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actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte câmara municipal de abrantes outubro de 2013 actas ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte de abrantes

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actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

câmara municipal de abrantesoutubro de 2013

actas ii e iii jornadas internacionais do miaamuseu ibérico de arqueologia e arte de abrantes

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câmara municipal de abrantesoutubro de 2013

actas ii e iii jornadas internacionais do miaamuseu ibérico de arqueologia e arte de abrantes

ficha técnica

títuloActas das ii e iii Jornadas Internacionais do miaaMuseu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes

coordenaçãoIsilda JanaGustavo PortocarreroDavide Delfino

designGabinete de Comunicação Câmara Municipal de Abrantes

edição Câmara Municipal de Abrantes2013

ImpressãoTipografia Central do Entroncamento, Lda.

isbn978–972–9133–47–3

depósito legal **********

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4 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

A realização anual das Jornadas Internacionais do miaa re-presenta o momento privilegiado de ver, ouvir e ler o Mu-seu Ibérico de Arqueologia e Arte (miaa).

Um ponto de reflexão onde, numa perspetiva multi-dimensional, é possível assistir ao confronto de múltiplas opiniões, de investigadores nacionais e internacionais, nos campos técnico-científico, histórico, sociocultural, políti-co, artístico. Um lugar de valorização e aprofundamento do conhecimento, um dos objetivos do miaa, afirmado desde a primeira hora.

Assumindo a singularidade da herança patrimonial de Abrantes como um dos nossos valores estratégicos, amplia-mos o campo de possibilidades de investigação.

Damos voz ao passado para que a comunidade se possa identificar nele, ajudando assim a construir uma identida-de coletiva e melhorando a relação das pessoas com a sua cidade e o seu território.

Ao constituir espaços de promoção e mediação cultu-ral e preservação dos bens culturais, estamos a reconhecer a importância da memória e a iluminar pedaços de uma história que, sem esse trabalho, corre o risco de se perder.

a importância da memóriaMaria do Céu Albuquerque presidente da câmara municipal de abrantes

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6 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

As Jornadas Internacionais do Museu Ibérico de Arqueo-logia e Arte (miaa), realizadas anualmente em Abrantes, são o momento privilegiado de encontro de investigadores e estudiosos que trabalham em áreas relacionadas com o acervo deste museu, nas várias colecções que o constituem.

As ii Jornadas Internacionais do miaa realizaram-se a 21 de Outubro de 2011. A 28 de Outubro de 2012 realizaram-

-se as iii Jornadas Internacionais do miaa. Nesses dois en-contros vários especialistas apresentaram o resultado dos seus estudos e das várias intervenções resultou a obra que agora se publica.

Nas ii Jornadas iniciaram-se os trabalhos com a comu-nicação Criar um novo museu em Abrantes: um desafio ter-ritorial. Nesta intervenção Luiz Oosterbeek fala da acção do miaa, como um processo, desde o início, envolto em al-guma polémica e discute a oportunidade de criar um gran-de museu na região e a sua eventual articulação com a ges-tão global do território do Médio Tejo.

Em seguida são apresentadas duas comunicações de ca-rácter científico, muito didácticas, que ajudam a perceber o trabalho de análise que pode ser feito para ajudar à distin-ção de falso e verdadeiro em colecções de arqueologia e arte.

Peter Mathaes é director do Museo d’Arte e Scienza di Gottfried Matthaes de Milão e na sua comunicação Scien-tific Analysis is useful for a closer understanding and a bet-ter informed seleccion of artworks in museum collections, fa-la do potencial da investigação científica e das análises la-

boratoriais que permitem alcançar um maior nível de co-nhecimento e fazer uma maior selecção de obras nas colec-ções dos museus, permitindo, em muitos casos, fazer a sua certificação.

Jayshree Mungur-Medhi tem como projecto de douto-ramento o estudo arqueométrico das cerâmicas gregas da Colecção Estrada e na sua comunicação Development of methodological protocols for de evaluation of cerâmics fala da metodologia seguida para análise das cerâmicas gregas da Colecção Estrada e dos principais resultados já obtidos.

Davide Delfino é um dos investigadores que melhor co-nhece a Colecção Estrada. Na sua comunicação A difusão do Orientalizante e a circulação de bens de prestígio no Me-diterrâneo, através de alguns exemplos da Colecção Estra-da fala-nos da profunda renovação cultural que se operou no Mediterrâneo Centro-Ocidental a partir do séc. viii a.c. A expansão fenícia, através da implantação de colónias e ro-tas comerciais, introduziu novos materiais e novas tecnolo-gias provenientes de civilizações do Mediterrâneo Oriental em todo o mundo mediterrânico criando assim o fenóme-no dito Orientalizante.

Gustavo Portocarrero, um outro investigador que tem trabalhado sobre a Colecção Estrada apresenta em Fivelas de cinturão visigóticas da Colecção Estrada (séc. v–viii): for-mas e simbolismos identitários, sócio económicos e funerá-rios, um notável conjunto de fivelas visigóticas e fala das principais formas e simbolismos que se podem identificar

apresentaçãoIsilda jana coordenadora da equipa de projecto do miaa

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nesse conjunto, com particular destaque para aspectos re-lacionados com identidade, estatuto e religião.

Filomena Gaspar é arqueóloga no Município de Abran-tes, tem feito escavações arqueológicas na área da cidade de Abrantes e apresenta alguns dados novos e interessantes que apontam pistas importantes para a reconstituição da forma como Abrantes viveu o período medieval. As estelas funerá-rias/cabeceiras de sepultura que fazem parte do acervo do Museu D. Lopo de Almeida poderão contribuir para um me-lhor conhecimento da história desse período em Abrantes.

Fernando António Baptista Pereira, Francisco Henri-ques e Gustavo Portocarrero em Escultura do Renascimen-to em Abrantes: estatuária avulsa e fragmentos de um retá-bulo narrativo apresentam uma leitura para os fragmentos de um retábulo dos Passos da Paixão de Cristo, provenien-tes da Igreja de S. João Batista em Abrantes, perdidos du-rante séculos e recuperados na primeira metade do séc. xx.

Maria Teresa Desterro, em Mestre de Abrantes (Cristó-vão de Figueiredo?) e os pintores da sua entourage. Conti-nuidades e rupturas num tempo de mudança fala da possí-vel identidade desse enigmático pintor que ficou conhecido como “Mestre de Abrantes”. Não sendo ainda possível con-firmar a sua verdadeira identidade, a sua linguagem plásti-ca revela um pintor educado ainda numa tradição flamen-guizante que, paulatinamente, vai aderindo aos valores an-ti-clássicos do maneirismo italiano, mas ainda e sempre na senda do tradicionalismo de Gregório Lopes.

Ana Paredes Cardoso na sua comunicação O azulejo em Abrantes: 5 séculos de História da Arte, percorre os ciclos mais significativos desta arte decorativa que em Abrantes se inicia, logo no princípio do séc. xvi, com o importan-te núcleo azulejar, ainda de produção arcaica, existente na Igreja de Santa Maria do Castelo.

Rui Oliveira Lopes, em Para além do tempo. O jade no percurso da história da China fala da importância que de-terminado tipo de objectos têm no contexto da cultura chi-nesa, nomeadamente, os jades.

Nas iii Jornadas Internacionais do miaa realizadas em 2012, foram abordadas novas temáticas relacionadas, de modo mais ou menos directo, com o acervo do miaa.

Luiz Oosterbeek em O miaa e o território do Médio Tejo parte da avaliação dos múltiplos territórios que se podem representar no miaa discute as diversas temáticas que ele encerra e o seu papel estruturante para o Médio Tejo.

Davide Delfino e Charters de Almeida fazem uma co-municação conjunta e perante uma Vénus do Neolítico procuram fazer um diálogo interdisciplinar entre o arque-ólogo e o artista/escultor.

Luís Araújo em O Egipto faraónico: uma civilização da pedra abordou o uso da pedra na civilização egípcia onde este material abundava nas ricas pedreiras que bordejavam o país do Nilo. Desde as pedras de cantaria às pedras semi-preciosas, era grande a abundância e a qualidade das pe-dras que os antigos Egípcios utilizaram durante os mais de 3000 da sua história.

Ana Cruz e Ana Rosa trouxeram a este encontro o te-ma A Vida e a Morte na Pré-História recente do concelho de Abrantes, o que aqui mostram é o resultado de um trabalho de parceria entre o Centro de Pré-história do Instituto Poli-técnico de Tomar e o Município de Abrantes. Desta combi-nação de esforços entre as duas instituições resultaram tra-balhos de escavação de sítios que medeiam o Neolítico e a Idade do Bronze Final.

Álvaro Batista em Deusa ou Deuses? — um ídolo ocu-lado de Abrantes analisa a problemática dos ídolos ocula-dos, em particular o ídolo oculado encontrado no conce-lho de Abrantes que vem alargar o aparecimento destes ído-los a uma área até há pouco tempo vazia destas ocorrências.

O castelo de Abrantes na Idade Moderna: de castelo a pa-lácio, de palácio a fortaleza foi o tema trazido a estas jorna-das por Gustavo Portocarrero que apresenta uma nova vi-são sobre o castelo de Abrantes, particularmente na Idade Moderna. Esta é uma temática que merece um estudo mais desenvolvido, o que aliás já está a ser feito com o projecto de escavação arqueológica entretanto iniciado.

Este encontro contou ainda com a participação de He-lena Félix com a comunicação Soluções metodológicas pa-ra a conservação e restauro dos objectos metálicos da Colec-ção Estrada. Infelizmente a sua morte inesperada impediu-

-nos de poder contar com o texto da sua intervenção que

deu um precioso contributo para uma melhor compreen-são das peças de bronze da Colecção Estrada.

O acervo do miaa caracteriza-se, entre outras coisas, pela sua diversidade — colecções de Arqueologia e Arte que vão desde a Pré-História até à Época Contemporânea, de proveniência local, nacional e internacional.

Estudar, divulgar, valorizar e rentabilizar este património é aquilo que nos move no projecto que estamos a desenvolver.

As Jornadas Internacionais do miaa servem também para isso.

O “caminho faz-se caminhando” e estamos cientes que, nos tempos que correm, o caminho não é fácil de trilhar e por isso mesmo, aqui fica o nosso reforçado agradecimento a todos, em especial aos oradores e investigadores que con-nosco têm colaborado na concretização destas jornadas e no desenvolvimento deste projecto. 

 

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índiceii jornadas

13 criar um novo museu em abrantes: um desafio territorial. Luiz Oosterbeek

19 a scientific analysis is useful for a closer understanding and a better informed selection of artworks in museum collections. Peter Matthaes

25 development of methodological protocols for the evaluation of ceramics. Jayshree Mungur-Medhi

33 a difusão do orientalizante e a circulação de bens de prestígio no mediterrâneo. alguns artefactos da coleção estrada. Davide Delfino

47 fivelas de cinturão visigóticas da coleção estrada (séc. v–viii d.c.): formas e simbolismos identitários, sócio económicos e funerários. Gustavo Portocarrero

55 estelas funerárias medievais no espólio do museu d. lopo de almeida. Filomena Gaspar

61 escultura do renascimento em abrantes: estatuária avulsa e fragmentos de um retábulo narrativo. Fernando António Baptista Pereira Francisco Henriques Gustavo Portocarrero

79 o “mestre de abrantes” (cristóvão lopes?) e os pintores da sua entourage. continuidades e rupturas num tempo de mudança. Maria Teresa Desterro

91 o azulejo em abrantes: 5 séculos de história da arte. Ana Paredes Cardoso

101 para além do tempo. o jade no percurso da história da china. Rui Oliveira Lopes

índiceiii jornadas

111 o miaa e o território do tejo. Luiz Oosterbeek

117 uma nova abordagem para um diálogo entre arqueologia e arte. a vénus pré-histórica da coleção estrada. Davide Delfino Charters de Almeida e Silva

129 o egito faraónico, uma civilização da pedra. Luís Manuel de Araújo

137 a vida e a morte na pré-história recente do concelho de abrantes. Ana Cruz Ana Graça

147 deusa ou deuses? um ídolo oculado / solar de abrantes. Álvaro Batista

161 o castelo de abrantes durante a idade moderna. Gustavo Portocarrero

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um debate em torno de dilemasO debate em torno da criação, ou não, do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, em Abrantes, é um debate não apenas legítimo, mas relevante na hora de repensar o município, a região e o futuro do Médio Tejo. No momento em que Por-tugal mergulha numa crise que é internacional mas que se sente de forma particular, a compreensão das dinâmicas de futuro e do papel dos equipamentos culturais nelas inseri-dos, é fundamental.

Terá sentido organizar um Museu quando em diversas frentes profissionais cresce o desemprego, empresas abrem falência e os jovens emigram?

Somos de opinião que não tem sentido realizar investi-mentos fora de uma estratégia que parta das necessidades e potencialidades de Abrantes no âmbito da sub-região em que se insere. Abrantes e o País precisam de reverter um ci-clo de dependência e deficit crescente, construindo numa dimensão internacional um equilíbrio das suas contas, ao mesmo tempo que devem consolidar e valorizar os seus re-cursos e competências.

É nessa exacta medida que se deve pensar e debater o miaa, identificando o seu foco, a quem se destina e que propósitos serve.

criar um novo museu em abrantes: um desafio territorial.Luiz Oosterbeek professor coordenador do instituto politécnico de tomar instituto terra e memória

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qual Portugal, e esta região em particular, têm um lugar de destaque (cujo símbolo maior é o Panteão dos Almeidas).

A questão de “o que podemos oferecer” é mais complexa. A dimensão dos nossos produtos tradicionais é, com excep-ções, relativamente escassa, tendo por isso dificuldade em penetrar em mercados de grande escala. A construção de produtos diferenciados, com alto valor acrescentado, é por isso o caminho mais recomendado para um território que, além de pequeno, tem escassos recursos naturais de valor estratégico (combustíveis, metais preciosos, terras raras ou outros).

É neste contexto que o miaa também se propõe intervir, abrindo debates e oferecendo para circulação colecções que, não isentas de polémicas, podem estimular o essencial: a re-flexão e o reconhecimento do património cultural.

O miaa não depende, por isso, do seu contexto arqui-tectónico, embora uma descontinuidade arquitectónica de qualidade seja sempre um reorganizador e polarizador de dinâmicas, e um marcador de crescimento e de futuro.

O miaa não depende, tão pouco, da reorganização urba-na, embora seja desejável que a sua organização ajude à reor-ganização da malha histórica, não como vitrina imóvel que se limita a recordar um passado longínquo, mas como tecido urbano dinâmico, cosmopolita e aberto à globalização.

O miaa também não depende apenas da identificação e conservação das suas colecções, embora nele se deva es-truturar uma unidade laboratorial de peritagem, benefi-ciando do estudo que tem sido feito para caracterizar o seu acervo, em escala inédita no nosso País.

O miaa deve ser, já é, um processo de construção de co-nhecimento territorial, e nesse sentido têm especial impor-tância a gestão patrimonial, a gestão do conhecimento e a inserção territorial.

Gerir o Património é “negociar” a relação entre proprie-dade (conjuntural) e memória (essencial). A gestão tem o duplo objectivo de assegurar a conservação (para as gera-ções futuras) e a fruição (pelas gerações actuais), assim as-segurando a relação com as gerações passadas. É essa, e não outra, a natureza da discussão em torno da proveniência e da originalidade ou não dos acervos.

O essencial, em todo o caso, é a construção de conhe-cimento, como já defendemos noutra ocasião, e nesse do-mínio o miaa consolidará as identidades de Abrantes e do Médio Tejo português de forma participada, precisamen-te por incorporar todos os debates e polémicas que o atra-vessam, e que tornam o território mais robusto e plural. Neste processo actuam arqueólogos, historiadores ou geó-grafos como técnicos do processo, mas também turistas, e outros actores do território, tendo em primeiro plano, de-cisivo e fundamental, os habitantes locais. Cada um destes grupos e sub-grupos tenderá a “ver” no miaa realidades distintas, mas todos partilharão noções cada vez mais con-vergentes de espaço (amplo, planetário), de tempo (longo, milenar, com muito passado para muito futuro) e de cau-salidade (relacionada com as logísticas que, ao longo do tempo, juntaram necessidades humanas e recursos dispo-níveis).

As colecções, que ilustram em tempos diferentes luga-res que se articulam a grandes distâncias, mas que na sua maioria pertencem ao “nosso mundo”, ajudam o visitante a entender como, já há milénios, a Síria ou a China eram tão próximos da Península Ibérica.

O programa expositivo relaciona a natureza humana com os diferentes contextos históricos, destacando recor-rências e diferenças, ilustrando atitudes (da guerra à coope-ração), tecnologias (da pedra aos metais, incluindo a didác-tica da peritagem) ou representações (estética, símbolos).

gestão integrada e competitividade do médio tejoO miaa deve ser em primeiro lugar um museu para os ha-bitantes de Abrantes, depois (e em rede com outros museus da região) para o Médio Tejo, e finalmente um museu na-cional, construído em torno da compreensão das dinâmi-cas territoriais ao longo do tempo, e sua relação com o ter-ritório em que se insere.

“um museu... para pensar, questionar, apoiar a governança regional...”

O foco do miaa é anunciado pelo seu nome: é um mu-seu aberto à Península Ibérica, que se afirma por um lado a partir da centralidade do vale do Tejo como a grande es-trada que liga Portugal e o Atlântico ao centro da Penínsu-la, e por outro a partir da peneplanície que se desenha pa-ra leste, na direcção do Sudoeste peninsular e, a partir daí, do Mediterrâneo.

Nesse sentido, o miaa retoma o entendimento do terri-tório português como inscrito na Península e articulado com o Atlântico e com o Mediterrâneo, como há décadas Orlando Ribeiro soube compreender e ensinar. Um territó-rio que é ao mesmo tempo continental (peninsular e euro-peu), clássico (mediterrânico) e construído sobre o risco do desconhecido (atlântico). Pensar esta polivalência é revisi-tar debates que atravessam o País desde os primórdios, nas dúvidas sobre a independência ou, mais tarde, sobre os ca-minhos africanos ou transoceânicos a prosseguir.

O miaa abre-se a esse debate, alimenta a reflexão sobre ele, e nesse sentido será o único Museu em Portugal a fazê-

-lo de forma assumida. O foco do miaa é, por isso, o deba-te, a contradição, a reflexão necessária para o futuro, e não apenas a exposição de objectos e contextos do passado.

O miaa alimentará esta discussão a partir dos seus acervos locais e nacionais (reunidos sobretudo pela autar-quia, mas em que se inserem também as colecções de Char-ters de Almeida e de Maria Lucília Moita), peninsulares e extra-peninsulares (graças à Colecção Estrada).

Na busca do debate, o miaa abre-se também a questões como a polémica das colecções particulares de arqueologia e da originalidade e falsificação de objectos artísticos e ar-queológicos. O miaa deverá ser radicalmente opositor do comércio ilícito de bens artísticos e arqueológicos, não ra-

ro saqueados por caçadores de tesouros que muitas vezes nem percebem que esses bens fora de contexto perdem quase todo o seu valor. Mas o miaa privilegia o conheci-mento e a sua construção, e valoriza os esforços de particu-lares na salvaguarda de acervos que, sem a sua intervenção, se teriam perdido para sempre. Este debate, não menos complexo que outros que convivem com o miaa na sua ainda curta história, ilustra o facto de que na nossa socie-dade não enfrentamos essencialmente problemas (mais ou menos fáceis de resolver) mas verdadeiros dilemas, esco-lhas difíceis em que todos os ganhos são acompanhados, também, de perdas.

Debater o miaa, debater a localização, a dimensão ou as colecções e projectos do miaa, são parte do debate sobre o futuro da região e do País, e são debates em torno a dile-mas que não devem ser ignorados ou simplificados.

Temos defendido a criação do miaa e colaborado na sua programação, compreendendo muitas dúvidas que vie-ram a público, incorporando algumas delas, e participando num quadro de reflexão que, na nossa opinião, é bem mais amplo do que o museu.

um museu para uma dinâmica territorialA questão central do miaa, ou de qualquer outro museu, não é a de quais são as suas colecções (ainda que sem elas o museu não tenha sentido), mas o de para quê e para quem se estrutura o museu.

Dizia Kant que — “O mundo é o substrato e a cena em que se desenvolve o jogo da nossa aptidão”. Actualmente, é a nossa aptidão como país, como sub-região e como municí-pio, que se discute e gera perplexidades. Precisamos de in-verter o ciclo em que nos encontramos, mas para isso pre-cisamos de responder a duas questões: quem somos e o que podemos oferecer “aos outros”?

Uma primeira dimensão do miaa contribui para a questão de quem somos, situando-nos num plano que é maior do que o rectângulo do extremo Ocidente peninsu-lar e das ilhas, ou sequer da lusofonia, e permitindo reler a génese de Portugal como produto de um milenar processo de globalização, iniciado muito antes do que se pensa, e no

“acreditar para compreender... é possível acreditar para além dos limites da alienação?”

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16 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Em tempo de crise, as pessoas mobilizam-se em torno às suas necessidades primordiais (alimentação, habitação, saúde, segurança), articuladas em busca de ideais (felicida-de, equidade) e mobilizadas em torno de convicções (acre-ditar e imaginar para compreender e construir visões parti-lhadas do futuro).

Neste processo, a economia (logística que articula neces-sidades, recursos e processos), e a cultura (modos de actua-ção, económicos e outros), são mediados pela tecnologia (ilustrada no miaa), que por sua vez se apoia no conheci-mento (foco central do miaa).

Neste sentido, o miaa é um museu… para pensar, ques-tionar e apoiar a governança regional…

E será nesse sentido, estimulador das controvérsias e do conhecimento crítico, que o miaa faz a diferença e encon-tra a sua plena justificação.

bibliografiaoosterbeek, l. (2011) — Construção de conhecimento e colecções privadas. In: Actas das Jornadas do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, Abrantes: Câmara Municipal de Abrantes, pp. 13–18.

portugal

alto ribatejo

tomar

v.n. barquinha

abrantesmação a23

“um museu... para uma dinâmicaterritorial...”

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18 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

abstractThe determination of authenticity can be achieved only through a combination of scientific analysis and stylistic evaluation; alone each can only confirm non-authenticity. Different professional figures are involved in the ascertain-ment of authenticity: art historians, scientists, grapholo-gists. — Between “true” and “fake” there are many interme-diate possibilities such as “copies”, “replicas”, “forgery”, “too much restored”. In this article we will consider mainly how science can be of different help depending on the type of material the art objects are made of. Wooden objects, paintings, pottery, ivory, have a good analyzability while bronzes, metals, pa-per, stones, glasses have a medium or poor analyzability.What is important to verify is the correct age, enough signs of ageing and wear, coherent materials and production techniques. Keywords: authenticity; art objects; scientific analysis; stylistic evaluation.

resumoA determinação da autenticidade só pode ser alcançada atra-vés de uma combinação de análises científicas e de avaliação estilística; por si só, podem somente confirmar a não-auten-ticidade. Diferentes figuras profissionais estão envolvidas na determinação da autenticidade: historiadores de arte, cien-tistas, grafólogos. Entre verdadeiro e falso há várias catego-rias intermédias como "réplicas", "falsificações", "demasiado restaurado". Neste artigo vamos considerar de que forma a ciência pode ser útil dependendo do tipo de material com que o objecto de arte é feito. Objectos de madeira, pinturas, cerâmica, marfins, podem ser analisados com facilidade, enquanto que bronzes, metais, papéis, pedras, vidros são de mais difícil análise.O que importa é verificar a idade correcta, sinais de envelhe-cimento e desgaste em número suficente, materiais coerentes e técnicas de produção.Palavras-chave: autenticidade; objecto de arte; análise cien-tífica; avaliação estilística.

a scientific analysis is useful for a closer understanding and a better informed selection of artworks in museum collections. Peter Matthaes museo d’arte e scienza

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20 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

is of primary importance to verify the authenticity, but al-so to increase the general knowledge of an art object, or to establish the age of the restored parts.

As we mentioned before, there are three different age dating methods: the famous Carbon-14 (C14), the rather known Dendrochronology and the less known ft-ir Spec-troscopic method.

The use of ft-ir Spectroscopy is optimal for the age dat-ing of wood mainly for the last centuries, while the “C14” method has some limitations in the applicability; the meth-od studies the chemical decay of the wood starting from the cutting of the tree and it needs few milligrams of wood powder. The method, well explained also in the web, is more and more widespread and used both by the collector and by restorers, by courts of justice and obviously by cura-tors of museums (fig. 3).

It is important to note that critics that are often against the age-dating of wood, such as the possible use of an al-ready old material to make the object, are groundless be-cause: it is not sufficient to use old wood but it is necessary that it is exactly of the corresponding period — a more re-cent age-dating result is sufficient to consider the object non-authentic — a more ancient age-dating result is how-ever inconsistent and it must be justified.

Fig. 3

paintings The microscope is certainly the most important instrument to verify the authenticity of a painting! The colour layer of an ancient painting has specific characteristics very difficult to falsify. There are different possible levels of “non-authentic objects”: we can have an object strongly restored, another ar-tificially aged and even an object obtained by a colour print. The latter is the easiest to identify: few enlargements are enough to note small ink spots instead of colour brush-strokes (fig. 4). Stronger enlargements are necessary, on the contrary, to evaluate the quality of pigments used in order to understand if they are handmade or industrially produced: in the first case they are impure and with coarse particles. The microscopic analysis is also useful to value the ageing signs such as the craquelure or small restorations (fig. 5).

Fig. 4

Fig. 5

introductionBecause of the outstanding number of fake objects in so many private and public collections, the available scien-tific methods offer nowadays a concrete chance of investi-gation. Paintings, wooden statues, pieces of furniture, ter-racotta vases, bronzes and ivory items can be analyzed through different instruments to point out their authen-ticity: the laboratory of the Museum “Museo d’Arte e Sci-enza” in Milan, is an example of a fully operating lab in that field (figs. 1 e 2).

Fig. 1

Fig. 2

wooden artefacts They are easy to be verified: they can be dated through differ-ent age-dating methods such us Radiocarbon C14, Dendro-chronology and ft-ir Spectroscopy; the last one can be use-ful also for the identification of wood type which is another important factor that must be put under control in order to verify the compatibility with a presumed period. The use of different wood types for many kinds of art-objects depend-ing on the historical period and the geographical area is well-known. For example it is known that in Italy walnut was used to make furniture, poplar as support for paintings, linden for sculptures or inlay works; a painting made on a walnut pan-el should induce some doubts about its authenticity. Anoth-er important thing to take in consideration is to see if the ob-ject is handmade or made with the help of machineries: this factor is obviously valid for all the objects made of every ma-terial. The rule is the following: the more quantity and qual-ity of the handwork is present, the more probability that the object is authentic! This is due to the fact that handwork has become very expensive today and to make a totally “hand-made” fake could cost a lot.

Wear and corrosion are other important factors that must be taken into consideration: it is necessary to study and verify their presence and consistency with the pre-sumed age, with the function/use and with the preserva-tion place. Also in this case it is necessary to look out at signs intentionally made by the forger; a good magnifying glass and a well-trained eye are able to recognize a wear de-veloped in a natural way during the time in comparison with a wear intentionally made. Generally the forger makes a showy wear on the less important parts because he does not want to depreciate too much the object, while the nat-ural wear is developed on the whole parts involved in the natural process that formed it.

Other indications of authenticity that may be found in the “patina” to keep into consideration are: colour and gild-ing layers coherently worn-out, or particular substances applied for reasons concerning the cult.

One of the most important scientific analyses applica-ble nowadays is the scientific age-dating of wood: this test

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22 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Fig. 8

bronzesFirst of all we must say that there aren’t absolute scientific age-dating methods applicable to metal materials. In theo-ry it is possible to analyze with the thermoluminescence the “core” made of (burnt) terracotta formed during the fu-sion process. This method must be carried out carefully making sure to analyze only parts of earth completely cooked in order to avoid older results than reality.

Analyses of the patinas and the corrosion process can be of great help in identifying fakes: through application of ir Spectroscopy or xrd it is possible to recognize most bronze corrosion products (cuprite, malachite, azurite, etc.) thus determining the nature of the patina of an antique bronze object (fig. 9).

Fig. 9

The chemical analysis of corrosion products must be completed with the microscopic analysis: the latter allows to verify that the metal is really corroded and that the en-crustations on the surface have not been artificially applied.

The analysis of the composition of the alloy could also be important to verify the presence of metals only used nowadays in order to make the metal more workable, but not used in the past.

stonesStone objects are amongst the most difficult ones to be ver-ified: age-dating methods do not exist and the material does not change much throughout time. Therefore there are few possibilities of scientific ascertainment: a careful observation with a microscope in search of wear signs or natural patinas (fig. 10). These will not allow to have precise indications on the age, but they might at least exclude the cases of a recent forgery.

Fig. 10

At the Museo d’Arte e Scienza founded by Gottfried Matthaes in 1990 you can learn the basics for telling authen-tic objects from fakes and avail yourself of the laboratory for the performing of scientific tests on art objects.

bibliografiamatthaes, gottfried. (2000) — The Art Collector’s Illustrated Handbook — How to tell authentic antiques from fakes. Milano: Garzanti Verga Editore.

Moreover there are other more sophisticated scientific instruments that allow for example a study of the deep lay-ers of paintings such as the Infrared Reflectography or the X-ray radiography; the chromatographic analyses for the recognition of binders, or equipment for the chemical anal-ysis of pigments such as the ft-ir Spectroscopy, specific Electronic Microscope (sem-eds) and xrf analysis, very important to determine that modern pigments are not pre-sent in a presumed ancient painting.

The pigments, binders (and glues) analysis therefore al-lows to carry out a relative dating depending on the date of their discovery. Here is a partial list of discovery and intro-duction of different pigments in the last three centuries: Zinc white 1782, Antimony orange approx. 1850, Lithopone white 1847, Cobalt red approx. 1855, Titanium white 1920, Aniline reds after 1856, Chrome yellow1797, Cadmium red 1892, Barium yellow 1809, Prussian blue 1704, Cadmium yellow 1817, Cobalt blue 1802, Cobalt green 1780, Ultrama-rine artificial blue 1826, Cinnabar green 1809, Phthalocya-nine blue 1922, Veronese green 1814, Ultramarine violet 1840, Viridian 1838, Mars violet approx. 1850.

excavated potteryEven in this case there is a scientific method that allows the age dating of the material: the Thermoluminescence. It measures the quantity of energy absorbed by the material starting from its cooking. Nowadays this technique has ob-tained important improvements expanding its use also to non-archaeological objects thanks to the “pre-dose technique”.

Further indications about the authenticity can be given also by microscopic and chemical analysis of the encrusta-tions. In fact many non-authentic pottery items are an-tiqued with fake encrustations; spectroscopic analysis per-mits identification of the nature of the encrustations and the presence, if any, of glues or other incompatible materi-als (fig. 6). A fake patina, consisting of applied encrusta-tions, justifies serious doubts as to the object’s authenticity.

Fig. 6

ivoryThe Infrared spectroscopy increased the research also in the field of ivory permitting to obtain nowadays important information both on the material and on its age-dating. It is spectroscopically possible to distinguish authentic ivo-ry, made from elephant tusk, from other materials in imi-tation of it such as: bone, horn, or other natural materials (fig. 7). Even more immediate is the spectroscopic charac-terization of artificial materials used to make imitation such as: celluloid, galalith, ivorite and other artificial mate-rials.

Fig. 7

amberThe microscopic and chemical analyses allow to recognize authentic amber and to distinguish it both from copal (of similar composition, but not yet completely fossilized) and plastic materials used to imitate it (fig. 8).

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24 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

resumoEste artigo apresenta os diferentes métodos não-intrusivos a ser usados para a avaliação de cerâmicas de modo a tes-tar a sua autenticidade e providenciar uma possível crono-logia antes de se avançar para métodos intrusivos. Junta-mente com os métodos clássicos, tem-se procurado usar novos métodos óticos não-invasivos e a viabilidade desses métodos tem sido testada. A totalidade da coleção cerâmi-ca da Fundação Estrada foi avaliada usando métodos seme-lhantes. Este estudo constitui uma tentativa de estabelecer um protocolo para análises não intrusivas das cerâmicas do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte (miaa).Palavras-chave: cerâmicas, autenticidade, abordagem clás-sica, métodos ópticos.

abstractThis paper presents the different non-intrusive methods to be used for the assessment of ceramics to test their authentic-ity and give a possible chronology before going for intrusive methods. Along with the classical methods, there has been an attempt to use new optical non-invasive methods and the vi-ability of the methods has been tested. The whole ceramic col-lection of the Foundation Estrada was assessed using similar combined techniques. This study is an attempt to establish a protocol for non-intrusive analysis of the ceramics of the Museu Iberica de Arqueologia e Arte (miaa). Keywords: ceramics, authenticity, classical approach, optical methods.

development of methodological protocols for the evaluation of ceramics. Jayshree Mungur-Medhi instituto terra e memória

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26 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

developed and being used for the first time.The basics of the optical approach applied in this study were founded and de-veloped at the Museu da Scienza e Arte of Milan, Italy, under whom the author was trained before starting this study. So-me of these techniques have been developed by the author herself and are being used as experimentation; in the objec-tive of combining all these methods to establish a protocol for non-intrusive ceramic analysis at miaa.

The optical methods consist of a combination of several observation techniques, which the evaluator has to clear-ly apply on the ceramics. The methods can be grouped un-der four categories:

— Observation of post depositional effects It consists of identifying post depositional effects on the ceramics: once an artefact is deposited they are subjected to several effects such as cryoturbation, bio-turbation and others. Those agents often leave identi-fiable traces on the artefact such as encrustation, root marks, signs of distress in the form of cracks or cra-cklure due to pressure, weathering effect, stain of fun-gus or algae and others. Such traces indicate that the artefact is coming from archaeological contexts. Ho-wever, evaluators have to be careful as these marks are also imitated in fake ceramics: soil or cemented ma-terial are deliberately applied to create encrustation or patina, root marks are sometimes imitated by light brush and paint; cracks are imitated by creating artifi-cial pressure on pottery. Hence, a good observational potential is required to distinguish between the freshly created imitation marks and the genuine post deposi-tional traces.

Fig. 1 Example of a natural encrustation

Fig. 2 Stain of humidity and algae

Fig. 3 Cracklure of the varnish

Fig. 4 Cracklure in the fabric

introduction The study of the ceramics of the Foundation Estrada started in 2008–2009, whereby 10 ceramics with a doubtful origin, due to their typology, were subjected to thermolumines-cence dating. Classical approach of typological studies was used as a base to thereafter apply the dating method along with mineralogical and chemical analysis. The ten ceramics proved to be non-authentic (Mungur-Medhi 2011:57).

This initial study encouraged further research and helped to decide for the right approach and proper tech-niques to be applied on this collection. Thus, the second part of the study was enlarged; grouping the whole ceram-ics’ collection.

The ceramic collection pertains to different cultures in-cluding Greek, Iberian, Cypriotic, Roman and Islamic pottery.

This paper outlines in detail the methodologies applied on the evaluation of ceramics, especially the optical tech-niques; for, this study, is an attempt to establish a protocol for non-invasive evaluation of ceramics for miaa.

methodological developmentAs mentioned above the methodology is very important for this study and will hence, be clearly enumerated here, not only due to the diversified approach but also because of the experimental nature of some of the techniques.

The techniques used were: — Typology and Style — Iconography — Ceramography — Optical Approach — Thermoluminescence Dating

Typology and Style It forms part of the classical approach whereby the shape and style of the pottery is documented and compared to already build-up databases to give a cultural and chrono-logical association. It is the base for the study of antiquities and all the ceramics of the collection were first character-ized through this approach.

IconographyIconography in ceramics is not only a good indicator of the exact cultural association but also of the genuineness of any piece. Greek ceramics, in particular, are carriers of icono-graphical features. Icons are not simple figures that a pot-ter drew just out of his imagination, but they are withdrawn from a story or mythological source and they depict a typical moment or scene of the story or depict a special social con-text. Therefore, while comparing the icons to the mythology and time period of the associated culture, the evaluator se-eks to understand how far the icons correlate to the presu-med source. In imitations the icons often do not depict the ri-ght scene and certain features of the figure do not match with the source, due to the lack of understanding of the mytholo-gy by the imitators. This can be used as an important agent to test for the authenticity of ceramics. All the Greek ceramics of the collection were subjected to iconographical studies wi-th the help of Dr. Gustavo Portocarrero and Dr. Davide Del-fino and this approach already gave a preliminary indication of the authentic and non-authentic pieces.

CeramographyGraffiti on ceramics often referred as ceramography can gi-ve important information about the culture, the producer and even the exact workshop and location of its produc-tion. Simultaneously, it can indicate if a piece is authentic or not. Original ceramography is meaningful but on mo-dern pieces they are just scratches, as the imitators do not really know the ancient script and its association with a spe-cific piece. Distinguishing between the original meaningful letterings and copies, gives indications on the genuineness.

Letterings are often found on Greek and Roman pieces and with the help of a cryptologist one can know if they are meaningful writings of just ersatz. At miaa, letterings we-re often found on the Greek pieces and were deciphered by Dr. Davide Delfino.

Optical ApproachSeveral of the techniques of the optical approach are not commonly known and used and a few of them have been

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28 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

— Post-excavation treatment Within ceramic collections, there are many pieces which

have had some previous treatment before reaching the actual collection or museum. Post-excavation treatment, as it is called here, can be of various types and they have also to be identified while evaluating ceramics.

The concept of restoration untill the 1990’s, was to have an artefact completely restored giving it its origi-nal look. While, it is no more the approach today, we still have many artefacts in museums which carry the previous identity.

The restoration can be in the form of gluing of broken pieces, restoration of the paint and designs and moulding of missing pieces to complete the artefact.

With minute observation these restoration marks can be distinguished. Meanwhile, some of the traces can also be used to judge the authenticity of a piece. For instance, if the mud or encrustation is above the glue used to join the pieces instead of being under it, this can create doubt on the origin, for the glue would be applied after recuperating the pot from an archae-ological context and not before.

All the above mentioned identification traces can be observed by the naked eyes under proper lighting and by holding the ceramic under a proper angle. Mi-croscopic observation is also important to search for minute details. Nowadays, the digital microscope, which is handy and flexible and can easily be used on the outer and inner surface of ceramics, is of a great advantage. Moreover, observation under ‘Vood light’ has proved to be extremely useful. This technique is highly used by the Museu da Scienza e Arte. A Vood light tube which is a purple fluorescent light is used in a dark room and features like later added paint, fresh engravings, new patches, glue and many other facets can be identified (Matthaes 2000).

Thermoluminescence DatingBeing non-intrusive, the first four methodological approa-ches were applied for the assessment of all the ceramics of

the collection while a sample of 23 ceramics were selected for thermoluminescence (tl) dating.

As the optical techniques, to test the authenticity of ce-ramics are being used for the first time on the collection, tl dating was also used. tl dating is a long used established scientific method. The objective of using tl dating was not only give to the absolute dates of the ceramics but also to test the viability of the optical methods; that is, to help to confirm if the ceramics identified as authentic by the non-

-invasive methods indeed are or not. Samples were drilled out from the 23 pottery and prepa-

red for the dating in the same way as the study of the first 10 ceramics dated in 2009 (Mungur-Medhi et al 2010:53). Two to four discs of each sample were subjected to preliminary test to measure the dose, hence giving an idea if the sample is new or old and 15 to 20 discs are being used for complete dating. The dating is being undertaken at the Nuclear and Technology Institute, Lisbon Portugal under the guidance of Dr. C. Burbidge and Dr. I. Dias.

conclusionAll the non-intrusive methods illustrated above, proved to be very important. They are highly useful to assess museum collections. However, they have to be used in combination. It is highly precarious and inaccurate to draw conclusions based on one or two techniques only. To judge the authen-ticity of ceramics, it is imperative to use several of the op-tical approach techniques. There is no clear cut formula of what technique to apply or not; it should be like a snow-ball approach whereby the evaluator has to decide the next technique to be used based on the results of the previous one. These non-intrusive approaches are time consuming and demand lots of patience and careful observation skills.

The observation techniques applied on the ceramics helped to divide the collection into two main categories; one having doubtful origin and another which is most pro-bably coming from archaeological context. Further, the preliminary results of the tl dating are promising and are confirming the conclusion drawn from the non-intrusive methods.

— Used up traces or Worn up signs As artefacts are utilised, used up traces are left on them.

The artefacts can survive with these marks for thou-sands of years. Some examples of used up traces are: polished borders, reduction of thickness in some parts of the pottery especially the handle, fading of paint, rounded borders of the base or polished broken bor-ders of the base and liquid or food stain in interior of the vessel. These traces are indicators of long time use and can be identified.

The edges of broken pieces of pottery are also good indicators of authenticity; if the broken edges are rounded and weathered and when joined together do not get properly fixed leaving minor gap in between the broken pieces, it indicates that the broken pieces were subjected to weathering for a long period. Howe-ver, if the broken pieces have sharp edges and get fi-xed perfectly well together, it may indicate that it is a new ceramic.

— Imitation traces An evaluator has to look carefully to try to identify any

possible imitation traces. As mentioned earlier, post depositional effects and worn out traces are often imi-tated to give an old appearance. However, these imita-tions are identifiable.

Simultaneously, one has to observe the imitation traces in production. Features like engravings and paint especially for the decorative figures, leave dis-tinct identification marks, as they are fresh compared to authentic pottery and it can be perceived with close observation under proper light and angle.

Fig. 5 The surface breaking off due to long use

Fig. 6 Fading of varnish and paint

Fig. 7 Rounded broken edges due to weathering

Fig. 8 Comparison between authentic pottery engravings (above) and the freshly engraved pot (under)

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30 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

This study is an attempt to evaluate the ceramics and develop a protocol for the non-destructive study of the ce-ramics at miaa or for any other museum collection, and, after one year of experimentation and study, it can be said that this objective has been achieved.

AcknowledgementsI am very grateful to Estrada Foundation which gave the full support to use the collection and also provided me with fi-nancial support as a fellowship for one year. I would also like to thank Museu da Scienza e Arte Milano, Italy for the valu-able training provided to me in the use of optical methods. Further, I thank the Instituto Tecnologico e Nuclear, Lisboa where I have been working for nearly two years, with special thanks to the Geoscience team and my guides Dr. C. Burbid-ge and Dr. I. Dias. I am also grateful to Câmara Municipal de Abrantes for supporting this project. My sincere gratitu-de goes to Dr. D. Delfino and Dr. G. Portocarrero for their collaboration and support in this work. Above all, I express my gratitude to my professor, Dr. L. Oosterbeek, for giving me the opportunity to work on this project.

bibliografiamatthaes, gottfried (2000) — The Art Collector’s Illustrated Handbook

— How to tell authentic antiques from fakes, Milano: Garzanti Verga Editore. mungur-medhi, jayshree et al (2010) — “Archaeometric Contribution for Heritage Management, Compositional Analysis and dating of ceramics from a Portuguese collection”, in Annali dell’Università di Ferrara Museologia Scientifica e Naturalistica, volume 6: 53.mungur-medhi, jayshree (2011) — “Multi-analytical approach in the study of ceramics”, in Actas das i Jornadas Internacionais do miaa, Abrantes: Câmara Municipal de Abrantes.

