subordinado tenta imitar o grupo superordenado, buscando apagar as diferenças e propiciando a aproximação de uma posição culturalmente mais valorizada, o grupo superordenado tenta se diferenciar, buscando manter a diferenciação e sua posição mais valorizada. McCracken (2003) afirma que em ambientes com mais de dois grupos interagindo, muitas vezes um grupo pode atuar ao mesmo tempo como subordinado, em relação a grupos de status mais elevado, e superordenado, em relação a grupos de menor status.

O próprio McCracken (2003) ilustra a aplicação do modelo no contexto da diferença de gênero, quando analisa o consumo de vestuário para o espaço profissional. O vestiário feminino vai imitar elementos da roupa masculina, buscando introduzir traços de autoridade na apresentação do grupo subordinado, as mulheres. Linhas retas, cores neutras, ausência de estampas e volumes. A roupa feminina gradativamente perde traços que poderiam significar frivolidade e despreparo (estampas, volumes, cores fortes) para imitar, na cultura material do vestiário, os elementos simbólicos projetados pelo grupo masculino, associados a seriedade. Por outro lado, os homens buscarão reforçar sua diferenciação através de um esforço de masculinização de suas roupas, incorporando traços de arquétipos como o caçador ou o cowboy.

O conceito de trickle-down, aplicado ao universo de consumo do automóvel, pode descrever movimentos de imitação e diferenciação entre categorias culturais diversas, como classes sociais (“carro de rico”), gênero (“carro de mulherzinha”), idade (“carro de tiozão”) e status marital (“carro de garotão”), entre outros. Para discutir a questão de gênero dentro da lógica do trickle-down, o professor pode convidar os alunos a identificarem grupos superordenados e subordinados, justificando os elementos que os levam a fazer essa escolha. Em seguida, os alunos podem ser convidados a identificar estratégias de imitação e de diferenciação, apresentadas nas entrevistas, como a opção das mulheres por carros grandes para se passarem por homens no trânsito (imitação) e a busca por modelos de design sempre mais moderno pelos homens (diferenciação).

Após realizar o exercício, o professor pode discutir com os alunos se existem outros grupos que não se inserem na dinâmica do trickle-down ou se outras dinâmicas de trickle-down podem estar em operação, com mais de dois grupos em interação. O aprofundamento do exercício e do debate pode ser útil para pensar os espaços do consumo de automóveis onde o consumo é movido por uma lógica de imitação / diferenciação, e os espaços onde outras lógicas podem estar em operação. O consumo pode ser motivado pelo cumprimento de papéis sociais específicos (mãe) e não estar necessariamente submetido à lógica de imitação social.

Questão 4. A empresa deveria fazer alguma mudança para atender o público feminino? Quais?

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Aqui entramos em uma discussão mais prática, onde o aluno deve refletir sobre tudo o que foi discutido no caso e quais suas consequências. Se por um lado, pudemos identificar espaços femininos e masculinos específicos, por outro, também foram identificadas as dinâmicas de negociação e tensão entre gêneros. Segmentar por gênero não é apenas uma questão de escolher homens ou mulheres como público-alvo. Como sustenta Avery (2012), a escolha de um pode excluir, afastar ou redefinir os termos da relação com o outro grupo. Neste momento, a questão que se coloca a ser discutida com os alunos é a dos caminhos estratégicos de posicionamento e de comunicação com esses dois segmentos para a marca FIAT.

Em primeiro lugar, a função do automóvel como marcador de gênero masculino associado ao envolvimento dos homens com a categoria (Belk, 2004) torna-os defensivos a estratégias de aproximação de público feminino. Avery (2012) defende que o homem contemporâneo adota uma postura protecionista em relação às suas marcas, e rejeita quaisquer esforços de feminilizá-las. A autora alerta que antes de desenhar estratégias híbridas em termos de posicionamento de gênero, os gerentes precisam avaliar o grau de identificação da sua marca com significados específicos de gênero. Em outras palavras, tornar feminina uma marca vista por seus consumidores como ferramenta de identificação masculina pode desagradar seus consumidores principais (os homens) e gerar não apenas um esvaziamento da marca em termos de significância, mas também perdas em vendas consideráveis nos casos mais graves. Essa reflexão pode sugerir um exercício de identificação das marcas mais ou menos identificadas a gêneros específicos, e as marcas de posicionamento mais geral.