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32 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

resumoO fenómeno dito “Orientalizante” ocorreu a partir do final do séc. ix a.c. até ao séc. vi a.c. em todo o Mediterrâneo e algumas regiões próximas, como Portugal. Tratou-se da difusão das artes, tecnologias e costumes sociais caracterís-ticos do Levante Mediterrâneo, que na esteira do comércio fenício provocaram importantes mudanças nas sociedades pré-clássicas. Também influências orientais alcançaram o Mediterrâneo Central, na esteira do comércio e da colo-nização grega. Os artefactos típicos deste fenómeno cul-tural revelam importantes avanços tecnológicos, como as técnicas de ourivesaria, de olaria, de vidraria, bem como a maciça introdução de materiais exóticos na alta sociedade como o marfim e os ovos de avestruz. A Coleção Estrada mostrou ser particularmente rica em artefactos deste pe-ríodo, permitindo assim efetuar um excursus sobre o fe-nómeno Orientalizante, o qual teve um importante papel na transição da Pré-História para a História, em Portugal. Palavras-chave: Orientalizante, Fenícios, novas tecnolo-gias, mudanças sociais.

abstractThe phenomenon called “Orientalizing” occurred from the late ninth century BC to the sixth century BC, throughout the Mediterranean and some nearby regions, such as Por-tugal. It was about the diffusion of the arts, technology and social customs of the Mediterranean Levant, which in the wake of the Phoenician trade caused important changes in pre-classical societies. Oriental influences also reached the Central Mediterranean in the wake of the Greek trade and colonization. The artifacts typical of this cultural phenom-enon reveal important technological advances, such as the techniques of goldsmith, pottery, glassware, as well as the massive introduction of exotic materials into the high soci-ety as the ivory and ostrich eggs. The Collection Estrada has shown to be particularly abundant in artifacts from this pe-riod, allowing therefore an excursus over the Orientalizing phenomenon, which had an important role in the transition from Prehistory to History in Portugal. Keywords: Orientalizing, Phoenicians, new technologies, so-cial changes.

a difusão do orientalizante e a circulação de bens de prestígio no mediterrâneo. alguns artefactos da coleção estrada. Davide Delfino instituto terra e memória grupo quaternário e pré-história do centro de geociências (uid76 fundação ciência e tecnologia)

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34 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

económicos e não benefícios cerimoniais, como no caso da troca de presentes nas sociedades pré-estatais da Idade do Bronze (Aubet 2009: 159): foi uma mudança radical que in-troduziu a conceção de troca comercial no sentido moder-no do termo. As motivações que levaram os Fenícios, espe-cificadamente de Tiro, a abrir (ou melhor, a voltar a abrir) as rotas comerciais no Mediterrâneo foram principalmen-te duas e cronologicamente sucessivas:

1 Abertura de novos mercados para as famílias que con-trolavam o comércio e que se relacionavam diretamen-te com o poder real de Tiro (sécs. x–ix a.c.);

2 Necessidade de manter a importância comercial frente à ameaça de subjugação política assíria (sécs. viii–vii a.c.).

Relativamente ao segundo ponto, é preciso esclarecer que depois do surgimento do Império neo-Assírio (sécs. x–ix a.c.) no atual Curdistão entre a Turquia e o Iraque, desde o séc. viii a.c. o Levante Mediterrâneo foi terra de conquista por parte dos reis Assírios (Liverani 2009: 779–

–784, 792–797). Já na primeira fase de expansão assíria, com Asurnasirpal ii (883–859 a.c.) a parte ocidental do Próxi-mo Oriente, ou seja o Levante Mediterrânico, foi sujeito ao poder assírio e nesta ocasião as cidades fenícias, sobretu-do Tiro, aproveitaram-se do seu rico comércio para se con-verter nos primeiros clientes dos reis assírios e, no entre-tanto, ficar à margem dos conflitos armados, entregando tributos ao Assírios (Aubet 2009: 82). Mas no final do séc. viii a.c., com o rei Tiglatpilesser iii (745–727 a.c.) houve uma verdadeira ocupação militar assíria em todo o Levan-te Mediterrânico, incluindo os territórios fenícios (ibid.: 84–85; Liverani 2009: 792–797). Foi para manter pelo me-nos a autonomia económica que Tiro reforçou a sua po-sição nas trocas comerciais mediterrânicas (Aubet 2009: 84). Nesta dinâmica, os comerciantes de Tiro tiveram um duplo papel:

1 Foram exportadores de matérias-primas exóticas e de produtos artesanais produzidos no Próximo Oriente (nomeadamente na Assíria, na Fenícia e no Egipto);

2 Foram importadores de matérias- prima estratégicas para o Império Assírio, como o cobre e o estanho.

marcas da presença fenícia no mediterrâneo central e ocidental: os materiais “orientalizantes” e as mudanças culturaisNos territórios tocados pela colonização ou pelo comércio fenício no ocidente mediterrânico e na fachada atlântica da Península Ibérica, há várias evidências de cultura ma-terial importada pelos Fenícios, que constituem simulta-neamente:

1 Prova arqueológica de um contacto direto ou indireto; 2 Fóssil diretor da passagem entre a Idade do Bronze e a

Idade do Ferro; 3 Marca de uma aculturação e uso de materiais de “gos-

to” orientalizante como status symbol por parte das eli-tes autóctones.

A cultura material é formada por dois conjuntos: 1 Cerâmica feita ao torno (antes desconhecido nestas re-

giões) e metalurgia do ferro; 2 Outros materiais de luxo de origem oriental, como a

pasta vítrea, objetos de marfim finamente trabalhados, ourivesaria com técnicas de perolado e filigrana (Bondí 2009:293–382; Almagro Gorbea 1986; Nicolini 1990).

Os Fenícios não foram os inventores ou os descobrido-res destas novas técnicas ou materiais. Foram sim os seus difusores ao longo do Mediterrâneo até ao Atlântico de téc-nicas originárias do Egipto (pasta vítrea, trabalho do mar-fim), da Assíria (trabalho do marfim, técnicas do perolado e da filigrana) e do Próximo Oriente em geral (cerâmica ao torno e metalurgia do ferro).

Os materiais levados pelos fenícios para o Mediterrâ-neo Central e Oriental tiveram uma dupla função nas so-ciedades indígenas:

1 Melhorar a qualidade de vida diária: alguns produtos, como a cerâmica feita ao torno, era mais rápida de fazer e, portanto, mais barata e acessível a mais pessoas; além disso permitia fazer formas mais elaboradas e mais prá-ticas para certos usos;

2 Dar às elites locais a possibilidade de possuir objectos feitos ou com técnicas ou com materiais “exóticos”, di-

o fenómeno orientalizanteComo “fenómeno” ou “ período” Orientalizante, entende-

-se a difusão da tecnologia, aspetos sociais, cultuais, urba-nísticos e, sobretudo, da escrita, típicos do Mediterrâneo Oriental (Síria-Palestina-Mar Egeu), levados para o Medi-terrâneo Central e Ocidental aquando da expansão comer-cial e colonial Fenícia, entre os sécs. ix e vi a.c., bem como da das cidades Gregas da costa anatólica e da Grécia con-tinental oriental.

Fig. 1 | Mapa do actual Líbano, com as cidades fenícias de Tiro, Sidon e Biblo (Bondí et al. 2009)

Os Fenícios eram originários de três cidades na costa ma-rítima do Líbano: Biblos, Sidon e Tiro (Bondí 2009: 3-4,12) (fig. 1). Esta última, já ativa desde o séc. xii a.c., cresceu nos

sécs. xi–x a.c. sendo o principal parceiro comercial dos Rei-nos de Israel e da Assíria, acabando por liderar as restantes cidades fenícias (Aubet 2009: 57–64) e a tornar-se a principal potência comercial da região. Foi de Tiro que partiram prati-camente todas as expedições para o Mediterrâneo Central e Ocidental (ibid.: 220, 231–241, 245, 269–271; Ruiz Mata 2006: 69) e a fachada atlântica do sul de Portugal (Arruda 2005: 26) entre os sécs. ix e viii a.c., que levaram à fundação das coló-nias, sendo de destacar: Cartago no norte da África (814 a.c.), Gadir na Andaluzia (760–750 a.c.) e Mothya na Sicília (final do séc. viii a.c.) (Aubet 2009: 231, 271, 246).

Sem dúvida, esta expansão, primeiro comercial e depois colonial, foi antecedida por contactos marítimos mais pon-tuais, seguindo antigas rotas comerciais que já na Idade do Bronze Média e Recente (sécs. xiv–xiii a.c.) os Micénicos tinham aberto desde o Mediterrâneo Oriental até à Sicília e à Sardenha e, através de intermediários, em direção do Le-vante Espanhol e do sul da Península Ibérica (Giardino 1995; Aubet 2009: 218–220; Bondí 2009: 90). Depois do colapso da civilização micénica e dos grandes poderes do Egeu Orien-tal no séc. xii (Knapp 1990: 152; Dickinson 2000: 304–307) que lideravam as rotas mediterrânicas, faltou um grande po-der central que controlasse o comércio marítimo. Essa foi a ocasião propícia para que a iniciativa privada e familiar to-masse conta das rotas e dos tráficos (Aubet 2009: 134–140), tendo então os comerciantes e navegadores Fenícios de Tiro um papel importante no reaproveitamento das rotas da épo-ca dos Micénicos no Mediterrâneo.

O fenómeno “Orientalizante” teve, portanto, em Portu-gal como noutras regiões por ele abrangidas, um importan-te papel no nascimento das sociedades urbanas e dos “povos” históricos ou também ditos pré-romanos. Na fachada atlân-tica e no sudoeste da Espanha os principais transmissores destas inovações foram os Fenícios, ao contrário de outras regiões, como a Etrúria, onde os modelos orientalizantes fo-ram introduzidos pelos Gregos de Foceia, Samo e Corinto.

Porquê os Fenícios ao longo do Mediterrâneo?O comércio Fenício foi recentemente interpretado como uma atividade de reciprocidade onde se buscam benefícios

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36 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

dos micénicos. Depois da “crise do séc. xii a.c.”, os merca-dores-navegadores de Tiro, Sídon e Biblos não fizeram mais que reaproveitá-las, sendo desta vez eles que as exploraram como principais atores comerciais.

Fig. 2 | Bilha com corpo ovóide de tipo cretense (sécs. xiii–xii a.c.) | ce00939 Dimensões médias: 2×3×4 cm

Nesta fase comercial e proto-colonial fenícia, o aspe-to “orientalizante” da cultura material é relativo a artefactos produzidos no Próximo Oriente e levados para o “Ultra-mar”, ou a artefactos “orientais” produzidos fora do Próxi-mo Oriente por artesãos fenícios.

Relativamente ao primeiro período de hegemonia co-mercial marítima Fenícia, com importantes centros em Ki-tion (Chipre) e em Myriandros (Síria) (Aubet 2002: 79), a Coleção Estrada conta com três peças de grande valor. Du-as delas são formas cerâmicas do tipo Phoenician Bichro-me Pottery:

1 Um askos de corpo oval com colo cilíndrico, asa e de-corado com engobe amarelo, com círculos concêntricos negros e linhas circulares vermelhas (ce00868), melhor definido como barrel-shaped jug e atribuível ao estilo bi-crome iv (Karagheorghis, Des Gagners 1974: 312) (fig. 3);

2 Um jarro de corpo esférico com colo cilíndrico, engobe amarelo, pinturas a negro e vermelho em círculos e es-

pirais (ce00854), definido como jug e atribuível ao esti-lo bicrome iv (Karagheorghis, Des Gagners 1979) (fig. 4).

Fig. 3 | Barrel-shaped jug decorado com pinturas do estilo bicrome iv (sécs. ix–viii a.c.). ce00868 | Dimensões médias: 27,3×23

Fig. 4 | Jug pintado decorado com pinturas do estilo bicrome iv (sécs. ix-viii a.c.). ce00854 | Dimensões médias: 30,5×25,2×17,5 cm

fíceis de achar e, portanto, indicadores de prestígio so-cial. O fenómeno dos materiais “exóticos” como status symbol é frequente também noutros períodos da pré e proto-história, mas no caso do período orientalizan-te mudou drasticamente o número de pessoas que po-deriam possuí-los: a partir desta época há muitos mais produtos a chegar ao Mediterrâneo Central e Ociden-tal e, portanto, aceder a eles passou a ser possível para muito mais pessoas nas sociedades autóctones.

A primeira fase dos tráficos marítimos Fenícios: o Mediterrâneo Oriental nos sécs. x–viii a.c. O primeiro verdadeiro circuito dos tráficos comerciais fení-cios, nomeadamente da cidade de Tiro, foi por terra em par-ceria com o Reino de Israel (entre 975 e meados do séc. ix a.c.) e acabou no reinado de Ahab em Israel (874–853 a.c.) (Aubet 2009: 118-120; Lipinsky 1987). Quase simultanea-mente houve um segundo circuito comercial terrestre, em direção ao norte da Síria e da Cilícia, no decurso do séc. ix a.c., mas isso terminou por causa da nascente potên-cia continental assíria e do poderoso reino arameu de Da-masco (Aubet 2002: 120–121). Para os Fenícios de Tiro, a única possibilidade de manterem os seus tráficos, foi pro-curar no mar os negócios que perderam no continente, in-crementando os tráficos marítimos que tinham ativado no Mar Egeu na mesma altura dos dois circuitos terrestres.

Como já foi evidenciado, os movimentos comerciais desde a costa da Síria-Palestina através do mar Egeu eram já bastante prósperos no final da Idade do Bronze: alguns destroços de naus que fundearam ao largo das costas da Anatólia, como os de Uluburun, Cabo Iria ou Cabo Ge-lydonia (Phelps et al. 1999; Karagheorghis 2002: 68–69) mostraram o grande volume de tráfico comercial entre os dois lados do Egeu, nomeadamente de cobre, estanho, prata, pasta vítrea, cerâmica (como contentor de produ-tos), marfim, só para mencionar os principais (Bass 1991; Pullak 1998). Depois da crise da civilização micénica e do Reino de Ugarit em torno do séc. xii a.c. (Dickinson 2010: 46–81) o controlo das rotas marítimas passou para as cida-des da Síria-Palestina que até esse momento tinham fica-

do como que “fechadas” por causa desses grandes poderes proto-estatais. Das cidades de Tiro, Biblos e Sídon parti-ram primeiro mercadorias e depois mercadores e artesãos que estabeleceram empórios na ilha de Chipre (Boardman 2001; Aubet 2002: 77–78; Karagheorghis 2002:144), que, em poucas décadas se tornaram verdadeiras colónias de comu-nidades fenícias como a de Kition (Karagheorghis 2000: 77). O interesse por esta ilha deveu-se aos seus recursos de cobre e de madeira, esta fundamental para a construção das naus na nascente potência marítima fenícia. Foi então na área en-tre a costa fenícia, a ilha de Chipre, a ilha de Creta e a costa da ilha de Eubeia (em frente à Ática, na Grécia), que as rotas co-merciais lideradas pelos fenícios de Tiro iniciaram a sua ati-vidade entre os sécs. xi e ix a.c., com particular prosperida-de nos sécs. x–ix a.c. (Aubet 2002: 57–58, 64–68).

Foi nestes lugares que foram vendidas mercadorias da costa da Síria-Palestina como móveis em marfim entalha-do, objetos em pasta vítrea e cerâmica feita ao torno com decorações cromáticas.

Relativamente a esta primeira fase de movimentos fe-nícios no Mediterrâneo, a Coleção Estrada conta com al-gumas peças significativas de um ponto de vista comercial, tecnológico e artístico.

Representativa do período imediatamente antecedente ao comércio fenício, ainda dos últimos tempos de domínio comercial micénico (séc. xii a.c.), quando as mercadorias viajavam entre Creta, o Peloponeso, Chipre e a costa da Sí-ria — Palestina, temos uma bilha com corpo ovoide, aber-tura circular no topo, colo cilíndrico estreito, duas asas em fita juntas ao colo (ce00939), de tipo cretense (fig. 2). Vá-rios exemplares iguais foram achados nos destroços de naus do final da Idade do Bronze como a de Cabo Iria no golfo de Argo (Grécia) (Vichos, Lolos 1997), sendo reconhecidos como contentores de líquidos (Karagheorghis 2002: 68–69), provavelmente azeite ou vinho. As rotas marítimas ativas nos últimos tempos de prosperidade micénica, e para as quais viajavam estas formas cerâmicas, já eram conhecidas pelos mercadores levantinos (Dickinson 2010: 243), entre os quais provavelmente os primeiro Fenícios da costa pa-lestiniana, que eram um dos variados parceiros comerciais

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38 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

famílias que os chefados do Mediterrâneo Central (como as da área etrusca), que adquirindo estas peças em material

“exótico” e de excelente valor artesanal, justificavam o seu poder com a própria capacidade de gerir comércios e tro-cas com o Mediterrâneo Oriental e, entretanto, iam adotan-do modas e costumes do Médio Oriente. Usando móveis de marfim (como as camas), costumando cuidar do próprio corpo com perfumes e ferramentas guardadas em píxides de marfim, pedindo aos próprios artesãos para decorar va-sos metálicos, cerâmicas e jóias com os motivos “orientali-zantes” dos marfins.

A primeira fase dos tráficos marítimos Fenícios: o Mediterrâneo Central e Ocidental nos sécs. viii–vi a.c. Nesta fase cronológica assiste-se, no que concerne à cultu-ra material, a uma progressiva mudança: não são só os ar-tefactos “orientais” que são ou importados ou produzidos fora do Próximo Oriente, mas são sobretudo as produções das regiões do Mediterrâneo a adotar e desenvolver nos seus parâmetros as temáticas e os modelos orientais.

Os fenícios de Tiro, que entretanto se tinha tornado na mais poderosa das cidades fenícias (Aubet 2002: 59–60,72), como resultado da cada vez maior pressão política e militar assíria na Síria-Palestina, alargaram os seus tráficos marí-timos ao Mediterrâneo Central e Ocidental. A procura de mais lugares fora do alcance da dominação assíria que ga-rantissem uma diversidade e continuidade de negócios era vital para que Tiro permanecesse aos olhos dos reis Assí-rios como um vizinho útil, como parceiro comercial, ali-ás vassalo, mais que como um estado que valesse a pena subjugar definitivamente ou destruir. De facto, Tiro paga-va tributos aos reis de Assíria desde o reinado de Ithobal (887–856 a.c.) em Tiro e de Assurnasirpal ii em Assíria (883–859 a.c.) (ibid.: 83–84), e até ao reinado do Tiglatpi-lesser iii (745–727) os Assírios não incomodaram dema-siado os fenícios de Tiro quer militar, quer comercialmen-te (ibid.: 84–85).

Foi neste período de relativa convivência com os pode-rosos vizinhos Assírios, que os interesses dos Tírios vão em direção às costas norte africanas, à Sicília, à Sardenha,

ao Levante espanhol e ao sul de Portugal, incrementando os tráficos em rotas marítimas conhecidas e esporadica-mente já frequentadas desde pelo menos o séc. xi a.c. (Li-verani 2009: 707). A implantação, nos finais do séc. ix da colónia de Cartago, na Tunísia e no séc. viii a.c. das coló-nias de Utica na Tunísia, Lixus em Marrocos, Motya na Si-cília, Gadir e Toscanos no sul de Espanha, marca a primei-ra presença estável fenícia ao longo do Mediterrâneo. Depois no séc. vii a.c. a fundação de outras colónias co-mo Tharros e Nora na Sardenha, Santa Olália e Abul na costa portuguesa (Aubet 2002: 177–180, 230,246, 298; Ar-ruda 2000) marcam a consolidação desta rede comercial ao longo do Mediterrâneo e não só. Relativamente a esta fase a influência fenícia, ou do mundo levantino, marcou de modo significativo a produção artística das várias áreas do Mediterrâneo, devido ao incrementar dos tráficos que aumentaram a circulação dos produtos quantitativa e qua-litativamente.

Paralelamente também as nascentes poleis gregas come-çaram a ter trocas comerciais com o Próximo Oriente, no-meadamente as que estavam na costa asiática do mar Egeu (Mileto, Samo, Foceia). Assim modelos artísticos orientais chegaram também à Grécia continental, influenciando Atenas e Corinto (Boardman 1996: 48–49), dando vida so-bretudo a uma pintura em cerâmica que adotou uma mo-da orientalizante, quer na organização das figuras, quer nos modelos figurativos, mas desenvolvendo também ca-racterísticas originais (ibid.: 57–65). Esta desenvolveu-se em diferentes escolas de pintura em cerâmica, das quais a mais famosa foi a Coríntia. Na Coleção Estrada existem al-gumas peças cerâmicas interessante neste estilo, dito Co-ríntio: entre estas a peça ce03686 (fig. 6), que é um aryba-los globular (uma forma para conter perfumes ou óleo), com decoração pintada com pigmento vermelho direta-mente sobe a cerâmica sem engobe. A decoração represen-ta uma figura feminina alada fantástica, identificável com uma hárpia. Formas destas, pequenas e valiosas, testemu-nham a difusão do costume do tratamento do corpo que na Grécia Clássica irá ser vulgar quer nas mulheres quer nos homens, como era típico no Próximo Oriente.

As duas peças testemunham a produção cerâmica e im-plantação de ateliês de ceramistas fenícios em Chipre entre os sécs. ix e viii a.c., dando origem a um tipo de cerâmica que é definido como “cipriota” (no caso das peças em ques-tão é “cerâmica bícroma cipriota”), mas que tem os seus mo-delos de origem na Síria-Palestina desde o séc. ix a.c., como as formas achadas no sítio de Sarepta, perto de Sídon (Líba-no) (Anderson 1988). O tipo “bicromo” é o primeiro na evo-lução da cerâmica fenício-cipriota, sendo depois do séc. viii a.c. substituído, gradualmente, pela técnica de red-slip, ou seja, o engobe vermelho (Oggiano, 2009a: 323). A decora-ção de cerâmicas com pinturas bicromas, é típico da Idade do Bronze tardia da costa da Palestina (Canaã), mas os moti-vos que são pintados nos vasos dos sécs. ix–viii a.c. não têm nada a ver com os padrões pintados na cerâmica da costa da Palestina: por isso, é possível que a cerâmica “Phoenician Bi-chrome Pottery” seja o resultado de uma produção fenícia fei-ta propositadamente para conter produtos para vender em Chipre, com formas “fenícias“ mas com decorações de gosto cipriota, promovendo assim os produtos nesta ilha (Gilboa 1999). Finalmente, foi só graças à nova tecnologia do torno rápido que foi possível produzir estas formas, propositada-mente pensadas para transportar vinho (ce00868) ou para conter e deitar vinho ou azeite (ce00854).

A terceira peça da Coleção Estrada, significativa do pri-meiro período de expansão fenícia no Mediterrâneo, é um fragmento de adereço em marfim (ce01222) (fig. 5), muito provavelmente parte de um cofre cilíndrico ou de um mó-vel. São representados neste fragmento, uma esfinge e uma cena de amamentação de um novilho, encaixados em mol-des formados por elementos vegetais, entre os quais folhas de papiro estilizados. O trabalho do marfim, para a produ-ção de móveis e objetos de toilette para satisfazer o merca-do, sobretudo as cortes reais assírias e mesopotâmicas, era prerrogativa de verdadeiros laboratórios-escolas na Síria, Palestina e Fenícia. O marfim era um material muito va-lioso, sendo raro (era obtido das presas do elefante india-no, africano e provavelmente sírio - que parece desaparecer em torno do séc. viii a.c.) e difícil de trabalhar, sendo pre-cisas técnicas artesanais finíssimas (Oggiano, 2009b: 365).

Fig. 5 | Fragmento de adereço em marfim, escola assíria ou “intermédia” (sécs. ix–vii a.c.). ce01222 | Dimensões médias: 5,9×8×0,6 cm

Entre os sécs. ix e vi a.c., floresceram quatros escolas de trabalho do marfim, cada uma com características técnicas e decorativas próprias: a escola assíria, a escola norte-síria, a escola fenícia e uma escola intermédia (Suter, Uhelinger 2005). Para as características da peça em exame, é possível excluir a sua associação com:

1 A escola fenícia, devido à ausência de técnicas decorati-vas sofisticadas como o uso de revestimento com lâminas de ouro, o uso da perfuração, do cloisonné, e do cham-plevé;

2 A escola norte-síria, pela ausência quer de sujeitos nar-rativos na cena entalhada na peça, quer de maior “liber-dade” na formulação das imagens, quer pela presença na peça de sujeitos de influência egípcia como a esfinge e os papiros.

Portanto é possível associar a peça ou a escola síria ou à “intermédia”.

O significado destes objetos de marfim no âmbito do fenómeno “orientalizante” é duplo: testemunham a gran-de habilidade dos mercadores fenícios de exportar, com grande sucesso, por todo o Mediterrâneo estes produtos de grande prestígio, mas também são sintomáticos da dife-rente natureza dos clientes que os compravam. Estes eram, de um lado, os reis e as cortes reais Médio-Orientais, que ordenavam peças específicas e que as usavam para fortifi-car o seu prestígio exibindo-as nos palácios; por outro lado,

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Fig. 8 | Unguentário de corpo piriforme (sécs. vi–i a.c.). ce00617 | Dimensões médias: 7×2,5×1,5 cm

Fig. 9 | Oinochoe (sécs.V–IV a.c.). ce01529 | Dimensões médias: 8,3×4,1 cm

Finalmente, a peça ce01529 (fig. 9) é um oinochoe datá-vel aos sécs. v–iv a.c. e, entre a pasta vítrea usada para fa-zer jóias, a peça ce03721 (fig. 10), um pendente em forma de cabeça masculina com barba datável do séc. iv a.c. (Bernar-dini 1996: 539; Uberti 1988: 480–482), é significativa da con-tinuidade de circulação no Mediterrâneo Centro-Ocidental de produtos produzidos no Mediterrâneo Oriental, quando

a colónia de Cartago se substitui à “mãe pátria” Tiro como centro da atividade fenícia (Garbati 2009: 104).

Uma produção artesanal que teve muito sucesso no mundo Mediterrânico e no sul de Portugal, no curso do fe-nómeno Orientalizante foi a joalharia em ouro. Era já desde o iii milénio a.c., uma tradição artística no Egipto, na Meso-potâmia e na costa sírio-palestinense (entre os maiores cen-tros produtivos Biblos, Ugarit e Gaza), com técnicas parti-culares que faziam das jóias verdadeiras obras de arte e que só chegaram ao Mediterrânio Ocidental depois do contacto com os Fenícios e os Gregos. A técnica da folha de ouro tra-balhada em volume foi criada no Egipto do Império Antigo ou na área suméria (iii dinastia de Ur), a técnica do perola-do foi desenvolvida na Mesopotâmia do ii milénio a.c. com os estados neo-sumérios de Larsa, na cidade elâmita de Su-sa e no Egito da xii dinastia e tendo-se difundido nos sécs. xviii–xvi a.c. na Síria-Palestina e em Creta (Nicolini 1991: 87, 132–133).

Fig. 10 | Pendente em forma de cabeça masculina com barba (séc. iv a.c.). ce03721 | Dimensões médias: 2,3×1,9×1,8 cm

A técnica de realizar objetos com volume (em três dimen-sões e não só em dois) com a folha de ouro, permitia fazer jóias com formas mais variadas, complexas e com mais possibilida-de de criação. Mas ao mesmo tempo, esta técnica possibilita-va a produção de jóias mais finas, onde não era preciso gastar tanto ouro, ao contrário das técnicas em ouro maciço típicas, por exemplo, do Bronze Final da Península Ibérica.

Fig. 6 | Arybalos globular, estilo orientalizante (séc. vii a.c.). ce03686 | Dimensões médias: 8,5×7,8 cm

Durante a colonização fenícia, e também grega, houve muita difusão de produtos em pasta vítrea. A criação deste material, que se pode considerar o primeiro vidro, foi feita séculos antes do “fenómeno” orientalizante, no Egipto e na Mesopotâmia do iii milénio a.c. (Uberti 1988: 474; Bondí 2009: 379). Trate-se de material obtido da fundição de uma massa de sílica, carbonato de cálcio, álcalis e pigmentos co-loridos, trabalhada a quente com dois bastõezinhos e for-mando pequenos contentores que imitavam as formas das cerâmicas, ou contas e outros componentes para jóias. Fo-ram os Fenícios que divulgaram este produto artesanal no Mediterrâneo, entre os sécs. vii–vi a.c., funcionando pri-meiro como intermediários entre os produtores egípcios e sí-rios e, depois, como produtores sobretudo na Fenícia, em Chipre e Rodes. Por isso os objetos de pasta vítrea são nor-malmente chamados “vidros fenícios”, embora não sejam nem de vidro propriamente dito, nem uma invenção fenícia. Até hoje, é duvidosa a hipótese de centros produtores nas co-lónias fenícias do Mediterrâneo Centro-Ocidental (Uberti 1993; Bondí 2009: 380): tal entra, no entanto, em desacordo com o “efeito orientalizante” visto na cerâmica, que fez flo-rescer muitos estilos autóctones ao longo do Mediterrâneo.

Parece então que os Fenícios mantiveram até quase ao séc. vi a.c. o monopólio não só do comércio, mas também da produ-ção (juntamente com os egípcios e o Próximo Oriente) da pas-ta vítrea. Este panorama faz dos “vidros fenícios” um material particularmente valioso, que explica muito bem a função e também o simbolismo que havia nos produtos exóticos nas sociedades do Mediterrâneo Centro-Ocidental: só quem era suficientemente poderoso para poder negociar com os merca-dores fenícios, poderia ter em casa contentores para a toilette e jóias de pasta vítrea.

Os “vidros fenícios” eram produzidos segundo uma téc-nica particular chamada “sobre núcleo de argila”; normal-mente os pigmentos usados eram o amarelo (oxido ferroso), o azul (com oxido de cobre), o branco (oxido de estanho) e o verde-azul (cor natural do vidro) (Uberti 1988: 474). Na co-leção Estrada podem encontrar-se algumas destas peças: — A peça ce00618 é um vasinho de corpo esférico com

colo troncocónico (fig. 7), datável entre o séc. vii e o séc. v a.c. (Harden 1981: 124);

— A peça ce00617 (fig. 8) é um unguentário de corpo pi-riforme de atribuição cronológica muito ampla, entre o séc. vi e o séc. i a.c. (ibid.: 132);

Fig. 7 | Vasinho de corpo esférico com colo troncocónico (sécs.vii- v a.c.). ce00618 | Dimensões médias: 9,4×7,3 cm

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Fig.12 | Dois brincos em forma de sanguessuga, cobertos de perolado em ouro (sécs. vi–v a.c.). ce02126 e ce02127 | Dimensões médias: 3,3×1,9×1 cm

— As peças ce02652 e ce02653 (fig. 13) são brincos em forma de corno, com decoração de esferas de ouro ali-nhadas e pendente em forma de fruto, possivelmen-te atribuíveis a uma produção da área etrusca entre os meados do séc. vi e o séc. iv a.c. (Marshall 1969). A associação entre o corno e a fruta, lembra a simbolo-gia da cornucópia, ou melhor o corno da abundância, o que na tradição grega simboliza a abundância, a fe-cundidade e a felicidade (Chevalier e Gheebrant 1982: 231). Por isso, e também em concordância com a data-ção bastante tardia, é possível pensar numa influência de técnicas orientalizantes (a folha de ouro em volume e o perolado), mas com um modelo simbólico-figura-tivo que já é grego.

Fig.13a e 13b | brincos em forma de corno, com pendente em forma de fruto, de provável produção etrusca (sécs. vi–iv a.c.).

ce02652 e ce02653 | Dimensões médias: 6,2×4,3×0.5 cm

Finalmente, há uma última categoria de materiais, espe-cificadamente exóticos e que se difundiram de modo consi-derável só nos finais do fenómeno Orientalizante: os ovos de avestruz. Este tipo de material era utilizado desde o vii mi-lénio a.c. na África do Norte, sendo depois presente na Me-sopotâmia em Ur, Kish, Mari e no Luristão (Irão ocidental) desde o iii e o ii milénio a.c., em palácios, templos e necró-poles (Savio 2004: 99). No Próximo Oriente, conforme a li-teratura das tábuas com escrita cuneiforme, a função do ovo era de oferta alimentar a divindades, de contentor, de me-dicamento e de objeto mágico, até se tornar símbolo de vi-da e da ressurreição no Egito (Finet 1982: 76). Os ovos de avestruz depostos em túmulos são documentados na Fení-cia desde o séc. vii a.c. (Lemaire 2002). A partir desta épo-ca há a hipótese de um comércio de ovos de avestruz, já tra-balhados, desde a Fenícia até ao Mediterrâneo Central, onde Cartago adquire cada vez mais um papel de centro produtor, levando o comércio destes produtos de luxo até ao Mediter-râneo Ocidental (Botto 2009), sendo achados sobretudo em contextos funerários. Os ovos eram de diferentes tipos (Sa-vio 2004: 27–90):— Cortados transversalmente a meia altura até obter uma

tigela, sendo depois pintado;

O perolado, técnica que permitia cobrir a superfície de uma jóia com centenas de pérolas de ouro microscópicas, ca-da uma das quais refletia a luz, dava a brincos, pendentes, fíbulas e outras realizações um aspeto brilhante e cativan-te. E além disso, permitia realizar decorações em repuxado, jogando entre o relevo do repuxado e o fundo, mais baixo, cheio de pérolas.

O uso de fio de ouro para construir padrões decorativos por cima das jóias, teve a sua origem no Mediterrânio Orien-tal no iii milénio a.c. (ibid.: 101). Tal permitia, encruzilhan-do fios de ouro muito finos, construir decorações por cima das jóias que davam maior fineza e elegância.

Estas técnicas eram bastante difíceis de realizar: não era possível então, para um ourives do Mediterrâneo Centro-

-Ocidental aprender estas técnicas só olhando as jóias fe-nícias ou observando rapidamente o trabalho de realiza-ção. Era preciso que, ou ourives fenícios se instalassem nos centros “indígenas” do Ocidente, ou comprar diretamente aos Fenícios as jóias. No caso da área Mediterrânio Central, nomeadamente na Etrúria, radicaram-se nas cidades etrus-cas ateliês de ourives de clara ligação com o Mediterrânio Oriental, sendo que desde o séc. vii a.c. os mesmos Etrus-cos desenvolveram uma produção própria especializando-

-se no perolado em particular (Nestler, Formigli 1994; Spi-vey 1997: 43–47).

Além das técnicas, os padrões decorativos, originários do Próximo Oriente, como animais (esfinges, leões, patos) ou motivos vegetais (flores de lótus, plantas de papiro) foram incluídos na produção de ouro do Mediterrâneo Ocidental. Ao contrário das técnicas, as figuras poderiam ser copiadas em pouco tempo pelos ourives não fenícios, sendo assim que jóias com temáticas orientalizantes difundiram-se em maior número no Mediterrâneo Centro-Ocidental, das que eram feitas com técnicas orientalizantes.

Algumas das peças da Coleção Estrada são de ourivesa-ria orientalizante: — A peça ce01289 (fig. 11) é o aro e a agulha de uma fíbula

em forma de sanguessuga, com decoração em perola-do e duas pombas em lâmina de ouro em cima do aro. A jóia é datável ao séc. vii a.c. e de provável produ-

ção etrusca (Pagnini 2000). É provável que os animais figurados no aro sejam mais pombas que patos. De facto na simbologia tradicional do mundo antigo, ha-via um significado mais amplo para a pomba: como o símbolo da realização amorosa que o amante oferece ao objeto de seu desejo, mas muitas vezes representa também aquilo que o homem contém de imperecível, ou seja o princípio vital, a alma (Chevalier e Gheer-brant 1982: 507, 533);

Fig.11 | Aro e a agulha de uma fíbula em forma de sanguessuga, provável produção etrusca (séc. vii a.c.). | ce01289 | Dimensões médias: 5,9×6,2×2 cm

— As peças ce02126 e ce02127 (fig. 12) são dois brincos em forma de sanguessuga, completamente cobertos de finíssimo perolado em ouro. Não é possível estabelecer se foram produzidos no Mediterrâneo Central ou Oci-dental, mas pela forma e pelo rico perolado é possível atribuir estes brincos aos sécs. vi–v a.c., sendo este o período do uso maciço do perolado nas jóias Mediter-râneo Ocidental (Almagro Gorbea 1986: 43);

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— Cortados transversalmente quase no topo, até obter um contentor, sendo depois pintado;

— Cortados frontalmente até obter uma máscara, sendo depois pintada;

— Inteiros, sendo furados no fundo para fazer evacuar o conteúdo.

Fig.14 | Ovo de avestruz (sécs. vi–iv a.c.). ce01186 | Dimensões médias: 14×12 cm

Na Coleção Estrada há um ovo de avestruz, peça ce01186 (fig. 14), inteiro com cinco furos para evacuação do conteúdo, muito provavelmente aproveitados depois para fixar um suporte, de modo que o ovo ficasse de pé. De certeza a peça sofreu um restauro com gesso, como se pode ver com a luz ultravioleta (fig. 15): isso não é anormal, acontecendo também em muitas peças conhecidas (Ac-quaro 1987: 63). Os ovos não pintados e inteiros são uma pequena minoria dos conhecidos, tendo paralelos em Car-tago, no séc. vi a.c., e no Levante espanhol, no séc. iv a.c. (Yacoub 1993; Savio 2004: 89–90).

Fig.15 | Ovo de avestruz (sécs. vi–iv a.c.). ce01186 | Dimensões médias: 14×12 cm

Fig.15 | Ovo de avestruz (sécs. vi–iv a.c.) visto em luz ultravioleta. ce01186 | Dimensões médias: 14×12 cm

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resumoNeste artigo, apresenta-se um conjunto de 68 fivelas visigó-ticas da Col. Estrada, mostrando as suas tipologias e sim-bolismos com elas relacionados. Palavras-chave: fivelas, visigodos, formas, símbolos.

abstractIn this article, it is presented a set of 68 visigothic buckles of Col. Estrada, showing its typologies and symbolisms. Keywords: buckles, visigoths, forms, symbols.

fivelas de cinturão visigóticas da coleção estrada (séc. v–viii d.c.): formas e simbolismos identitários, sócio económicos e funerários. Gustavo Portocarrero cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa

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Estas fivelas de cinturão tinham um simbolismo, simul-taneamente, identitário, sócio-económico e funerário.

Identitário, porque eram usadas somente pelos Visigo-dos, distinguindo-se desta forma da população hispano-

-romana que estava sob o seu domínio. Os Visigodos já usa-vam este género de fivelas antes de se instalarem no Império Romano e continuaram a usá-los depois de terem formado um estado autónomo na Península Ibérica na sequência da queda do Império Romano do Ocidente.

Mas também estas fivelas demonstravam estatuto sócio--económico. Note-se que nem toda as pessoas enterradas em cemitérios visigóticos tinham estas fivelas (aa. vv. 2007). Por outro lado, estas fivelas pertenciam sobretudo a um es-trato social intermédio, dado que imitavam as de persona-gens ainda mais ricas e poderosas, as quais eram feitas de ouro e pedras preciosas. As fivelas aqui expostas são de bronze, cuja cor dourada imita o ouro, e têm muitas vezes vidro e pasta vítrea que imitam pedras preciosas como se pode ver, por exemplo, em algumas peças que têm vidro ver-melho a imitar granadas. A única excepção é uma peça fei-ta em bronze, mas coberta por uma folha de ouro (fig. 4).

Fig.4 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce002324 | Dimensões médias: 3,7×7,1×0,8 cm

Finalmente, também tinham um uso funerário. Em pri-meiro lugar, convém notar que as fivelas fechavam cinturões, sendo que, neste contexto o seu simbolismo servia essencial-mente para indicar uma ligação, para vincular (Chevalier e Gheerbrant 1994: 486), neste caso o falecido com o Cosmos, abraçando-o num círculo contínuo que impede a sua desin-

tegração (ibid.: 483, 595), funcionando, assim, como talismã protector. Este carácter apotropaico é igualmente visível, em várias cruzes, geralmente de cor azul (a cor do Céu), que in-dicam igualmente o estatuto cristão do falecido, embora, contrariamente às populações hispano-romanas, os visigo-dos fossem arianos e não católicos (fig. 5).

Fig.5 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce00548 | Dimensões médias: 10,1×5,1×0,7 cm

As cores predominantes nestas fivelas são o verde e o vermelho. A primeira está relacionada com uma natureza que se renova (ibid.: 682–685), sendo isso o que o falecido esperava para a sua alma: a ressurreição (fig. 6). Em alguns casos, chegam mesmo a ser representadas nas placas folhas, símbolos da natureza, de modo a enfatizar com mais força essa ligação (fig. 7). Já no caso do vermelho, a multiplicida-de de cabuchões (fig. 8) permite supor a representação das sementes da romã, de cor vermelha, fruto que, na tradição cristã, simboliza a perfeição divina (ibid.:574, 575), mos-trando assim, uma vez mais, as expectativas do morto para a vida no Além.

Em finais do século vi, este modelo de fivelas foi aban-donado e substituído por outras de influência itálica e bi-zantina (Ripoll 1998: 56–66). Relativamente às suas formas, as itálicas eram caracterizadas por uma placa rígida que se encontrava unida ao aro (fig. 9); já nas bizantinas o aro es-tava separado da placa (fig. 10). Quanto à decoração, ela era incisa e sem pedras preciosas ou vidros, diferenciando-se assim das soluções técnicas do período anterior.

Os estudos arqueológicos em Portugal relativamente ao pe-ríodo Visigótico, entre os séculos v e viii d.c., têm sido poucos e parcelares, sendo as áreas mais estudadas a arqui-tectura e a escultura (e.g. Almeida 1986, Maciel 1995). Estu-dos sobre torêutica, a arte de trabalhar o metal, têm sido praticamente inexistentes (uma excepção recente pode en-contrar-se em Arezes 2011). Ora é exactamente na torêuti-ca que tem lugar uma das mais importantes manifestações materiais desta época: as fivelas de cinturão. A Col. Estrada possui um numeroso grupo de fivelas de cinturão visigóti-cas, num total de 68, sendo uma das mais importantes co-lecções que existe sobre este género de peças a nível mun-dial. Tendo em conta o panorama desolador dos estudos de torêutica visigótica em Portugal, o estudo cuidadoso destas peças torna-se, assim, bastante necessário, algo que será fei-to neste artigo, através da apresentação das formas existen-tes, bem como da análise de aspectos identitários, sócio-

-económicos e funerários destas peças.Relativamente à análise das formas, este artigo baseia-

-se em estudos sobre a mesma temática feitos em Espanha. Nas últimas décadas têm ocorrido nesse país uma grande quantidade de escavações em cemitérios da época visigóti-ca, algo que permitiu obter uma grande quantidade de five-las e apurar melhor as suas formas e cronologias (e.g. Ripoll 1998, Serrano 1999, aa. vv. 2007). Já no caso da Col. Estra-da, as peças foram obtidas no mercado de antiguidades, pe-lo que não se conhece o seu contexto arqueológico. No en-tanto, como os Visigodos ocuparam a totalidade da Península Ibérica e como todas as peças da Col. Estrada têm paralelos com outras encontradas em Espanha, serão assim utilizados as cronologias e tipologias obtidas nas es-cavações espanholas.

As peças existentes na Col. Estrada dividem-se em dois grandes grupos: as de influência danubiana, datáveis de fi-nais do séc. v a finais do século vi (num total de 26 peças), e as de influência itálica/bizantina, datáveis de finais do séc. vi a inícios do séc. viii (num total de 42 peças).

No tocante ao primeiro grupo, trata-se de peças feitas em bronze e constituídas por um aro e uma placa rectan-gular com decoração constituída por motivos geométricos

(Ripoll 1998: 47–56). Algumas destas placas têm decoração fundida (fig. 1), outras têm cabuchões com vidros ou pe-dras preciosas (fig. 2), sendo as restantes (a maioria) feitas em cloisoneé (fig. 3).

Fig.1 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce03653 | Dimensões médias: 6,6×12,7×1,7 cm

Fig.2 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce03657 | Dimensões médias: 5,7×11,7×0,8 cm

Fig.3 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce00542 | Dimensões médias: 12×6,5×0,7 cm

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qualquer fivela e um minúsculo grupo usava fivelas de ou-ro (aa. vv. 2007).

Portanto, as fivelas continuaram a ser usadas como in-dicadores de estatuto sócio-económico. Os mais ricos usam o ouro e os que têm algumas posses usam o bronze. Ainda assim, note-se que, mesmo nestas fivelas de bronze é possí-vel também notar alguma hierarquização: assim, enquanto que algumas são simples e sem decoração (fig. 11), outras apresentam um maior cuidado na sua elaboração (fig. 12).

Fig.11 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03179 | Dimensões médias: 12,9×7,3×0,3 cm

Fig.12 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03158 | Dimensões médias: 4,1×10,6×0,3 cm

Por último, o simbolismo funerário de cariz cristão con-tinua, mas também com algumas diferenças face ao perío-do anterior. A imagem da cruz mantém-se em algumas das placas (fig. 13); outras apresentam pequenos círculos que simbolizam provavelmente a protecção contra o mau-olha-do (fig. 14), sendo vulgar encontrá-las nas fivelas mais sim-ples como substituição da decoração mais complexa, sem dúvida de elaboração mais custosa; outras ainda, sobretu-

do as bizantinas, têm várias cabeças estilizadas que têm si-do interpretadas como grifos (Ripoll 1998: 144, 146), os quais, neste contexto têm uma função apotropaica guar-dando as almas dos mortos na sua ascenção ao paraíso ce-leste (Chevalier e Gheerbrant 1994: 358) (fig. 15). Dois gri-fos afrontados podem igualmente ser vistos numa das placas, com o mesmo significado (fig. 16). Um último ani-mal fantástico aqui representado é uma quimera, também com uma função apotropaica (Ripoll 1998: 164) (fig. 17).

Fig.13 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03188 | Dimensões médias: 3,8×9,6×0,3 cm

Fig.14 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03195 | Dimensões médias: 3,4×8,9×0,3 cm

Fig.15 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03186 | Dimensões médias: 1,7×5×0,2 cm

Fig.6 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce03656 | Dimensões médias: 6,7×12×0,9 cm

Fig.7 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce03659 | Dimensões médias: 6,4×11,5×1,4 cm

Fig.8 | Fivela visigótica (sécs. v–vi). ce03658 | Dimensões médias: 6,2×12,6×2,8 cm

Fig.9 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03197 | Dimensões médias: 3,9×8,4×0,3 cm

Fig.10 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03159 | Dimensões médias: 4×11,2×0,4 cm

À semelhança das fivelas do período anterior também se po-de fazer uma leitura identitária, sócio-económica e funerária.

Começando pela primeira, ao longo do século vi hou-ve várias ameaças internas e externas ao domínio visigóti-co sobre a Península Ibérica, o que levou a que estes, em fi-nais desse século, procurassem uma união com a população hispano-romana. O acto mais importante desta união foi o abandono do arianismo e a conversão dos Visigodos ao ca-tolicismo. Mas a sua anterior religião não foi a única coisa que abandonaram: também toda a cultura material que de, alguma forma, os diferenciava da população hispano-ro-mana também foi abandonada. É assim que no tocante às fivelas de cinturão os modelos usados pelas populações his-pano-romanas, de inspiração itálica ou bizantina, acaba-ram por ser adoptados (Ripoll 1998: 58, 60).

Relativamente ao estatuto sócio-económico, à seme-lhança do que acontecia com o grupo de fivelas anterior, as escavações arqueológicas também revelaram que só algu-mas pessoas usavam fivelas em bronze; outras não usavam

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Fig.16 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03654 | Dimensões médias: 5,4×14,1×0,7 cm

Fig.17 | Fivela visigótica (sécs. vi–viii). ce03655 | Dimensões médias: 4,7×10,3×0,9 cm

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resumoEste trabalho pretende, antes de mais, apresentar as estelas fu-nerárias que fazem parte do espólio do Museu D. Lopo de Al-meida, em Abrantes, e, fazer o ponto de situação relativamen-te aos dados arqueológicos disponíveis para conhecermos a história de Abrantes durante a Idade Média.Palavras-chave: estelas funerárias; Idade Média; necrópo-les; Abrantes.

abstractThis work attempts to present the funerary stelae which are in the Museum D. Lopo de Almeida, in Abrantes, and to make a synthesis of the available archaeological data in or-der to better understand the history of Abrantes during the Middle Ages.Keywords: funerary stelae; Middle Ages; necropolises; Abrantes.

estelas funerárias medievais no espólio do museu d. lopo de almeida. Filomena Gaspar câmara municipal de abrantes

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A este facto acresce que, da observação atenta do espa-ço onde esta igreja se desenvolve, facilmente se conclui que o pequeno morro que possivelmente albergava a Igreja e Adro velhos, foi parcialmente cortado dando lugar ao ter-rado para o espaço sagrado que se queria maior.

Em relação à necrópole propriamente dita, além de cer-ca de sete dezenas de enterramentos, feitos em sepulturas escavadas na rocha, com evolução do complexo para o sim-ples (os primeiros enterramentos fazem-se em sepulturas antropomórficas que vão evoluindo para as modestas se-pulturas ovaladas ou simples covachos), foi possível reco-lher apenas algum espólio funerário de uso pessoal e al-guns numismas.

É pois de crer que quando se construiu a pequena Igreja para albergar os restos do Santo, a sua dimensão foi planea-da apenas para essa função, sendo mais tarde necessário au-mentá-la devido ao facto de esta se ter tornado insuficien-te para albergar uma crescente freguesia.

Por outro lado, não esqueçamos que é possível que pelo menos antes da fundação de S. Vicente, parte da população ainda não estivesse plenamente cristianizada.

A segunda questão que se nos coloca é saber o que faz uma necrópole num espaço relativamente próximo de San-ta Maria do Castelo, onde também temos uma necrópole.

Do nosso ponto de vista, é possível que o primitivo tem-plo de Santa Maria do Castelo estivesse originalmente fora das muralhas, muito mais pequeno e isolado num peque-no afloramento rochoso. Da escavação do sítio verificámos que a praça que hoje conhecemos não existia na Idade Mé-dia, sendo o resultado do fecho do fosso antigo que ali exis-tia e, da regularização do pavimento para albergar estru-turas militares, possivelmente a partir já de inícios do séc. xviii. A existência de um pequeno muro parece apontar para a possibilidade da existência de pelo menos um muro de protecção da necrópole.

Neste espaço teríamos, assim, um pequeno morro sepa-rado daquele do Castelo por um fosso, que possivelmente já existia durante o período da dominação islâmica da área, tal como parece indicar a presença de alguns fragmentos cerâmicos nos níveis mais profundos deste.

A questão da alteração relativa à localização do pri-meiro templo de Santa Maria também pode ser facilmen-te compreendida se pensarmos que ao contrário daquilo que é mais comum nas cidades com castelo, a primeira pa-róquia de Abrantes foi S. Vicente, possivelmente por Santa Maria não ter na altura grande importância.

A presença de cerâmicas possivelmente islâmicas dentro da Igreja, junto ao altar-mor, por outro lado, poderá explicar a construção já relativamente tardia do templo cristão nes-te espaço, uma vez que se tratava de espaço já possivelmen-te sagrado em período romano e islâmico e, por isso mesmo, com uma forte carga de paganismo associada.

Uma terceira questão se coloca em relação a esta necró-pole. Trata-se de saber por que razão, num território doa-do à Ordem de Santiago em 1179, aparece uma necrópole com estelas templárias.

Na nossa opinião, tal acontece porque no espaço de tempo que medeia entre a reconquista do espaço e a doa-ção à ordem de Santiago, Abrantes estaria ainda integrada no território sob protecção da Ordem do Templo que te-rá sido responsável pela reconquista da estrutura de defe-sa insipiente que ali já existiria durante o período islâmico.

caracterização das estelas funerárias medievais de abrantesEntre o acervo do Museu D. Lopo de Almeida encontram-

-se, neste momento quatro estelas funerárias. Duas terão dado entrada logo no início do século xx,

recolhidas pelo director do Museu, Diogo Oleiro. As outras duas entraram recentemente.

As primeiras são oriundas do espaço que medeia a Igre-ja de Santa Maria do Castelo e as actuais casas de banho, na área comumente designada por “Jardim do Stoffel” (figs. 1, 2 e 3), as segundas foram recolhidas na “Parada Abel Hipó-lito”, vulgo Heliporto, hoje Praça D. Francisco de Almeida (figs. 1, 4 e 5).

As primeiras têm como origem, os trabalhos levados a ca-bo naquele espaço, aquando da construção do jardim, as ou-tras provêm de contexto arqueológico seguro — trabalhos de caracterização prévia à requalificação da praça.

introdução Este trabalho pretende, antes de mais, apresentar as estelas funerárias que fazem parte do espólio do Museu D. Lopo de Almeida e, fazer o ponto de situação relativamente aos dados arqueológicos disponíveis para conhecermos a ocu-pação de Abrantes durante a Idade Média.

Até meados dos anos noventa do século xx, a colecção do Museu Municipal D. Lopo de Almeida era constituída essencialmente por arte sacra, sendo o espólio arqueológi-co representado por elementos arquitectónicos oriundos de recolhas superficiais ocasionais, bem como alguns artefac-tos resultantes de trabalhos levados a cabo no início do mes-mo século pelos proprietários de alguns sítios arqueológicos.

Destes elementos, a maioria seria cronologicamente atribuível ao período romano, o que não será estranho da-da a forte ocupação do território abrantino durante este pe-ríodo histórico.

A partir de meados dos anos noventa, a autarquia passa a dispor de um gabinete de arqueologia, aumentando assim substancialmente o número de bens arqueológicos à guar-da do Museu, por via do aumento de trabalhos arqueológi-cos realizados no Concelho.

São sobretudo trabalhos de emergência, acompanha-mento de obra, escavação ou prospecção sistemática.

Paralelamente, investigadores externos foram também fazendo trabalhos arqueológicos na nossa área, quer resul-tantes da necessidade de minimização de impacto de obra, quer de investigação planeada e associada a entidades vo-cacionadas para o ensino e investigação, como o ipt.

Destes trabalhos, resultou um aumento do conheci-mento sobre a forma como o território foi sendo ocupado, a forma como cada ocupante preferiu e seleccionou par-te do território mediante as suas características físicas e os seus recursos.

Vai-se constituindo assim, um manancial de informa-ção que vai permitindo uma reinterpretação do espaço on-de vivemos e colmatar muitas das lacunas da documenta-ção escrita, quando se trata de períodos históricos.

No caso da Idade Média, sabemos que muitos dos do-cumentos terão desaparecido, sendo portanto muito escas-

sos os que nos ficaram e, os dados resultantes dos trabalhos, apesar de insuficientes por enquanto, podem ajudar, senão a esclarecer as dúvidas, pelo menos a colocar hipóteses de trabalhos que orientem a investigação no futuro.

Efectivamente, não podemos esperar que o que encon-tramos no terreno esclareça, por si só, todas as dúvidas que temos sobre o modo e o momento em que Abrantes nas-ceu como aglomerado populacional. Mas podemos esperar ir completando o quebra-cabeças, pouco a pouco.

As estelas funerárias constituem mais uma das peças destes jogos de descoberta. Assim, comecemos por anali-sar estes elementos, nunca os separando do seu contexto. as necrópoles de abrantesTal como havíamos referido, os dados de campo, ainda que por vezes se apresentem como modestos do ponto de vista material, no caso de Abrantes revestem-se de uma impor-tância enorme.

Efectivamente, para além dos dados sobre as caracterís-ticas físicas e sociais das populações inumadas, a escavação destas necrópoles colocou algumas questões importantes a que urge responder.

A primeira questão que se nos colocou surgiu após a es-cavação do Adro Velho de S. Vicente e obrigou-nos a equa-cionar a veracidade das afirmações que dizem respeito à lo-calização da primeira Igreja de São Vicente.

A acreditar nas leituras que se fazem dos documentos, um dos altares da Igreja de S. Vicente manteve-se depois de reconstruída e alargada a Igreja. Esta leitura faria pensar que o primitivo templo se localizaria exactamente no mesmo lo-cal que a actual Igreja, sendo diferente apenas o seu tamanho.

Contudo, a necrópole mais antiga (séc. xiii a meados de xvi) desenvolve-se nos quintais que vão da actual casa paroquial até à Rua Actor Taborda, tendo-se observado no Adro actual durante as obras de iluminação apenas enter-ramentos cronologicamente atribuíveis à fase de reconstru-ção da Igreja em finais do séc. xvi. Por outro lado, na área escavada do adro antigo, à excepção de dois enterramentos de crianças deficientes, não se identificaram enterramentos contemporâneos do novo templo.

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58 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Fig. 3 | Estela rectangular em calcário oriunda do ”Jardim do Stoffel”. Castelo/Fortaleza de Abrantes

Fig. 4 | Estela discóide recolhida na Necrópole do Heliporto Castelo/Fortaleza de Abrantes

Fig. 5 | Estela discoide recolhida na necrópole do heliporto. Castelo/Fortaleza de Abrantes

bibliografiabranco, gertrudes et alli (2008) — Outeiro do Vale: sepulturas de Nogueira de Côta (Côta, Viseu), CuPAUAM 34.alegria, antónio (2007) — “As estelas Medievais do Museu de Évora”, in Cenáculo — Boletim online do Museu de Évora, 02.batata, carlos (1997) — As origens de Tomar – Carta Arqueológica do Concelho, Câmara Municipal de Tomar: Tomar.batata, carlos (1998) — Carta Arqueológica do Concelho da Sertã, Câmara Municipal da Sertã: Sertã.batata, carlos e moreira, beleza (1983) — Tomar na Arte Antiga, Catálogo da Exposição, Câmara Municipal de Tomar: Tomar.candeias da silva, joaquim, batista, álvaro e gaspar, filomena (2009) — Carta Arqueológica de Abrantes, Câmara Municipal de Abrantes: Abrantes.chambino, mário lobato (2009) — “Estelas Medievais da Igreja Matriz do Rosmaninhal”, açafa, 2.

Fig. 1 | Mapa de localização das estelas (azul) e necrópoles escavadas (quadriculado) Castelo/Fortaleza de Abrantes

Do ponto de vista cronológico, são também peças bas-tante diferentes, conquanto as que são oriundas da necrópo-le de Santa Maria do Castelo parecem corresponder a um pe-ríodo ligeiramente mais tardio que as que foram encontradas no contexto da Necrópole do Heliporto.

Do ponto de vista formal, três são estelas discóides, a quarta é rectangular.

Três são de calcário e apresentam a quase totalidade do espigão, a outra é de xisto micáceo, idêntico ao dos elemen-tos arquitectónicos encontrados na Igreja e que terão pos-sível origem local e já não apresenta o habitual espigão que permitia coloca-la junto à cabeceira da sepultura.

Em relação á decoração, as duas peças recolhidas na Ne-crópole do Heliporto apresentam cruz templária de braços curvilíneos, tanto no reverso como no anverso.

Das peças achadas no “Jardim do Stoffel”, a estela rectan-gular apresenta no anverso um círculo duplo onde a cruz de braços curvilíneos templária se termina numa singela de-coração em cercadura simples, igualmente em alto-relevo. O centro da cruz apresenta uma rosácea simples. O reverso não apresenta decoração.

A estela discóide de xisto micáceo apresenta estilização de cruz, idêntica em ambos os lados.

Cronologicamente, as estelas discóides originárias do Heliporto parecem pertencer ao séc. xii, sendo as estelas provenientes de Santa Maria do Castelo ligeiramente mais tardias — entre os séc. xiii e xiv.

Fig. 2 | Estela discoide em xisto micáceo oriunda do “Jardim do Stoffel”. Castelo/Fortaleza de Abrantes

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60 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

resumoA partir de 1922 foi sendo recolhida na igreja de Nossa Se-nhora do Castelo, em Abrantes, uma significativa colecção de imaginária medieval, renascentista e barroca, em pedra, em madeira e em terracota, que veio a formar, com outro espólio, o Museu D. Lopo de Almeida, que aí se instalou. Com essa colecção se podia apresentar uma evolução da Escultura Portuguesa, do século xv ao século xviii, com base em peças oriundas das igrejas e dos conventos extin-tos da cidade. Estas colecções serão integradas no Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes, como já foi, por diversas vezes, afirmado. Nesse conjunto destacam-se a es-tatuária avulsa e a escultura retabular em pedra do Renas-cimento que vamos analisar neste texto.Palavras-chave: estatuária; retábulo; reconstituição; Renas-cimento.

abstractSince 1922 it has been collected in the church of Our Lady of the Castle, in Abrantes, an importante collection of me-dieval, renaisasance and baroque sculpture in stone, wood and terracota, which became the core of the Museu D. Lopo de Almeida. With this collection it was possible to present an evolution of the Portuguese Sculpture, from the 15th to the 18th centuries, being the provenance of the pieces former churches and convents of Abrantes. These collections will be integrated in the Museu Ibérico de Arqueologia e Arte of Abrantes, as it has been said, several times, before. In this set of sculptures, the statues and a retable in stone of the Renais-sance are among the most importante and are going to be analysed in this text.Keywords: statues; retable; reconstitution; Renaissance.

escultura do renascimento em abrantes: estatuária avulsa e fragmentos de um retábulo narrativo Fernando António Baptista Pereira cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa

Francisco Henriques cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa

Gustavo Portocarrero cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa

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62 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Fig. 4 | S. Marcos | Igreja de Santa Maria do CasteloFig. 5 | S. Mateus | Igreja de Santa Maria do Castelo

Fig. 6 | S. João | Igreja de Santa Maria do Castelo

O terceiro conjunto, que se apresentou pela primei-ra vez na iv Antevisão do miaa, é constituído por duas es-tátuas sem cabeça que, ao contrário das restantes mencio-nadas, não são de vulto perfeito mas sim meias figuras, o que indicia a sua integração em nichos de um portal ou arco triunfal ou em nichos secundários de um retábulo. O desgaste patente numa delas dá a entender que talvez esti-vesse exposta aos elementos. Numa delas é discernível uma filactera, atributo habitual de profetas ou sibilas (fig. 7). Na outra parece divisar-se um animal aos pés da figura, o que apontaria para um dos quatro evangelistas (fig. 8).

Fig. 7 | Profeta | Igreja de Santa Maria do CasteloFig. 8 | Evangelista | Igreja de Santa Maria do Castelo

fragmentos do retábulo dos passos da paixão de cristo da primitiva capela do santíssimo sacramento da igreja de s. joão Em 1943, aquando da regularização do adro da igreja de S. João, em Abrantes, foram identificados cerca de 20 frag-mentos de pedra calcária, com decoração quinhentista. Es-ses fragmentos foram recolhidos nessa altura por Diogo Oleiro e levados para o Museu Lopo de Almeida (Oleiro s/d).

A decoração destes fragmentos é bastante variada. Dois deles apresentam episódios narrativos. No mais interessante de todos vê-se uma cena da Via Sacra, com Cristo levando a cruz às costas e Santa Verónica beijando a túnica do Redentor e ostentando um pano com a Vera Efígie do Salvador (fig. 9).

escultura em pedra do renascimento das igrejas e conventos de abrantes Em primeiro lugar, temos de considerar três conjuntos de imagens em Pedra de Ançã que terão pertencido a estru-turas retabulares ou a portais ou, eventualmente, a arcos triunfais que integrassem nichos à maneira de retábulo.

Fig. 1 | S. Bartolomeu | Igreja de Santa Maria do Castelo

A um primeiro conjunto, eventualmente um Apostola-do de um portal ou de um retábulo, pertencem a excep-cional escultura representando S. Bartolomeu (fig. 1) e um outro Apóstolo — talvez S. Pedro (fig. 2) — a que se po-de associar uma outra representando um Profeta ou um Rei Mago (fig. 3). A primeira citada documenta, no seu ri-gor plástico, na pose “serpentinata” e na ousada anatomia

de “esfolado”, a plena assimilação do Renascimento pelas oficinas de Coimbra, resultante da actividade de esculto-res franceses na cidade, nomeadamente Nicolau Chante-rene, de 1518 a 1528.

Fig. 2 | S. Pedro(?) | Igreja de Santa Maria do CasteloFig. 3 | Profeta ou Rei Mago(?) | Igreja de Santa Maria do Castelo

Um segundo conjunto é formado pelas representações de três dos quatro Evangelistas. Ainda que as alegadas pro-veniências destas peças não sejam coincidentes, as suas ca-racterísticas materiais e iconográficas parecem indicar que pertenceram ao mesmo conjunto, de que falta um quarto evangelista, S. Lucas, que faria par com o S. Marcos (fig. 4), constituindo o S. Mateus (fig. 5) e o S. João (fig. 6) o outro par, definindo possivelmente registos sobrepostos de um portal ou de um retábulo. Em especial o S. João Evangelis-ta reflecte, na caracterização individualizada e expressiva do rosto, a disseminação do gosto renascentista pelas oficinas de Coimbra que resultou da permanência nessa cidade do já citado escultor francês Nicolau Chanterene, de 1518 a 1528.

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64 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

o arco triunfal da capela Depois de analisados os vários fragmentos, foi-nos possí-vel identificar um baldaquino/lanternim concheado, des-tacando-se projectante do restante bloco. No topo da peça, por cima e detrás do lanternim em alto-relevo, nasce um conjunto de molduras concêntricas descrevendo um arco que acompanha o perfil idêntico de um excerto da própria peça. No intradorso desse excerto de arco encontram-se es-culpidos relevos decorativos com enrolamentos de carácter fito e zoomórfico de notável qualidade escultórica, quer ao nível do desenho como do cinzelado (fig. 11).

Fig. 11 | Fragmento de conjunto retabular

Dadas as suas características formais, considerámo-lo parte integrante de um arco — talvez o arco triunfal de aces-so à referida capela “do Santíssimo Sacramento” — e identi-ficámo-lo com a imposta do pé-direito esquerdo do mesmo.

Tomando como ponto de partida o perfil deste bloco — e considerando o conjunto das várias molduras con-cêntricas lavradas (entre as quais a moldura que delimita externamente uma arquivolta), e também uma série de li-nhas horizontais e verticais presentes no baldaquino e no lanternim que indicam a verticalidade da peça — foi-nos possível aferir o diâmetro do intradorso com uma medida aproximada de 290 cm.

Na visita à igreja de S. João Baptista, por ocasião desta investigação, efectuámos aí um levantamento de medidas do arco que actualmente ocupa o mesmo lugar. Assim, esti-mámos que o vão actual – medido no intradorso dos pedes-tais dos pés direitos – é de cerca de 293 cm. Esta medida tão aproximada entre ambos leva-nos a admitir que o actual arco terá vindo ocupar — com os necessários ajustamentos

— a original estruturação tectónica.Sem outros dados que nos pudessem indicar a hipotética

organização compositiva da restante estrutura do referido arco, optámos por idealizá-la seguindo uma tipologia gene-ralizada, baseada nos modelos mais comummente utilizados no período da renascença, a que o mesmo indubitavelmente pertence. Assim, e ainda que sem o estrito cumprimento das normas tratadísticas (que, de uma forma generalizada, não temos observado integralmente normalizada e respeitada, sobretudo ao nível da implementação das respectivas pro-porções, num largo acervo de idênticas obras pertencente ao mesmo período em território nacional), organizámos esta estrutura empregando os seguintes elementos:— O emolduramento: organizado como numa sobreposi-

ção de ordens — com pilastras almofadadas sobrepostas, as inferiores assentes sobre pedestais e as do segundo registo (já ladeando o arco), com um balaústre frontal-mente adossado auxiliando a sustentação do entabla-mento ligeiramente projectante.

— O entablamento: constituído por cornija de três moldu-ras, friso almofadado, e arquitrave de três bandas.

— O arco encontrado e respectivos pés-direitos.

Sem possuirmos qualquer dado adicional que nos for-necesse mais indicações e/ou soluções compositivas, optá-

O outro fragmento de cena narrativa mostra Maria e João juntos, olhando para o alto, o que indicia estarem a presen-ciar a crucificação (fig. 10).

Fig. 9 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 10 | Fragmento de conjunto retabular

Não se conhece a origem dos fragmentos expostos, mas é bastante provável que, pelo menos, alguns deles perten-çam a um retábulo que se encontrava no interior da igreja de S. João. De acordo com o Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso (1747, tomo i: 30), havia no interior da igre-ja de S. João, do lado do Evangelho, uma capela dedicada ao Santíssimo Sacramento, encontrando-se aí um retábulo de pedra (de que nunca mais se ouviu falar até à recolha dos fragmentos em meados do século xx) representado os Passos da Paixão de Cristo. Ora, pelo menos dois dos frag-mentos de pedra (figs. 9 e 10) correspondem a essa descri-ção, pelo que se pode aceitar que vários destes fragmentos pertenceram a esse retábulo, o qual foi removido da igreja por se encontrar danificado, sendo então os mesmos enter-rados no adro do templo.

Numa visita feita à igreja de S. João reconhecemos, quer no exterior, quer no interior, a existência da Capela do Santíssimo Sacramento como a única subsistente que so-bressai do paralelepípedo constituído pelas naves, precisa-mente do lado do Evangelho, junto à saída para a Sacristia. A capela terá sido muito danificada no Terramoto de 1755, o que ditou a sua profunda transformação num mero altar à face da parede da nave, tal como os restantes. No entanto, por detrás desse altar, subsiste o espaço da capela, sendo visível, no exterior, a cúpula que a encimava.

Ora, os fragmentos recolhidos — bem como alguma da estatuária avulsa de que falámos — podem ter pertencido quer ao retábulo “dos Passos da Paixão de Cristo”, quer ao arco triunfal da capela, quer a outras estruturas de tipo ar-quitectónico que a integravam.

Nos desenhos que apresentamos sugerimos a arruma-ção possível de alguns desses fragmentos.

Também se não conhece o autor do retábulo a que te-rão pertencido estes fragmentos, mas as suas características estilísticas sugerem a Escola de Coimbra e os meados ou segunda metade do século xvi.

A investigação ainda em curso irá procurar esclarecer a estrutura narrativa e compositiva do retábulo, bem como a sua mais correcta datação e atribuição.

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Desta forma, no desenho assim proposto, a altura do vão resultante terá, aproximadamente, 585 cm; a altura do arco 690 cm; e a sua largura total 500 cm (estas últimas to-madas no topo e nos extremos laterais da cornija).

Embora não haja dados concretos neste sentido, colo-cámos um escudo de armas dos Almeidas no fecho do ar-co, como também habitualmente aconteceria (utilizámos uma peça do museu que sabemos não pertencer ao arco, mas que serve aqui o propósito figurativo, também colori-do a azul na imagem). Da mesma forma, os dois tondi que colocámos nas cantoneiras servem também o propósito de nos aproximarmos da tipologia mais comummente utili-zada na época.

Sendo que o baldaquino remataria superiormente um nicho (para o qual, no conjunto de peças encontradas, em nenhuma identificámos o fragmento de uma mísula), uti-lizámos uma imagem de S. Pedro em vulto perfeito, relati-vamente integral, pertencente à colecção do museu e data-da do mesmo período (colorida a vermelho na imagem). Tendo a peça cerca de 90 cm, hipoteticamente adequar-se-

-ia à altura e largura do nicho em questão no lugar que canonicamente lhe é reservado, servindo o propósito de conferir maior completude a esta estrutura ideada. Impor-ta acrescentar, neste sentido, que nos coibimos de incluir qualquer desenho de ornamentação, cingindo-nos apenas aos almofadados do friso, das pilastras e respectivos pe-destais — mesmo considerando a existência dos habituais enrolamentos e elementos decorativos, ou dos balaústres relevados que simulariam o “sustentáculo” das mísulas pro-jectantes para suporte das figuras de devoção.

Uma outra peça captou igualmente a nossa atenção: fa-lamos de um fragmento de uma pilastra no qual é possí-vel identificar um outro baldaquino/lanternim, também concheado, destacando-se de uma de duas faces lavradas (fig. 14). Na outra face, contígua e em ângulo recto para a di-reita da anterior, o fragmento evidencia uma série de relevos, dos quais se destaca um medalhão com um busto masculino de um frade (?) de idade avançada e longas barbas, que já foi tomado como uma representação do Condestável Nuno Ál-vares Pereira. O medalhão insere-se entre fustes de finos ba-

laústres, dos quais brotam enrolamentos simétricos de moti-vos fito e zoomórficos de gosto renascimental.

Fig. 14 | Fragmento de conjunto retabular

Dadas a estruturação do fragmento e a articulação en-tre elementos (um baldaquino de um nicho relevando-se frontalmente, com uma face ornamentada no intradorso; e, sobretudo, a adequação das medidas de ambas as faces em questão) levou-nos a considerar a sua conjugação e ade-quação a esta mesma estrutura hipotética. Assim, objec-tivamente, a sua colocação será abaixo do primeiro nicho, considerando uma altura aproximada de 90 cm da ima-gem de S. Paulo, a inclusão da mísula de suporte, e ainda um possível balaústre em relevo, simulando uma estrutura que partiria da base do fuste da pilastra (no almofadado), funcionando como suporte deste nicho inferior, e que con-tinuaria como suporte da mísula do nicho superior. Sem que conheçamos as tipologias, medidas, e decoração de to-dos estes elementos, coibimo-nos de os incluir. Para melhor identificação no desenho obtido, mantivemos lado a lado

mos por empregar o entablamento horizontal sem frontão, igualmente muito utilizado neste período.

Tendo sido encontrado o vão e arquivolta do arco com linhas demarcadas sobre a peça original, copiámos e inver-temos horizontalmente o elemento de partida (com uma coloração azul na imagem), colocando-o no extremo opos-to, à direita do arco — reproduzindo simetricamente a pe-ça complementar da estrutura (fig. 12).

Fig. 12 | Reconstituição do Arco da Capela do Santíssimo Sacramento

Prosseguimos, então, com a delineação da restante es-trutura. Assim, na continuidade vertical do intradorso, to-mando a base da cúpula semiesférica do baldaquino/lan-ternim que delimitaria superiormente um nicho, e a marca externa do bordo esquerdo do mesmo bloco, prolongámos para baixo a altura dos pés direitos, terminando-os assen-tes sobre os já referidos pedestais. Seguidamente, adicio-námos exteriormente as duas pilastras do emolduramento,

mantendo, como habitualmente, a altura dos pedestais dos pés-direitos, e terminando-as, no topo, à altura das impos-tas do arco, observando ainda a inclusão de um capitel, e do entablamento que aí também toma lugar.

No segundo registo, ladeando o arco, empregaram-se duas pilastras não capitelizadas de igual secção, frente às quais se adossam dois balaústres. Este conjunto suporta, então, o referido entablamento que apresenta duas projec-turas sobre estes elementos de suporte.

Afigurou-se-nos interessante verificar que a estrutura as-sim ideada, tomando apenas o vão do arco como medida, quando transposto e composto sobre uma fotografia do ar-co actual, se lhe adequa com enorme proximidade (fig. 13).

Fig. 13 | Lugar no interior da Igreja de S. João onde ficaria situado o Arco da Capela do Santíssimo Sacramento

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68 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Fig. 19 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 20 | Fragmento de conjunto retabular

Noutros casos, foi-nos possível verificar a existência de outras personagens — umas mais óbvias e conclusivas do que outras:— Num primeiro caso é possível identificar um centauro

a galope com uma aljava às costas, com o tronco volta-do sobre a garupa, apontando e estirando o arco com uma flecha (fig. 21). Na mesma peça é visível, também, à direita do relevo anterior e num espelho ligeiramente reentrante, um grande mascarão. Neste caso, pensamos que se tratará, talvez, de um fragmento de uma predela

— local em que, em alguns casos, verificámos a existên-cia de elementos de carácter mitológico.

— Um outro fragmento exibe duas personagens em baixo--relevo, lado a lado, voltadas para a direita, envergando túnicas e sem que se possa dizer tratar-se de figuras masculinas ou femininas, nem verdadeiramente afir-mar o contexto em que se poderiam inserir (fig. 22).

— Num outro bloco vê-se a metade inferior de uma figu-ra masculina, envergando uma túnica e calçada com botas, frente à qual resta uma secção paralelepipédica fragmentada (fig. 23). Dadas as suas características, e existindo uma grande proximidade com a orientação do fragmento paralelepipédico, pensamos poder tratar-

-se de uma das figuras do Caminho do Calvário, talvez Simão Cireneu auxiliando Cristo a transportar o ma-deiro, como atrás já se referiu.

— Um pequeno fragmento com um anjo (fig. 24 — talvez de mãos postas em adoração; talvez segurando um turí-bulo, hoje inexistente; talvez segurando um instrumen-to musical também desaparecido).

— Por fim, num outro fragmento vê-se uma figura mas-culina barbada, sentada e trajando uma toga asserto-ada — a seus pés, à esquerda, pode ainda ser iden-tificado um pequeno anjo com as mãos ligeiramente erguidas (fig. 25). Tal conjugação orienta-nos para a identificação de S. Mateus, com o anjo — o seu atribu-to — segurando o tinteiro no qual o evangelista molha a sua pena. Com frequência os evangelistas surgiam figurados na predela.

Fig. 21 | Fragmento de conjunto retabular

a face do intradorso da pilastra. No sentido de estabelecer a habitual composição simétrica do arco, também esta pe-ça foi copiada e invertida segundo o seu eixo vertical, ocu-pando o mesmo lugar no pé-direito oposto (também colo-rido a azul).

A silhueta da figura humana serve de escala de referên-cia nestas reconstituições, medindo os habituais 175 cm.

o retábulo “do calvário” ou “dos passos da paixão de cristo”Como foi anteriormente referido, em dois dos fragmentos encontrados podem ser identificadas figuras alusivas a dois passos da Paixão de Cristo, e dos quais partimos para uma hipotética reconstrução do retábulo que na mesma capela se encontrava.

Nem sempre a análise detalhada dos restantes frag-mentos nos permitiu óbvias indicações, embora tenha sido possível verificar a existência de excertos de outros balda-quinos (figs. 15 e 16); de fragmentos de conchas — alguns de grandes dimensões (figs. 17 e 18); de excertos de pilastras com baixos-relevos de balaústres (fig. 19); ou ainda de en-rolamentos de volutas (fig. 20).

Fig. 15 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 16 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 17 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 18 | Fragmento de conjunto retabular

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70 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Reunindo todos estes dados, procedemos a uma tenta-tiva de reconstituição hipotética do retábulo ali existente. Começámos, então, por proceder a um escalamento pro-porcional das fotografias frontais de todas as peças encon-tradas, reunindo-as num mesmo documento de uma apli-cação de tratamento e composição de imagem em suporte digital. Com os fragmentos analisados e medidos in loco, tornou-se possível o seu arranjo harmónico e proporcional e, desta forma, imediatamente discernir, comparar e articu-lar alguns aspectos de carácter compositivo:— Em primeiro lugar, por óbvios motivos de carácter teo-

lógico e devocional, sabemos que num ciclo da Paixão o episódio que habitualmente recebe maior destaque e assume uma posição central será sempre o da Crucifi-cação. Do mesmo modo, observável de forma transver-sal noutras organizações retabulares coevas, ladeando a cena central temos sempre um episódio precedente e outro sequente, à esquerda e à direita respectivamente.

— Verificámos que os fragmentos nos quais são identi-ficáveis personagens (o excerto no qual é possível re-conhecer parte do Caminho do Calvário, com Cristo carregando a cruz, a Verónica ajoelhada, e um ou dois verdugos (fig. 9); o excerto que identificámos com per-tencente à Crucificação, com S. João amparando Ma-ria e Madalena ajoelhada (fig. 10); e, por fim, o excerto com a metade inferior da figura masculina frente à qual se destacaria um paralelepípedo (fig. 23) as figuras evi-denciam uma notável proximidade de escala. Mais ain-da, após efectuarmos o prolongamento das linhas que formam os braços da cruz no Caminho do Calvário, o excerto fragmentado de secção paralelepipédica frente às pernas da figura que hipoteticamente passamos a de-nominar Cireneu, particularmente se lhe adequa, quer nas dimensões, quer na inclinação. Este último facto le-vou-nos a considerá-las parte integrante do mesmo epi-sódio narrativo.

— Embora esteja muito incompleto o relevo da Crucifica-ção, apenas se distinguindo o conjunto de personagens já citado, será óbvia a existência de Cristo Crucificado com uma altura elevada da cruz relativamente às outras

personagens. Faltando a figura crucial deste episódio narrativo, procurámos uma crucificação com caracte-rísticas idênticas entre o vasto conjunto de retábulos pé-treos em território nacional do mesmo período, tendo encontrado no retábulo do Calvário da capela dos Va-les, em Tomar, uma organização que se lhe podia ade-quar. Recortámos a referida imagem pelos seus contor-nos, e compusemo-la proporcionalmente, colorindo-a de azul para uma acautelada diferenciação, localizando-

-a de acordo com os eixos da direcção do olhar de Cris-to sobre o grupo e o de João para Jesus.

— Verificámos ainda que alguns dos fragmentos de bal-daquinos encontrados assumem dimensões demasiado grandes para que pudessem pertencer a quaisquer ni-chos da estrutura retabular, ou mesmo ao sacrário, e que alguns dos fragmentos continuavam a não suge-rir qualquer identificação na proximidade do conjunto que se começava a organizar.

Dadas a qualidade plástica e a dimensão das figuras nes-tes fragmentos encontrados, pensamos tratar-se de uma obra maior, ideada por um escultor idóneo e de apurada erudição artística. Como tal, pensamos ser indicado esta-belecer um sistema compositivo adequado ao estatuto do hipotético escultor, e organizá-lo segundo as normas e pre-ceitos da tratadística relativos à harmonia e simetria preco-nizados para a tessitura do conjunto e dos diferentes ele-mentos estruturais.

Sem que existissem outros dados conclusivos relativa-mente à máquina retabular que estabelece a ordenação dos diferentes episódios narrativos e imagens icónicas, e base-ando-nos nas supracitadas medidas do arco da capela do Santíssimo, calculamos que a largura interior desta rondas-se os 400 cm, e que o retábulo — que se adequaria à sua parede fundeira — teria uma largura ligeiramente inferior, com cerca de 350 cm.

Relativamente aos retábulos pétreos deste período, no-meadamente nos eucarísticos, não é possível estabelecer uma tipologia uniforme, sabendo, no entanto, que em mui-to maior número são trípticos, quase sempre com dois re-

Fig. 22 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 23 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 24 | Fragmento de conjunto retabular

Fig. 25 | Fragmento de conjunto retabular

Finalmente, tomando em consideração as indicações do Padre Luís Cardoso no seu já citado Dicionário Geográfico, uma vez que a capela era dedicada ao Santíssimo Sacramen-to, o retábulo deveria de ter uma clara dimensão eucarística, ou seja, na sua organização incluiria um sacrário.

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te e com igual carácter devocional, suscitando e concor-rendo para os mais profundos e pungentes sentimentos de piedade. Sem que seja objectiva a colocação do fragmento com as duas figuras togadas voltadas para a direita (fig. 22), pensámos oportuno incluí-lo nesta edícula supondo que este baixo-relevo poderá representar quaisquer persona-gens que se diferenciem do grupo central — em alto-relevo

— mais afastadas e num plano recuado.Nas duas edículas sobrepujando os episódios laterais,

era comum estarem representados anjos em oração, de mãos postas, pairando ou ajoelhados ladeando a figura do Crucificado. Desta forma, adequando-se ao referido espaço de representação, optámos por aí colocar o pequeno frag-mento com o anjo (clonando e colorindo o seu simétrico na edícula oposta).

A presença dos quatro Evangelistas era comum em qua-se todas as máquinas retabulares deste período, sendo-lhes habitualmente reservado os espaços da predela. Neste sen-tido, adequando-se-lhe o fragmento com S. Mateus, tam-bém aí o colocámos.

Punha-se, ainda, a questão do coroamento da estrutura retabular, sabendo-se não existir uma tipologia regular para os frontões então empregues. Foram comuns as tipologias já referidas, mas muitas outras estiveram também em vigor, dentre elas, também, a utilização de um coroamento sob a forma de um templete de planimetria circular, com uma cúpula semiesférica suportada por colunas ou balaústres

— ele mesmo constituindo um baldaquino — com uma cortina aberta ao centro (atada aos balaústres ou, por vezes, apartada por anjos), revelando o cálice e a hóstia sagrada. Acontecia, também, que lateralmente a este templete, dois arcos nascendo a partir de acrotérios sobre os extremos do entablamento se fechassem sobre aquele, conferindo uma tipologia semicircular ao conjunto. Por vezes, esses cam-pos assim criados eram concheados ou preenchidos com outros relevos.

Assim, o grande bloco com um baldaquino concheado, cupulado e encimado por um lanternim de tambor com pequenas janelas e pequenas figurinhas debruçando-se pa-ra o exterior (fig. 15), sendo de maiores dimensões que os

restantes fragmentos, pareceu-nos adaptar-se a esta função. Da mesma maneira, também a grande metade de vieira (fig. 18) se podia adaptar ao campo sob o arco formado entre o templete e o acrotério (figs. 26 e 27). O cálice e a hóstia sa-grada, como evocação da celebração da Eucaristia enquan-to memorial da Última Ceia estabelece, assim, uma directa ligação simbólica com o sacrário na predela, fazendo re-ferência ao mistério Pascal de Cristo — entre ambos e ao centro da composição retabular — que por Seu sacrifício redime a humanidade.

Fig. 26 | Reconstituição do Retábulo da Capela do Santíssimo Sacramento

gistos (ou de registo único sobre uma predela). Embora a grande maioria inclua uma predela, algumas vezes apenas assentam sobre uma base, sendo a generalidade coroada por um frontão também de tipologia muito diversificada: triangulares, semicirculares, etc.; sendo mais raros os re-tábulos de entablamento horizontal, ou seja, desprovidos de frontão.

Quanto à tipologia do sacrário, salvo muito raras ex-cepções, ela é particularmente uniforme, apresentando apenas pequenas diferenças. Habitualmente são concebi-dos como micro-arquitecturas (mais ou menos cumprin-do a tratadística e, deste modo, revelando a erudição do imaginário), emulando um templo de planta centralizada

— hexagonal na sua grande maioria (em alguns casos, cir-cular) — com uma cúpula semiesférica e lanternins de um, dois, ou mais tambores sobrepostos (também estes quase sempre cupulados), estes rasgados de pequenas janelas. Por norma, concebido num bloco único, este conjunto destaca-se volumetricamente da restante estrutura apenas na sua metade frontal, criando admiráveis jogos formais de luz e sombra. Em todos os casos, o sacrário beneficia de uma posição central na máquina retabular, embora varian-do a sua proporcionalidade face à restante estrutura: pode ocupar apenas um lugar na base ou na predela cingindo-

-se à sua altura; ou aí se iniciar (por vezes elevado sobre uma mísula para o primeiro registo), mas quase sempre estendendo-se e ocupando todo o primeiro registo; mui-tas vezes elevando-se ao segundo registo; e até, por vezes, atingindo o entablamento.

Baseando-nos nestes pressupostos optámos, então, por uma estruturação em três corpos, com um registo único, uma predela e a base, assentando a máquina retabular so-bre um embasamento frente ao qual se situaria o altar. Des-ta divisão resultam, assim, seis espaços de representação: os três superiores destinados aos episódios narrativos; dois inferiores, laterais, que subdivididos se destinariam a qua-tro representações icónicas; e um ultimo, central, reservado ao sacrário.

Assim, estruturámos o conjunto de modo a que, sobre a base, assentem quatro pilastras não capitelizadas organi-

zando os três corpos com igual largura e assegurando o suporte do entablamento que marca a altura da predela e a divisão para o primeiro registo.

Neste primeiro registo, à imagem de outros que fre-quentemente temos encontrado, também a ordenação dos espaços de representação é formada por quatro pilastras capitelizadas, mas estas com balaústres frontalmente ados-sados. Os três passos da Paixão de Cristo tomariam, então, aqui lugar.

Por fim, assente sobre as pilastras reforçadas pelos ba-laústres, o entablamento remataria a estrutura retabular coroada com um frontão para o qual ainda não se antevia definição.

Quanto ao sacrário, perante a inexistência de qualquer fragmento que se lhe adequasse, optámos pela utilização de um modelo generalista e hipotético, cumprindo os re-quisitos supra-identificados, e ocupando, em altura, todo o primeiro registo.