Contudo, isso não quer dizer que não seja possível explorar a crescente participação feminina no mercado, fazendo mudanças e adaptações em seus produtos e serviços para atender esse público. O professor pode convidar os alunos a pensarem iniciativas gerenciais que possam atender, incluir e satisfazer o público feminino, sem que sejam percebidas como ameaçadoras ao revestimento simbólico masculino. Segundo Sheth, Mittal e Newman (2001), a Chrysler criou um comitê de aconselhamento específico para o mercado automobilístico feminino. Portas e outras partes que abrem mais facilmente, porta traseira fácil de levantar nas minivans, bancos integrados para crianças e um suporte para bolsa são algumas das pequenas modificações que a empresa fez em alguns de seus produtos para melhorar a experiência de uso por parte das mulheres sem descaracterizar demais os carros e manter o apelo também entre os homens. Além disso, algumas concessionárias construíram áreas de recreação para crianças e fraldários nos banheiros, e muitos vendedores foram treinados a atender mulheres de forma diferenciada.

Por fim, o professor pode levar os alunos a refletirem sobre os espaços de convergência de gênero, onde homens e mulheres apresentam semelhanças e identificações, e possam receber e consumir ofertas similares. Neste lugar, os executivos podem encontrar inspiração para o desenvolvimento de estratégias de comunicação mais neutras, mas que ainda encontrem ressonância em ambos os grupos. A questão que se coloca para os alunos, portanto, seria: o que podemos identificar de semelhante entre homens e mulheres que pode ser usado como fio condutor da comunicação? Uma primeira resposta pode ser a questão da progressão profissional. Tanto para homens quanto para mulheres que trabalham, o carro cumpre uma função de sinalizador do sucesso profissional, ainda que de forma específica para homens e mulheres. Lara e Karla descrevem seu consumo, estabelecendo paralelos com as exigências de suas carreiras. O marido de Karla, por outro lado, é “punido” por uma trajetória profissional menos valorizada (“bancário”), ao ser excluído da compra do automóvel familiar. Assim, nas entrevistas, vemos que com a entrada da mulher no mercado de trabalho,

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chegamos a um momento, em que a questão da progressão profissional torna-se um ponto de diálogo e convergência entre homens e mulheres. Existiriam outros pontos de convergência a explorar?

Encerramento da Discussão do Caso

Neste caso, apresentamos situações reais do processo de decisão e compra de automóveis retiradas das entrevistas com consumidores, e introduzimos a discussão de gêneros e suas diferenças de consumo. Para encerrar a discussão, o professor poderia inverter a situação demonstrada, usando exemplos de categorias femininas cada vez mais consumidas por homens e como as empresas e os profissionais de marketing estão lidando com essa situação. Como exemplo temos a marca Dove, tradicionalmente feminina, que vem lançando uma linha de produtos para homens. Quais as diferenças de produto e de comunicação entre as duas linhas (masculina e feminina)? O que a empresa está fazendo para conquistar o público masculino sem perder seu apelo e identificação com as mulheres? Haveria no consumo de categorias femininas algum risco para as estratégias de masculinização da oferta ou da comunicação?

Referências

Alves, Zélia M. M. (2000). Continuidades e Rupturas no Papel da Mulher Brasileira no Século XX. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 16(3), 233-239.

Avery, Jill (2012). Defending the markers of masculinity: Consumers resistance to brand gender-bending. International Journal of Research in Marketing, 29(4), 322-336.

Belk, Russell W. (2004). Men and Their Machines. Advances in Consumer Research, 31, 273-278.

Crispell, Diane (1992). The Brave New World of Men. American Demographics, 14(1), 38-43.

G1 (2008). Mulheres exercem influência em até 80% das vendas de carro, http://g1.globo.com/Noticias/Carros/0,,MUL341258-9658,00-MULHERES+EXERCEM+INFLUENCIA+EM+ATE+DAS+VENDAS+DE+CARRO.html

Infomoney (2011). Influência feminina no orçamento é admitida por 82% dos homens. Disponível: http://www.infomoney.com.br/minhas-financas/noticia/2180518/influencia-feminina-orcamento-admitida-por-dos-homens

McCracken, Grant (2003). Cultura e Consumo: Novas Abordagens ao Caráter Simbólico dos Bens e das Atividades de Consumo. Rio de Janeiro: MAUAD.

Sheth, Jagdish N., Mittal, Banwari, & Newman, Bruce I. (2001). Comportamento do Cliente: Indo Além do Comportamento do Consumidor. São Paulo: Atlas.