Um primeiro problema se colocava então: o relevo da Crucificação, dada a altura da cruz, necessitava de assumir uma maior dimensão relativamente aos episódios narrati-vos laterais (o que é frequente em muitos outros exemplares coevos). Tal condicionante levou-nos a reformular a estru-tura retabular e voltar a elevar o entablamento superior — e, por isso, a sugerir a existência de um segundo registo apenas acima dos corpos laterais.

Desta forma, adequa-se, na edícula à esquerda, o frag-mento do Caminho do Calvário, com Simão Cireneu mais atrás auxiliando Cristo a suportar o peso da cruz, tomando a figura de Cristo toma uma posição central relativamente ao espaço de representação.

Na edícula central — com o Cristo Crucificado assumin-do a posição central na edícula — o fragmento com João, Maria e Madalena deverá encostar-se à pilastra à esquerda, uma vez que por trás de João é ainda visível um excerto da mesma. Por suposição, à direita da cruz, deveria estar o habitual grupo de soldados e, ao fundo, em baixo relevo, talvez, uma representação de Jerusalém.

Na edícula à direita supomos que se deveria encontrar um relevo com uma Descida da Cruz, um episódio sequen-

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Por tudo o que se disse cremos estar em presença de uma obra escultórica de vulto maior, certamente encomen-dada a um escultor idóneo e cuja qualidade artística ha-via já sido comprovada — seguramente acompanhado por uma equipa de artífices que vinham laborando na região

— mas, certamente, por encomenda de um nome de vul-to na sociedade de então. D. Jorge de Almeida. Só uma fi-gura desta envergadura poderá encarnar o comitente que procuramos, estabelecendo as pontes que permitirão clari-ficar algumas das lacunas referentes à existência deste obra.

Embora seja bem conhecida e já muito referenciada a sua figura mecenática, será importante realçar alguns as-pectos (Sousa Costa 1990; Craveiro 2002; Baptista Pereira 2009): D. Jorge é filho de D. Lopo de Almeida, o primeiro conde de Abrantes, que foi vedor da fazenda de D. Afon-so V, alcaide-mor das vilas de Abrantes, Punhete e Tor-res Vedras, senhor de Abrantes, Sardoal, Mação e Almen-dra (passando por ser terceiro neto de D. Pedro i e D. Inês de Castro); a sua mãe era D. Beatriz da Silva, parente dos Silvas de S. Marcos, dama da rainha D. Leonor de Aragão (mulher de D. Duarte) e camareira-mor da rainha D. Isa-bel, a primeira mulher de D. Afonso v.

D. Jorge era irmão de D. João de Almeida, segundo se-nhor de Abrantes; de D. Diogo Fernandes de Almeida, sex-to prior do Crato; de D. Pedro da Silva, comendador-mor da Ordem de Avis e homem próximo de D. Manuel; de D. Fernando de Almeida, bispo de Ceuta; e de D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia. D. Garcia de Al-meida, primeiro reitor da Universidade de Coimbra, ou D. Leonor de Vasconcelos, abadessa do mosteiro de Celas, eram seus sobrinhos.

Entre abundantes dados documentais destaca-se o que, logo a 8 de Novembro de 1469, com apenas com 10 anos de idade, o refere como “clerico Egitaniensis diocesis”; ou, nos anos sequentes, a correspondência referente a promo-ções, atribuições e prebendas pela pena do próprio papa; ou ainda a posterior vasta correspondência com Lourenço de Medici. É pela mesma documentação que temos a notí-cia que, com a idade de 15 anos, à época frequentando es-tudos de Direito na Universidade de Perugia, lhe foi con-

ferida a igreja paroquial de S. João de Abrantes, a mesma de que era padroeiro seu pai, D. Lopo de Almeida (Sousa Costa 1990: 759).

Tendo tomado posse do Bispado de Coimbra em 23 de Junho de 1483, D. Jorge manteve-se no cargo até à data do seu falecimento em 25 de Julho de 1543, tendo sido, tam-bém, Inquisidor do Reino entre 1536 e 1541. Por entre varia-díssima e abundante encomenda de valorização da sua Sé, e sob sua orientação, foi criada uma plataforma artificial que anulava o declive do terreno em volta da catedral, obra que cerca de trinta anos mais tarde lhe permitiria confe-rir maior sumptuosidade e magnificência, com a edifica-ção da Porta Especiosa — obra maior cuja autoria não se encontra comprovada documentalmente, mas que tem co-lhido unânime opinião no que toca à participação de dois nomes maiores da produção escultórica de então: Nicolau Chanterene e João de Ruão. É de sua encomenda o retábu-lo do altar-mor, da autoria dos flamengos Olivier de Gand e Jean d'Ypres, que o executaram a partir de 1498; ou ain-da o retábulo pétreo da vida e martírio de S. Pedro, enco-mendado por volta de 1530, atribuído a Nicolau Chantere-ne, destinado à capela na qual o bispo se fará sepultar. No entanto, não é apenas na Sé ou no paço episcopal que se vê por demais evidente a marcada presença do brasão do bis-po (apenas no retábulo do altar-mor ele surge nada menos que três vezes), mas também na alargada área da diocese como, por exemplo, na igreja de Santa Maria da Alcáçova, em Montemor-o-Velho, com um retábulo do Santíssimo Sacramento na colateral da epístola; ou, para além da sua encomenda directa, todas as autorizações dependentes da entidade episcopal, como seja o caso das concessões e li-cenças necessárias à execução das obras, como nas igrejas de S. João de Figueiró dos Vinhos ou de S. Miguel de Pe-nela, também com arcos e retábulos de pedra, no segun-do dos quais participa Gaspar Torres, pedreiro de Évora.

Pertencente a uma influente e bem relacionada família da nobreza orbitando na esfera da maior proximidade da família real; com uma tão próxima ligação a Abrantes e à própria igreja de S. João Baptista; figura de inequívoca ac-ção mecenática de evidente pendor humanista e contac-

fig. 27 | Reconstituição do Arco e Retábulo da Capela do Santíssimo Sacramento

a importância da figura mecenática por detrás da obraTal como anteriormente referimos, algumas características plásticas destes fragmentos nos levam a considerá-los co-mo obras de muita qualidade escultórica, importando ago-ra realçá-los:— No fragmento que permitiu a reconstrução do arco – o

excerto de um baldaquino concheado, encimado por uma cúpula com um lanternim — desde logo assinalá-mos as características notáveis de desenho e de cinze-lado dos relevos finamente lavrados no intradorso do arco, abundantes em pormenores. Não de menor im-portância, importa referir, também, o esmerado mode-

lado da cúpula do lanternim coberta por pequenas te-lhas, ou o preciosismo e detalhe com que são tratados os elementos estruturais de suporte das janelas — pés direitos, e arcos de volta perfeita — primorosamente trabalhados.

— Também o grande baldaquino/lanternim, por nós em-pregue como coroamento da hipotética reconstituição do retábulo, exibe idêntico esmero nos mesmos ele-mentos das janelas em arco de volta perfeita rasgadas em volta do lanternim, mas incluindo, ainda, pequenas figurinhas que se debruçam, conversando e assistindo ao desenrolar dos acontecimentos. Embora de carác-ter miniatural — e agora bastante mutiladas — figura-riam como que comentando o desenrolar da narrativa exposta, conferindo um notável carácter de encenação a toda a representação, simultaneamente referencian-do e circunstanciando o quotidiano e, dessa forma, in-vocando a presença do espectador.

— No fragmento do Caminho do Calvário, é notável posi-ção esforçada de Cristo sob o peso da cruz, bem como a modelação das pernas sob a túnica caindo em sua-ves e naturais pregueados. No conjunto, importa ainda realçar o fino tratamento da sobrevivente mão de um dos verdugos e o tratamento global das suas vestes re-produzidas com rigor. Notável ainda é o rosto condo-ído da Verónica, ou o fino tratamento com que vemos suavemente esculpido o rosto de Cristo no seu lenço, o pregueado da sua saia, ou a vegetação que cobre o ter-reno.

— No fragmento da Crucificação, podemos fazer as mes-mas observações referentes ao modelado dos corpos e dos panejamentos, mas o que mais nos chama a aten-ção é a sobreposição de João a uma pilastra decorada (atrás de si), percebendo-se todo o grupo avançando para além do espaço de representação, sobrepondo-se mesmo aos elementos estruturais da máquina retabu-lar. Nada nos indica poder existir aqui um contiunuum espacial, mas esta característica, por si só, evidencia já a maniera que só em poucos escultores a trabalhar nes-te período em Portugal se observa.

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tando directamente com os mais reconhecidos nomes do panorama artístico de então, talvez investigações futuras e novas pesquisas documentais poderão corroborar a nossa opinião relativamente à relação directa de D. Jorge de Al-meida com as obras às quais estes fragmentos pertenciam.

bibliografiaaa. vv. (2009, 2010, 2011 e 2012) — Catálogos das Exposições de Antevisão do miaa, Abrantes: cma.pereira, josé fernandes pereira (coord.) (2005) — Dicionário de Escultura Portuguesa, Lisboa: Caminho (artigos sobre escultores da Idade Média e do Renascimento assinados por Fernando António Baptista Pereira).baptista pereira, fernando antónio (2009) — “O gosto artístico dos Almeidas”, in Actas do Colóquio comemorativo dos 500 Anos do Estado Português da Índia, Abrantes: Câmara Municipal de Abrantes.cardoso, padre luís (1747) — Dicionário Geográfico, tomo i, Lisboa: Regia Officina Sylviana e Academia Real. craveiro, maria de lurdes (2002) — O Renascimento em Coimbra — Modelos e Programas Arquitectónicos, Tese de Doutoramento apresentada à fluc.henriques, francisco (2007) — O Retábulo da Pena de Nicolau Chanterene — Geometria e Significação, Tese de Mestrado apresentada à fbaul.oleiro, diogo (s/d) — Livro de Inventário, manuscrito, Câmara Municipal de Abrantes.sousa costa, antónio domingues de (1990) — Portugueses no Colégio de S. Clemente e Universidade de Bolonha durante o Século xv, vol. ii, Bolonia: Publ. del Real Colegio de España.

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resumoO silêncio dos arquivos não nos permitiu até à data confir-mar inequivocamente a verdadeira identidade do enigmático

“Mestre de Abrantes”. Ao longo deste artigo analisaremos alguns dos seus mais importantes trabalhos, merecendo destaque o retábulo qui-nhentista da Igreja da Misericórdia de Abrantes — que viria a consagrar-lhe o epíteto — cujo objectivo visa essencialmente caracterizar as particularidades da criação formal e os modos de expressão da sua produção artística, onde se sente já o pul-sar dos novos desafios que se ofereciam aos artistas. A análi-se detalhada das obras que lhe são tributáveis, permitiu-nos concluir que, algumas delas resultam de um trabalho de par-ceria, nas quais se pressente a mão de mais do que um pintor. O virtuosismo que certas obras patenteiam na busca perma-nente de uma ideia de beleza universal e na interpelação da sensibilidade pessoal do espectador, conduz-nos até Francisco de Campos, um pintor flamengo que permaneceu entre nós até à sua morte, em 1580, e que será o colaborador do “Mestre de Abrantes” na feitura de alguns destes conjuntos pictóricos. Palavras-chave: Mestre de Abrantes; Pintura; Flamenguis-mo; Italianismo; Parceria.

abstractThe silence of the archives didn’t allow us, yet, to confirm the true identity of the enigmatic “Master of Abrantes”. Throughout this article we will analyse some of his most im-portant works, specialy the paintings of the fifteenth altar-piece of the Church of the Mercy of Abrantes — which would give him his name — in order to characterize the particulari-tities of the formal creation and pursue an understanding of the ways and means of expression of this painter, where we feel already beating of the new challenges that were offered to the artists.The detailed analysis of the workmanships allows us to conclude that some of them result of a partnership work, in which we pressente the hand of more than one painter. The virtuosity, where “grace” is revealed as the utmost expression for a universal definition of beauty, therefore challenging the sensibility of the spectator, leads until Francisco de Campos. This was a flemish painter who remained between us until his death, in 1580, and was the collaborator of the “Master of Abrantes” in the featuring of some of these pictorial sets. Keywords: “Master of Abrantes”; Painting; Flemish; Italian-ism; Collaborator.

o “mestre de abrantes” (cristóvão lopes?) e os pintores da sua entourage. continuidades e rupturas num tempo de mudança. Maria Teresa Desterro cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa instituto politécnico de tomar

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80 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

O que pode indiciar que o x seria a abreviatura de Cris-tóvão, e o z a letra final de Lopes. Não se trataria, propria-mente de uma assinatura, mas tão só de uma identificação da oficina como era frequente usar-se, à época, e que neste caso se coaduna perfeitamente com o nome do seu mestre.

Desconhecemos as datas do seu nascimento e morte, apesar de Palomino (Palomino 1724: 243) afirmar que o pin-tor nasceu em 1516 e faleceu em 1570. Não as tomamos como verosímeis, a primeira pela sua precocidade, a segunda, pelo contrário, porque demasiado tardia, já que a partir da déca-da de sessenta não encontramos quaisquer obras que lhe se-jam tributáveis, o que coincide com o facto de a última nota documental que o menciona — referenciando uma casa em seu nome — datar de 1565 (Reynaldo dos Santos s/d: 260) acreditando nós que o seu desaparecimento, não deva andar muito longe desse ano.

No tocante às suas características pictóricas, este mes-tre denuncia excelentes qualidades de “debuxador” patentes na finura do desenho dos olhos, bocas e mãos, imprimin-do as suas formas ovaladas uma doçura grácil aos persona-gens. As largas pinceladas, livres e quase expressionistas, re-velam um certo desembaraço no estilo ágil, solto e agitado que imprime às composições, denunciando nas atitudes tea-trais de corpos ritmados e panejamentos soprados, uma lin-guagem plástica que nos permite constatar estarmos peran-te um pintor educado ainda numa tradição flamenguizante que, paulatinamente, vai aderindo aos valores anti-clássicos do Maneirismo italiano, mas ainda e sempre na senda do tra-dicionalismo de Gregório Lopes, faltando-lhe o arrojo e o ar-tifício do verdadeiro impulso maneirista.

Não subsistindo nenhuma obra assinada ou documen-tada, as atribuições autorais têm sido baseadas nas afinida-des estilísticas, o que explica que ainda hoje persista uma certa indefinição a este nível. Estão-lhe actualmente atribu-ídas algumas pinturas produzidas entre as décadas de trin-ta e cinquenta do século xvi, contando-se entre as mais re-cuadas dois painéis que integram a colecção permanente de pintura portuguesa exposta no Museu Nacional de Ar-te Antiga, datáveis de cerca de 1540. São elas uma grandio-sa Circuncisão (fig.2)

Que se destaca, temática e compositivamente, pela acen-tuação da luz e da cor. Estamos perante uma obra eclética, na qual a pintura se desdobra em dois planos sucessivos, ha-vendo uma separação nítida entre o mais próximo, que ser-ve de palco ao ritual de iniciação judaica, e o plano fundei-ro que se desenvolve para lá de um gradeamento que divide a zona do altar da restante estrutura gótica onde se projecta uma magnífica construção arquitectónica, que acentua a no-ção de profundidade (a que não terá sido alheia a influência exercida por alguns gravados).

Fig. 2 | Circuncisão (c.1540) | Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) Museu Nacional de Arte Antiga

Na outra, representa-se a Epifania, isto é a Adoração dos

Reis Magos (fig.3). Esta pintura coloca-se na esteira das obras de Gregório Lopes, quer pela importância conferida ao monu-mental conjunto arquitectónico no qual, à semelhança do qua-

O epíteto que imortalizou na História da Arte Portuguesa o pintor sobre o qual nos debruçaremos ao longo deste ar-tigo — Mestre de Abrantes — deve-se à atribuição autoral ao mencionado artista do antigo retábuo-mor da igreja da Misericórdia dessa cidade, cujas pinturas se encontram ac-tualmente dispersas pelas paredes da mesma.

Ignorando-se quase tudo sobre a sua personalidade, os historiadores de arte são unânimes quanto ao facto de a sua aprendizagem e formação ter ocorrido no seio da “es-cola” de Lisboa, o que o transforma no mais próximo se-guidor de Gregório Lopes, a ponto de no passado se ter confundido a sua obra com a fase final da produção deste pintor régio de D. Manuel i e D. João iii. Nas últimas dé-cadas têm sido aventadas algumas hipóteses no sentido de o identificar, nomeadamente com o pintor Diogo de Con-treiras (Serrão, 1986, p.52) afastada quando se percebeu que este mais não era que o dito Mestre de São Quintino (Cae-tano 1993: 112–118), ou com Cristóvão de Utreque, um pin-tor nórdico que se documenta em 1533–1534, a trabalhar no Mosteiro de Ferreirim ao lado de Cristóvão de Figueiredo, Gregório Lopes e Garcia Fernandes revelando-se, qualquer delas, pouco consistente.

Não constitui novidade a possibilidade de poder identi-ficá-lo com o documentado filho de Gregório Lopes, o tam-bém pintor régio, Cristóvão Lopes (Serrão 1992: 156; Car-valho 2000: 83–101; Desterro 2008: vol.i, 203–204) e que, a nosso ver, nos parece cada vez mais plausível, porque do-tada de toda a razoabilidade. Por um lado, a confirmação que Cristóvão Lopes sucedeu a seu pai em tão importan-te cargo pictórico, por nomeação régia de 31 de Agosto de 1551 (Viterbo 1903: 104) passando inclusivamente, a auferir da mesma tença, vem provar que, para ser investido nessa função e com os mesmos réditos, tinha já provas dadas no meio artístico. Por outro, o facto de apenas um ano depois, concretamente em 1552 (Correia 1928: xxxi) ser nomeado examinador de pintores vem, uma vez mais, confirmar o reconhecimento das suas qualidades pictóricas. Finalmen-te e, a acreditar na informação veiculada por Francisco Pa-checo na sua Arte de la Pintura. Su antuguedad y grandeza (obra datada de 1619), Cristóvão Lopes viria a ser, uma vez

mais à semelhança de seu pai, nobilitado pelo rei, que o in-vestiria com o hábito de Cavaleiro de Avis. Ora, todas es-tas razões nos parecem mais que suficientes para o crermos um importante pintor do círculo lisboeta com capacidade e talento para dar continuidade à oficina de Gregório Lopes.

Além do mais e, não constituindo esse facto prova cabal, não podemos escamotear os dados revelados pelos exames laboratoriais a que algumas pinturas do retábulo da Miseri-córdia de Abrantes foram submetidas1, que trouxeram à luz dois sinais que têm sido vistos como uma espécie de “assi-natura do autor”, já que se trata precisamente de um “x” e um “z”, visível no braço do São João, do painel alusivo à De-posição de Cristo no Túmulo (fig.1)

1 Foram feitas fotografias de espectro infra-vermelho pelo técnico da Divisão de Documentação Fotográfica do Instituto de Museus e Conservação, José Pessoa.

Fig. 1 | Enterro de Cristo (c.1550) | Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) Retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado).

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pital aqui existente. A verdade é que as fontes documentais não nos permitem sustentar nenhuma destas hipóteses.

O que sabemos ao certo é que o primitivo Hospital fo-ra fundado em 1483 por D. Lopo de Almeida e sua mulher, D. Brites da Silva, dama da rainha D. Leonor (Pinho Leal 1874: 64) e que, ao contrário do que alguns dos autores men-cionados sustentam, a instituição da Misericórdia abrantina datará de 1504 (Goodolphim 1900: 101) embora documen-talmente se comprove a sua existência só a partir de 1516. Não existe, contudo, qualquer indício da relação da família Almeida, Condes de Abrantes e herdeiros dos fundadores do Hospital primevo, com a Santa Casa, até porque ao longo do século xvi foram transformando a igreja de Santa Maria do Castelo em seu mausoléu, o que poderia, sim, justificar a encomenda de uma obra desta natureza para esse espaço.

Quanto à hipótese de se tratar de uma encomenda epis-copal é também posta de parte porque, integrando Abrantes, à época, o bispado da Guarda, é sabido que a cátedra epis-copal era vacante desde 1545 e assim permaneceu até 1550, ano em que D. Cristóvão de Castro assumiria o episcopado (Almeida 1968: 627) sendo improvável tratar-se de uma do-ação sua.

Em suma, embora as fontes documentais não no-lo pos-sam confirmar, é bem possível que esta encomenda retabular estivesse, de facto, associada a um dos membros da família real anteriormente mencionados, já que Abrantes foi uma das principais sedes de corte durante o segundo casamento de D. Manuel e aqui teve lugar o nascimento de alguns dos seus filhos, que permaneceram ligados à vila, como dito fi-cou. A admitir esta hipótese é evidente que no momento de fazer uma encomenda pictórica, a escolha dos artistas recai-ria sobre os que habitualmente serviam os círculos cortesãos, isto é, a oficina do pintor régio.

Acontece que, entretanto, o mestre Gregório Lopes de-via ser já bastante idoso (senão mesmo falecido, pois mor-reu em 1550) assumindo certamente os seus colaboradores o compromisso da obra. Um deles, dissemo-lo já, era seu filho, Cristóvão Lopes, que contaria, à época, com o apoio de outro importante pintor, Francisco de Campos. Oriundo da Flandres, este artista formado na “escola” do Maneirismo

de Antuérpia acabaria por se radicar entre nós em meados da centúria, após uma breve passagem pelo sul de Espanha (Desterro 2008: i vol., 394–397), vindo a revelar-se um dos vultos de charneira na adesão ao formulário maneirista. A experiência adquirida antes de chegar a Portugal e o con-tacto estabelecido com alguns dos pintores romanizados, colocá-lo-iam numa situação muito favorável compara-tivamente com a maioria dos artistas portugueses coevos. Alguns anos mais tarde documenta-se já com oficina própria, sediada na Rua da Barroca, junto às Portas de Santa Catari-na, em Lisboa, indiciando tratar-se de um pintor com algum relevo no seu meio.

A realização do conjunto retabular da Misericórdia de Abrantes terá ocorrido pouco depois da sua chegada a Lisboa, num período em que o pintor estaria ainda adstrito à oficina de Gregório Lopes, mas a sua intervenção em algumas das pinturas deste retábulo parece-nos inquestionável.

Referidos pela primeira vez em 1927 por José de Figuei-redo (Figueiredo 1927: 384) estes desmembrados painéis qui-nhentistas só seriam revelados a um público mais alargado aquando da Exposição dedicada aos Primitivos Portugueses, 1450–1550 (Santos, Lopes e Couto, 1940: 36 e est. liv) orga-nizada em Lisboa a propósito das comemorações do duplo centenário da nacionalidade — em 1940 — sofrendo então uma intervenção de restauro. Alguns anos mais tarde (1971) teve lugar em Abrantes uma outra Exposição dedicada ex-clusivamente aos Mestres do Sardoal e de Abrantes (que se repetiria em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, que a subsidiou) onde novamente as pinturas adquirem, por ra-zões óbvias, grande visibilidade.3

Como se disse já, é nossa convicção estarmos perante uma obra que reflecte um trabalho de parceria, denunciando nítidas diferenças qualitativas entre a série de painéis dedica-dos à Virgem — Anunciação, Visitação e Natividade — que supostamente ocupariam a fiada inferior (portanto, mais próxima do espectador) e as outras três pinturas dedicadas à Paixão de Cristo — Cristo a caminho do Calvário, Calvá-rio e Enterro de Cristo que se situariam num plano superior e mais longínquo face ao olhar atento do observador. Talvez por isso, Maria Margarida Calado que se debruçou exausti-

3 Cfr. Abreu e Lima, Pintura dos Mestres do Sardoal e de Abrantes, Catálogo de Exposição, Abrantes /Lisboa, 1971.

dro anterior, se mesclam elementos goticistas, como a janela mainelada que remata o edifício já em ruínas, com os diver-sos pórticos romanistas, quer pela magnificência ornamental, emprestada neste caso pela sumptuosidade das vestes e aces-sórios dos Magos, assim como pelo cuidadoso lavor revelado na execução dos objectos em ouro, os quais reproduzem fiel-mente verdadeiras preciosidades da ourivesaria coeva.

Fig. 3 | Epifania (c.1540) | Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) Museu Nacional de Arte Antiga

A fisionomia do Rei-Mago que se perfila em primeiro plano à esquerda, repete, de alguma forma, a do São José do painel anterior, caracterizada pela sua pronunciada cal-vice. Atendendo às afinidades estilísticas e dimensionais entre ambos os quadros admite-se a possibilidade de terem pertencido a um mesmo conjunto. Tendo em conta, quer a

sua grandiosidade, quer a sua qualidade pictórica, supomos terem pertencido a uma instituição religiosa dotada de bas-tante prestígio social e poder económico, certamente um dos muitos conventos extintos aquando da reforma empreendi-da em 1534 por António Augusto de Aguiar.

Conserva-se ainda no mnaa (em reserva) um Encontro de São Joaquim e Santa Ana na Porta Dourada, proveniente do antigo mosteiro das clarissas, de Santarém. Desconhe-cem-se as condições que rodearam a sua feitura (o local ou a data de execução), mas a análise estilística permite-nos situá-

-la ainda no mesmo decénio, embora a creiamos posterior aos dois painéis mencionados, mas ainda anterior à realiza-ção do retábulo abrantino. Será, pois, uma obra de meados da década (c. 1545) que integraria provavelmente um tríptico (ou políptico) com outras cenas da vida da Virgem.

Relativamente aos painéis da Misericórdia de Abrantes, são datáveis de meados do século. Tendo em conta que o ano da conclusão do portal da Misericórdia, por Gaspar Di-niz, foi 1548, é provável que a sua realização tenha ocorrido imediatamente a seguir.

Uma análise atenta e aprofundada da obra permitiu-nos concluir que, ao contrário do que se supõe, não estamos pe-rante o trabalho de um mestre só, mas de uma verdadeira parceria, onde basta uma observação cuidada das pinturas para se pressentir a mão de mais do que um pintor.

Desconhecendo-se o seu comendatário, tem-se procura-do associar esta encomenda ao fundador da instituição local, perpetuando a maioria dos autores uma afirmação (não do-cumentada) de José Pereira Silva (Silva 1944: 140) e repetida por Gustavo de Matos Sequeira (Sequeira 1949: 8), segundo a qual o Infante D. Luís, Duque de Beja, (um dos filhos de D. Manuel nascidos na então vila), teria fundado a Miseri-córdia com cem irmãos, cem nobres e cem mesteirais, cerca de 15292. Não atribuindo a sua fundação a este Infante, An-tónio Soares de Sousa (Sousa 1966) corrobora apenas, que D. Luís teria cedido a igreja de São Julião à Irmandade, na-quela data, enquanto outros (Morato 1990) preferem ver no seu irmão, o Infante D. Fernando (também ele nado nesta vila e da qual obteve o Senhorio) o seu fundador, em virtude de, em 1532, ter ordenado a anexação à Misericórdia do Hos-

2 O autor sustenta a afirmação num documento constante de um códice do século xviii, mas não especifica de que códice ou documento se trata.

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Fig. 5 | Visitação | Mestre de Abrantes

Por outro lado, a sua fisionomia parece-nos muito mais próxima de outras Nossas Senhoras saídas da mão deste ar-tista, do que das restantes figuras femininas do Mestre de Abrantes. Se repararmos atentamente, a sua face redonda e os olhos amendoados, assim como o fino recorte dos lábios e do queixo são muito afins dos que surgem em outras obras da década de cinquenta de Campos, nomeadamente na Virgem da Natividade (fig. 8) do também desmembrado retábulo que actualmente se encontra no Nasher Museum of Durham (na Carolina do Norte, e.u.a.) da Virgem da Assunção do Santu-ário de Nossa Senhora da Boa Nova de Terena ou, mesmo, da Epifania do retábulo-mor da Matriz de Góis.

Para além destas similitudes, podemos ainda observar neste painel um elemento decorativo que é único em Fran-cisco de Campos e que justamente se encontra também aqui: trata-se do tipo de cercadura exterior da carpete constituí-do por uma linha ondulante dada em três cores, bordejan-do uma outra cercadura interior com desenho de tipo ‘cúfico’ (fig.9) que o pintor neerlandês reproduz sistematicamente nas obras realizadas entre as décadas de cinquenta e sessen-ta. Embora o tapete seja um elemento decorativo muitíssimo

Fig. 6 Virgem da Anunciação (c.1550) (Pormenor) Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) e Francisco de Campos Retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado)

Fig. 8 Natividade Pormenor da Virgem (1560-1565) Francisco de Campos Nasher Museum of Art of Duke University – Durham, North Caroline (EUA)

Fig. 9 Apresentação do Menino no Templo (1560-1565) (Pormenor do tapete) Francisco de Campos Museu Regional de Lagos

Fig. 7 Anunciação Pormenor da Virgem (1560-1565)Francisco de Campos Museu Regional de Lagos

vamente sobre a obra de Gregório Lopes, tenha considera-do este conjunto demasiado bom e obra demasiado evoluí-da para ser um produto oficinal, o que a levou a entendê-la como “o canto do cisne” desse pintor régio (Calado 1973: 60–62). Concordando absolutamente com a historiadora no to-cante à qualidade das pinturas, não podemos subscrever as suas opiniões quanto à atribuição autoral das mesmas.

Não há dúvida que em termos gerais, estas são as pintu-ras do Mestre de Abrantes que mais se afastam dos cânones do classicismo renascentista, demonstrando uma maior assi-milação da nova sensibilidade plástica, dada através de uma pincelada mais leve e solta em cuja paleta, apesar de densa e saturada, se pressente já uma certa preferência pelas novas cambiantes cromáticas, mais aberta a tons ácidos e menos vi-brantes, bem como um progressivo alteamento dos figurinos, por vezes com tendência para a microcefalia, apresentando-

-se em poses artificiosas e teatralizadas, exprimindo uma no-va abertura aos referentes italianizantes. Mas são justamente estas as características que o aproximam da fase precoce da produção de Francisco de Campos em Portugal.

A Anunciação (fig.4) e a Visitação (fig.5) apesar de acusa-rem um maior convencionalismo, são as melhores pinturas do conjunto, e é justamente na primeira que encontramos maior intervenção de Campos.

É inegável a proximidade relativamente ao tema homó-nimo pintado por Gregório Lopes poucos anos antes para o retábulo da igreja do Convento de Santos-o-Novo, cujo mo-delo compositivo serviu de base ao painel de Abrantes, apre-sentando-se apenas desta vez invertido, e até certos particu-larismos como o dossel da cama da Virgem ou a bilha da água transpõem o modelo original.

Há, contudo, vários elementos nesta pintura que nos con-duzem até Francisco de Campos. Na realidade, é idêntica à Anunciação que algum tempo depois o pintor flamengo pro-duziu para a igreja de São Sebastião de Lagos (hoje no Museu Municipal da cidade), cujo modelo iconográfico é extraordi-nariamente próximo deste. A pose e tratamento dos cabelos da Virgem (fig.6) são similares nos dois painéis, repetindo-

-se o reclinar da cabeça, os gestos das mãos e, até, o mode-lo das vestes (fig.7).

Fig. 4 Anunciação (c.1550)Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) e Francisco de CamposRetábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado)

Fig. 5 Visitação (c.1550)Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) Retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado)

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patenteadas face a outros cavaleiros presentes num fresco do Oratório do 5.º Duque de Bragança, D. Teodósio I (1503?–1563) no Palácio Ducal de Vila Viçosa, numa Epifania pinta-da para a Sé de Évora e na Pietà da Bandeira da Misericórdia de Alcochete, da sua autoria.

Fig. 12 | Cristo a Caminho do Calvário (c.1550) | Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) e Francisco de Campos | Retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado)

Além deste retábulo subsiste, quanto a nós, uma outra

obra ainda resultante da colaboração entre estes dois mes-tres: Cristóvão Lopes e Francisco de Campos. Trata-se da já mencionada Adoração dos Pastores (fig. 11) datada de meados do século xvi, que integra o espólio do Museu Regional de Évora, cuja co-autoria lhes foi por nós tributada (Desterro

2008: ii vol., 216–217). É uma belíssima peça que consi-deramos, na verdade, muito afim de outras pinturas deste continuador do pintor régio, nomeadamente com o painel homónimo do mencionado retábulo abrantino. Coteje-se a tipologia das estruturas arquitectónicas do plano fundeiro, ou a postura de São José, com a cabeça apoiada numa das mãos, em ambos os casos, para se perceber que os dois pai-néis não distam muito um do outro no tocante à autoria (e, obviamente à datação).

Fig. 13 | Calvário (c.1550) | Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) e Francisco de Campos Retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado)

Por outro lado, esta figura de São José, com a calvice mui-to pronunciada, retoma a de um dos Magos da Epifania e do S.

frequente na pintura quinhentista, este pormenor encontra-mo-lo exclusivamente nas suas pinturas do Museu de Lagos (Anunciação e Circuncisão) numa Anunciação que se encon-tra na igreja de S. Pedro de Alenquer, no Pentecostes do retá-bulo de Durham e numa Missa de São Gregório que se expõe no Museu de Arte Sacra de Évora, tornando-se praticamen-te uma “marca de autor” desta sua produção mais recuada. Deste modo, o facto de o encontrarmos aqui constitui pa-ra nós como que uma assinatura do pintor na medida em que, como se disse, estamos perante um tipo de decoração que nunca encontramos em nenhuma outra pintura, nacio-nal ou estrangeira tratando-se, claramente, de uma peculia-ridade de Francisco de Campos.

Fig. 10 | Natividade (c.1550) | Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) Retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Abrantes (desmembrado)

Da mesma forma, a pintura abrantina onde se representa a Natividade (fig.10) nos remete para uma intervenção do pintor nórdico em alguns dos anjinhos que cantam hinos de Glória ao Deus-Menino recém-nascido, idênticos aos que depois vamos encontrar na sua Adoração dos Pastores repre-sentada no painel do Museu de Santiago do Cacém ou, ain-da no mesmo tema do já mencionado retábulo de Durham (e.u.a.) ou, ainda, na pintura homónima do Museu Regional de Évora (fig. 11).

Fig. 11 | Adoração dos Pastores (c. 1550) Pormenor Mestre de Abrantes (Cristóvão Lopes?) e Francisco de Campos | Museu Regional de Évora

Também nos quadros alusivos ao Caminho do Calvário e ao próprio Calvário (fig. 12 e 13) os cavaleiros trajados à oriental, que se representam nas extremidades (superior es-querda e inferior direita, respectivamente) das pinturas, se devem igualmente à mão de Campos, devido às afinidades

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José da Circuncisão (que se conservam no mnaa). Também a figura da Virgem apesar da posição invertida, é muito si-milar à do mencionado quadro abrantino, envergando uma veste exactamente com o mesmo tipo de tratamento no colo, e assumindo uma postura idêntica ao inclinar ligeiramente o corpo. Apesar do quadro se encontrar cortado no seu lado esquerdo (como o parece indiciar o facto de só vermos um dos pastores, em meio corpo, assim como a colocação latera-lizada do Menino) o que prejudica, obviamente, a leitura do conjunto, é sobretudo ao nível do tratamento composicional, do domínio das formas e da aplicação da matéria cromática, que encontramos as maiores similitudes com a pintura do Mestre de Abrantes.

Podemos, contudo, observar neste painel, outros ele-mentos que, pelo contrário, mais uma vez nos remetem para Francisco de Campos. Atente-se no grupo de anjos que se co-locam na extremidade direita da pintura, entoando cânticos ao Deus-Menino ou naqueloutro que, à direita da Virgem, parece aproximar-se para O ver melhor. Não há dúvida que estas pequenas criaturas nos sugerem a presença do mestre neerlandês, pois cotejando-os com tantos outros que o pintor reproduziu nas suas pinturas, neles se pressente já uma certa desenvoltura no desenho fluente que domina as formas, seja no tratamento das vestes, ou dos cabelos anelados.

Perante tantas afinidades face a outras obras suas, não te-mos dúvidas em tributar também ao artista neerlandês uma intervenção neste painel, que consideramos fruto de uma verdadeira “parceria” entre o dito Mestre de Abrantes (Cris-tóvão Lopes) e Campos.

Encontram-se ainda atribuídas ao Mestre de Abran-tes uma cena da História do Mártir Santo Adrião (sacristia da igreja da Póvoa de Santo Adrião) descoberta por Dago-berto Markl, um Calvário que se conserva nas reservas do mnaa, uma Descida da Cruz (Museu de Arte Sacra do Fun-chal) e quatro pinturas actualmente nas paredes laterais da capela-mor da igreja de São Brás do Arco da Calheta (Ma-deira), representando a Descida da Cruz, Ressurreição, São Brás e Doadores e Apresentação do Menino no Templo. Este conjunto poderá constituir eventualmente uma das mais tardias realizações tributáveis ao Mestre de Abrantes, da-

tável do último lustro da década de cinquenta da centúria. Evidenciam, contudo, claras dissemelhanças do ponto de vis-ta do debuxo, parecendo umas pinturas saídas de uma mão mais segura, enquanto outras apresentam algumas debili-dades que nos remetem para uma obra de carácter oficinal, onde a mão do mestre nem sempre estará presente.

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resumoNeste artigo, a partir dos azulejos subsistentes em Abrantes, será feito um percurso dos ciclos mais significativos desta arte decorativa em Portugal, desde o século xv ao xx. Palavras-chave: azulejo, religioso, profano, abstrato, figu-rativo, azulejo de fachada.

abstractIn this article, from the remaining decorative tiles in Abrantes, it will be made a circuit of the most importante cycles of this decorative art in Portugal, from the 15th to teh 20th centuries. Keywords: decorative tile, religious, profane, abstract, image, façade.

o azulejo em abrantes: 5 séculos de história da arte. ana paredes cardoso cehla – centro de estudos de história local de abrantes

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92 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

Ambas as igrejas, de Abrantes e de Coimbra, testemu-nham, ainda numa fase de importação, a nota mais marcante do consumidor português — o gosto pela monumentalidade.

Efetivamente, na Espanha os azulejos foram aplicados apenas até meia parede, com o mesmo padrão e respetiva cercadura. Entre nós evidenciou-se a preferência pelas apli-cações totais, usando diversos padrões com grande origina-lidade. Sendo esta a razão que explica a variedade encontra-da em Abrantes (fig. 2).

Fig. 2

Mais tarde, surgiu uma inovação na técnica decorativa — a aresta. Durante o segundo quartel de quinhentos as ofici-nas mouriscas firmadas na Espanha produziram a nova téc-nica, modernizando os motivos com a adoção dos temas re-nascentistas.

O procedimento para o isolamento dos esmaltes era mais simples. Recorria a moldes de madeira que se imprimiam no barro ainda mole, deixando assim espaços limitados por aresta.

A rapidez do processo levou ao abandono da corda-seca, bem como aos ornatos de temática mudéjar.

A este ciclo de extraordinário aumento produtivo, cerca de 1525 a 1550, corresponderão os exemplares de aresta de São Lourenço, observados nos frontais de altar, tal como era usu-al na época.

Do conjunto destacam-se os azulejos com o rodízio de navalhas — representando o martírio de Santa Catarina (fig. 3). Constituem um notável testemunho de cruzamento de civilizações, pois embora feitos segundo a técnica hispa-no-mourisca a temática destinava-se a servir o culto cristão. Estranhamente, estes espécimes estão no chão da capela-

-mor, uma aplicação, a ser original, pouco vulgar.

Fig. 3

o azulejo seiscentista Depois de estabilizados o formato e as dimensões (14×14), as técnicas e os motivos foram evoluindo. Por conseguinte, na segunda metade do século xvi verificou-se uma mudança de gosto. A azulejaria hispano-mourisca relevada foi subs-tituída pelo azulejo liso. Desta vez a influência veio de Itália. Em rigor não é possível datar o início da produção nacional de azulejo sob a técnica da faiança. No entanto, deveu-se a artífices italianos fixados em Lisboa, que já em meados de quinhentos produziam louça em faiança, a implantação defi-nitiva do azulejo em faiança.

antecedentes A cerâmica vidrada na arquitetura chega ao velho conti-nente através da presença islâmica. Foi na Península Ibéri-ca que mais se sentiu esse cruzar de civilizações.

Até meados do século xv a decoração cerâmica ficava no âmbito do mosaico, concretamente, do alicatado. Este ladrilho era conseguido através de pedaços de cerâmica es-maltada, aplicados em composições à semelhança das cal-çadas.

o azulejo hispano mouriscoNos meados do século xv, a atividade dos artífices mouros, radicados na Espanha, atingiu um grande desenvolvimento dando origem à técnica decorativa da corda seca e, mais tar-de, à da aresta.

Em Portugal, a história começa, nos finais do século xv, no Palácio de Sintra, através de uma encomenda feita por D. Manuel i às oficinas sevilhanas.

Em Abrantes, inicia-se, em 1503, na antiga igreja de San-ta Maria do Castelo, através de uma encomenda por iniciati-va da família dos Almeidas à oficina de Martin Guijarro, em Sevilha (Santos Simões 1945: 21 e 22).

A invenção da corda-seca foi considerada o “protótipo do azulejo europeu”. Verificou-se a estabilização do formato quadrangular e a produção passou para o contexto de ofici-nas dirigidas por mestres com os seus aprendizes.

A decoração da corda-seca era conseguida com diferentes metais em estado de oxidação. Esses óxidos eram extraídos em pó e depositados na placa cerâmica, previamente cozida, que depois era levada novamente ao forno.

Os óxidos, quando sujeitos a temperaturas altas, fundiam, dando origem a diferentes cores vitrificadas. Para que estas não se misturassem, criaram-se umas linhas separadoras, conseguidas com uma mistura de manganês e gordura que se aplicava a pincel. Após a cozedura, essas linhas transfor-mavam-se em saliências negras delimitadoras - a dita cor-da-seca. Assim, obtinha-se uma variadíssima padronagem, geométrica, de cariz abstrato, como ditam os princípios da fé muçulmana (horror à figuração), repetindo o esquema de la-çarias do antigo alicato.

Com este processo arcaico foi, no entanto, possível criar ornamentação de grande beleza e complexidade, como tes-temunham os azulejos do frontal de altar da antiga igreja de Santa Maria do Castelo (fig. 1).

Fig. 1

Este núcleo, que engloba 16 variedades, foi considerado por Santos Simões e José Meco, o conjunto de corda-seca mais valioso subsistente no país.

O Guia de Portugal (vol ii, p. 385) e o Inventário Artístico de Portugal, Distrito de Santarém (tomo iii, p. 2), apresenta-ram o conjunto de Santa Maria do Castelo como sendo igual ao da Sé Velha de Coimbra. Analogia que ainda hoje persiste.

Também se tem apontado a hipótese da antiga igreja abrantina ter sido decorado com os sobejos da igreja coimbrã. Mas, na verdade, Santa Maria concentra o maior número de azulejos de corda-seca, enquanto em Coimbra regista-se o pre-domínio da aresta. Acresce que os azulejos mais valiosos em corda seca de Abrantes não se repetem em Coimbra.

É este o argumento de Santos Simões, que observou em Santa Maria do Castelo azulejos ajustados a uma encomen-da de 1503 - onde, sem dúvida, abundaria a corda-seca, típi-ca da oficina de Guijarro.

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recimento dos primeiros painéis iconográficos, como teste-munham o arcanjo São Miguel, ladeado pelas alminhas no purgatório, e as naus de São Vicente, memorizando a trasla-dação das relíquias do mártir (fig. 6).

Fig. 6

Os artesãos continuavam a ser homens sem formação, que repetiam os ritmos diagonais experimentados no caixi-lho, agora com azulejos de padrão.

O valor destes painéis reside no facto de materializa-rem os primeiros ensaios de artífices humildes na arte figurativa. Uma massa anónima, sem entrada no grémio dos artistas do Antigo Regime — a Irmandade de São Lucas. Na verdade, a atividade de pintor de azulejo só foi reconhecida, por essa prestigiada corporação, no século xviii. Até então, era tida como uma profissão mecânica, incorporada na Casa dos Vinte Quatro, tal como a profis-são de oleiro ou ladrilhador.

o azulejo setecentista Os painéis figurativos do século antecedente tornaram-

-se maiores, agruparam-se em sequências narrativas, até à grandiosidade dos silhares historiados em tons de azul, por influência da disseminação da porcelana chinesa. Foi o período áureo da azulejaria portuguesa, corresponden-do ao reinado de D. João v (1706–1750). Foi também o

“ciclo dos mestres” criadores dos conjuntos monumentais profanos e religiosos.

A este período corresponde o acervo da Misericórdia do qual se destaca o silhar das sete obras de caridade corporal, programa alusivo às obrigações dos Irmãos, que decora a sala do Definitório.

A iconografia alusiva à virtude cristã da caridade cons-tituiu um tema bastante glosado por todas as Casas do país, assumindo verdadeira expressão propagandística.

No entanto, a provedoria abrantina ao eleger as áreas cir-cunscritas aos Irmãos para o investimento azulejar mais rico, sugere que a sua preocupação incidiu na formação e edifica-ção dos membros da Irmandade, no intuito de elevar a sua exemplaridade religiosa e moral. Deixando, assim, um con-vite às ações virtuosas dos seus membros numa clara exal-tação da Instituição, cujos maiores dividendos provinham dessas práticas de caridade.

Os painéis obedecem, à direita de quem entra na sala, à seguinte ordem: dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; remir os cativos; dar pousada aos peregrinos; visitar os enfermos e visitar os presos (representados no mesmo painel) e, por fim, sepultar os defuntos (fig. 7).

Fig. 7

Ao nível formal destacam-se a narração dramática e um forte sentido cenográfico, conseguido pelos fundos de paisa-gem, as arquiteturas monumentais e as cercaduras, caracte-rísticas da estética barroca.

Relativamente à autoria, José Meco propôs o mestre Valentim de Almeida, com oficina aberta em Lisboa, pelo

A técnica permitiu a pintura direta sobre a peça já cozida, abrindo novas possibilidades ao nível da decoração.

Após a primeira cozedura colocava-se óxido de estanho, claro e opaco, sobre o qual se aplicava, a pincel, os pigmen-tos solúveis de vários óxidos metálicos, que darão origem a várias tonalidades esmaltadas.

Estes pigmentos são imediatamente absorvidos, por isso não havia o perigo de as cores se misturarem, quando a peça fosse novamente ao forno para vitrificar.

os primeiros azulejos portuguesesNuma primeira fase as oficinas portuguesas produziram em paralelo duas tipologias distintas. Uma de caráter figurativo de grande qualidade e erudição e vocabulário ornamental maneirista. Outra de caráter abstrato, conseguida com a aplicação de azulejos desornamentados.

O contexto histórico de crise (iniciada com o desfecho de Alcácer Quibir continuada no período filipino e pós Res-tauração) não favoreceu a produção de azulejaria ornamen-tada de qualidade e erudição-as ditas “obras de escola”, que seriam abandonadas no início de seiscentos.

Fig. 4

Em contrapartida, verificou-se a continuação e evolução das experiências com azulejos desornamentados em am-bientes oficinais livres de regras formais, que deram origem

a composições criativas, tal como são os azulejos de caixilho, dos inícios de seiscentos da igreja de São João Batista (San-tos Simões 1997: 154) (fig. 4).

Embora os azulejos desornamentados não sejam exclu-sivos das oficinas portuguesas (pois importámos exemplares destes do país vizinho) a criação dos esquemas designados de caixilho são especificamente portugueses e não se conhe-cem noutros países (Meco [s/d]: 24).

A intenção decorativa é abstrata, a sua compreensão re-sulta da perceção da escala e do ritmo, e do modo como se integram na arquitetura.

Porém, esta azulejaria apesar de económica era morosa no processo de aplicação, tendo sido suplantada pelo azulejo de padrão, como se confirma na paroquial de São Vicente (fig. 5).

Fig. 5

O conjunto foi datado de cerca de 1650 (Santos Simões 1997: 154). Correspondendo ao período de grande produção de padrão para tapete em escalas monumentais e ao apa-

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castanho e vimioso. Como não têm decoração, o seu valor residia no modo de aplicação, que podia ser feito na horizon-tal ou vertical, com as juntas certas ou desencontradas. Ape-sar de monocromáticos criam um admirável efeito de osci-lação de tons, através das variações de luz entre as secções planas e os chanfros.

Fig. 9

Paralelamente a esta produção existiu uma criação de au-tor, exatamente como sucedeu no século anterior. Foi um gosto eclético, que pretendia manter a tradição do azulejo ar-tístico. Com este objetivo foram criadas composições únicas, em alternativa à produção seriada. Os seus autores estão na sua maioria identificados. Entre eles destacaram-se Luís An-tónio Ferreira, pelo seu pioneirismo e, posteriormente, Rafa-el Bordalo Pinheiro, pelo seu carácter inventivo.

Luís António Ferreira ficou conhecido por Ferreira das Tabuletas, porque boa parte da sua obra deu uma nova fun-ção ao azulejo, favorável ao comércio e à indústria, através

de painéis publicitários. No seu trabalho, recusou a repeti-ção de padrões estandardizados, optando pela recriação de esquemas inspirados no neoclassicismo, combinados com figuração naïfe.

Em Abrantes, registam-se três composições, datadas de 1847, 1871 e 1889 que seguem o espírito eclético do mestre Ferreira das Tabuletas (fig. 10). São de vasos floridos, os cro-nogramas e anagramas inscrevem-se na promoção das res-petivas casas comerciais, e encontram-se integrados num pa-drão semi-industrial.

Fig. 10

Nos inícios do século xx assiste-se a uma nova estética — a Arte Nova. Nascida na França chega a Portugal discre-tamente, influenciando a decoração do azulejo. No Centro Histórico perduram alguns registos circunscritos a plati-bandas, com motivos florais e paleta cromática diversifica-da, sendo a assimetria e a fluidez os traços mais evidentes do novo gosto.

menos até 1762. As razões desta atribuição justificam-se num conjunto de caraterísticas formais identificadoras do estilo pessoal do mestre “as posições artificiais das figuras com rostos ligeiramente revirados e alguns maneirismos e imprecisões na conceção da perspetiva da arquitetura e pai-sagem” (1989: 226).

Em rigor, sobre o conjunto, conhecem-se somente as contas registadas nos Livros de Receitas e Despesas da Insti-tuição, onde constam os custos e o ano de 1747, data da enco-menda a Lisboa do painel de Ananias e Safira, na escadaria exterior que antecede a sala do Definitório (Carvalho 2007: 142 e 143).

o azulejo de fachada, séculos xix e xx É um fenómeno urbano que, quando extensível a vários edi-fícios numa mesma rua, assume uma marca distintiva da ci-dade portuguesa.

Em Abrantes tal não se verifica mas, em registo pontual, conservam-se in situ todas as tipologias e tendências da his-tória do azulejo de fachada.

O uso dos azulejos nas fachadas revela uma interessan-te inversão de influências culturais entre Portugal e o Bra-sil. É certo que as fábricas portuguesas produziam azulejos de fachada, porém salvo algumas exceções não eram utiliza-dos no exterior.

Em contrapartida, no Brasil, generalizou-se, ainda no século xviii, na arquitetura religiosa e civil, o revestimen-to exterior com azulejos importados de Portugal. Deveu-se justamente, aos imigrantes portugueses regressados do Bra-sil pós-independência (1822) a introdução do revestimento azulejar no edificado nacional.

Os antecedentes do azulejo oitocentista encontram-se na azulejaria pombalina, repetem-se os padrões florais e geo-métricos, também os jogos de redução de escalas, utilização de frisos, cercaduras e barras, procurando integrar o azule-jo na arquitetura.

Do ponto de vista técnico, a azulejaria de fachada po-de ser agrupada em três tipologias distintas: a lisa, a releva-da e a biselada. Todas estão representadas no Centro Histó-rico de Abrantes.

A azulejaria lisa foi produzida segundo duas técnicas, a estampilha e a estampagem, sendo, maioritariamente, forne-cidas pelas fábricas de Lisboa.

A primeira técnica foi a da estampilha, que consistia na co-locação sobre o azulejo de uma máscara, em papel oleado ou placa metálica, com o desenho a reproduzir. O motivo era pin-tado à trincha. Consoante o número de cores assim variava o número de máscaras. Neste processo, ainda moroso, foram produzidos a maioria das fachadas azulejadas em Portugal.

Os exemplares identificam-se numa observação direta, pois apresentam os vestígios da passagem da trincha, sendo a ornamentação geométrica ou floral (fig. 8).

Fig. 8

Por sua vez os azulejos relevados são uma produção ca-racterística das fábricas do Porto, sob duas técnicas, a de al-to-relevo e a de meio-relevo. As temáticas foram igualmen-te florais e geométricas.

Por último, os azulejos biselados monocromos carac-terizam-se pela forma retangular e as extremidades chan-fradas (fig. 9).

A produção deveu-se às principais fábricas sediadas em Lisboa e no Porto, que os fabricaram em azul forte, verde,

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resumoNeste artigo, explica-se o papel que o jade teve na história da China desde as suas origens.Palavras-chave: jade, China, mito, autoridade, cultura.

abstractIn this article, it is explained the role that jade had in China’s history since its beginnings.Keywords: jade, China, myth, authority, culture.

para além do tempo. o jade no percurso da história da china. Rui Oliveira Lopes cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa

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animais imaginários fundamenta-se na projecção de estru-turas simbólicas que se localizam na transcendência do real e numa dimensão sobrenatural dos seres.

Enquanto a condição feérica dos pássaros na transição entre o céu e a terra, a migração das tartarugas entre a terra e o oceano, o ciclo da vida das cigarras entre o subsolo e a superfície e a transfiguração dos bichos-da-seda evocam os princípios da transgressão do espaço, a viagem espiritu-al e a transformação da matéria que é o homem, o dragão é um animal mítico e híbrido constituído a partir do so-matório de virtudes e qualidades de diversos animais reais, tornando-o uma entidade suprema no imaginário colectivo das sociedades antigas. O dragão, alado e valorizado pelo seu voo, aquático e nocturno pelas escamas, serpente com penas e serpente cornuda, é o símbolo da totalização que representa, simultaneamente, a potência fasta e nefasta, que tanto poderá proteger o homem contra os espíritos do mal, como poderá ser o devorador do homem.

A dimensão ofídia do dragão e a configuração circular dos pendentes zhulong de jade encontrados nos túmulos de várias culturas do Neolítico da China remetem, inevitavel-mente, para o símbolo da transformação temporal do ou-roboros, a serpente que devora a sua própria cauda ampla-mente representada nas civilizações antigas, como o Egipto, a Grécia Antiga e nas tradições Judaico-Cristãs. Bachelard vê no ouroboros a dialéctica material da vida e da morte, a morte que sai da vida e a vida que sai da morte. Esta ideia está em concordância com o pensamento chinês tradicio-nal, para o qual o dragão e a serpente são os símbolos do fluxo e refluxo da vida.

No que respeita ao conhecimento tecnológico, as fer-ramentas de pedra demonstram que a cultura Hongshan dominava profundamente as técnicas de polimento, de lascagem, de corte e de perfuração, para além de procede-rem a uma selecção criteriosa das pedras utilizadas, na sua maioria em granito e calcário e escolhidas pela sua dureza e textura. De um modo geral, estas ferramentas de pedra seriam utilizadas na agricultura e também no tratamento de peles e preparação de carne de animais domesticados. O desenvolvimento da agricultura e da pecuária tem como

consequência uma estabilidade e prosperidade dos aglome-rados populacionais. As técnicas utilizadas para o polimen-to e corte das ferramentas de pedra terão sido as mesmas aplicadas para os objectos rituais de jade. Ao contrário do que acontecia com as pedras comuns, o jade era consagra-do apenas aos rituais sagrados ou para ornamento associa-do ao estatuto ou hierarquia social.

A execução destes objectos, pelas características espe-ciais do jade ao nível da dureza, implicava a existência de uma estrutura organizada na divisão de trabalho, envolven-do um número elevado de artesãos especializados e com conhecimentos no manuseio de ferramentas específicas para trabalhar o jade. Presumivelmente, a maior parte das ferramentas utilizadas para trabalhar o jade seriam feitas em madeira e em bambu, juntamente com abrasivos à base de areia, que permitiam perfurar e polir a superfície do objecto. Alguns arqueólogos sugerem a utilização de uma roda de esmeril, comummente designada como pedra de amolar, montada num eixo mecanizado para cortar, des-bastar a superfície e delinear o perfil dos objectos. A fricção de cordas envolvidas numa pasta de esmeril e cristais de quartzo terá sido uma das técnicas de corte desenvolvidas pela cultura Hongshan, mas também utilizada posterior-mente pela cultura Liangzhu (3200–2200 a.c.), que ocupou a actual área de Shanghai.

A cultura Lianghzu, que emergiu na sequência do de-clínio das culturas Majiabang (5000–3200 a.c.) e Songze, desenvolveu amplamente as técnicas de trabalhar o jade, sendo desse período os bem conhecidos tubos prismá-ticos (cong) e inúmeros exemplares de discos de jade (bi), na sua maioria ornamentados com figuras e máscaras em alto-relevo. As longas perfurações dos cong e dos discos bi terão sido feitas com perfuradores de bambu e uma mistura de água e quartzo, uma vez que estes objectos apresentam estrias elípticas ao longo da perfuração. Devido à enorme pressão exercida, a perfuração era feita alternadamente em cada um dos lados, evidenciando uma protuberância mais ou menos a meio da abertura. A descoberta de ferramentas em sílex e dentes de tubarão encontrados em escavações ar-queológicas, junto a objectos de jade, permite pensar que

introdução O jade foi um dos materiais mais apreciados na tradição cultural e artística da China ao longo de milénios, desde a formação das estruturas identitárias durante o Neolítico até à contemporaneidade. Os diversos contextos de utili-zação e apreciação do jade resultaram numa ampla tipolo-gia de objectos que expressam um profundo virtuosismo técnico em harmonia com uma sensibilidade estética, que ainda hoje provoca um deslumbramento do olhar.

A criação de objectos requintados, com recurso a mate-riais raros e de rara beleza, como é o caso do jade, insere-se num contexto de dignificação, de celebração e de distinção de relações entre os grupos sociais, as estruturas de sobera-nia e a ordem celeste.

Ao longo do tempo, o jade desempenhou um papel fun-damental no contexto dos rituais sagrados, tornou-se um símbolo da exuberância, da prosperidade e da estabilidade política e ficou para a posteridade como insígnia de êxitos militares que culminaram na unificação do Império. No contexto da redefinição do pensamento chinês, com base no estabelecimento de uma nova ordem moral e ética, a transparência, a elegância e a suavidade do jade espelha-vam as principais virtudes do homem íntegro. Finalmente, na prossecução da antiguidade pela cultura literati da Chi-na o jade foi o material privilegiado para a representação de símbolos auspiciosos alusivos à prosperidade, à descen-dência e à longevidade das carreiras de oficiais imperiais, para a reprodução de pequenas esculturas dos imortais e de outros elementos associados ao taoismo. o jade e os mitos primordiais nas culturas do neolítico da chinaA vasta maioria das culturas do Neolítico na China, no pe-ríodo entre 8500 e 2000 a.c., encontraram no jade o supor-te para a instrumentalização dos rituais sagrados, dando forma a um vasto imaginário de animais, figuras antropo-mórficas e muitos outros objectos de formas únicas, cujo significado e função se perdeu no tempo. Entre as diversas sociedades do Neolítico, a cultura Hongshan (3400–2300 a.c.), junto às margens do Rio Liao, na Província de Lia-

oning e ao largo Mongólia Interior, distingue-se pela larga quantidade de objectos de jade encontrados em contexto funerário. Os objectos de jade da Cultura Hongshan de-monstram um profundo domínio das técnicas de corte, desbaste e perfuração de uma dos mais duros materiais lí-ticos, correspondendo a um desenvolvimento significativo ao nível das estruturas organizacionais dos grupos sociais. Em Niuheliang, que terá sido uma das principais áreas de ocupação da cultura Hongshan foram encontrados alguns túmulos contendo objectos de jade de diversas tipologias, entre as quais os célebres pendentes dragão de forma ane-lar, designados por zhulong. Quer pela importância do ma-terial, quer pelo contexto de utilização e de exumação, os pendentes de jade eram apenas reservados às figuras mais importantes da sociedade, isto é, aos líderes dos clãs ou aos xamanes que conduziam os rituais sagrados.

A maioria dos objectos de jade da Cultura Hongshan desenterrados em contexto arqueológico foi encontrada em Niuheliang, Sanguandianzi, Dongshanzui e ao longo do vale do Rio Laoha. Entre os objectos mais comuns, como as contas, os pendentes de forma anelar e semi-anelar (huang) e os discos bi, com uma perfuração ao centro, existiam ou-tros na forma de animais como os dragões enrolados na forma de anel, tigres, porcos, tartarugas, pássaros e cigarras. Os artefactos do primeiro grupo de objectos seriam imple-mentos ornamentais de roupa e de cabelo. Tendo sido en-contrados sobre a cabeça, alguns ornamentos relativamente grandes, em forma de cone e com duas aberturas nas ex-tremidades, uma maior do que a outra, teriam sido usados para apanhar o cabelo. Os artefactos com a forma de ani-mais teriam, eventualmente, um significado específico no contexto dos rituais funerários, de acordo com as qualida-des que esses animais representavam na Cultura Hongshan. Entre todos os animais, os pássaros, a tartaruga, os dragões, as cigarras e os bichos-da-seda são aqueles que surgem com maior frequência.

A representação de animais reais tem que ver com as qualidades naturais que lhes são reconhecidas e fundamen-tais à definição de estruturas simbólicas na comunicação entre o Homem e o Céu. Por outro lado, a representação de

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tia Shang demonstram um profundo carácter cerimonial, sendo particularmente comuns as armas, os pendentes, os adornos de indumentária e os ceptros, alguns dos quais contendo uma inscrição da insígnia do clã. As lâminas (zhang), presumivelmente usadas como ceptro, assim como as diversas tipologias de machados ge e yue foram frequen-temente encontrados em túmulos de elite, tanto da Cultu-ra Erlitou, como mais tarde, em áreas mais periféricas da Cultura Sanxingdui (ca. 1200 a.c.), na actual província de Sichuan.

Mais tarde, a maturidade artística e o domínio total das técnicas da produção de objectos de jade coincidiram com o desenvolvimento de ferramentas em ferro por volta do séc. v a.c.. Durante o Período dos Estados Combatentes (475–221 a.c.) até à dinastia Han (206 a.c.–220), o Con-fucionismo, o Taoismo e as virtudes associadas à ética e à moral que lhes estão implícitas desempenharam um papel vital no estabelecimento de uma nova ordem. Os Clássicos descrevem como o jade representava as cinco principais virtudes inerentes à governação: a benevolência, a integri-dade, a inteligência, a bravura e a confiança, e, por isso, to-dos os homens íntegros e associados à elite governamental ou militar deveriam usar objectos de jade.

Quando Zi Gong, um dos discípulos de Confúcio, ques-tionou o seu mentor sobre a importância que o jade repre-senta para o homem ilustre, Confúcio respondeu:

— “It is not because the soapstone is plentiful that he thinks but little of it, and because jade is rare that he sets a high value on it. Anciently superior men found the likeness of all excellent qualities in jade. Soft, smooth, and glossy, it appeared to them like benevolence; fine, compact, and strong, — like intelligen-ce; angular, but not sharp and cutting, — like righteousness; hanging down (in beads) as if it would fall to the ground, — like (the humility of) propriety; when struck, yielding a note, clear and prolonged, yet terminating abruptly, — like music; its flaws not concealing its beauty, nor its beauty concealing its flaws, — like loyalty; with an internal radiance issuing from it on every side, — like good faith; bright as a brilliant rainbow,

— like heaven; exquisite and mysterious, appearing in the hills

and streams, — like the earth; standing out conspicuous in the symbols of rank, — like virtue; esteemed by all under the sky,

— like the path of truth and duty. As is said in the ode: Such my lord’s car. He rises in my mind, lovely and bland, like jade of richest kind”.

No tempo de Confúcio era comum que os homens no-bres e de atitude exemplar usassem objectos de jade, como símbolos do seu estatuto social e das virtudes morais que os caracterizavam. Daqui resulta um conjunto de novas signifi-cações associadas ao jade completamente distintas daquelas que o jade representava ao longo dos períodos anteriores, ainda que contendo elementos iconográficos comuns ou constituindo reformulações de formatos antigos. Os discos bi diminuíram significativamente de tamanho e evoluíram no sentido de uma diversificação notável, de modo a que pudessem ser usados como acessórios de indumentária, normalmente pendurados à cintura ou adaptados a longos peitorais.

Por outro lado, para os taoistas, o jade era considerado uma substância imortal, uma fonte espiritual da pureza e da verdade e um objecto com propriedades alquímicas que propiciavam a longevidade, tornando-se particularmente popular durante o Período dos Estados Combatentes e a di-nastia Han.

Os rituais funerários de membros da aristocracia do Pe-ríodo dos Estados Combatentes e da dinastia Han demons-tram o recurso a objectos de jade colocados em pontos estra-tégicos dos corpos, nomeadamente na boca e nos olhos, de modo a impedir a decomposição natural. Em alguns casos, foram encontradas máscaras e fatos de jade semelhantes aos encontrados nos túmulos de Liu Sheng e Dou Wan na Pro-víncia de Hebei, de Zhao Mo, conhecido como Rei Nanyue, na Província de Guangzhou. De acordo com o Livro dos Han Posteriores, ou Hou Han Shu (後漢書), compilado por Fan Ye no século V, a união entre as centenas de placas de jade que compunham o fato poderiam ser de ouro, prata ou de seda, correspondendo ao estatuto ou lugar na aristocracia chinesa. Contudo, as evidências arqueológicas demonstram que nem sempre essas práticas eram devidamente aplicadas.

poderão ter sido utilizados para a ornamentação e inscrição de marcas de identificação dos clãs na superfície do jade.

As armas rituais e outros objectos ornamentais de jade associados ao poder espiritual e político, entre os quais os ceptros (zhang), os colares de contas e os peitorais (huang), tornam-se comuns durante o Neolítico recente, nomeada-mente nas culturas Liangzhu, Shijiahe (2500–2200 a.c.) e Longshan (2500–2000 a.c.). Ao longo das margens do Rio Amarelo, nas actuais Províncias de Henan, Shanxi e Shan-dong, nas cerimónias rituais da cultura Longshan foram uti-lizadas armas de jade em diversos formatos, designadamen-te machados (kwei, yue e fu) e facas (dao). Normalmente, estas armas não aparentam sinais de uso, o que pressupõe uma utilização limitada aos sacrifícios durante os rituais ou como símbolos de poder e aparato. Efectivamente, a cultura Longshan constitui uma fronteira cultural entre o Neolítico e a Idade do Bronze, que se inicia aproximadamente por volta de 1900 a.c. com a denominada cultura Erlitou, numa fase inicial, e a cultura Erligang, numa fase posterior, preci-samente na mesma região ocupada pela cultura Longshan. Acresce ainda o facto de que na cultura Erlitou, na cultura Erligang e ao longo da dinastia Shang (1600–1045 a.c.) as armas rituais de jade seguem os modelos anteriores da cul-tura Longshan.

o jade como símbolo da autoridade política na definição do impérioNa realidade, enquanto durante o Neolítico os objectos de jade são, na sua vasta maioria, objectos rituais que reflec-tem os aspectos relacionados com os mitos primordiais, do imaginário celestial e que indiciam a existência de práticas xamânicas, os jades das dinastias Shang e Zhou são objectos predominantemente de carácter ornamental e de ostenta-ção de poder, procurando reflectir as virtudes e a importân-cia do homem que os ostenta.

Assim, durante os Shang e sobretudo no tempo dos Zhou, os objectos de jade constituem atributos da autorida-de política, do estatuto social, da prosperidade, da hegemo-nia militar e das virtudes éticas e morais no desempenho da governação.

A importância do jade, associado às qualidades trans-cendentais que lhe eram atribuídas pelos Shang, reflecte-se não só na produção de armas cerimoniais utilizadas nos sacrifícios e como símbolos de soberania, como também na colecção de objectos rituais de jade produzidos pelas an-tigas culturas do Neolítico. Em alguns túmulos da dinastia Shang, como é o caso do túmulo da princesa Fu Hao em Anyang, foram encontrados vários objectos de jade do Ne-olítico, alguns dos quais na forma de dragões e de pássaros da cultura Hongshan e alguns cong com a representação do motivo da máscara característica das culturas Liangzhou e Longshan. Isto significa que os Shang reconheciam, respei-tavam e valorizavam o conhecimento e o pensamento mí-tico dos seus antepassados, reactualizando esse imaginário não só através da produção de objectos de jade mas sobre-tudo através dos recipientes rituais de bronze, nos quais o motivo da máscara é não apenas um elemento iconográfico, mas também um elemento estruturante na configuração dos recipientes rituais.

Efectivamente, a heterogeneidade estilística na repre-sentação deste motivo corresponde às inovações nos for-matos dos recipientes, ocupando os diversos espaços na superfície dos bronzes rituais. Contudo, para além do facto do taotie, muito provavelmente, derivar do motivo da más-cara / animal que encontramos em muitos dos jades rituais do Neolítico, é importante acrescentar que o taotie é um ser imaginário entre muitos outros animais, reais e imaginários, representados na superfície dos bronzes rituais. Alguns tex-tos das dinastias Zhou e Han, apesar de tardios, identificam alguns dos animais imaginários frequentemente represen-tados nos jades e nos bronzes rituais da dinastia Shang: o taotie (um animal sem corpo), o feiyi (um tipo de serpente com uma cabeça e dois corpos), o kui (um animal seme-lhante a um touro, negro, sem chifres e apenas com uma pata) e o long (o mais comum dos dragões). A par com estes animais míticos assistimos a uma continuidade na produ-ção de objectos rituais de jade na forma de animais como a tartaruga, os pássaros, as cigarras e os bichos-da-seda.

No entanto, apesar da continuidade das tradições ar-tísticas e rituais dos jades do Neolítico, os jades da dinas-

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Na realidade, a apreciação do jade durante a dinastia Tang mudou significativamente em relação a períodos ante-riores, correspondendo às tendências do tempo, no sentido de uma democratização dos objectos e de concepções pu-ramente estéticas que se coadunam com o novo espírito da cultura literati.

Durante a dinastia Song (960–1279) viveu-se um pe-ríodo de grande dedicação à estrutura civil da China, que se reflectiu no abandono de uma atitude militar e num de-senvolvimento profundo nos aspectos de carácter cultural e artístico. Alguns historiadores referem que os imperado-res da dinastia Song preferiram o pincel no lugar da espada, tornando-se num modelo da sensibilidade estética, do gosto requintado e da harmonia plena com o cosmos. Huinzong, que reinou nas primeiras décadas do século xii, foi um re-conhecido pintor, calígrafo, poeta e músico, reunindo na sua colecção imperial mais de 6000 pinturas de diversos mestres antigos e contemporâneos, assim como milhares de outros objectos de jade, bronze, laca, cerâmicas, mobiliário, escultura e uma extensa biblioteca.

De um modo geral, os jades da dinastia Song absorveram o gosto refinado e cortesão da dinastia Tang, acrescentan-do alguns aspectos relacionados com as novas perspectivas sobre o enquadramento cultural dos oficiais no desempe-nho do serviço civil. Assim, surge um novo reportório de tipologias em torno dos objectos utilitários do oficial eru-dito, como o são os recipientes para diluir a tinta, para as pedras de tinta, os pincéis, os suportes para os pincéis, os pisa-papéis e os selos. As esculturas de pequenas dimensões, representando flores e animais auspiciosos que simbolizam as virtudes do homem associadas ao seu estilo de vida, são objectos essenciais nos gabinetes de uma nova classe social que se identifica com o conhecimento das principais insti-tuições da cultura chinesa. No contexto da escultura de esca-la reduzida encontram-se ainda a miniaturização do mundo natural, através de representações simuladas de montanhas, de configuração sinuosa, nas quais eram representados os imortais taoistas. Ainda durante o período Song, o culto da antiguidade motivou o coleccionismo das relíquias an-cestrais que remontam à formação das instituições do pen-

samento chinês, dando lugar a uma reinvenção do passado através da actualização dos modelos antigos.

Posteriormente, durante as dinastias Ming (1368–1644) e Qing (1644–1911), sob a influência do contexto cultural dos Song, do surgimento do Neo-Confucionismo e da reformu-lação da organização do Estado, estes símbolos auspiciosos de jade elegantemente executados tornaram-se num dos mais apreciados objectos nos gabinetes dos homens letrados, como símbolo do seu próprio conhecimento.

Ao longo das últimas dinastias, a gosto pelo jade tornou--se cada vez mais um sinal de requinte, de conhecimento e de estatuto social, sendo utilizado nos mais diversos contex-tos da sociedade. A popularização do jade foi inflamada pelo desenvolvimento das oficinas de produção que respondiam não só às encomendas de importantes figuras da sociedade chinesa mas também dos comerciantes e missionários euro-peus que também viram no jade o material de eleição para a representação de imaginária cristã utilizada no contexto das missões na China e no Japão e de objectos exóticos enviados para figurarem nos gabinetes de curiosidades das principais cortes europeias.

Apesar disso, o jade continuava a ser um privilégio da família imperial, ocupando um lugar especial nas colec-ções do Palácio, sobretudo durante o reinado de Qianlong. O gosto do imperador pelo jade inspirou-o a compor poe-sias que versavam sobre as qualidades da pedra, encorajou-o a planear campanhas militares para a pacificação de rebeldes na província de Xinjiang, com vista a garantir o acesso ao jade proveniente do Khotan. Alguns dos poemas de Qian-long, gravados nos próprios objectos de jade, referem que o jade não deveria ser desperdiçado nas mãos de artesãos comuns. As oficinas imperiais recrutavam apenas os artistas mais hábeis, capazes de retirar da pedra as formas mais belas e de recriar no jade os modelos dos objectos rituais de jade e bronze da antiguidade, das porcelanas das dinastias Tang e Song e até da pintura das colecções imperiais.

No British Museum encontra-se um disco de jade da fase final da dinastia Shang e que pertenceu à colecção do imperador Qianlong. Em 1790, no último ano da sua longa vida, Qianlong mandou gravar um poema da sua autoria,

Nos túmulos da dinastia Han, o reportório dos objectos de jade, embora já não sejam tão numerosos como no Pe-ríodo dos Estados Combatentes, são na sua vasta maioria símbolos da autoridade imperial, nos quais o dragão é o ele-mento iconográfico mais proeminente enquanto símbolo do Imperador, muitas vezes representado em harmonia com o tigre, símbolo do poder militar. Durante os Han tem lugar uma nova atitude perante o passado histórico das primeiras dinastias, sendo prática comum coleccionar objectos desses períodos. Consequentemente, alguns dos formatos mais co-muns, como os discos, são estilisticamente reformulados e reinventados através de expressões ornamentais mais actuais. Por outro lado, o coleccionismo e o interesse por objectos exóticos que chegaram à China através da Rota da Seda dão lugar a novas formas inspiradas sobretudo nas tendências do mundo Persa. As taças de libação, comummente conhecidos por rítons e designadas na Pérsia por takuk, disseminaram-

-se pela Ásia Menor e estenderam a sua influência à China. No túmulo do Rei Nanyue, para além de outros objectos de prata importados da Pérsia, encontra-se também uma taça de libação de jade na forma de corno de rinoceronte, provavel-mente executada a partir de modelos vindos da Pérsia.

Os túmulos de importantes figuras da aristocracia são or-namentados com inúmeros objectos de diferentes materiais. Para além dos jades e conjuntos de diferentes tipologias de recipientes de bronze, encontram-se instrumentos musicais, esculturas em madeira lacada, peças em seda, mobiliário, caixas exóticas, correspondendo mais à ornamentação de um palácio do que propriamente de um túmulo. Durante o Período dos Estados Combatentes, a presença de grandes conjuntos de sinos e outros instrumentos musicais, permi-tem pensar que os rituais eram seguidos por uma enorme plateia de convidados que assistiam a uma cerimónia de aparato, que reflectia a grandiosidade do homem e o pro-longamento da vida para além da morte.

No período subsequente à queda da dinastia Han e até à dinastia Tang (618–907), a importância do jade decresceu significativamente, na sequência da introdução do Budismo na China e da perda de influência do Confucionismo e do Taoismo junto das elites imperiais.

Por outro lado, a instabilidade permanente e o clima ca-ótico em diversas regiões da China impossibilitou o trans-porte de jade vindo da Ásia ocidental, levando a um natural declínio da produção de objectos de jade.

o jade e a cultura literatiO estabelecimento da dinastia Tang, no início do século vii, pôs termo a um longo período de instabilidade política, marcado pelo conflitos e pelos confrontos entre sucessivos soberanos. A hegemonia dos Tang estendeu-se ao controlo das tribos nómadas da Ásia Central e das lucrativas rotas comerciais ao longo da Rota da Seda, dando lugar a uma re-abertura da China ao exterior e a uma intensa circulação de objectos. Na sequência do florescimento cultural e artístico no contacto com outras culturas, da Ásia Central ao Sudeste Asiático, o interesse pelo jade difundiu-se na sociedade na forma de objectos de carácter exótico e de curiosidade, re-flectindo as influências dos encontros culturais.

De um modo geral, os objectos de jade servem uma fun-ção predominantemente ornamental, decorativa, utilitária, reafirmando-se também a sua utilização num contexto do traje de cerimónia, com especial destaque para os cintos com placas de jade reservados aos monges taoistas e a um gru-po restrito de oficiais imperiais, aristocratas e imperadores. As placas de jade são tradicionalmente de formato quadran-gular, rectangular ou circular, dispostas em diferente número de acordo com o estatuto social. A decoração das placas dos cintos representa frequentemente animais auspiciosos, flores, pássaros, músicos, malabaristas, bailarinas e outras figuras vestidas de acordo com os costumes da Ásia Central. Os orna-mentos femininos consistem sobretudo em alfinetes e pentes de cabelo, pendentes na forma de Fénix e de flores. Os ob-jectos decorativos, utilitários e exóticos referem-se aos pratos, caixas, taças de libação, jarros e incensários que surgem no contexto dos tributos e das ofertas de embaixadores e emissá-rios. Finalmente, no seguimento da importância do Budismo durante a dinastia Tang, que beneficiou em alguns períodos de protecção imperial, tornou-se comum a presença de mo-tivos budistas, em particular a representação de apsaras, pro-vavelmente pela relação que têm com a dança e com a música.

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lopes, rui oliveira (2011) — “Imaginário espiritual e símbolos da autoridade política nos jades e bronzes rituais da China Antiga”, in Bronzes e Jades da China Antiga | Coleção José de Guimarães, Lisboa: Centro Científico e Cultural de Macau, pp. 51–84.rawson, jessica (1995) — Chinese Jade from the Neolithic to the Qing, London: British Museum Press.rawson jessica (ed.) (2009) — Treasures from Shanghai. Ancient Chinese bronze and jades, London: The British Museum Press.sax, m.; meeks, n. d.; michaelson, c.; middleton, a. p. (2004)

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— “The introduction of rotary incising wheels for working jade in China”, jett, p. (ed.) Scientific Research on the Sculptural Arts of Asia, Proceedings of the Forbes Symposium at the Freer Gallery of Art, Washington dc.wu, lingyun et alli (2007) — Treasures from the Museum of the Nanyue King. Beijing: The Museum of the Nanyue King Cultural Relics Press.

no qual nos dá uma ideia da importância do jade, quer nos aspectos relacionados com o prolongamento no tempo e na história, quer na reactualização do seu contexto no diálogo com as outras artes:

— “It is said there were no bowls (wan) in antiquity / but if so, then where did this stand come from? It is said that this stand dates to later times / but the jade is antique and not of modern stuff. It is also said that a bowl (wan) is the same as a basin (yu) / only differing from it in size; But early dictiona-ries like the Shuowen and Fangyan / are not entirely certain about this. Nonetheless, four or five stands are in the imperial collection / and one can see their excellent quality; All are of jade that dates to the Three Dynasties / and are actually quite suitable for holding bowls. Of bowls and stands that had not been separated / only one set remained for me to compose a poem. All the rest had been matched with ceramics / and were perfectly good to be displayed together. This stand is made of ancient jade / but the jade bowl that once went with it is long gone; As one cannot show a stand without a bowl / We have selected a Ding-kiln ceramic for it. The bowl fills the hole in the stand / and its round base makes a perfect fit; But whether they belong together or apart / it is hard to fully advance either theory. I have written a poem in five-character verse to record all the facts / and convey my feelings separately to Fengcheng (or: “and to convey my feelings on departing Fengcheng”).”

conclusãoNa tradição cultural e artística da China o jade represen-ta um conjunto de valores que transcende as fronteiras do tempo, as limitações do lugar e as convenções sociais, po-líticas e religiosas que caracterizam os povos. Na formação das culturas do Neolítico o jade desempenhou uma função axiológica na intercessão entre a humanidade e o Céu e na definição de estruturas do imaginário espiritual que se re-percutiram na uniformização das sociedades antigas. Du-rante a Idade do Bronze o jade está associado à construção de identidades, à legitimação do poder nas cerimónias de aparato, à autoridade política e à supremacia militar. O jade relaciona-se ainda com as principais instituições da China

Pré-Imperial, como suporte à caligrafia, como símbolo das virtudes essenciais do homem íntegro referidas no pensa-mento confucionista e como elemento alquímico para os taoistas que procuram a imortalidade e a integração com a natureza. Com o tempo, o jade foi apreciado como símbolo do luxo, da exuberância, de raridade e de unicidade, sem, no entanto, deixar de representar o carácter a diversidade cultural, artística e religiosa de outras civilizações. O jade esteve na origem do diálogo intercultural e dos encontros entre culturas. Serviu à representação de figuras sagradas do taoismo, do budismo, do cristianismo, do maniqueísmo, do islamismo e do zoroastrismo.

Hoje, tanto nos museus na China como nos museus de todo o mundo com colecções de arte chinesa, os objectos de jade ocupam sempre um lugar de destaque. A natureza ma-terial do jade combinada com o virtuosismo técnico e a so-fisticação artística do entalhe suscitam o deslumbramento do observador. No momento seguinte, quando a estas qualidades se juntam os valores do tempo e da história, facilmente se en-tende a importância do jade no percurso da história da China.

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o miia e o território do tejo.Luiz Oosterbeek professor coordenador do instituto politécnico de tomar instituto terra e memória

resumoPartindo de uma avaliação dos múltiplos territórios que se podem representar no MIAA, é discutida a sua relevância no contexto da região e o seu potencial papel estruturante para o Médio Tejo. Aborda-se o papel do MIAA no quadro da rede de equipamentos museológicos e culturais da região. Palavras-chave: território; cultura; museu; economia.

abstractDeparting from an assessment of the various territories that can be found in MIAA, it is discussed its relevance within the regional context and its potential structuring role for the Middle Tagus. The role of MIAA in the museological regional network is approached. Keywords: territory; culture; museum; economy.

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Esta natureza histórica de quase “plataforma logística” do sudoeste peninsular explica, também, a razão pela qual a sua densidade de vestígios arqueológicos é extraordinariamente elevada (mais de dois mil sítios inventariados, resultado da grande atractividade de um território tão diverso para as po-pulações rurais no passado) mas a sua expressão monumen-tal não militar é relativamente fraca. A partir do momento em que a estrutura social se começa a complexificar, o con-trolo deste território vai-se impondo como essencial no pla-no estratégico, diminuindo com isso a oportunidade para grandes investimentos monumentais, que seriam sempre in-vestimentos de risco em contextos de conflito. Mesmo quan-do se registam períodos de alguma estabilidade, como com a romanização na transição para a Era Cristã, a região per-manece como local de passagem, com uma rede urbana real mas secundária e com algumas villae de proprietários rurais. Só depois da consolidação de uma fronteira afastada mas re-lativamente próxima, com o Estado português da moderni-dade, é que o Médio Tejo deixa ser uma zona de transição pa-ra o litoral, passando a ocupar uma centralidade não apenas geométrica, mas também política e cultural.

A consolidação da região carece de um espaço museo-lógico que ilustre e abra à discussão esta realidade, em re-de com unidades focadas em contextos específicos de par-ticular relevo (como a Ordem de Cristo ou a arte rupestre

— esta última em processo iniciado para classificação como património mundial)2. Se essa unidade museológica nun-ca foi criada no passado, tal se deve ao facto de que para a explicar plenamente não bastariam colecções arqueológi-cas e artísticas da região (que existem e são relevantes), sen-do igualmente importante integrar objectos que permitis-sem explicar como a região se compreende no quadro do sudoeste da Península Ibérica e das redes que se estabele-ceram por todo o Mediterrâneo e, a partir deste, até à Ásia. A colecção reunida pelo Sr. João Estrada permite, preci-samente, abrir essas “janelas” interpretativas, pois embo-ra seja constituída no essencial por peças sem contexto ar-queológico, elas permitem ilustrar o contexto das colecções arqueológicas da região, que é um contexto muito mais vas-to (vd. fig. 1), que se estende em épocas mais recentes até ao extremo oriente asiático.

que território?O Médio Tejo português, também designado Alto Ribatejo, ou Ribatejo Norte, é uma região particular no contexto da definição das regiões em Portugal. Não corresponde a uma base geológica e geomorfológica uniforme, tratando-se an-tes de uma confluência de três grandes unidades geomorfo-lógicas: os relevos calcários da Estremadura a oeste, os rele-vos de xistos, granitos e quartzitos a leste, e os depósitos de areias e cascalheiras do Tejo e dos seus afluentes.

Porquê, então considerá-lo uma região, ao invés de o separar em três, ou mais, unidades? Esta questão atraves-sa parte da bibliografia geográfico-administrativa das úl-timas décadas, e não está ausente das reflexões estratégi-cas da actualidade1. O Médio Tejo não é uma região cuja unidade é conferida pela rede hidrográfica, e em particular um troço peculiar da bacia do Tejo, que se desenvolve en-tre as Portas do Ródão (quando o vale se abre e se come-çam a desenvolver vertentes progressivamente mais suaves) e a inflexão para sudoeste do rio (quando se inicia a lezí-ria propriamente dita). A morfologia suave deste território combina-se com uma grande diversidade geológica, asso-ciada à qual se registam diferentes tipos de solos, e sobre eles distintas coberturas vegetais e variadas dinâmicas de povoamento animal. Os grupos humanos que viveram nes-ta região desde muito cedo aprenderam a explorar o carác-ter ecótono de uma região que se caracteriza, precisamen-te, pela sua diversidade de recursos e pelo eclectismo das soluções adaptativas.

A distância de um extremo da região ao seu extremo oposto (um eixo que oscila entre os 70 e os 100 Km em li-nha recta), percorre-se a pé em poucos dias. Mais impor-tante do que isso: uma comunidade implantada em qual-quer uma das três grandes unidades geomorfológicas da região, consegue aceder a qualquer uma das outras em um dia, ou pouco mais. Mais importante ainda: é no Médio Te-jo que se concentra grande parte dos bons locais de atraves-samento do rio em períodos de estio, o que significa que por aqui passaram algumas das principais rotas que liga-vam o litoral atlântico ao centro e ao sudoeste da Península, passando pelo Alentejo e cruzando a bacia do rio Guadiana.

A conformação dos territórios é, essencialmente, uma questão que decorre das dinâmicas humanas de intercâm-bio, e para estas as redes logísticas de mobilidade são fun-damentais. Isso significa que a dimensão dos territórios varia ao longo do tempo com o ritmo das estruturas eco- nómico-sociais ou com os meios de transporte disponíveis. Mas a tangibilidade desse transporte é um elemento fun-damental, e é por isso que o Médio Tejo, quando o estuda-mos ao longo do tempo, desde a pré-história antiga até à modernidade, foi registando algumas variações nos seus li-mites (umas vez alargando-se até ao Erges ou a Alvaiázere, outras vezes recuando até ao sopé do arrife da Serra de Ai-re), mas manteve-se constante no essencial: os seus limites são o ponto de partida para aceder rapidamente à penepla-nície alentejana, à lezíria ribatejana (e a Lisboa), às verten-tes estremenhas que descem sobre o Atlântico ou às cadeias que conduzem ao coração das beiras.

Estabilizar dinâmicas de ocupação territorial do Médio Tejo implicou sempre utilizar os recursos desta região ecó-tona, a sua diversidade, e percebendo que a sua coerência reside nessa dimensão antrópica e na potenciação de uma vocação para a articulação entre as grandes regiões que a enquadram, sempre com soluções específicas que lhe con-ferem uma certa unidade. É essa especificidade adaptativa que se regista nas estratégias de adaptação dos caçadores an-te-neandertalenses cujos vestígios se encontram na Ribei-ra da Atalaia ou na gruta do Almonda; é essa especificida-de que se revela nos primeiros povoados de caçadores em processo de sedentarização, na Amoreira ou em Fontes. E é ainda essa especificidade que vai consolidar o papel da re-gião como caminho privilegiado de mobilidade a partir do sudoeste e do centro da Península, em direcção ao Atlânti-co: com o megalitismo primeiro (cujos vestígios mais anti-gos se encontram no Rio Frio ou vale do Zêzere, vindos de além Tejo) e, depois, com a crescente tensão, e por vezes mi-litarização, do território (já na Idade do Bronze Final, mas assumindo crescente expressão a partir da época medieval, quando a sua relevância geoestratégica se consolida numa rede de castelos, e depois na aurora da contemporaneidade, dos exércitos napoleónicos ao polígono de Tancos).

1 Recordamos aqui as dificuldades de delimitação do agrupamento de municípios que configura na actualidade a Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo, e todo o debate que se abre com a reflexão de Jorge Gaspar sobre o triângulo Tomar–Torres–Novas–Abrantes, no início da década de 1970, e foi assumindo diversos recortes, sempre instáveis (pese embora a noção de que “algo” justificaria o reconhecimento de uma unidade regional). Não sendo objecto do presente texto, procuramos contudo contribuir para uma actualização de base académica das bases do que pode substanciar uma região coerente, sustentável e resiliente.

2 Existem na região equipamentos museológicos e monumentais que explicam as grandes componentes patrimoniais da região: a modernidade (no Convento de Cristo, que é património mundial, no seio do qual se deveria organizar uma exposição permanente sobre esse período e a sua expressão na região), as origens do mundo rural e a arte rupestre (no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação, sendo que o processo de instrução de um dossier para classificação como património mundial da arte rupestre começou a ser preparada em conjunto em Espanha e Portugal, com intervenção do Instituto Terra e Memória) e a militarização da região (na rede de castelos, cuja gestão deveria ser integrada, articulando um discurso museográfico coerente).

Fig. 1 Áreas de proveniência das colecções do miaa

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sado de um território, nas quais as técnicas e a tecnologia ocupam um lugar central. O Castelo de Abrantes é uma grande obra de engenharia, tal como a rede de castelos me-dievais reflecte um grande conhecimento do território. Es-se conhecimento tinha raízes ancestrais, que se encontram por exemplo no megalitismo (complexa engenharia ma-nual onde se encontram já o princípio da alavanca ou o teorema de Pitágoras) ou na arte rupestre (rede de comu-nicação visual que acompanhava as redes de circulação nos caminhos de fundo de vale ou nas linhas de festo). Não é possível desenvolver o território sem uma consciência dis-seminada sobre as suas características e potencialidades, e sem a compreensão de que o motor do desenvolvimento é o crescimento económico.

Uma expressão dessa relação é o processo de certifi-cação HERITY de qualidade do património cultural, que o Médio Tejo abraçou em todos os seus treze municípios, mas que encontrou em Abrantes, Mação e Vila Nova da Barquinha o seu ponto de partida.

O Médio Tejo foi protagonista de importantes momen-tos no passado, que acompanharam mudanças globais (co-mo o início da agricultura ou a expansão transoceânica). Mas no presente ainda não encontrou uma coerência cul-tural interna (na sua diversidade) e o MIAA deverá ofere-cer um contributo decisivo para esse fim. A articulação das suas colecções (que se deverá manter aberta à colaboração com outras entidades), o seu contributo para a organização de redes museológicas regionais (ajudando à sua progressi-va federação) e o modelo de gestão que escolher (que se de-seja interinstitucional e apoiado nas parcerias que desde o início foram apoiando as suas equipas) serão decisivos pa-ra que o seu desígnio venha a ser cumprido.

Desta forma, o MIAA será um museu do Médio Tejo, sem perder a sua dimensão local e aberto sobre todo o Tejo, sobre o sudoeste peninsular, sobre o conjunto da Penínsu-la Ibérica e sobre as dinâmicas humanas do Mediterrâneo e da Eurásia. Um museu que permitirá explicar as dinâmicas da globalização em todos os períodos, e em especial desde a proto-história até à modernidade.

que colecções?Para além de unidades museológicas maiores, antes men-cionadas, existem diversas pequenas unidades monográfi-cas na região que ilustram a densidade e riqueza do povoa-mento no passado: o paleolítico (no CIAAR de Vila Nova da Barquinha, onde será desejável vir a estruturar um percur-so visitável por turistas), a romanização (por exemplo na Villa Cardílio ou no Vale do Junco), as tradições locais (nos diversos núcleos etnográficos, onde se destaca o Museu dos Riachos pela sua dinâmica social). Existe, ainda, uma estru-tura de pesquisa que envolve todas estas realidades (a partir do Instituto Politécnico de Tomar e, no plano da investiga-ção e da internacionalização, do Instituto Terra e Memó-ria). Mas não existe um museu da região, onde todos os ci-dadãos do Médio Tejo se possam rever.

As colecções do MIAA permitem exprimir uma dimen-são territorial muito ampla, oferecendo um contexto raro em museus não nacionais (e mesmo entre estes). São colec-ções de arqueologia (desde logo a colecção municipal, fruto de décadas de trabalhos arqueológicos de diversas equipas) e de arte (com destaque para os acervos de Charters de Al-meida e de Maria Lucília Moita) que contarão na futura ex-posição permanente com algumas peças cedidas pelo Cen-tro de Pré-História do Instituto Politécnico de Tomar, pelo Museu de Arte Pré-Histórica de Mação e pelo Centro de In-terpretação de Arqueologia do Alto Ribatejo3.

Mas o núcleo central do museu, e que justifica a sua de-signação, é a colecção Estrada. Ela comporta a diversidade que foi mencionada acima e noutras publicações, e permite ao MIAA assumir uma dimensão didáctica muito particu-lar. De facto, ao incluir no seu acervo não apenas excelente testemunhos de diversos contextos culturais, mas também

alguns objectos que são réplicas (algumas com largas déca-das ou mais de um século), o MIAA irá expor essas peças ex-plicando como se foram generalizando as réplicas e as falsi-ficações desde as campanhas de Napoleão no Egipto, a sua relação por um lado com o turismo e por outro com o trá-fico, e a forma como se desenvolve uma pesquisa de perita-gem de autenticidade.

Desta forma, para além dos conhecimentos históricos, geográficos e estéticos que o museu irá disponibilizar, esta-rá igualmente presente uma dimensão científica, ou de di-dáctica da ciência, de grande relevância. Uma didáctica que se cruzará também com distintas polémicas, que o MIAA va-lorizará (porque as polémicas apoiadas na investigação es-timulam o raciocínio crítico, e esse deverá ser, também, um objectivo nuclear do MIAA): sobre o interesse ou não de ex-por peças sem contexto, sobre o que distingue uma répli-ca de uma falsificação, sobre a necessidade de reforçar os meios de combate ao tráfico de antiguidades e obras de ar-te, etc.

Desta forma, o MIAA irá oferecer uma visão do território do Médio Tejo e do sudoeste de Portugal e da península, a partir do seu contexto mediterrânico e global. Em colabora-ção com as outras unidades museológicas monográficas da região, o MIAA deve apoiar a estruturação de uma dinâmica própria do Médio Tejo que ligue a cultura à economia, o que é essencial não apenas para a identidade regional (e a sua re-siliência) mas para a criação de verdadeiras cadeias de valor acrescentado para o mercado global4 (não existem produtos realmente competitivos na escala global que se não apoiem numa comunicação cultural, como a Espanha demonstra de forma especialmente eficaz).

que desígnio?O desígnio do MIAA será, desta forma, o de contribuir para uma nova dinâmica de crescimento económico na região, ajudando à afirmação do Médio Tejo como uma região ca-paz de inovar na construção de um modelo integrado de economia e cultura, não limitado ao turismo.

A cultura é, também, a forma de organização da econo-mia, e a sua raiz são as peculiaridades adaptativas do pas-

3 O miaa mantém uma relação de estreita colaboração com estas três unidades, e em especial com os programas de Mestrado e Doutoramento que o Instituto Politécnico de Tomar e a utad oferecem (em articulação com o Museu de Arte Pré-Histórica de Mação e com o Instituto Terra e Memória, no qual está sedeado o centro de investigação que apoio o estudo arqueológico das colecções do museu).

4 No quadro do Ano de Portugal no Brasil, o Instituto Terra e Memória iniciou um projecto de construção de produtos regionais identitários com escala de produção para a exportação. O protótipo foi apresentado no Congresso Luso-Brasileiro de Direito Ambiental que se realizou em Mação, em Dezembro de 2012, e está neste momento em estruturação de intercâmbios com diversos estados brasileiros.

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resumoA disciplina arqueológica teve, ao longo da sua história, diferentes abordagens de estudo, cada uma delas privile-giando somente a recolha de certos dados empíricos, bem como de formular somente alguns alicerces teóricos na interpretação das culturas antigas. O estudo de artefactos antigos resultantes de uma produção intelectual e/ou artís-tica pode ser frutífera se a arqueologia dialogar com outros campos disciplinares. Não só necessariamente com as ciên-cias exactas ou a antropologia. O diálogo, neste caso, entre artes plásticas e arqueologia pode ser surpreendente, dado serem duas disciplinas que investigam mais que as outras a relação entre mente humana e materialidade. O caso de estudo sobre uma peça de alto nível artístico e de profundo significado simbólico como a Vénus pré-histórica da Co-lecção Estrada, abordado nesta perspectiva, deu resultados interessantes: confirmou a autenticidade da peça e fortifi-cou o conceito de pré-conhecimento transversal no tempo. Palavras-chave: arqueologia, artes plásticas, vénus pré-

-histórica, autenticidade, pré-conhecimento.

abstractThe archaeological discipline had, throughout its history, dif-ferent approaches, each focusing solely on the recovery of certain empirical data, as well as formulating only on some of the theoretical foundations for the interpretation of an-cient cultures. The study of ancient artefacts resulting from an intellectual and/or artistic production can be fruitful if archaeology dialogues with other disciplines. Not necessar-ily the exact sciences and anthropology. The dialogue, in this case, between plastic arts and archaeology can be surprising, since they are two disciplines that investigate more than the others the relationship between the human mind and mate-riality. The case study on a piece of high artistic level and im-portant symbolic meaning as the Prehistoric Venus from the Collection Estrada, approached from this perspective, gave interesting results: it confirmed the authenticity of the piece and fortified the concept of foreknowledge across time. Keywords: archaeology, plastic arts, prehistoric venus, au-thentication, foreknowledge.

uma nova abordagem para um diálogo entre arqueologia e arte.a vénus pré-histórica da coleção estrada. Davide Delfino câmara municipal de abrantes instituto terra e memória

Charters de Almeida e Silva professor da escola superior de belas artes do porto

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introduçãoA comunicação da qual resulta este texto, nasceu de um diálogo entre os dois autores, arqueólogo e artista plástico, durante a iv Antevisão do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, em Junho de 2012 no Museu D. Lopo de Almeida, em Abrantes. O interesse suscitado no artista plástico por uma Vénus neolítica exposta nas vitrinas, levou-o a sub-linhar a suas perfeitas proporções até a chamar de “mo-numental”, embora de dimensões reduzidas. O fruto deste diálogo, e de outros ocorridos depois, é o estudo que aqui se vai apresentar.

o enquadramento fisiográficoQuando um arqueólogo aborda o estudo de um artefacto, sobretudo se este não tem contexto de achamento arqueo-lógico como a Vénus pré-histórica objeto deste estudo, le-vanta perguntas de diferente natureza:

1 Quando o objeto foi feito? 2 Há paralelos? 3 Qual a técnica de fabrico? 4 Quem foi que o fez? 5 Qual a sua finalidade?

Neste grupo de perguntas, há algumas que levam a res-postas de tipo “arqueográfico” (paralelos, técnicas) e outras que levam a respostas de tipo interpretativo (quem foi o au-tor e qual a sua finalidade). Habitualmente um arqueólogo que experimenta responder olhando para a própria disci-plina, acaba por usar somente os instrumentos da própria área (tipologias, estilos, cultura material, cronologias), tal-vez acabando por especular sobre dados de tipo processua-lista. Sem diálogo com outras disciplinas que, com méto-dos diferentes resultantes de experiências de investigação diferentes, mas que indagam um objeto implícito comum (o feedback entre o cérebro humano e o mundo), a arqueo-logia arrisca-se a isolar-se, concretizando a situação ex-pressa numa das pinturas de Giorgio de Chirico intitula-da “L’archeologo solitario” (fig. 1), que faz parte da série de obras “Gli archeologi”.

Fig. 1 | “L’archeologo solitario” | Giorgio de Chirico 1937 (60×50 cm).

Olhando para a história da arqueologia, desde que se tornou uma disciplina autónoma, houve várias escolas me-todológicas com os seus respetivos limites e vantagens. Va-le a pena fazer uma breve panorâmica dessa história, para justificar o risco do isolamento da arqueologia.

A arqueologia clássicaNa abordagem metodológica da primeira arqueologia, di-ta clássica, que se iniciou com os estudos da arte das ci-vilizações clássicas por Winckelmann em 1764 (Bianchi Bandinelli 2005), os objetos arqueológicos eram tratados como obras de arte. Portanto o uso do “estilo” para os datar e os classificar em “bons” ou “ maus” era a práxis comum. Embora tenha ocorrido um afinamento em relação aos pe-ríodos anteriores, quando as antiguidades eram olhadas ti-po antiquários, sem se considerar o contexto histórico das peças. Um grande limite da abordagem clássica foi relacio-nar tudo com estilos e periodizações, além de não consi-

derar para os estudos peças antigas de fraca qualidade ar-tística.

A arqueologia histórico-culturalDepois da introdução, no final do séc. xix, do conceito que os objectos mudam de forma ao longo dos tempos com Os-car Montelius, foi criado o conceito de tipologia e de seria-ção cronológica com Flinders Petrie (Renfrew-Bahn 2002: 10101-102, 105), a arqueologia deu muita importância à clas-sificação de objetos antigos, artísticos ou não, para respon-der à pergunta “quando?”, ou seja, dando prioridade ao problema da datação. Foram desenvolvidos métodos que permitiam resolver o problema da periodização das civili-zações antigas, sobretudo as que não conheceram a escrita.

A arqueologia processual (New Archaeology)Desde do nascimento desta escola, na década do 60 do séc. XIX, arqueólogos como Lewis Binford (1968; 1983), abor-daram o estudo do passado de um modo diferente: não re-construir a história, mas explicá-la; não pensar em termos de explicação histórica, mas em termos de mudanças de processos culturais. As teorias sobre as civilizações anti-gas só se podem validar se forem verificáveis. Na tentati-va de explicar cada cultura por si mesma, e não dependen-do das influências de outras culturas, procurou-se estudar com mais cuidado a economia, a subsistência, a tecnologia antiga (Clark 1968), destacando-se da abordagem histórica para se aproximar às ciências naturais. Esta escola tinha al-guns limites: generalização das dinâmicas culturais e a utili-zação excessiva de sistemas quantitativos, tratando proces-sos culturais humanos como processos matemáticos.

A Arqueologia pós-processualAs insuficiências teóricas da New Archaeology, cada vez mais ligada à classificação e ao tratamento estatístico dos achados arqueológicos, levou alguns arqueólogos como o Hodder (1986) a criticar o processualismo e a formular um novo paradigma definido como “pós-processual”, o qual valoriza mais o contexto de achamento dos artefactos e não tanto os artefactos em si. Passa a ter mais importância

o estudo das ações com valência comunicativa e simbólica, bem como a caracterização dos indivíduos do passado de acordo com o género e a posição social (Gianichedda 2005: 87-102). O grande limite desta escola é, quando ao procurar identificar evidências imateriais como gestos, pensamen-tos, linguagem, etc., deixa de ser científica por se afastar das provas concretas (objetos e contextos arqueológicos), para se tornar narrativa autojustificava sem fundamento empí-rico nenhum.

A Arqueologia CognitivaEsta nova linha de investigação iniciou-se na década de 80, do séc. XX, aquando do conflito entre processualistas e pós-

-processualistas (fig. 2). Tendo como manifesto o escrito de Claude Lévi-Strauss “O pensamento selvagem” (1962), o cognitivismo procurou ultrapassar a ideia de considerar como sagrado ou ritual qualquer objeto de difícil explica-ção e ultrapassar o determinismo tecno-ambiental. Por um lado investiga a relação mente humana — materialidade, e por outro, experimenta testar as hipóteses sobre os aspetos simbólicos da cultura material, limitando a liberdade inter-pretativa própria do pós-processualismo. Com C. Renfrew e E. Zubrov (1994), ao ser reiterado o conceito iluminista da unicidade psíquica do género humano, pode-se falar de abordagem cognitivo-processual (Giannichedda 2005: 111).

Fig. 2 | Paródia do conflito entre processualistas e pós-processualistas.

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um caso de estudo para uma nova abordagemDepois de ter observado, brevemente, o pensamento ar-queológico ao longo dos últimos 200 anos, é possível ver como as variadas correntes de pensamento falharam tendo em conta somente algumas partes das variadas manifesta-ções da mente humana na cultura material e nos contextos. É a mente humana, sempre, que fica no centro do desen-volvimento das culturas. E, por isso, é preciso que esteja no centro da investigação arqueológica a mente dos homens e mulheres que criaram artefactos e contextos. Infelizmente, aconteceu que foi a cabeça e o modus pensandi dos investi-gadores contemporâneos a se substituir a ela: com os estilos dos arqueólogos clássicos, com as tipologias fechadas dos histórico-culturais, com as “arqueopoesias” de muitos pós-

-processualistas que misturaram filosofias dos sécs. XVIII–XIX d.C. (Kant, Hegel, Marx, Schopenauer) com contextos e artefactos dos sécs. XVIII–XIX a.C., por exemplo.

Só a Arqueologia Cognitiva teve uma mais-valia ao pro-curar ultrapassar o sectarismo das outras linhas de pensa-mento e ver na investigação da mente do homem ao longo dos tempos a justa “caleidoscopia” e, ao mesmo tempo, a in-dispensável ligação a cultura material aos contextos.

Mas neste artigo pretende-se ir um pouco além e pro-por, de acordo com as linhas cognitivas, uma pequena nova abordagem de estudo e interpretação de peças arqueológi-cas, com um diálogo entre Arqueologia e Arte. Este diálo-go quer trocar visões diferentes, ligadas a formações dife-rentes, de disciplinas que no fim estudam o mesmo objeto: a mente humana. O campo de encontro não pode ser coi-sa diferente de um produto da mente humana, que tem de funcionar como um ponto de encontro/reencontro entre estas duas disciplinas.

O objeto em questão é uma peça de arte pré-histórica: uma Vénus em pedra dura polida (fig. 3), de tipo pré-his-tórico, pertencente à Coleção Estrada e parte do acervo do futuro Museu Ibérico de Arqueologia e Arte. Trata-se de uma escultura de reduzidas dimensões (5×2,9 cm), reali-zada em anfibolito (com. pessoal Hugo Gomes). As carac-terísticas formais são a posição sentada, com ostentação e exageração dos carácteres somáticos femininos, como os

seios, a barriga e as nádegas. Os braços são recolhidos no peito para sustentar e quase oferecer os seios. O pescoço é peça única com a cara, que quase parece não existir sendo só “mencionada” por uma ligeira carenagem. Só olhando a peça pela base, é possível apreciar a realização do porme-nor das pernas cruzadas, que na visão frontal se adivinha pela posição assimétrica dos joelhos.

Fig. 3 | Vénus neolítica do MIAA | Colecção Estrada.

A Vénus pré-histórica da Coleção Estrada: visão de um ponto de vista arqueológicoNormalmente as primeiras perguntas que faz um arqueó-logo face a uma peça que vai estudar são duas: 1) Qual a sua datação/atribuição cultural?; 2) Qual o seu significa-do?; Nesta ocasião acrescenta-se uma terceira pergunta, pois a peça não tem contexto arqueológico de achamento: 3) É uma peça verdadeira ou pode ser falsa?

Para valer a pena responder às primeiras duas pergun-tas, é preciso antes de tudo responder à terceira e averiguar se de facto, a peça é verdadeira.

Autenticidade da peçaOs argumentos a favor da autenticidade desta Vénus são rápidos de explicar e de robusta validez e podem ser usadas as diversas abordagens que foram usadas, se-paradamente, pelas diferentes escolas arqueológicas.Paralelos: em primeiro lugar é preciso usar o instru-mento dos paralelos, que tanto foi usado pela escola histórico-cultural.

Fig. 4 | Panorâmica das principais Vénus com contextos arqueológicos conhecidos | 1Vénus de Willendorf; 2 Vénus de Grimaldi; 3 Vénus de Savignano; 4 Vénus de Lespague; 5 Vénus de Tell-Halaf; 6 Vénus de La Marmotta; 7 Vénus de Chiozza;

8 Nea Nikomedea; 9 Karanovo IV; 10 Cucurkent; 11 Hagar Quim; 12 Olbia.

Com uma breve panorâmica sobre as Vénus pré--históricas conhecidas (fig. 4), é fácil observar que en-tre todas não há uma só que seja exatamente, ou me-dianamente igual às outras. Olhando para as Vénus no continente euro-asiático, do Paleolítico Superior (25.000 antes do presente) até ao Neolítico médio (v–iv milénio a.C.), há só vagas semelhanças de concep-ção geral da forma: as que datam da fase Gravettense (29.000–20.000 BP) do Paleolítico Superior estão em posição erecta e com enfatização dos seios, da barriga e das nádegas, sem caracterização da cara; as que são atribuíveis ao Neolítico (fases Antiga-Média e Recente, VII–IV milénio a.C.) mantêm as características das par-

tes do corpo enfatizadas, embora de modo mais suave, e costumam estar em posição sentada. Mas além des-tes carácteres comuns muito gerais, não há grande se-melhança entre elas, no mesmo período cronológico. O facto de não haver um paralelo entre as Vénus conhe-cidas com contexto arqueológico com a Vénus da Co-leção Estrada, não deixa de ser um elemento a favor da sua autenticidade. E não surpreende que em manifes-tações artísticas com provável finalidade ritual como as Vénus, produzidas no âmbito de civilizações pré-histó-ricas sem a complexidade e o controlo político-religioso das culturas urbanas, não haja uma regra artístico- dog-mática que tenha forçado os artistas pré-históricos a fa-zer as Vénus mais semelhantes entre elas.

Estilo: usando a abordagem típica da corrente da ar-queologia clássica, outro elemento a favor da autenti-cidade da peça aqui apresentada são as suas perfeitas proporções, que levou um dos autores deste estudo a declarar que esta Vénus é uma peça monumental, em-bora tenha poucos centímetros de altura. Ela é monu-mental porque, devido às suas perfeitas proporções, ela pode ser aumentada sem as perder. Juntamente com es-te aspecto, a nível de estilo geral, a Vénus apresenta-se perfeitamente de acordo com o estilo geral das Vénus neolíticas: sobretudo a enfatização das partes do corpo ligadas à reprodução, pouca caracterização de persona-lidade, sobretudo na cara.

Por que razão as suas perfeitas proporções são um elemento que justifica a sua autenticidade? Se olhamos para duas Vénus pré-históricas com contexto arqueoló-gico de proveniência, a Vénus do povoado de La Mar-motta (Lago di Bracciano/Itália) (Fugazzola Delpino 2001) e a Vénus de Savignano (S. Felice sul Panaro/Itá-lia) (ibid.: 42), é possível apreciar as simetrias e as pro-porções das formas (fig. 5). A primeira Vénus é datável do Neolítico Antigo, sendo proveniente de níveis datá-veis do VI milénio a.c. do povoado de la Marmotta; a segunda, embora nos primeiros tempos tenha sido atri-buída ao Paleolítico Superior, ultimamente é considera-da de produção Neolítica, provavelmente da fase antiga.

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O facto de a Vénus do MIAA — Coleção Estrada ser tão perfeita, não afecta portanto a sua autenticidade.

Fig. 5 | Comparação da simetria entre as Vénus de La Marmotta e de Savignano (A e B) (Fugazzola Delpino 2001) e do M.I.A.A.

Matéria-prima: uma das abordagens da escola pro-cessualista, mas também da arqueologia cognitiva, ou seja a identificação da matéria-prima num objeto ar-queológico, ajuda ainda mais a avaliar a peça em estudo. Se tivermos em conta as Vénus em pedra com contex-to arqueológico conhecido, desde o Paleolítico Superior até ao Neolítico Médio, elas não são feitas com um úni-co tipo de pedra: a Vénus paleolítica de Willendorf (De-moule, 2007: 34) e as neolíticas de Chiozza ( Tirabas-si 1996: 219 ) e de Olbia são em calcário; as neolíticas de Savignano (Fugazzola Delpino 2011: 42) e de Cukurkent (Hockmann 1968: pl. 11–12 ) em serpentina; a paleolíti-ca de Grimaldi (Demoule 2007: 39) em esteatite; as Vé-nus neolíticas da área do mar Egeu (Patissia, Amorgos e Naxos) são em mármore (Muller Karpe 1968); a Vénus neolítica de Tell-as-Sawan é em alabastro (ibid.). Nes-te panorama, a Vénus do MIAA — Coleção Estrada é de anfibolite, pedra dura que se presta para um refinado trabalho de escultura, também em épocas pré-históri-cas, como é o caso da serpentina na Vénus de Cukurkent.

Cronologia da peçaNa ausência de um contexto arqueológico de achamen-to para enquadrar a Vénus da Colecção Estrada numa fase cronológica, é preciso tomar em conta aspetos liga-dos à sua postura e ver se batem certo com aspetos cor-respondentes em Vénus provenientes de sítios arqueo-lógicos. Isso seria, aliás, uma mais-valia para confirmar a sua autenticidade.

Fig. 6 | Comparação entre Vénus Paleolíticas e as Vénus Neolíticas.

A primeira característica a observar é a posição sen-tada da Vénus em análise: olhando para as outras pe-ças conhecidas, é fácil observar uma evidente dicoto-mia entre as Vénus do Paleolítico Superior, sempre em pé, e as Vénus pós-paleolíticas, sobretudo as neolíticas, cada vez mais em posição sentada (fig.6), embora exis-tam duas Vénus, achadas na Suíça, uma em ágata e da-tada ao Paleolítico Superior (15.000 BP) (Engen) e uma em ónix datada do Epi-Paleolítico (11.000 BP) (Mon-ruz), em posição sentada, sendo usadas como penden-tes. Portanto a cronologia da Vénus da Colecção Estra-da aponta mais para o Neolítico. Mas observando com mais cuidado estas figuras femininas, é preciso fazer al-gumas diferenciações. Muitas Vénus, quer em pedra quer em terracota, são sentadas, como é o caso de Ca-

yonu/Turquía (Morales 1990), de Djarmo/Iraque (Mul-ler Karpe 1968), Catal Huyuk/Turquía (Gimbutas 2006: 187; Cauwe et al. 2007: 72), de Patissia/Grécia (Muller Karpe 1968: tafel 136.124), de Kato Ierapetra e Amorgos/Mar Egeu (ibid.: 138: 107 e 136.96), Azmak/Bulgária, de Tell Halaf/Iraque (Cauwe et al. 2007: ??), de Shaar Ha-golan/Israel (Demoule 2007: 73), de Karanovo III/Bul-gária (Cauwe et al. 2007: ??), de Pazardzik (Gimbutas 1989: tav.9), de Puduri/Roménia (ibid.: fig. 220), de Ná-xos/Mar Egeu (Muller Karpe 1968: 136.132); mas algu-mas estão em pé, como é o caso das Vénus de Cukur-kent/Turquía (Hockmann 1968: pl. 11–12), parte das de Tell-es-Sawan (Demoule 2007: 80; Muller Karpe 1968: tafel 81.48), a de Nea Nikomedea/Grécia (Cauwe et al. 2007: 81), as encontradas nos sítios da Cultura de Leng-yel (ibid.: 140), a de Magoula Bezir-Tessália/Grécia (Pa-pathanassopoulos 1996: 311) e as encontradas nos sítios da cultura de Cucuteni-Tripol’je/Roménia e Ucrânia (ibid.: 155). Portanto, não se pode estabelecer um pa-drão absoluto sobre as Vénus paleolíticas em pé e as Vénus pós-paleolíticas sentadas. Só se pode estabelecer um terminus post para o aparecimento das Vénus sen-tadas no início do Neolítico. Tendo, portanto, por um lado uma maior frequência das Vénus de pedra em po-sição sentada nos períodos iniciais do Neolítico e, por outro lado, uma maioria de Vénus de pedra ou de ter-racota do Neolítico Antigo e Médio na área Mediterrâ-nica apresentando braços bem evidentes posicionados por cima do estômago e sustentando os seios (Fugaz-zola Delpino 2001: 42) (fig. 7), pode defender-se que a Vénus da Coleção Estrada é provavelmente dos primei-ros milénios do Neolítico (Tab. 1), possivelmente entre o VII e o VI milénio a.C.

Também outros dois pormenores ajudam a definir com bastante segurança a cronologia do VII–VI milé-nio a.C., as pernas cruzadas e os braços que sustentam os seios (não cruzados debaixo dos seios, mas em evi-dente posição de sustentação), sendo este o arco tempo-ral onde aparecem mais Vénus sentadas nesta posição e com esta atitude.

Fig. 7 | Vénus do Neolítico Antigo e Médio da área Mediterrânica | Com elementos comuns nos braços recolhidos a sustentar os seios.

Vénus Cronologia a.C. Material PosiçãoCayonu 8.500–7.500 Argila Sentadas

Djarmo 7.600–5.500 Terracota Sentada de pernas cruzadas

Cukurkent 7.000 Serpentina De pé

Catal-Huyuk 6.000 Terracota Sentada num trono

Catal-Huyuk 6.000 Terracota Sentada

Patissia 6.000 Mármore Sentada de pernas cruzadas

Tell-es-Sawan 6.000 Alabastro De pé

Tell-es- Sawan 6.000 Alabastro Sentada de pernas cruzadas

Kato Ierapetra 6.000–5.500 Terracota Sentada de pernas cruzadas

Nea Nikomedea 6.000–5.500 Argila De pé

Amorgos 6.000–5.500 Mármore Sentada de pernas cruzadas

Azmak 5.800 Mármore SentadaTell Halaf 5.500–5.000 Terracota SentadasShaar-Agolan 5.500 Argila SentadaKaranovo III 5.000 Terracota SentadaPazardzik 5.000–4.500 Terracota Sentada Puduri 4.800 Terracota SentadasCultura de Lengyel 4. 800–4.000 Terracota De pé

Náxos 4.500 Mármore Sentada de pernas cruzadas

Cultura de Kukuteni-Tripol’je 4.500- 3.000 Terracota De pé

Tab. 1 | Cronologia, matéria-prima e posição das principais Vénus neolíticas | elaboração baseada em Muller-Karpe 1968; Demoule 2004;

Gimbutas 2006; Cauwe et al. 2007).

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Finalidade/uso da peçaSobre o significado das Vénus na Pré-História, Marjia Gimbutas deu um importante contributo com variados estudos (1974; 1989; 1991), embora alvos de bastantes críticas sobretudo sobre a papel feminino demasiado enfatizado (Sheaffer 1999): a ligação da figura feminina com o culto da Mãe Terra; o florescer de um número suficientemente grande de figuras femininas ao longo do Paleolítico e do Neolítico para acreditar não só num culto de uma deusa, mas também numa sociedade pré-

-indoeuropeia de estrutura matriarcal; a ligação com o culto da deusa Mãe Terra; a manifestação em formas va-riadas de uma deusa única ligada à regeneração da terra e às fases lunares (Gimbutas 2006: 316–317).

Permanecendo mais cuidadosamente perto dos “factos” arqueográficos, é evidente que para muitas das Vénus neolíticas, em geral, é inegável algum simbolis-mo depois de uma leitura das evidências materiais: o trato comum de exageração ou ostentação de partes do corpo relacionados com a fertilidade, o rosto em qualquer caso não muito definido (Tell Halaf, Karano-vo III, Azmak, Chioggia e Cucurkent), os contextos de achamento em alguns casos coincidentes com lugares de culto, como o exemplo de Sabatinivka (Cultura de Cucuteni) (ibid.: 133). Pelas dimensões reduzidas, as Vé-nus eram peças provavelmente móveis e pela varieda-de de suportes materiais utilizados (argila, pedras du-ras, pedras brandas), poderemos pensar que estaríamos diante de artistas com diferentes sensibilidades e capa-cidade de expressão, bem como com diferente disponi-bilidade temporal para se dedicarem a estes trabalhos.

A Vénus da Coleção Estrada apresenta característi-cas morfológicas que a aproximam muito do padrão co-mum das Vénus: é emblemática a cor da pedra escolhi-da para a sua realização, o preto, que juntamente com o rosto não definido, sugere uma pincelada de mistério inserida na peça; é de certeza uma estatueta feita para ser posta num suporte, mas nada impede que tenha si-do feita também para o seu utilizador a levar consigo; talvez ambas as possibilidades, pensada pelas comuni-

dades pastoris do Neolítico; quanto às dimensões redu-zidas, podem não só ser em função da portabilidade da peça, mas também devido às dimensões da peça de an-fibolito usada apara a sua realização.

A Vénus pré-histórica da Colecção Estrada: visão de um ponto de vista das Artes PlásticasNesta obra de arte pré-histórica, há dois pontos salientes que fazem dela uma peça única: os seus volumes e as suas proporções.

No caso dos volumes, estes reassumem uma dúplice vo-lumetria a salientar duas partes da peça: a cabeça, com um volume pequeno, e o corpo, com um volume único maior. O primeiro volume é muito pequeno, pouco caracteriza-do fisionomicamente, com algo de misterioso e polivalen-te no seu ser tão despersonificado, não tendo traços so-máticos, mas contemporaneamente tão enfatizado, sendo um pequeno volume que se salienta, direito e dominante, por cima do grande volume do corpo. O segundo, o corpo, apresenta-se como um grande volume único, envolvendo tronco, braços e pernas da Vénus; mas na sua uniformida-de, são sem dúvida vivos no seu interior outros pequenos volumes menores, que fazem nascer com um jogo de re-dondezas ombros, seios, braços, barriga, joelhos e, na par-te de trás, a anca.

A expressividade destes volumes e a maior força plásti-ca e simbólica de alguns destes, é ainda mais evidente na vi-são lateral (fig. 8), onde seios, braços e barriga saem energi-camente do volume do corpo, agrupados num só volume composto por três corpos curvilíneos que representam as três partes somáticas.

No caso das proporções, a peça pode ser declarada co-mo “monumental”: embora as suas dimensões sejam re-duzidas, o seu ser monumental justifica-se por causa das perfeitas proporções entre as suas partes. Isso permite, idealmente, engrandecer ao infinito a Vénus, sem perder as suas proporções. Este facto faz da peça em questão, uma verdadeira obra-prima de arte pré-histórica, de realização muito fina e, sobretudo, fruto de um planeamento prévio da peça.

Fig. 8 | Vénus neolítica do MIAA | Colecção Estrada, visão lateral.

que diálogo entre arqueologia e arte? conceito de “conhecimentos preexistentes” e algumas considerações finaisRelacionando o estudo arqueológico com o estudo artísti-co, é possível obter as seguintes conclusões:

1 É muito improvável que a peça seja um falso. Por causa da falta de paralelos exactos, sendo uma peça em pedra, produzida por sociedades que ainda não tinham uma produção maciça de objetos artísticos/rituais (como de-monstram as poucas Vénus pré-históricas em pedra co-nhecidas com contexto arqueológico), nem padrões ou cânones artísticos/estilísticos de pormenor, mas só ge-rais. Por causa da perfeição na realização, mantendo proporções perfeitas numa peça mais abstrata que natu-ralística. Por causa do simbolismo, enfatizando as par-tes corretas do corpo (seios e barriga), de acordo com o simbolismo de fertilidade das Vénus neolíticas, e rea-lização de volumes redondos que evidenciam somente estas duas partes somáticas.

2 Quem executou a peça era muito provavelmente um artesão profissional, não ocasional. A escolha da maté-ria-prima correta, incluindo a sua cor (preta, que car-rega ainda mais o mistério e a sacralidade já transmiti-da pelo rosto sem conotações), a evidente planificação da obra prévia à sua realização (claramente adivinhável nas proporções), denunciam a realização por uma pes-soa que estava acostumada a trabalhar a pedra e que tal-vez trabalhasse por encomenda.

3 A identificação ao longo da Pré-História até à época con-temporânea de outros exemplos de peças de arte plásti-ca que apresentam, embora com aspecto geral diferente, peculiaridades formais similares entre elas, leva a pensar numa certa ligação intrínseca entre estas peças, nomea-damente entre a mentalidade dos seus realizadores. Tal implicaria o conceito de “conhecimentos pré-existentes”.

Os conhecimentos pré-existentes são uma forma de conceitos, ou modos de se relacionar com o mundo, ou modos de o interpretar e o usar, que são comuns ao género humano e constituem o alicerce do seu “ser cognitivo”. Na simples relação ternária entre o homem e o mundo sensí-vel, com um primeiro feedback do mundo pelo homem, uma reelaboração no interior do cérebro humano das im-pressões desta retroação e um terceiro momento de outro feedback do homem pelo mundo exterior, repara-se que há sempre alguns aspectos do subconsciente que permane-cem, apesar das épocas históricas ou das culturas. Não são fruto de intercâmbio cultural entre os homens, mas do “ser ser humano”. Estes aspetos, sendo ligados ao subconsciente, não produzem acções sempre exatamente iguais entre elas, mas só análogas nos aspectos gerais.

No caso das artes plásticas, temos pelo menos três exem-plos de peças com características de volumes ou de similar uso das formas, ao longo de 27.000 anos: a Vénus de Willen-dorf (25.000/26.000 anos BP), a estatueta de um sacerdote egípcio da 26.ª dinastia (terceiro período intermédio egípcio, 715–525 a.C.) (Lange 1957) e a “Mulher sentada com criança” do escultor contemporâneo Fernando Bottero. A estas peças pode adicionar-se à Vénus da Colecção Estrada, construindo

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com ela uma rota de conhecimentos pré-existentes desde o Paleolítico Superior até à contemporaneidade (fig. 9).

Fig. 9 | Conhecimento pré-existente desde o Paleolítico até à contemporaneidade | 1 Vénus de Willendorf; 2 Vénus do MIAA — Colecção Estrada; 3 Estátua de sacerdote

egípcio 26.ª Dinastia; 4 “Mulher com criança” de Fernando Bottero colocada no Parque Eduardo VII em Lisboa.

Elemento plástico comum a estas manifestações artísti-cas humanas na representação do corpo humano, são o uso de linhas curvilíneas para criar volumes redondos a enfati-zar partes do corpo e, em alguns casos como no da estátua do sacerdote egípcio e na Vénus da Coleção Estrada, a di-visão da cabeça e do corpo em dois volumes distintos, sem-pre com funções de expressividade ligada à funcionalidade na mensagem das diferentes partes do sujeito representado.

Fruto do diálogo desenvolvido nesta ocasião entre ar-queologia e arte é o conceito de conhecimento pré-exis-tente, que tem toda a dignidade científica, sendo suporta-do como no caso deste estudo, por dados objectivos, fiáveis e compartilháveis. Esta noção pode ser de futuro o campo de trabalho comum entre estas duas disciplinas das ciên-cias humanas — arte e arqueologia — sobretudo no âmbi-to, no caso desta última, da arqueologia cognitiva. O pró-prio nome do MIAA, Museu Ibérico de Arte e Arqueologia, encoraja o desenvolvimento do diálogo no âmbito das suas atividades científicas, museológicas e sociais.

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128 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

o egito faraónico, uma civilização da pedra.Luís Manuel de Araújo faculdade de letras da universidade de lisboainstituto oriental

resumoO antigo Egito, conhecido como uma civilização da escrita pela enorme quantidade de documentos que nos legou, também é a civilização da pedra. Foram utilizadas todas as espécies de pedra existentes nas muitas pedreiras da região nilótica para a construção de túmulos e de templos mas também para a escultura, existindo exemplos em museus de todo o mundo, incluindo Portugal. Palavras-chave: pedra; pedreiras; coleções egípcias.

abstractThe ancient Egypt, known as a civilization of writing for the enormous amount of documents bequeathed to us, is also the civilization of stone. All kinds of stone found in the many quarries of the Nilotic region were used in the construction of tombs and temples but also for sculpture, of which there are examples in museums around the world, including Portugal. Keywords: stone; quarries; Egyptian colections.

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130 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

signadas pelo termo rudet. Entre elas sobressaem o grani-to, o basalto, o diorito, o quartzito e a obsidiana, utilizados tanto em trabalhos de construção como na estatuária e no fabrico de objetos utilitários ou de adorno. Quanto às pe-dras mais macias, e por isso mesmo mais fáceis de trabalhar, abundava o calcário, o arenito ou grés, o xisto, o grauvaque, travertino e o siltito, entre outras, às quais era atribuida a genérica designação de iner (Sales 2001: 666).

O melhor calcário, que era a pedra mais comum da construção piramidal, vinha de várias pedreiras situadas a leste do planalto de Guiza, na margem direita do rio Nilo, nos montes de Tura e Mokattam, situados perto da atual ci-dade do Cairo, onde ainda se podem ver os furos feitos na rocha para obtenção dos blocos que depois seguiam atra-vés do Nilo em grandes barcaças. O calcário foi usado co-mo material de revestimento e de enchimento das grandes pirâmides da IV dinastia, porque nas dinastias seguintes houve uma clara diminuição da qualidade das construções e o material de enchimento passou a ser uma amálgama de blocos não aparelhados e detritos líticos que eram escondi-dos por blocos de revestimento — que acabaram por cair, deixando hoje à mostra um deplorável amontoado de en-tulho que mais parece uma colina que uma pirâmide. Mas nos templos do Império Novo verifica-se um cuidado-so aparelhamento dos blocos paralelepipédicos de alguns templos que receberam inscrições bem gravadas, uma téc-nica que também se pode detatar em construções templá-rias da Época Greco-romana.

Além das referidas pedreiras de Tura e de Mokatam, merecem destaque as vastas pedreiras de calcário na pró-pria região de Guiza, mais as Sakara e Abusir, regiões onde também se erigiram pirâmides. Foram ainda intensamen-te exploradas as boas pedreiras calcárias do Faium, Guebel Silsila, Guebelein, Amarna e Beni Hassan.

Importante era também o granito, a segunda pedra mais usada para a cobertura das pirâmides, de que há ves-tígios na de Menkauré, a mais pequena das pirâmides do planalto de Guiza, mas ele era reservado para as infraestru-turas da obra, por vezes em descomunais blocos que im-pressionam quem hoje percorre certas áreas internas co-

mo os corredores, antecâmaras e câmaras dos sarcófagos, sendo de notar que alguns dos grandes sarcófagos que se conhecem foram feitos de granito. Outros dos mais típi-cos monumentos legados pelo antigo Egito são os elegan-tes obeliscos colocados à entrada dos templos, antecedendo o pilone, e eles são de granito cinzento, obtido em Assuão, seguindo depois para os seus destinos em grandes barcaças. Só que atualmente a maior parte desses típicos elementos arquitetónicos estão fora do Egito — só em Roma existem doze, para onde foram levados pelos imperadores para em-belezamento da grande capital do império (há ainda obe-liscos egípcios em Paris, Londres, Istambul e Nova Iorque). De Assuão vinha também o muito apreciado granito rosa-do, utilizado na estatuária e como elemento decorativo e es-trutural de certos edifícios religiosos.

Mais para sul abundava o arenito, formado num perío-do geológico anterior ao Eocénico, que serviu para as últi-mas pirâmides construídas no Vale do Nilo em Napata e Meroé pelos soberanos núbios. Mais fácil de trabalhar que o arenito era o siltito, uma rocha sedimentar usada em tra-balhos que não requeressem grande durabilidade.

O basalto foi também, e desde sempre, o material pre-ferido para fazer alguns dos pavimentos dos templos fune-rários adossados às pirâmides e de uma outra construção mais afastada, o templo de acolhimento no vale, embora no templo do vale de Khafré, entre outros casos, se tenha op-tado pela utilização de lajes de travertino.

Embora o travertino fosse por vezes utilizado na cons-trução, para determinadas partes dos edifícios, ele era mais apreciado como material para feitura de recipientes e obje-tos de adorno. O travertino é geralmente apresentado com a designação de alabastro ou de calcite, mas trata-se de ter-mos impróprios para o tipo de pedra referida e da qual exis-tem muitos exemplos em vários museus nacionais e estran-geiros. A sua zona mais demandada eram as pedreiras de Hatnub (Shaw 2006; Araújo 2011).

O xisto mais apreciado era obtido no Uadi Hammamat, o rijo diorito chegava da Núbia, o quartzito extraía-se nu-ma região do Médio Egito (Kom el-Ahmar ou Hebenu), o melhor basalto vinha do Faium e do Uadi Hammamat, en-

Os Egípcios usaram abundantemente, e com uma grande eficácia, o material por excelência da eternidade, aquilo que tinham mais à mão, isto é, a abundante pedra, que nas re-giões vizinhas do rio Nilo era de reconhecida qualidade. Pa-ra as notáveis obras de edificação arquitetural e para a es-cultura e artes decorativas, de que variados exemplos hoje podemos admirar, não faltavam recursos líticos desde o cal-cário ao granito, arenito, calcite, basalto, xisto, diorito, etc.

As pirâmides e outros túmulos do antigo Egito, mais os gigantescos templos que do norte a sul do antigo país das Duas Terras se encontram um pouco por toda a parte, são imagens facilmente reconhecíveis mesmo para quem não te-nha qualquer formação histórica de base. E o que salta logo à vista, quer para os inúmeros visitantes que todos os anos de-mandam o Egito, quer os que vêem os filmes ou documen-tários de temática egiptológica, ou ainda os que folheiam os muitos livros dedicados ao assunto, é a alta qualidade das construções e o impressionante tamanho de alguns dos blo-cos de pedra utilizados. E a perplexidade que certas solu-ções arquitetónicas deixam no observador acaba por gerar amiúde fenómenos de timbre egiptómano, os quais, de res-to, remontam já ao tempo dos primeiros viajantes greco-ro-manos, que fizeram das três pirâmides do planalto de Guiza uma das sete maravilhas do mundo (Araújo 2001: 313–315).

Para os egiptólogos o uso da pedra é também sumamen-te apreciado como um excelente suporte documental, já que muitos dos templos e outras construções ainda têm várias inscrições gravadas, para além de certos monumentos on-de se registaram textos de importância histórica como a Pe-dra de Palermo, assim chamada porque o maior dos seus fraturados blocos se guarda nesta cidade siciliana. Faltam já os nomes iniciais dos primeiros monarcas do antigo Egito, tendo certamente à cabeça o nome do fundador da monar-quia, Menés (ou Meni), correspondendo talvez ao unifica-dor Narmer, e termina com os nomes de reis da V dinas-tia, em meados do século xxiv a.c. (Sales 2001: 667–668). Neste âmbito de registo pétreo das listas reais se pode in-cluir uma parede do templo de Abido, do reinado de Seti I, da XIX dinastia, em inícios do século XIII a.C., que feliz-mente está muito bem preservada. Outro tipo de documen-

to lítico histórico é a conhecida Pedra de Roseta, um bloco de granito cinzento ao qual faltam algumas partes mas que apresenta, no essencial, três textos redigidos em escrita hie-roglífica, em escrita demótica e em escrita grega. Este mo-numento foi esculpido no reinado de Ptolemeu V (205–180 a.C.) e exarava um decreto real beneficiando os sacerdotes do deus Ptah, em Mênfis, para ser erigido na cidade de Sais, no Delta Ocidental, mas acabou por ir parar à cidade de Ra-chid (hoje Roseta), onde foi descoberta durante a expedição napoleónica de 1798–1801. Foi a Pedra de Roseta que permi-tiu a Jean-François Champollion decifrar a escrita hieroglí-fica que durante tantos séculos permanecera ilegível, sen-do objeto das mais estranhas leituras e interpretações (Sales 2001: 668–669).

O intenso uso da pedra pelos antigos Egípcios permi-te hoje compreender melhor algumas fases mais obscuras da longa e milenar história do Egito faraónico porque além de preservar textos e imagens que noutros materiais teriam desaparecido fornece ainda informações inesperadas so-bre anódinos reinados e monarcas desconhecidos. Assim, a pedra acaba por assumir uma preponderância não apenas em termos de construção mas também em termos políticos porque alguns faraós só são conhecidos porque enviaram expedições a distantes pedreiras para obtenção do indispen-sável material lítico para as suas obras piedosas. Um exem-plo típico é o do rei Mentuhotep IV, o último monarca da XI dinastia (Império Médio), de quem conhecemos algumas inscrições gravadas na rocha por membros de um corpo expedicionário que ele enviou às pedreiras de Uadi el-Hudi para a extração de ametistas (excelente pedra para trabalhos de joalharia), e outras deixadas por um contingente envia-do às pedreiras de Uadi Hammamat para obtenção de grau-vaque, um tipo de pedra muito apreciado. São as inscrições gravadas nesses locais que nos permitem conhecermos es-se monarca porque do seu reinado não sabemos mais nada (Shaw e Nicholson 2008: 314).

a abundância de pedraEntre as diversas pedras de cantaria utilizadas pelos antigos Egípcios contam-se as rochas plutónicas, mais duras, de-

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quintes de acabamento em função da personagem represen-tada. São bem conhecidos alguns colossos líticos feitos pa-ra reis como Amen-hotep III e para o seu controverso filho Akhenaton, como para o famoso Ramsés II, sempre ávido pela estatuária colossal (Barocas 1972: 72, 108–109, 118–120).

A técnica tradicional para arrancar os blocos de pedra à montanha previamente escolhida consistia em abrir de for-ma escalonada e em sítios apropriados alguns buracos onde se enfiavam cunhas de madeira, que eram constantemente regadas com água até se expandirem e, ao inchar, fazerem es-talar o bloco desejado. O calcário e o granito eram preferen-temente as pedras da construção e da estatuária, mas o xisto, diorito, quartzito e o basalto eram bastante apreciados para fazer sarcófagos e estátuas, algumas das quais se encontra-ram nos templos funerários junto das pirâmides e nos tem-plos divinos como os de Karnak e de Lucsor.

exemplos em portugalNas várias coleções de antiguidades egípcias existentes no nosso país, públicas ou privadas, poderemos encontrar exemplos dos diferentes tipos de pedra usados pelos anti-gos Egípcios na produção de objetos e elementos arquitetó-nicos. Embora existam também pequenos acervos particu-lares, que estão todos estudados e publicados, faremos aqui referência somente às peças de grandes coleções, porque a intenção não é elaborar uma lista exaustiva de todos os ma-teriais mas apenas referir alguns exemplos.

De granito cinzento se fez uma cabeça de um núbio ex-posta na sala egípcia do Museu Calouste Gulbenkian (Araú-jo 2006), sendo também de granito a cabeça de uma figu-ra anónima do Museu Nacional de Arqueologia, bem como um escaravelho-sinete (Araújo 1993), mais um grande vaso inscrito do Museu da Farmácia feito para Amen-hotep, que era administrador do templo (Basso e Araújo 2008).

O calcário está presente em diversos materiais expostos na sala egípcia do Museu Calouste Gulbenkian, a começar por um fragmento mural de uma mastaba do Império Anti-go, a estatueta feita para um funcionário chamado Més, a es-tela do escriba Iri onde está representado o faraó Ahmés, o fundador do Império Novo (XVIII dinastia) e a sua esposa, a

rainha Ahmés Nefertari, o baixo-relevo do sacerdote Ame-neminet venerando Tutmés III, a estatueta do funcionário Bés (de calcário compacto), a estátua de Djedhor, um mo-delo de esfinge, o baixo-relevo de um rei ptolemaico imitan-do as formas juvenis dos monarcas do Império Novo (Araú-jo 2006), e também no acervo egípcio do Museu Nacional de Arqueologia, com uma maça do período proto-dinástico, duas estelas, dois altares de oferendas, um recipiente para li-bações inscrito, uma esfinge criocéfala e um fragmento ar-quitetónico (ombreira de porta) com inscrição hieroglífica (Araújo 1993). O Museu da Farmácia exibe um fragmento tumular decorado e inscrito, uma “colher” para cosméticos, uma estatueta funerária inscrita em nome de Hui (que era preparador de unguentos do deus Amon), um vaso de vís-ceras feito para o sacerdote Merui, uma estatueta da deusa Taueret, e um pequeno boião de calcário vermelho (Basso e Araújo 2008). O Museu de História Natural da Universida-de do Porto tem um fragmento de calcário pintado repre-sentando vasos sírios (Araújo 2011).

No Museu Nacional de Arqueologia existem duas este-las de arenito, datadas do Império Médio e da Época Bai-xa, bem como vários fragmentos arquitetónicos inscritos do Império Novo, um deles com um dos nomes do célebre fa-raó Ramsés II, e a cabeça de um anão (Araújo 1993).

É feita de travertino uma bela taça decorada com nervu-ras exposta no Museu Calouste Gulbenkian, existindo uma tijela nas reservas (Araújo 2006), tal como um conjunto de recipientes, uma pulseira e um olho mágico udjat, expostos no Museu Nacional de Arqueologia (Araújo 1993), que sur-gem identificados como sendo de alabastro. São igualmen-te de travertino um vaso com veios, um vaso figurativo, ou-tro com inscrição onde se lê o nome do faraó Tutmés IV, um vaso com asas, três vasos de vísceras e dois unguentários que se encontram no Museu da Farmácia (Basso e Araújo, 2008). No Museu de História Natural da Universidade do Porto podem ser vistos um boião e um vaso, além de dois vasos de vísceras anepígrafos (Araújo 2011).

A brecha foi usada para fazer uma tijela canelada, da di-nastia ptolemaica, que pertence ao Museu Calouste Gulben-kian (Araújo 2006), sendo também de brecha um peque-

quanto a calcite (o alabastro gipsoso) se obtinha nas pedrei-ras de Hatnub e no Faium (Sales 2001: 666–667). Note-se que algumas destas pedras duras, a que se juntam o anfi-bolito e a brecha, o gnaisse e o granodiorite, já eram usa-dos no fabrico de vasos e de paletas no período pré-dinás-tico, em finais do IV milénio (Shaw e Nicholson 2008: 314).

A todas as pedras antes referidas juntem-se as pedras preciosas e semipreciosas de uso intenso e variado nas artes decorativas, com especial predominância da joalharia, sen-do bem conhecidos alguns exemplos que escaparam aos saques ao longo dos séculos e que enriquecem hoje alguns acervos egípcios que o público visita com muito interesse

— a começar pelo tesouro do rei Tutankhamon e outro, me-nos divulgado, encontrado nas ruínas de Tânis, em túmulos de faraós das XXI e XXII dinastias (séculos XI–X a.C.). De entre a panóplia destas pedras avultam a turquesa, a esmeralda, a ágata, a calcedónia, o feldspato verde, a malaquite, o ónix, a ametista, o quartzo, o jaspe, entre outas (Sales 2001: 667). Quanto ao muito apreciado lápis-lazúli, ele não era obtido em território do Egito, vinha de muito longe, do distante Afeganistão (Badakhchan), o que demonstra como na épo-ca o comércio internacional estava desenvolvido. Trata-se de uma pedra opaca (silicato de alumínio e sódio com sul-fureto de sódio), de cor azul escura e por vezes com man-chas brancas (calcite) ou douradas (pirite).

Embora a pedra fosse por excelência o material de cons-trução usado para erigir os templos e túmulos, que se de-sejava pudessem durar eternamente, sendo por isso um monopólio da realeza, outras matérias-primas bastante uti-lizadas foram a areia e o lodo, omnipresentes no país do Ni-lo, com os quais se produziram ao longo dos séculos muitos tijolos para a construção em geral (incluindo os palácios fa-raónicos, dos quais hoje não temos vestígios), e amiúde de uso imprescindível e eficaz na construção de rampas por onde seguiam os pesados blocos de pedra em cima de tre-nós de madeira. Das técnicas de transporte e de arrasta-mento dos blocos líticos temos alguns escassos testemu-nhos em algumas imagens de túmulos.

E se de facto o Egito era algo necessitado em madeiras, dado que as suas árvores de pequeno porte só lhe davam

madeiras fracas, como a acácia, o sicómoro, a tamareira e a palmeira, entre outras, não muito propícias para fazer tra-balhos de carpintaria com a desejada robustez, os docu-mentos que chegaram até nós provam que o intercâmbio com a região do Líbano, para a aquisição de boas madei-ras, era intenso. Entre estas contava-se a de cedro, cuja im-portação remontava a tempos muito anteriores à época das grandes pirâmides do Império Antigo. Também chegaram até nós trabalhos de marcenaria feitos de cipreste e de éba-no, sendo este obtido na Núbia.

Mas a imagem do Egito faraónico como civilização da pedra também não poderá fazer esquecer, para além dos já referidos trabalhos de carpintaria, os desenvolvimen-tos notáveis da metalurgia. Graças a práticos conhecimen-tos metalúrgicos, trabalharam com grande sucesso o cobre para o fabrico de ferramentas, produzindo vários utensí-lios que os túmulos em parte preservaram, embora as ferra-mentas líticas se mantivessem sempre em uso a par do me-tal, sobretudo o cobre e o bronze, este produzido a partir de uma liga de cobre e estanho. Como este elemento não exis-tia no território egípcio, ele era obtido através de um inten-so comércio com cananeus e depois com fenícios.

Sabe-se que o afeiçoamento das pedras era feito com o recurso a instrumentos de metal, começando nas primeiras dinastias pelo cobre, depois usando objetos de bronze e, em tempos mais recentes, o ferro. Mas para trabalhar pedras duras como o basalto ou o granito usavam-se pedras apro-priadas, que naturalmente tinham de ser mais duras que as pedras que iriam ser trabalhadas. São conhecidos instru-mentos de sílex e de dolerito, por exemplo, que foram acha-dos nas antigas pedreiras, sendo a zona de Assuão um bom paradigma da sua utilização (Klemm 2007).

Se bem que a utilização dos blocos de pedra esteja ge-ralmente associada às obras arquitetónicas, convirá não es-quecer as muitas estelas e estátuas que chegaram até nós e que se expõem em muitos museus. Aliás, qualquer bloco de pedra, fosse de granito ou de calcário, ou de outra pe-dra dura, arrancado à montanha, tanto serviria como mate-rial para a edificação de um templo ou de um túmulo como para dele fazer uma estátua com diferentes tamanhos e re-

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no boião do Museu Nacional de Arqueologia (Araújo 1993), outro do Museu da Farmácia (com tampa e suporte), mais um vasinho, um pilão e um almofariz (Basso e Araújo 2008).

O xisto foi usado para se esculpir uma bela estatue-ta do deus Osíris e a cabeça de um funcionário anónimo, ambos expostos no Museu Calouste Gulbenkian (Araújo 2006), bem como em várias paletas do Museu Nacional de Arqueologia, uma delas de xisto mosqueado (Araújo 1993), e duas no Museu da Farmácia, onde também se pode ver uma “colher” para cosméticos (Basso e Araújo 2008), en-contrando-se no Museu de História Natural da Universida-de do Porto três paletas pré-dinásticas de xisto, além de um escaravelho de basalto mas com placas de xisto na base con-tendo uma inscrição com o capítulo 30 do “Livro dos Mor-tos” (Araújo 2011).

Alguns materiais de anfibolito encontram-se no Mu-seu Nacional de Arqueologia, como um machado polido pré-dinástico, duas paletas, um pilão e um almofariz, pe-sos de balança, uma estatueta, um amuleto representando uma cabeça de carneiro, a que se junta uma paleta de ardó-sia (Araújo 1993),

Na coleção egípcia do Museu Nacional de Arqueologia há um boião de mármore cinzento, um de mármore azul claro e outro de mármore esverdeado, mostrando assim as potencialidades cromáticas desta pedra usada em objetos de toucador, sendo também de mármore uma estatueta acé-fala (Araújo 1993), e no Museu de História Natural da Uni-versidade do Porto encontra-se um vasinho (Araújo 2011).

Há artefactos pré-dinásticos feitos de sílex no Museu Nacional de Arqueologia, como uma ponta de seta, um ma-chado, uma foice e uma faca serrilhada (Araújo 1993).

Pedras bastante duras como o basalto e a obsidiana (uma rocha vítrea vulcânica) também estão presentes em acer-vos portugueses, como se pode admirar numa cabeça de fa-raó pertencente ao Museu Nacional de Arqueologia (Araújo 1993), um escaravelho com o capítulo 30 do “Livro dos Mor-tos” na base, uma cabeça da deusa Sekhmet e uma estatueta apotropaica inscrita no Museu da Farmácia (Basso e Araújo 2008), e ainda a magnífica cabeça do rei Senuseret III, da XII dinastia (Império Médio), um dos mais significativos obje-

tos da coleção egípcia do Museu Calouste Gulbenkian, que é feita de obsidiana (Araújo 2006).

Quanto a pedras raras registe-se que no Museu Nacio-nal de Arqueologia existe uma estatueta da deusa Ísis fei-ta de gneiss, dois escarevelhos de serpentina, um de jade e outro de jaspe (Araújo 1993), no Museu da Farmácia está a estatueta de um macaco feita de anidrite, alguns pesos de balança de hematite, um vaso figurativo de quartzito, uma estatueta de anidrite e uma “colher” para cosméticos de estea- tite preta (Basso e Araújo 2008), enquanto o Museu de His-tória Natural da Universidade do Porto exibe dois seixos de moagem de quartzito, um escarabóide e um escaravelho de esteatite, e ainda um escaravelho de diabase (Araújo 2011).

São escassos no nosso país os objetos egípcios feitos de pedras semipreciosas, e neste âmbito apenas se podem re-gistar um amuleto de cornalina em forma de coração e um pequeno escaravelho, no Museu Nacional de Arqueologia (Araújo 1993), além de um recipiente de turquesa no Mu-seu da Farmácia (Basso e Araújo 2008), possuindo o Museu de História Natural da Universidade do Porto três colares e uma pulseira de um período histórico indeterminado que entre os seus vários componentes incluem pedras de ágata e cornalina (Araújo 2011).

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a vida e a morte na pré-história recente do concelho de abrantes.Ana Cruz centro de pré-história do instituto politécnico de tomar & grupo do quaternário e pré-história do centro de geociências

Ana Graça centro de pré-história do instituto politécnico de tomar & grupo do quaternário e pré-história do centro de geociências

resumoOs vestígios arqueológicos no concelho de Abrantes reve-lam evidência de uma continuidade de ocupação por comu-nidades, umas mais do que outras, vivendo em sistemas sociais e económicos diversos mas interagindo com as no-vidades de cada momento preciso. Tal é possível observar na fase de transição para a neolitização, no apogeu do megali-tismo ou na alteração e talvez suposta ruptura de mentali-dades na fase final da Idade do Bronze. Palavras-chave: epipaleolítico, neolítico, idade do bron-ze final, indústrias macrolíticas holocénicas, povoamento, ambiente fúnebre.

abstractThe Abrantes municipality archaeological record reveal evi-dence of continuous occupation by communities, some more than others, living in diverse economic and social systems but interacting each moment with novelties. Such is observ-able in the transition towards Neolitization, in the zenith of Megalithism or in the alteration and possible rupture of men-talities rupture by the Late Bronze Age.Keywords: epipaleolithic, neolithic, final bronze age, holo-cene macrolithic industries, settlement, funerary elements.

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nota préviaE porque todos somos uma equipa aqui assinalamos os nossos agradecimentos à Dr.ª Isilda Jana, à Srª. Presidente do Município de Abrantes Dr.ª Maria do Céu Albuquerque, à equipa de Arqueologia do Município de Abrantes (Joa-quim Candeias, Álvaro Batista e Filomena Gaspar), à equi-pa do Museu Ibérico de Arqueologia e Arte (Davide Delfi-no e Gustavo Portocarrero) e à equipa do Instituto da Terra e Memória (Luiz Oosterbeek e José Gomes). De assinalar ainda o apoio providenciado pelo Centro de Interpretação de Arqueologia do Alto Ribatejo (Pierluigi Rosina e Cidá-lia Delgado). Investigadores e Instituições unem-se numa cadeia robusta onde a aprendizagem, a investigação, a ex-perimentação, a divulgação e a publicação têm lugar tor-nando este pólo de Arqueologia do Médio Tejo Português num verdadeiro viveiro de experiências pessoais e laborais.

introduçãoQuando pensamos a Vida e a Morte sabemos que são dois substantivos antagónicos que pela sua própria nature-za não se podem desconectar. Actuamos no palco da vi-da desde o nascimento, com todas as condicionantes com as quais somos educados, passando pela adolescência, pe-la maturidade e por fim pela decadência, onde se prefigu-ra o desaparecimento do corpo vivo, dando lugar ao cadá-ver (Abraira Pérez 2005). Contudo, não podemos alienar de forma truncada a Vida, por um lado e a Morte, por ou-tro. Ambas fazem parte de um conjunto de valores morais, éticos e religiosos no qual o imaginário dos vivos desenca-deia uma sequência de gestos ritualizantes para perpetuar a Morte condicionada aos valores da Vida.

Muitas foram as civilizações que sobre este tema se de-bruçaram, em particular a nossa civilização ocidental, des-de Aristóteles (Galinberti 2000) a Mircea Eliade (Eliade 1992) ou Philippe Ariès (Ariès 1974), procurando paliativos para que este medo do desconhecido fosse suavemente ul-trapassado, ainda que tenhamos que conviver no dia-a-dia com essa ideia de finitude.

Muito pouco se sabe sobre a forma como a vida e a mor-te eram observados desde tempos Pré-Históricos e Proto-

-Históricos, vistas através dos seus contemporâneos, pois as poucas referências existentes vêm-nos de Estrabão (Sil-va, Gomes 1992), o narrador oficial da grande força civili-zacional que Roma representava, ao tempo, nos seus domí-nios transalpinos.

Falar sobre a Vida e a Morte significa em terminologia ar-queológica abordar questões de planeamento e gestão do ter-ritório de povoados ou abordar assuntos (para muita gente tétricos) sobre realidades funerárias.

O que nos traz hoje aqui, à reunião de investigadores do miaa, é a multiplicidade de arqueossítios existentes no concelho de Abrantes, que se dividem em duas grandes áreas temáticas: a área da vida, ou seja, dos povoados e dos habitats e a área da morte, ou seja, dos monumentos me-galíticos e dos tumuli (Cruz 2011). Outras temáticas pode-rão ser discutidas muito embora não sejam agora alvo de apresentação.

o enquadramento fisiográficoA área investigada sob a égide do pnta siposu_mc limi-ta-se a uma franja de vários quilómetros que bordeja a margem esquerda do rio Zêzere e uns poucos da margem direita do rio Tejo. Estas pequenas áreas prospectadas e es-cavadas permitem-nos hoje criar uma panorâmica, ainda que truncada, das vivências das primeiras populações agro-

-pastoris e das cadeias operatórias ritualizantes dos fenó-menos funerários, seus contemporâneos.

Do ponto de vista fisiográfico vamos encontrar, a Norte da Barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere, uma pai-sagem típica de serradinha, com cumes boleados e verten-tes bastante íngremes com altimetria que varia entre os 300 metros e os 150 metros em média. Por outro lado, na área do Médio Tejo português a paisagem varia entre os 70 e os 50 metros em termos de altimetria, sendo possível obser-var grandes planícies aluviais formadas pelo Tejo em fases mais remotas da sua história geológica.

Fig. 1 | Imagem Digital do Terreno onde são visíveis os rios Zêzere e Tejo, tal como o modelado geomorfológico, realizado em ARCGIS 9.2.Fonte: CPH

Elevation

316,667 – 350

283,333 – 316,667

250 – 283,333

216,667 – 250

183,333 – 216,667

150 – 183,333

116,667 – 150

83,333 – 116,667

50 – 83,333

N

S

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tar esta problemática estaríamos perante comunidades que dominariam não só a paisagem, mas também os recursos aí existentes, com a possibilidade de existência de variados habitats que pertencessem à mesma comunidade utiliza-dos em estações do ano diferenciadas (Cruz 2011).

Um terceiro aspecto relaciona-se com as estruturas ne-gativas e positivas existentes nestes dois sítios. Para o pe-ríodo relativo ao Epipaleolítico vamos encontrar em Fontes duas estruturas ovaladas de barro cozido cuja funcionali-dade está ainda em discussão; simultaneamente, em Amo-reira, detectamos uma estrutura positiva colmatada com sedimento pleno de carvão. Ambas possuem datações que as colocam num período de transição entre as comunida-des de caçadores-recolectores e as comunidades agro-pas-toris. Estaríamos então num tempo no qual não só a caça, pesca e recolecção são importantes, como também o arma-zenamento. Esta presença de comunidades ainda no inte-rior do território hoje português atesta-nos a versão con-trária de alguns autores (Araújo 2003) relativamente à qual, nesta fase da humanidade, estaríamos perante um “redu-cionismo” das comunidades a locais estuarinos onde pro-liferaram os concheiros dos rios Tejo e Sado (Cruz 2011).

Do ponto de vista geológico-litológico observamos en-tão, nas margens do rio Zêzere, afloramentos do Maciço Antigo classificados como Pré-Câmbricos, enquanto no rio Tejo observamos a existência da Bacia Sedimentar Terciá-ria, composta pelos terraços quaternários.

Fig. 2 | Excerto da Carta Geológica de Portugal, à escala 1.500.000, folha 2Publicada pelos Serviços Geológicos de Portugal, 1992.

Qualquer uma destas áreas, embora constituídas por li-tologia e geomorfologia variável, foram o cenário de vivên-cia de populações holocénicas quer no plano do seu quo-tidiano, quer no plano dos enterramentos. São ainda neste momento desconhecidas as fórmulas tipificadas de monu-mentos funerários na zona geográfica específica do Médio Tejo no concelho de Abrantes (para além do Monumento Funerário de Colos), muito embora no concelho de Ma-ção seja bastante conhecida a Anta da Foz do Rio Frio, em Ortiga.

as evidências arqueográficas: o povoamentoNo plano do habitat, no concelho de Abrantes, vamos en-contrar dois sítios que se tornaram hoje sítios-paradigma não só pela estratigrafia apresentada como também pe-

los achados e pelas datações absolutas. Um, o Povoado da Amoreira (freguesia de Rio de Moinhos), no vale do rio Te-jo (Cruz 1995, 1997, 2011; Candeias, Batista, Gaspar 2009), outro, o Povoado de Fontes (freguesia de Fontes), no vale do rio Zêzere (Candeias, Batista, Gaspar 2009; Cruz 2011). Curiosamente, ambos apresentam vestígios de ocupação Epipaleolítca, datada, quer por radiocarbono, quer por ter-moluminescência entre os finais do x e inícios do viii milé-nio e ainda vestígios de Neolítico Antigo e Médio, em estra-tos estratigraficamente sobrepostos, apenas com datações relativas (Cruz 2011).

Embora sejam “contemporâneos” no largo espectro que medeia a fase de transição do Pleistocénico para o Holocé-nico, e na fase seguinte, a do Neolítico, algumas diferenças são de notar entre estes dois povoados.

Um primeiro aspecto liga-se com a implantação geo-morfológica de cada um destes sítios. O povoado da Amo-reira é implantado em terraço quaternário, numa área on-de observamos a confluência com a Ribeira da Pucariça. O Povoado de Fontes é implantado em terrenos do Ordo-vício Inferior com quartzito e xistos indiferenciados, com ocorrência de terrenos do Miocénico, havendo, como a pró-pria toponímia indica, várias nascentes de água, hoje col-matadas pelas construções modernas. Existindo diferentes tipos de litologia sobre a qual assentam os vestígios holocé-nicos antropizados, poderemos também partir do princípio que diferentes seriam os tipos de matérias-primas disponí-veis num raio de escassos quilómetros (Cruz 2011).

Um segundo aspecto relaciona-se com a altimetria. O Povoado da Amoreira está implantado na curva de ní-vel dos 60 metros. O Povoado de Fontes implanta-se nu-ma altitude de 294 metros. Podemos partir do princípio que as comunidades teriam uma apetência especial por lu-gares sazonais sendo uns mais ligados à caça e recolecção, como é exemplo Fontes e outros mais relacionados com a pesca, como é exemplo a Amoreira. São portanto num cômputo geral habitats ou povoados com dimensões ain-da consideráveis, cerca de 400 metros quadrados, mas que se atinham a actividades sazonais, voltando as suas popula-ções ao mesmo local em estações do ano específicas. A acei-

Fig. 3 | Mapa do Concelho de Abrantes (à esquerda) e localização topográfica dos sítios de Fontes e Amoreira, realizado m ARCGIS 9.2.Fonte: CPH

Fig. 4 | Estruturas em barro cozido do Povoado de Fontes.Fonte: CPH

Fig. 5 | Lareira em fossa escavada nos sedimentos do terraço do Povoado da Amoreira.Fonte: CPH

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junto a um povoado classificado como Calcolítico (Can-deias, Batista, Gaspar: 2009). Ainda no plano dos monu-mentos “atípicos” vamos observar a existência já em pleno Alto Alentejo (mas ainda no concelho de Abrantes) de uma deposição funerária de cremação acompanhada de espólio tipicamente megalítico adossado a um grande afloramento granítico (Gaspar, Batista: 2000).

Dentro das possibilidades logísticas e financeiras ao tempo, foi-nos apenas possível cartografar a existência das antas de Vale Chãos, da Jogada e a Pedra da Encavalada, ela- borar croquis de campo e intervencionar em sondagem as antas 1 e 2 de Vale Chãos que, infelizmente se encontram completamente desmontadas e que não forneceram qual-quer tipo de espólio.

A Pedra da Encavalada, por seu lado, apresentava-se co-mo um amontoado de grandes monólitos e apenas após a segunda intervenção proporcionou uma leitura geral da composição do monumento, possuindo datações absolutas que o colocam no V milénio.

Fig. 7 | Pedra da EncavaladaFonte: CPH

Após várias campanhas de escavação foi possível pro-ceder a uma interpretação genérica deste sítio, agrupando-

-o em três grandes estruturas. A estrutura I corresponderia a uma câmara sub-triangular fechada na qual se inclui-riam o grande afloramento, que se destaca na paisagem, e os monólitos laterais e superiores. A estrutura II prolonga-

-se por todo o perímetro da estrutura I e consta de 6 fossas de planta sub-circular escavadas no afloramento, com cer-ca de dois metros de diâmetro; um dado curioso detecta-

-se não somente na sua estrutura pétrea como também no tipo de espólio exumado. Não estamos autorizados a defi-nir se se tratavam de fossas colectivas ou individuais uma vez que os restos osteológicos humanos são muito escas-sos, embora presentes. Para finalizar e adossado ao lado leste do grande afloramento definiu-se uma área sub-cir-cular com grandes monólitos caídos em dominó, que defi-niria uma zona provável de culto. Esta conclusão é retirada em função do levantamento dos monólitos e da observação dos alvéolos onde estavam implantados os mesmos, colo-cados na transversal e possuindo uma grande quantidade de pequenos blocos de gnaisse que funcionaram como es-coramento, uma vez que a implantação deste monumento é aposto na ruptura da pendente (Cruz 2004).

Podemos, em termos globais, adiantar que o megalitis-mo menírico e dolménico está presente nesta área do va-le do baixo Zêzere inferindo a existência de comunidades já em franca expansão agro-pastoril (provavelmente mais pastoril do que agrária) sendo a sua existência um sinal de utilização do meio ambiente pelo homem domesticando a paisagem (Calado 2000; Diniz 2000) através da constru-ção de grandes monumentos referenciais de uma comuni-dade “global” que se estende por todas as regiões de terras hoje portuguesas.

Para além da existência de “vida” através da morte a partir já do Neolítico Final cremos que estes rituais de ve-neração, ritualização e localização específica da morte des-tacados na paisagem, que se prolongam pelo Calcolítico e que são reutilizados na Idade do Bronze Inicial, vamos en-contrar outra forma de abençoar a morte, já no final da Idade do Bronze através dos monumentos vulgarmente co-

Um quarto aspecto relaciona-se com a produção cerâ-mica que diverge entre estes dois habitats. Enquanto em Fontes vamos encontrar cerâmicas impressas correspon-dentes ao Neolítico Antigo Evolucionado, em Amoreira as mesmas são completamente lisas e bastante friáveis dan-do a impressão que estamos, neste caso, num período mais avançado do Neolítico (Cruz 2011).

Um quinto aspecto está implícito nas chamadas indús-trias macrolíticas holocénicas. Inicialmente detectadas em Amoreira, nos anos 90 do século xx, atestamos a presença destas indústrias não somente em locais de prospecção co-mo também em Fontes. É uma panóplia própria desta fa-se (que se estende até ao Calcolítico, como é atestado pelo Povoado de Santa Margarida da Coutada em Constância). Estas indústrias não demonstram variedade tipológica des-de o Epipaleolítico, fazendo-nos crer que se tratará de um traço conservador muito próprio das comunidades desta fase que atravessa todo o período do início da neolitiza-ção e sua posterior consolidação até chegarmos ao III mi-lénio (Cruz 2011).

Estamos, portanto, perante aglomerados populacionais de pequena monta, onde a partir das evidências arqueo-gráficas podemos inferir um tipo de relação social marca-

da pelas relações grupais de nível básico, onde o espírito de entreajuda seria fundamental para a sobrevivência do todo. Não observámos evidências de guerra ou de qualquer outro tipo de relacionamento hierárquico que nos levasse a crer numa sociedade organizada por estratos sociais, obrigan-do à fissão, onde os bens de prestígio teriam um sobrevalor, ainda que pudessem existir relações entre os mais velhos e os mais novos com o intuito de proceder à transmissão de conhecimentos e, portanto, de acumulação de riqueza cul-tural. Essa riqueza cultural irá culminar com o fenómeno megalítico patente na margem esquerda do rio Zêzere.

as evidências arqueográficas: o registo funerárioVamos encontrar o registo funerário nas freguesias de Mar-tinchel e de Aldeia do Mato. Este registo baseia-se na exis-tência de um núcleo megalítico em Vale Chãos, um outro (hoje inexistente, pois foi arrasado por máquinas) da Joga-da e ainda a existência de um monumento megalítico atípi-co, ao qual foi dado o nome usado pelas populações locais de Pedra da Encavalada (Cruz 2004, 2011).

Já na zona da Medroa foi possível ainda no plano do megalitismo menírico, observar a existência de um menir

Fig. 6 | Mapa do Concelho de Abrantes (à esquerda) e localização topográfica dos sítios de Pedra da Encavalada e Souto 1, realizado em ARCGIS 9.2.Fonte: CPH

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Perante esta situação foi por nós proposto ao Município parceria no âmbito dos Planos Nacionais de Trabalhos Ar-queológicos e, desde 2007, temos trabalhado em conjunto de forma a unir sinergias, gerir e optimizar de forma rentá-vel o trabalho que se vai realizando, não só em períodos da Pré-História recente e Proto-História, como também em períodos Históricos. Para além dos sítios apresentados na Carta Arqueológica do Concelho de Abrantes, publicada em CD (Candeias, Batista, Gaspar 2009), os trabalhos ago-ra apresentados que tiveram o seu início em 2000 apon-tam para a existência de uma continuidade de ocupação do território, hoje concelho de Abrantes, com especificidades próprias das fases de mutação que a dinâmica das popula-ções empregaram num continuum de tempo que se estende desde o Epipaleolítico até à Idade do Bronze Final.

Neste continuum é possível observarmos rupturas con-junturais e estruturais das sociedades humanas patentes no texto acima referido que demonstram uma dinâmica das sociedades endógenas que apesar de se manterem pontual-mente conservadoras, como é óbvio através da análise das indústrias macrolíticas holocénicas ou do fenómeno mega-lítico oriundo do Alentejo, também estão preparadas para assumirem novas formas de estar na vida como as inova-ções importadas relativamente às tecnologias da cerâmi-ca e da pedra polida e ainda através da alteração radical no sentido da produção de alimentos e da domesticação de animais. As rupturas estruturais e conjunturais poderão ter acontecido na forma de fissão mais do que através da “guer-ra” (muito embora saibamos que em tempos metalúrgicos as sociedades produziam armas). Assim, será fácil imagi-nar uma “aculturação” das populações autóctones a novi-dades trazidas ou importadas através de comerciantes. Es-tas novas posturas que se podem ter desenvolvido através do comércio de bens de prestígio ou através da endogamia poderiam ter sido adoptadas pelas populações endógenas em vários graus de diferentes formas, contudo, os vestígios de inovação existem e estão bem patentes, quer em estra-tigrafias, quer em achados, providenciando assim um ce-nário do quotidiano informal mas diversificado, marcado pela diferença relativamente a outras regiões de Portugal.

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nhecidos por tumuli, também nesta margem do rio Zêzere, mas mais para norte, a partir da Aldeia do Mato.

Por oposição aos grandes monumentos construídos e que decerto serviriam de referência na paisagem, vamos en-contrar estes monumentos com planta circular constituídos por blocos de quartzo e de quartzito completamente dissi-mulados na paisagem fazendo-nos crer que só a comuni-dade que os construía sabia onde eles estavam. É portanto uma atitude perante a morte de dissimulação na paisagem em contraposição com o fenómeno megalítico (Cruz 2011).

Fig. 8 | Vista em pormenor do interior da urna cinerária do Souto 1.Fonte: CPH

Ao longo da utilização dos monumentos megalíticos deveremos ter em mente que este período corresponde ao que vulgarmente em Arqueologia da Morte se apelida de Colectivização da Morte. Enquanto no início do Neo-lítico estamos perante a individualização do sepultamen-to, vamos assistir a partir do Neolítico Final até ao início da Idade do Bronze ao sepultamento sistemático em antas ou dólmens, também em grutas naturais, grutas artificiais e monumentos de falsa cúpula, sepultamento esse consi-derado como áreas de colectivização onde a ideia do cadá-ver e a ideia de morte se justapunham. No dealbar da Ida-de do Bronze, contudo, vamos assistir ao processo inverso, ou seja, voltamos à individualização da morte quer em cis-tas, quer em momentos tardios nos dólmens.

O que torna curioso este modelo de enterramento em tumuli é a contentorização das cinzas do indivíduo em ur-

na dentro da qual se encontra um outro vaso de carena mé-dia com asa, como é o caso do sítio do Souto 1, cuja datação absoluta o coloca no II milénio (Cruz 2011). Passamos então de um período em que se inumavam os cadáveres em cistas, muitas vezes em posição fetal, para a incineração, guardan-do as cinzas, ou os seus restos mortais, em contentor cerâmi-co às quais se juntava também espólio metálico (Cruz 2011).

É definitivamente uma fase de ruptura a que assistimos nesta fase tardia da Idade do Bronze. Como tal aconteceu, o que fez com que as comunidades colocassem de lado os dolmens e iniciassem a construção destes amontoados de seixos, no centro dos quais era colocada uma urna cinerá-ria, é claramente um mistério que só a arqueologia da mor-te poderá desvendar.

Por enquanto, podemos adiantar que as sociedades agro-pastoris foram desenvolvendo ao longo dos tempos uma faceta social e, quiçá política, não só de hierarquização em estratos como também de organização da sociedade em linhagens que na sociedade agro-pastoril-metalúrgica se vai acentuar. A manipulação da tecnologia metalúrgica faz-

-nos antever para já, uma sociedade onde a diferenciação do trabalho deveria estar definida uma vez que só os ele-mentos da comunidade que soubessem o processo quími-co de manipulação do cobre, do bronze e do estanho pode-riam considerar-se alta e tecnologicamente bem definidos, enquanto outras áreas da produção, a partir da revolução dos produtos secundários, se tornam também elas especí-ficas como, por exemplo, a olaria (Cruz 2011).

considerações preliminares possíveis ao momentoOs trabalhos de arqueologia no concelho de Abrantes da-tam dos anos 80 do século XX (Candeias, Batista, Gaspar 2009) e desenvolveram-se a partir dos anos 90 com a entra-da de um novo elemento (Candeias, Batista, Gaspar 2009).

A par dos trabalhos dos arqueólogos do Município de Abrantes, o Centro de Pré-História do Instituto Politécnico de Tomar foi também desenvolvendo trabalho neste con-celho, que faz parte de uma região mais vasta denominada por Alto Ribatejo (Oosterbeek 1994).

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resumoAmplamente representado na Península Ibérica em pedra, osso e cerâmica, o ídolo oculado ou solar de Abrantes vem alargar a sua ocorrência a uma área até há bem pouco vazia e mesmo marginal, face às ocorrências marcantes para o Centro/Sul do Território Português e contíguo Sul/Sudeste Espanhol. Este artefacto é marcado pela sua singularidade, mas também expressividade. Não se trata de um ídolo “es-tereotipado”, mas rico em conteúdo informativo. Palavras-chave: : ídolo solar, abrantes, portugal, calcolítico.

abstractWidely represented in the Iberian Peninsula in stone, bone and ceramic, the eye shaped or solar idol of Abrantes extends its occurrence to an area until recently empty and even mar-ginal, in comparison with the remarkable findings in Cen-tral/Southern Portugal and the adjoining Southern/South-eastern Spain. This artifact is remarkable for its uniqueness, but also expressiveness. This is not a "stereotypical" idol, but instead one rich in information. Keywords: solar idol, abrantes, portugal, chalcolithic.

deusa ou deuses? um ídolo oculado / solar de abrantes. Álvaro Batista câmara municipal de abrantes

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introduçãoA abordagem que se segue terá por base a descoberta de um Ídolo Solar, com a representação principal da Deusa Mãe da Terra. Para além da sua descrição e interpretação, visou-se sintetizar a diversa tipologia descoberta na Penín-sula Ibérica.

Colocamos a questão de uma origem mitológica na an-tiga Mesopotâmia e a sua expansão para ocidente. A pre-sença dos olhos de sol no iii Milénio a.c. faz-se presente em contextos funerários e de habitat. Falamos do diverso con-texto arqueológico da área abrantina bem como, do contex-to português e do Sul espanhol. Tentamos traçar rotas pos-síveis que do Sul, teriam atingido a área de Alvega. Se a via fluvial do Tejo, pela Estremadura é uma possibilidade, pa-rece ser a via dolménica alentejana, na sua ascendência pa-ra Norte até ao Tejo, expresso na sua arte rupestre nas ban-cadas xisto-grauváquicas, a mais promissora.

A importância deste Ídolo é evidente, sob diversos as-pectos, um dos quais os Deuses ali provavelmente repre-sentados. Esta parece ser uma área específica no achado deste tipo de Ídolos, como parece indiciar um outro inédi-to recolhido a Norte do Concelho.

o arqueositioLocalização geográficaO local do achado pertence ao Distrito de Santarém, Con-celho de Abrantes e Freguesia de Alvega (figs. 1 e 2). O ar-queosítio está implantado numa plataforma sensivelmente plana, com ligeiro declive para o Tejo e recortada por al-gumas linhas de água de sentido N–S. Situa-se entre as co-tas de 46 e 49 metros, sobranceiro à margem esquerda do antigo curso fluvial do Tejo, que lhe passa sensivelmente com orientação E–W. Esta bacia Ceno-Antropozoica dis-põe de Litossolos associados a Luvissolos. São Aluviosso-los incipientes, não calcários e de textura ligeira. Se o relevo a Norte e a Sul do Tejo é de fraca expressividade, próximo dos 200 metros, não sendo impeditivo para progressão no território, as diversas linhas de água, facilitariam bem es-sa progressão.

Fig. 1 | Localização do Arqueossítio no contexto Português e Concelhio.

Fig. 2 | Local de proveniência do Ídolo Oculado | Extrato da CMP, folha 332 Gavião, 1:25000, 1969.

Enquadramento geológico e hidrológicoO achado é proveniente de Depósitos de Terraços Fluviais Q3–25–40 metros do Plistocénico, constituído por areias, saibros e cascalheiras (fig. 3).

Esta é a primeira grande bacial aluvial do Tejo, após per-curso encaixado do Tejo no Maciço antigo Hercínico pra-ticamente desde as “Portas de Rodão” até a jusante da bar-ragem de Belver. Aqui se inicia a ampla bacia aluvial de

Alvega, com maior pendor de desenvolvimento na sua mar-gem esquerda, pressionada pelos xisto-grauvaques do Ma-ciço antigo a Norte. Esta ampla bacial aluvial inicia-se em Casa Branca e volta de novo a encaixar-se no início do Ma-ciço antigo entre Alvega e Ortiga.

Fig. 3 | Local de proveniência do Ídolo Oculado | Extrato da Carta Geológica de Portugal, folha 28 Gavião, 1:50000, 1983.

Entre o arqueosítio e o Tejo Velho ocorrem depósitos de terraços fluviais Q4–8–15 metros e formações MP do Mio-cénico Superior e Pliocénicos indiferenciados. Esta última formação estende-se ao longo de todo o planalto Sul, co-roado por formações do Pliocénico e Vilafranquiano nos relevos mais elevados de cotas próximas dos 100 metros. Nas vertentes para o Tejo ainda se encontram depositados níveis de depósitos de terraços fluviais Q2 e Q1. O Q2 nas cotas intermédias e disposta ao longo da bacia e deposição lateral esquerda da ribeira da Lampreia e a Q1 depositada sobre as formações MP, a cotas mais elevadas da anterior, mas não atingindo os níveis Pliocénicos. Para Norte e Este, na extrema de concelho, ocorre o substrato Hercínico, An-te-Hercínico e de Metamorfismo de contacto.

Em termos hidrológicos o Tejo será o elemento prepon-derante desta bacia que corre de Este para Oeste . Todavia importa ressalvar a Sul do Tejo três ribeiras que lhe são sub-sidiárias e que correm de Sul para Norte. A Ribeira da Lam-preia a Ribeira da Represa a Ribeira do Carregal e a Oes-te de Alvega, a do Ribeiro do Fernando. A Norte do Tejo

e para Noroeste duas ribeiras se registam a do Rio Frio e a das Boas Eiras.

enquadramento arqueológico a sul do tejoNo que diz respeito aos vestígios arqueológicos abrantinos da área em causa, apenas nos iremos cingir à Pré-História Recente e essencialmente ao inventário existente na Car-ta Arqueológica Concelhia (Silva, Batista e Gaspar 2009).

Importa desde logo mencionar que a totalidade do es-pólio é proveniente de recolha superficial e como tal as cro-nologias mencionadas são relativas. Desde logo ficam por equacionar questões como, tipo de ocupação, funcionali-dade, importância, e existência de relação ou não e de que tipo com os restantes vestígios da área. Por outro lado, é comum os diversos arqueossítios disporem de amplas dia-cronias. Mesmo uma intervenção pontual à entrada de Al-vega, em 2008, aquando do alargamento da en1181 (fig. 4) não é esclarecedora.

Uma análise baseada nestes dados remete-nos apenas para termos probabilísticos.

Nessa nossa descrição vamos ter em conta os seguin-tes arqueosítios: Campo; Cabeça; Entrudo; Portelas I; Qtª S. João II, III e IV; Estercada II; Qtª do Pombal; Ribeira do Fernando I e II; Alto da Portela I; Monte da Quinta do Es-tá Feito / Ribeira de Fernando; Monte Galego III e Monte-lhão/Azinhal.

Os diversos locais permitem distinguir cinco núcleos distintos pelo tipo de povoamento, teor de implantação, ti-pologia da diversa indústria. Existe desde logo dificulda-de em definir se são povoados baixos ou locais de explora-ção sazonal ligados aos grandes povoados de altura (fig. 4).

Claramente de todo o conjunto poderemos definir dois povoados de altura, Entrudo e Portelas I (fig. 4, 1 e 2). Estes revelam alguma similitude em relação aos restantes inven-tariados para jusante no concelho de Abrantes e Constân-cia e montante em Vila Velha de Rodão, e que farão parte de todo um sistema de povoamento Neo-Calcolítico ao longo do Tejo e Zêzere e que estarão em consonância com as am-plas bacias aluviais, vias de penetração para o interior, sec-tor mineiro (?), admitindo-se mesmo, no caso de Vila Ve-

Estes estavam colocados aleatoriamente, notando-se claramente menos precisão na sua concepção. Em termos de indústria recolhida nas estruturas, os elementos em granito consistiam em artefactos (moventes). Do desmonte da Estrutura 24 o autor cita (entre outros) diversa ocorrência de mós planas, 3 percutores de quartzito, 3 de quartzo, 3 lascas de quartzito e 1 de quartzo, 2 lascas de sílex e 2 fragmentos de cerâmica. Foi atribuído a esta estrutura e espólio uma cronologia do Neolítico Final.

1 Segundo o autor do relatório (Chéney e Sá 2008), foram escavadas em 2008 no local duas estruturas de combustão E24 e E24a de planta oval e circular sendo ambas constituídas por seixos de quartzito, por escassos elementos pétreos em xisto e alguns em quartzo. Na Estrutura 24a os elementos pétreos foram dispostos em círculos concêntricos e colocados de uma forma ordenada numa depressão aberta no substrato geológico, não tendo sido, no entanto, encontrado vestígios de carvões. Na Estrutura 24, com uma cronologia posterior, os elementos pétreos estavam dispostos de uma forma menos densa.

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lha de Rodão “que estejam em correlação com importante conjunto de monumentos megalíticos e com a arte rupes-tre do Tejo” (Cardoso et alli 1988).

Segue-se um povoado de altura, mas conotado com as cerâmicas decoradas, o do Monte Galego III (fig. 4–3). Di-versos núcleos de povoados ou áreas de exploração dos re-cursos existentes (fig. 4–5 a 8, 10 e 11), alguns deles com ce-râmica decorada (fig. 4–9 e 12). E por último o povoamento baixo junto ao Tejo, em solos leves, com escassa cerâmi-ca decorada, e de onde proveio o ídolo oculado (fig. 4–4).

Fig. 4 | 1 Entrudo, 2 Portelas i, 3 Monte Galego III, 4 Campo e Qtª S. João II, III e IV, 5 Cabeça, 6 Montelhão / Azinhal, 7 Qtª do Pombal, 8 Ribeira do Fernando II,

9 Estercada II, 10 Ribeira do Fernando I, 11 Monte da Qtª do Está Feito / Ribeira do Fernando, 12 Alto da Portela I, 13 Arqueossítio a montante,

14 Anta da Foz do Rio Frio, 15 Quinta Nova (Estrutura 24) | Extrato da CMP, folha 332 Gavião, 1:25000, 1969.

Enquadramento arqueológico a Norte do TejoNa área de contacto com o Tejo os vestígios ainda no con-celho de Abrantes são os de Nossa Senhora dos Matos III e os de Mação constam da Anta da Foz do Rio Frio (fig. 3–14) e próximo desta uma covinha inédita, bem como algumas mós planas provenientes de algumas centenas de metros para Norte (fig. 3–13).

Cronologia Relativa do EnquadramentoEm termos de cronologia relativa, de um modo geral po-deremos afirmar que os diversos arqueossítios podem in-serir-se dentro de um momento impreciso do Calcolítico, embora as cerâmicas decoradas com caneluras possam in-diciar o Calcolítico inicial/pleno, e algumas incisas e ca-renadas possam apontar para um Neolítico final. Pratica-mente associado a todos eles existe a “indústria Tagana de quartzito”, que tem sido referido na bibliografia comumen-te como indústria macrolítica holocénica. A indústria de sí-lex aponta, na maioria para pequena indústria na base de cherts. A indústria de quartzo leitoso e hialino está confi-nado, até ao momento, aos povoados de cerâmicas deco-radas, bem como a eles se associam crescente e machado polido de secção circular/ovoíde, bem como pesos de rede. A indústria polida está melhor representada nos povoados de altura Entrudo e Portelas I de cerâmicas lisas, a que ha-bitualmente estão associados Ídolos de Cornos e toda uma cerâmica que temos atribuído ao Calcolítico do Sudoeste.

Sintetizando, podemos afirmar que existem dois nú-cleos de povoamento bem definidos e distintos. Os de al-tura, designados de povoados abertos, constituídos pelo Entrudo e Portelas I e eventualmente diversos núcleos na lezíria e o também de altura encimado por cerâmicas de-coradas quais o do Monte Galego III e os na lezíria consti-tuídos pelo Campo e Qtª de S. João I, II, III e IV.

Estas duas vertentes de ocupação são similares ao que já constatamos para jusante, quer neste concelho (Candeias, Batista e Gaspar 2009), quer no contíguo de Constância (Batista, 2004).

O diverso espólio do arqueossítioO local de proveniência é uma ampla chã sobranceira ao Tejo Velho de orientação E–W, que se encontra recortada por algumas linhas de água de orientação N-S. Esses recor-tes definiram 4 sítios arqueológicos, que na realidade se tra-ta de apenas um disperso ao longo da chã. Assim Qtª de S. João I a IV constitui um único sítio.O ídolo é proveniente de Qtª de S. João II, e o espólio proveniente dos diversos sí-tios consta da seguinte indústria:

Quartzito: — Seixos talhados uni e bifaciais (alguns com maceramen-

to de arestas)— Raspador, raspadeiras, calotes de seixo, lascas simples— Pesos de rede (TA e TS)

Sílex:— Núcleos de cherts, com negativos de levantamentos de

lascas, lâminas e lamelas— Crescente— Fragmentos de lâminas, lamelas, furador sob lamela,

lascas simples e esquírolas

Quartzo hialino e leitoso:— Lascas simples, núcleos (?), esquírolas— Mós planas moventes e dormentes— Machado de pedra polida de secção circular/ovóide— Cerâmicas lisas (forma 7) (Candeias, Batista e Gaspar

2009)

Cronologia Relativa do Local: Neolítico Final e Calcolítico.

o ídoloTrata-se de um seixo rolado de xisto-grauvaque, fracturado na extremidade inferior, com predominância de gravação incisa e diminuta picotada, com as dimensões de compri-mento 60 mm, largura 19 mm e espessura 19 mm.

Campo Posterior ou Frontal.Apresenta a gravação de dois pequenos círculos com 5 raios cada (olhos de Sol). Logo abaixo, quatro linhas paralelas in-cisas oblíquas, duas de cada lado a definir a tatuagem facial.

Apresenta triângulo púbico invertido, com duas linhas incisas horizontais paralelas no seu interior.

De imediato abaixo do vértice inferior do triângulo, sái pequena lisa incisa a definir a parte central de ambas as pernas. Nesta área o ídolo encontra-se fraturado. Superfí-cie sem rugosidades ou defeitos.

Este campo frontal apresenta-se liso e sem defeitos (fig. 5).

Campo anterior ou costasO limite entre os dois campos são definidos por uma inci-são transversal em relação à parte frontal e na parte arre-dondada por cima dos dois motivos solares. Apresenta uma superfície irregular, com algumas incisões finas a sair do to-po para baixo sobre o comprido cabelo.

Oculto no cabelo da parte mesial do topo do seixo para baixo, observa-se o que denota ser uma representação fa-cial de perfil, com testa alta, nariz achatado, indícios da bo-ca e queixo demarcado. Esta representação bidimensional, aproveitou a irregularidade do seixo, para representar, não só o cabelo, mas a face. Para realçar o queixo e boca foi efec-tuado um ligeiro retoque rasante, a fim de melhorar a pro-fundidade e o relevo. Apresenta ligeiro picotado circular na fase e um outro para lá da linha de incisão natural da rocha, a definir dois olhos descentrados (fig. 6).

Campo superiorOs dois campos anteriores são delimitados por uma incisão transversal. Essa linha marca o limite entre a parte mais li-sa e sem “defeitos” e a parte anterior do cabelo. Esta incisão

Fig. 6 | Ídolo solar | Campo anterior.Fig. 5 | Ídolo solar.

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152 actas das ii e iii jornadas internacionais do miaa museu ibérico de arqueologia e arte

transversal define uma parte frontal em que o cabelo esta-ria ali seguro e totalmente a cair para a parte anterior. Po-deria estar ali preso por algum tipo de grinalda.

A Deusa-Mãe apresentaria assim uma tez alta e compri-da cabeleira ondulada ao longo das costas, segura por uma grinalda no alto da cabeça.

Do topo a descer ao longo da representação do cabelo saem algumas finas linhas incisas, a abranger a quase tota-lidade do que se poderia considerar a parte final do cabelo, definido pelo queixo do rosto humano de homem (fig. 7).

Lateral. Divisão entre os campos frontal e costasNesta foto é nítida a separação entre os dois campos. Ob-serva-se a linha incisa transversal efectuada na parte supe-rior boleada do seixo a limitar ambas as áreas. São notó-rias ligeiras incisões finas a sair da incisão transversal para a parte inferior do seixo. A parte frontal lisa corresponde à área da cabeça (fig. 8).

Na fig. 9 é nítida a separação entre os dois campos, ago-ra visto na totalidade da vertical do seixo. Este facto deno-ta uma intencionalidade na escolha do seixo, não só pa-ra representar a parte facial distinta da parte anterior do

cabelo, como para permitir ali representar uma segunda pessoa masculina, reforçada pelo levantamento invasor de uma lasca que lhe confere nítido queixo e boca, dado que a partir daí o seixo dispõe naturalmente de uma incisão que foi aproveitada para esta “escultura”.

Fig. 11 | Desenho do Ídolo Solar.

O pormenor do cabelo ondulado e comprido ao longo das costas é notório em outros ídolos, caso do de La Pijo-tilia e do de Guadalquivir e em outro ídolo oculado em os-so do Povoado da Fonte Quente — Tomar (Mateos e Perei-ra 2008: 197-205).

as diversas ocorrências na península ibéricaAmplamente conhecidas a Nascente são as estações Paleolí-ticas de Vila Velha de Rodão da Foz do Enxarrique e Mon-te Famaco. Para Ocidente deste achado, dos Concelhos de Abrantes e Constância conhece-se a existência de ocorrên-cias Paleolíticas, nomeadamente Acheulense e Mustiero-

-Levalloisense, diversa indústria lítica macrolítica holocé-nica, cerâmicas cardiais e pós cardiais. Povoados de altura com indústria cerâmica de formas lisas do Calcolítico do Sudoeste. Destes provêm Ídolos de Cornos, pesos de tear rectangulares, cadinhos de fundição, machados de pedra polida e toda uma indústria de sílex e macrolítica que per-siste neste horizonte. Na mesma área, recolheu-se um ídolo fálico de xisto-grauvaque. Há placas ídolo gravadas do mo-numento funerário de Colos — S. Facundo e lisas da área de Martinchel — Aldeia do Mato, bem como Megalitismo funerário e ritual assim como arte rupestre, com motivo so-lar (fig. 12), círculos, covinhas, antropomorfo, ídolos ocula-dos (?), podomorfos. Mais para Norte o “povoado” de Fon-tes comporta um atelier de placas ídolo.

Fig. 12 | Motivo Solar de Martinchel.

Na área de S. Facundo a arte rupestre é menos expressi-va embora comporte covinhas e podomorfo, acontecendo o mesmo na área de Rio de Moinhos.

Também da Anta da Foz do Rio Frio provem uma pla-ca ídolo lisa, fazendo parte de um amplo corredor de ocor-rências para Oeste que parece definir uma linha a Norte do Tejo na direcção de Aldeia do Mato, Val da Laje e até Rego da Murta (Alvaiázere).

Mas no contexto Ibérico o motivo solar e de ídolos ocu-lados ou da Deusa Mãe encontramo-lo nos mais diversos suportes e locais. Temo-lo presente na arte rupestre do Va-le do Tejo (fig. 13) e Tejo Internacional, bem como também na arte esquemática da Península Ibérica, na Andaluzia (fig. 14) e Valência. Todavia o motivo solar e os ídolos oculados ocorrem em inúmeros suportes e locais de Portugal e Es-panha.

Fig. 13 | Motivos solares no Vale do Tejo — Rodão.

Fig. 14 | Pintura — Grupo de Oculados Antropomorfizados.

Todavia o motivo solar e os ídolos oculados ocorrem em inúmeros suportes e locais de Portugal e Espanha. Lo-go a norte, na Placa ídolo Anta do Cabeço das Penedentas, com notórias similitudes com a de Avis. Outras aqui cita-mos como a Placa ídolo de Alapraia 2, Placa ídolo de Mar-vão, Lapa do Bugio (fig. 15), Gruta artificial de S. Paulo 2 - Almada, Lapa do Fumo, Dolmen de Granja de Céspedes. Badajoz, Valencia de la Concepción. Sevilha (fig. 16), Dol-men de Garrovillas (Garrovillas de Alconétar, Cáceres, Es-tremadura, Espanha).

Fig. 7 | Topo do Ídolo. Fig. 9 | Divisão longitudinal entre campo frontal e anterior

e figura masculina.

Fig. 10 | Pormenores da figura masculina no campo anterior.

Fig. 8 | Parte anterior e superior frontal.

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Fig. 15 | Lapa do Bugio. Fig. 16 | Valencia de la Concepción, Sevilha.

Ainda em Ídolos Cilindricos, como o Ídolo da Tholos S. Martinho de Sintra, o Ídolo cilíndrico oculado em Alabas-tro do terceiro milénio a.C. e proveniente do Guadalquivir num contexto funerário e de habitat, em osso como os de Valência e Alicante, entre 2700–2200 a.C. num contexto de habitat, e em cerâmica, nos pesos de tear de V. N. de S. Pe-dro, vaso cerâmico do Monte do Outeiro (fig. 17), em ce-râmica do Neolítico antigo de Valada do Mato no orante e figurinha antropomórfica, de Los Millares o motivo ocula-do e solar em suporte cerâmico e em outros exemplares de contexto espanhol.

Fig. 17 | Monte do Outeiro.

A representação de alguns quadros é bem indicativo não só da diversa tipologia de Ídolos, inclusive os oculados, bem como a sua distribuição no contexto Ibérico (fig. 18).

Fig. 18 | A Distribuição de Ídolos Oculados e Placas Ídolo entre 3000 a 2200 a.c. | Segundo Hurtado 1979.

as origens. que base mitológica para o ídolo solar de abrantes?Relativamente ao universo cardial e pós-cardial, a via in-ferior do Tejo parece-nos viável, fase não só a sítios como Vale Pincel I, Gruta do Caldeirão (camada Eb), datada dos finais do V milénio a.C. (Jorge 1990: 75–101), quer pelo fac-to de proximidade desta área com o litoral e ainda ao fac-tor relevante de inexpressiva ocorrência de cerâmicas de-coradas no concelho de Vila Velha de Rodão, denotando uma já fraca influência, por essa via e quase ausência nos conjuntos megalíticos. E isto é o que constatamos no ar-tigo sobre a Mamoa da Charneca Vinhas, relativamente a dois fragmentos cerâmicos decorados com canelura sim-ples abaixo do bordo, que reportam ao Neolítico Médio, e a dois outros fragmentos cerâmicos com decoração inci-sa, de cronologia do Calcolítico Pleno. Os próprios autores afirmam que as cerâmicas decoradas em contextos mega-líticos da região é excepcional, podendo ver-se nesta ocor-rência uma ligação estremenha, propiciada pelo rio Tejo, que corre próximo. Aliás no seguimento dessa afirmação constata-se posição similar de Raquel Vilaça (Caninas et alli, 2009: 1-47).

Embora dados recentes possam por em causa essa su-bida pelo curso inferior do Tejo a partir da costa atlântica, pelo facto de na Meseta espanhola se terem encontrado sí-tios do neolítico antigo (Caninas et alli, 2004: 19), não in-valida que tivéssemos assim duas áreas distintas de pene-tração do cardial.

No entanto, o povoado da Valada do Mato (Évora), que, embora se integre “numa segunda etapa do Neolítico anti-go… na transição do VI para o V milénio a.C.” (Diniz 2011: 255–259), pode bem denotar uma outra via, a do interior Alentejano. De igual modo, pode indicar o sítio do Neo-lítico antigo de Casas Novas (Coruche) (Gonçalves 2009: 5-30). Mas, a proveniência do primeiro solo de ocupação da Estrutura 2, do Monte Novo dos Albardeiros, de “um fragmento de Pecten maximus (…) bivalve de água salga-da implica contactos directos ou indirectos com o litoral” (Gonçalves e Sousa 2000: 18). O mesmo se pode aferir de

“um exemplar de concha de gastrópode perfurada, possivel-mente da família das naticidae”, proveniente do Alto Alen-tejo (Andrade 2009: 74). Estas ocorrências podem bem alterar a visão anterior, caso a neolitização do interior se ti-vesse efectuado a partir do litoral e ao longo dos cursos de água e não pelo interior de um território, do qual se desco-nheciam os recursos aquíferos e a qualidade dos solos. To-davia, temos de ter presente que se deve colocar a possibili-dade de a neolitização das regiões do Alentejo poder ter-se processado a partir de influências neolíticas, chegadas atra-vés do Guadiana e com origem na Estremadura e na An-daluzia ocidental, como defendeu Mariana Diniz (Figuei-redo 2006: 104).

Não sendo de desconsiderar as vias do curso superior do Tejo e do interior alentejano, o facto é que a área abran-tina se encontra mais na linha directa de influência do car-dial do Caldeirão, por questões de proximidade. No entan-to para o período directamente relacionado com o Ídolo Oculado/Solar a dinâmica de expansão de comunidades, grupos ou de ideias, poderia bem ter sido pelo interior alentejano, e na linha directa do corredor megalítico Mon-temor — Évora — Reguengos — Crato — Nisa e daí para a Beira Baixa (fig. 19).

Fig. 19 | O Megalitismo Português e a área abrantina em causa | Mapa extraído de Jorge 1990: 103.

Pesos de tear rectangulares, ídolos de cornos, cerâmi-cas carenadas e bordo espessado, associado a Languedo-cense ocorrem em Reguengos de Monsaraz bem como no Alto Alentejo (Alter do Chão), pesos de tear e fragmento de Ídolo de Cornos. Também da Câmara de Pessilgais 2, pro-vém uma placa de xisto, com figuração oculada (Gonçal-ves e Sousa 2000: 18). De Alter do Chão, o corredor mega-lítico prosseguiria para Norte em direcção à arte rupestre do Vale do Tejo, inflectindo em dado momento para Oes-te uma derivação para as Antas de Belver e de Mação, no-tório na Anta do Cabeço das Pendentes, onde foi recolhida

“uma placa-ídolo com dois orifícios que representam olhos” (Matos 1946: 18). Esta área marginal que poderia prosseguir para a área Abrantina de povoamento, funerária, ritual e de arte rupestre de S. Facundo, Abrantes, Martinchel e Aldeia do Mato, Fontes e mesmo Val da Laje (Tomar), não deixa de ser pertinente, embora envolvam questões de especifi-cidade própria de algumas de suas arquiteturas, bem como particularismo de alguns dos seus enterramentos. De fac-to, já (Gonçalves 2004: 181), ao referir-se às placas de grés antropomórficas, afirma que representam exactamente o mesmo que as placas de xisto gravadas, traduzindo a exis-tência de um Corredor de circulação de produtos intercam-biáveis (e, naturalmente, de ideias a eles associadas) entre o Alto Alentejo e as Penínsulas de Lisboa e Setúbal (passan-do pela área-nó de Montemor).

Esta nossa reflexão sobre possíveis vias de expansão ou de contactos de ideias, de trocas comerciais, de reforço de

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laços de parentesco, quer para o Neolítico, quer para o Cal-colítico, apenas objectiva focalizarmos que estamos peran-te uma faixa de território, exposta a múltiplas influências. Mas também parece estarmos num território com deter-minadas concepções próprias locais, visíveis ao nível da di-ferenciação da construção megalítica, particularmente a funerária. Será essa expressão fruto de uma condicionan-te local de matéria-prima ou toda essa diferenciação faria parte de uma adaptação (mas simultaneamente evolutiva), e/ou de um universo conceptual próprio das comunida-des aqui existentes envolvidas na sua construção, não to-talmente alheias a influências, arquitetónicas e ideológicas externas, mas imprimindo nelas um cunho pessoal, não propriamente limitado, mas conservador? Não sendo estes parâmetros de comportamento mental (conceptual) e físi-co (arquitetónico), totalmente claros, o facto é que este ído-lo, embora de concepção simples, permite uma leitura, que, ao invés de esclarecer, parece agravar.

o motivo solar no contexto ibérico e no mediterrâneo orientalPerante o atrás exposto o que pretendemos visualizar foi uma origem para a temática que o ídolo de Alvega encer-ra. Buscámos encontrá-lo no contexto Ibérico, mas a géne-se para o seu conteúdo parece ter origem no Mediterrâneo Oriental (fig. 20), mais precisamente na antiga Suméria. É óbvio que já encontramos uma Deusa Mãe, no Paleolíti-co e poderia estar ainda alicerçada nas populações locais, oriunda assim por tradição ou transmissão oral. Mas, veja-mos a nossa interpretação.

Fig. 20 | Ídolos Oculados no Mediterrâneo Neolítico iv–iii a.c.

A nossa opinião é que estamos perante uma dupla di-vindade, senão trina. A representação principal é a Deusa Mãe da Terra, representado a personagem feminina se-guindo-se talvez camuflado no cabelo o Jovem Deus Du-muzi. Perante esta leitura, vemos aqui implícito e na sua base a Mitologia Suméria.

Este fator remete-nos para algumas questões:1 A da sua origem;2 A da sua expansão;3 O processo que está na base dessa expansão.

A mitologia de uma Deusa Mãe da Terra (Inanna), in-dicia ser originária da Suméria, dada a “sua presença” no Neolítico antigo de Valada do Mato (primeira metade do V milénio). Assim, ao “pacote Neolítico” também estão as-sociados elementos mitológicos inerentes a essas popula-ções ou grupos.

Ou esse carácter mitológico se deve apenas a trocas de ideias, tal como de produtos do restante “pacote Neolíti-co”, e não de deslocações físicas de populações originárias do Médio Oriente? Será que na sua base de criação e pro-veniência, esteja apenas o Sul de Espanha? Todavia faltam no contexto Ibérico ídolos similares ao de Alvega para que possamos ver neles uma área de influência ou expansão. Poderemos estar perante apenas uma concepção local, mas persiste o problema interpretativo do conteúdo, se for co-mo a nossa leitura indicia a sua origem continua a ser a Me-sopotâmia-Suméria.

Para Victor Gonçalves os “olhos de Sol” / “Deusa Mãe”, revelam “caminhos e redes de troca (…) visíveis com extre-ma nitidez no caso das placas com Olhos de Sol de Huel-va, Mértola, Mourão, Cabacinhitos (Évora) e Chelas (Lis-boa)” (Gonçalves 2004: 49–72). Mas o facto é que também ocorrem nas placas ídolo de Évora, Reguengos e Montemor bem como no menir 17 do cromeleque da Portela de Mogos (Évora) (Gonçalves 2004: 49–72) bem como no dólmen co-nhecido por Arquinha da Moura (Tondela).

Do Castro de Vila Nova de S. Pedro existe a referência a uma “figura feminina, peça prismática de barro alargada

na base; na metade inferior frontal apresenta um triângu-lo preenchido com pontos que deve ser o triângulo púbico da mulher” e uma outra “figura feminina, de barro que só tem a parte superior onde se notam os braços, os seios e a cabeça e uma figura antropomórfica, em osso, parece uma figura masculina onde se nota as pernas, os braços, o tron-co e a cabeça proeminente”. São ali referidos como da Ida-de do Bronze, a partir de 1300 a.C. e considerados como ob-jetos de carácter artístico (Gonçalves, V. 1984).

Ainda do Povoado de S. Pedro (Alentejo) provêm frag-mento de “ídolo de cornos” com provável motivo solar, efe-tuado a incisões finas paralelas. Do mesmo local um frag-mento de fundo em cerâmica de taça ou prato apresenta um motivo solar (Gonçalves e Sousa 2005).

Pese embora as ocorrências no território português, o facto é que o Ídolo de Alvega pode oferecer ainda outras leituras:

1 Para além da clara representação da Deusa Mãe da Ter-ra (Inanna) e provavelmente o Jovem Deus Dumuzi, ca-muflado no seu cabelo, será que os olhos de Sol não representarão uma outra personagem e como tal uma tríade de Deuses?

2 Colocando essa hipótese, poderão os olhos de Sol re-presentar uma só divindade, como Utu, Deus do Sol da Mitologia Suméria? É que na mitologia Suméria, “Utu emergia de uma montanha no leste, simbolizando a au-rora, e viajava ou de carruagem ou de bote através da Terra, retornando a um buraco em uma montanha ao oeste, simbolizando o por do sol. Toda noite, Utu des-cia ao submundo para decidir o destino dos mortos”. É também representado carregando uma clava, ereto com um dos pés sobre

3 A representação do triângulo púbico é uma mera cono-tação com o feminino e com a Deusa Inanna, ou poderá encerrar uma conotação com o Triângulo Sagrado ori-ginário da Suméria?

4 A própria representação púbica triangular invertida com duas linhas incisas paralelas no interior, terá algu-ma analogia com a representação das pirâmides no caso presente a escalonada de Djeser (Egipto)? Neste caso

não nos parece existir semelhante analogia. Basta reter o olhar nas figura femininas do Badariense e do Vale do Nilo para ver as suas diversas decorações. De qualquer modo o triângulo já fazia parte das placas ídolo, antes mesmo da representação solar. Por outro, é bem notó-ria essa representação geométrica nos Ídolos chatos dos Perdigões, pese embora a sua conotação com o Bada-riense (Egipto).

O facto é que também deveremos considerar a hipóte-se de estarmos perante “a presença de casais genesíacos, re-presentar casamentos sagrados (hierogamias) ou gémeos primordiais e protectores. A iconografia do par divino é conhecida no Neolítico e no Calcolítico do Leste Europeu, da Anatólia, como do Próximo Oriente, encontrando- se figurada em terracotas, pedra, na ourivesaria ou através de pinturas e de gravuras rupestres. (…) Simetrias culturais e lógico-formais, tal como influxos socioculturais e ideoló-gicos, terão sido responsáveis pela difusão daquela temáti-ca por todo o Mediterrâneo, alcançando a Península Ibéri-ca” (Gomes 2004: 124).

Katina Lillios (2002 e 2008), por outro lado, vem con-trariar a valorização mágico-religiosa e simbólica dos ído-los-placa sendo negadas e substituídas por um carácter he-ráldico e genealógico. Todavia Manuel Calado aborda esta questão dos motivos das placas, contrariando assim o au-tor anterior. Também nós apostamos mais na tese de Ma-nuel Calado.

conclusãoEmbora não sendo totalmente clara, particularmente no que refere a segunda figura oculta no cabelo da deusa, para nós o que ali se encontra representado poderá ter outra lei-tura ou hipótese de leitura ou interpretação. Estaremos as-sim perante Deusa ou Deuses ou a antítese entre o dia (fe-minino/sol) e a noite (no oposto masculino?). Sacerdotiza, sacerdote ou Xamãs? Vida, crescimento e morte? A antíte-se entre a vida e a morte? A dualidade Humana — o sol e as trevas? Os dois guardiães do dia e da noite? Uma só per-sonagem dualista? As duas faces proteccionistas do dia e da

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noite? Ou será que não poderá estar ali representado a dua-lidade de dois Deuses?

Um instrumento de veneração, protecção, ritual, de afirmação de poder, de dons, de um eleito pelos deuses? O feiticeiro da tribo? O representante dos deuses? O inter-locutor entre os deuses e a tribo/comunidade? A morte e a quebra do instrumento de poder, resultado de um símbolo pessoal intransmissível?

O que efectivamente poderá ali estar representado?Istar, a deusa do princípio feminino da natureza, Utu,

o deus do sol, que gerava o calor, luz em benefício do ho-mem, mas também podia mandar seus raios abrasadores para secar o solo e as plantas? Inanna a deusa do amor, do erotismo, da fecundidade e da fertilidade e o jovem Dumu-zi? É que Inanna apaixonado pelo jovem Dumuzi, tendo es-te morrido, desceu aos Infernos para o resgatar dos mortos, para que pudesse dar vida à humanidade, agora transfor-mado em deus da agricultura e da vegetação. Aliado à Deu-sa Mãe Solar, será que não poderá ali estar também implí-cito o Deus do Céu An ou Anu? Ou será que temos aqui apenas patente o que poderia simbolizar uma relação fami-liar das quais se podem inferir cerimónias ou rituais hiero-gâmicos?

Quanto a nós certo é que o Ídolo Solar de Alvega repre-senta, bem explícito, a Deusa Mãe da Terra. Quanto ao se-gundo elemento associado tudo terá de ficar em aberto, pois as hipóteses de um Deus Dumuzi ou de um Deus do Céu An ou Anu são também probabilidades, como a Deusa do Ídolo possa ser Istar e o Sol representar o Deus Utu. O facto é que também não podemos descartar a hipótese de que na mi-tologia poderemos até ter todos estes elementos associados.

O facto de dispor de uma outra personagem encober-ta pelo seu longo cabelo, denota uma outra divindade, que nos pode remeter para uma dupla de Deuses, talvez Inanna e Dumuzi numa clara associação entre fecundidade, fertili-dade, renovação, agricultura e vegetação, tão importante à sobrevivência das populações Neo-Calcolíticas.

A simplicidade deste Ídolo denota um fabrico local ar-tesanal. Essa simplicidade contrasta com o saber do seu executante. Não é o suporte que está na base conceptual

(embora ele detenha pormenores importantes), ali o que interessa é a sua expressiva representação. Essa é a sua men-sagem fulcral. O suporte é indiferente para a Deusa. E is-so é preciso saber de antemão. Quem quisesse continuar a deter o poder teria de contornar essa nuance, fazendo crer que o suporte não era o mais importante, mas o território e que este Ídolo de origem da matéria local detém os mes-mos poderes ou mais que os outros de osso ou mármore obtidos por aquisição.

Claro é que o autor deste artefacto sabia bem da mitolo-gia ao associar dois deuses num só artefacto. A questão úl-tima a colocar é como chegou a Alvega essa mitologia ou o fazedor do objecto a conhecia na íntegra?

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resumoO estudo do castelo de Abrantes durante a Idade Moder-na tem sido dominado por trabalhos que privilegiam uma abordagem exclusivamente militar, embora a diversida-de de estruturas existentes no castelo sugira uma história mais complexa. Neste artigo, pretende-se explorar a pos-sibilidade de o castelo ter tido diferentes significados para os agentes humanos que viveram e interagiram com este castelo durante a Idade Moderna. Palavras-chave: castelo: imagem; senhorio; memória; mi-litar.

abstractThe study of the castle of Abrantes during the Modern Era has been dominated by studies that focused exclusivelly on militar issues, although the diversity of structures within the castle suggest a more complex history. In this article, it is in-tended to explore the possibility that the castle had diferente meanings for the human agentes that lived and interacted with the castle during the Modern Era. Keywords: castle; image; lordship; memory; military.

o castelo de abrantes durante a idade moderna. Gustavo Portocarrero cieba – faculdade de belas-artes da universidade de lisboa

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Fig. 2 | Mapa de Abrantes de 1817 | O círculo a vermelho indica a caserna e o local da chamada “Porta da Traição”. | SIDCARTA 35-1-1-1

o castelo-palácio dos almeidasCom a formação da dinastia de Avis em 1385, Fernão Álva-res de Almeida, um membro da pequena nobreza e um dos fiéis do novo rei, foi recompensado com a vedoria da fazen-da real, a participação no Conselho Real, bem como vários bens e privilégios, sobretudo em Abrantes e no seu termo (Almeida 2010: 14). O seu filho e sucessor, D. Diogo de Al-meida (pelo menos a partir de 1429), não só viu confirma-das todas estas mercês como ainda obteve no reinado de D. Duarte a alcaidaria do castelo de Abrantes, o senho-rio do Sardoal (que naquela altura fazia parte do termo de Abrantes) e ainda outros bens no termo de Abrantes e nou-tros lugares no Médio Tejo (ibid.: 16). Por último o seu su-cessor, D. Lopo de Almeida (pelo menos a partir de 1453), obteve o senhorio de Abrantes em 1471, seguido do título de Conde de Abrantes em 1476 e a concessão do senhorio do castelo (ibid.: 48, 59, 61). Nota-se assim, não só uma cla-ra progressão social dos Almeidas, mas também uma cla-ra estratégia desta família de consolidação patrimonial em Abrantes.

De acordo com Manuel Morato, foi na sequência da no-meação de D. Diogo de Almeida para alcaide que se iniciou a construção do palácio dos Almeidas em 1432–33 (2002 [1860]: 167, nota xxxix), embora não indique em que fonte

se baseou. De qualquer modo, existem elementos arquitec-tónicos que indiciam que as obras da construção do palácio se iniciaram ainda no século xv — concretamente, uma porta de perfil gótico (fig. 3) —, as quais se prolongaram até ao início do século xvi — concretamente, uma janela de chanfro de verga recta (fig. 4).

Fig. 3 | Porta de perfil gótico no interior do palácio dos Almeidas.O lintel é posterior.

introduçãoDe origem medieval, o castelo de Abrantes atravessou a Idade Moderna, tendo conhecido neste período uma sé-rie de transformações mas também de continuidades. Ain-da hoje é possível ver estruturas medievais como a igreja quatrocentista de Santa Maria do Castelo (com uma ori-gem que remonta pelo menos a 1215), os restos da torre de menagem dionisina e ainda alguns troços de muralha e di-versos torreões semi-circulares tardo-medievais. Da Idade Moderna, os vestígios que chamam mais a atenção são os restos do palácio dos Almeidas e os baluartes. Tudo isto sem esquecer, a intervenção mais recente — da dgemn em 1969–71 —, a qual, à semelhança do que se passou nou-tros castelos, também levou a cabo importantes destruições de elementos pós-medievais (que só sobrevivem em docu-mentos e imagens antigos) de modo a transmitir uma “pris-tina” imagem medieval do castelo. Como se pode ver, toda esta multiplicidade de estruturas e intervenções, indica que se está perante um espaço com uma história complexa.

De que forma é analisada toda esta complexidade? Olhemos para os estudos mais relevantes até agora efec-

tuados sobre a história do castelo durante a Idade Moderna, da autoria de Manuel Morato (2002 [1860]: 162–164, 170–171, 175–192), e de Eduardo Campos (2002a: 14–17). Em am-bos os estudos é visível uma visão linear e evolutiva que pri-vilegia o papel militar do castelo. O castelo tem origem nas guerras da Reconquista Cristã e mantém inalterado o pa-pel militar ao longo da Idade Moderna, sendo adaptado ao sistema abaluartado de fortificações de modo a poder resis-tir à artilharia moderna. No entanto, sem pretender negar a ocorrência de uma história militar no castelo de Abran-tes durante a Idade Moderna, parece-me que a exclusivi-dade de tal papel choca com a complexidade de diversos elementos observáveis no castelo. Por que é que várias es-truturas medievais sobreviveram até aos nossos dias? Por que é que foi implantado o palácio dos Almeidas no caste-lo e por que razão for reformulado no século xviii? A ver-dade é que o castelo fazia parte da vivência das populações da Idade Moderna, sendo a multiplicidade de estruturas visíveis (e de outras, entretanto, desaparecidas), o resulta-

do de diferentes formas de viver o espaço que é necessário compreender melhor. Arrumar toda esta complexidade em sequências cronológicas de eventos ou em grupos estilísti-cos, como tem sido feito, impede a percepção de algo fun-damental: a de que estas estruturas coexistiram no castelo, sendo que a análise das relações que se estabeleceram entre elas e dos agentes humanos envolvidos, permite compreen-der melhor que significados o castelo assumiu ao longo da Idade Moderna.

Nas linhas que se seguem, pretende-se então levar a cabo uma análise mais complexa, procurando introduzir aspectos como memória e imagem dos agentes humanos envolvidos, bem como definir melhor o seu papel militar ao longo deste período. As principais fontes utilizadas são duas das mais antigas plantas de Abrantes datadas de 1731 (fig. 1) e 1817 (fig. 2), fotografias antigas do castelo de Abran-tes depositadas no Arquivo Histórico de Abrantes, as es-truturas actualmente visíveis, documentação e estudos já realizados e, por último, os primeiros resultados de uma es-cavação arqueológica em curso no castelo de Abrantes sob a direcção do signatário deste artigo no âmbito do pnta castab, que tem por objectivo identificar vestígios arqueo-lógicos que ajudem a perceber melhor a evolução da ocupa-ção humana do morro do castelo de Abrantes.

Fig. 1 | Mapa de Abrantes de 1731As linhas vermelhas indicam as três fachadas do palácio dos Almeidas.

O círculo a vermelho indica os 3 paióis em redor da torre de menagem. | SIDCARTA 59-1-1-1

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Fig. 6 | Cunhal entre as fachadas da porta e a fachada intermédia. A janela de chanfro quinhentista é a primeira do lado direito.

Fig. 7 | Igreja de Santa Maria do CasteloNote-se o cunhal e o material dos vãos.

Note-se ainda que os muros que encostam a este cunhal estão perfeitamente articulados com ele, o que indica uma simultaneidade de construção, sendo que se trata, na rea-

lidade, das paredes do palácio dos Almeidas1; a janela de chanfro de verga recta atrás referida que se pode ver numa destas paredes (na fachada intermédia), permite datá-los do início do século xvi. Como se pode ver, ocorre nesta altura uma junção entre o palácio e o castelo, havendo uma continuidade entre ambos. Aliás, pode supor-se que as pa-redes do palácio seriam coroadas de ameias à semelhança do que acontecia com as casas nobres até meados do séc. xvi (Vieira da Silva 2002), pelo que tal reforçaria a ligação com o castelo, dado que as suas muralhas seriam também coroadas por ameias (actualmente inexistentes). O castelo de Abrantes transformou-se, assim, no castelo-palácio dos Almeidas, adquirindo, como tal, uma nova identidade. Os Almeidas, com estas alterações procuraram consolidar a sua posse sobre o castelo e, à semelhança de outras famílias nobres em ascensão que levaram a cabo obras semelhantes (como por exemplo os condes da Feira, os barões de Alvito), aceder “à imagem militar que engrandecia e definia exem-plarmente a nobreza” (ibid.: 180).

Os Almeidas procuraram reforçar o prestígio do seu pa-lácio recorrendo a uma outra estrutura: a torre. Para a no-breza da época, para além do castelo, a torre também cons-tituía um símbolo de poder militar e de senhorio (ibid.: 63, 54), pelo que não surpreende ver que os Almeidas incorpo-raram na estrutura do seu palácio a torre do castelo que fica entre a fachada virada à vila e a fachada intermédia, tendo nela aberto duas janelas, sendo numa delas ainda visíveis os restos de uma ombreira com chanfro (fig. 8).

Também houve cuidado em fazer os vãos do castelo com materiais caros, nomeadamente xisto micácio e calcário moliano (pode igualmente ver-se estes materiais nos vãos da igreja de Santa Maria do Castelo reconstruída por D. Dio-go de Almeida em meados do séc. xv). O primeiro é visível nas duas janelas atrás referidas, o segundo na porta gótica e numa fileira de pedras na base da parede da fachada onde se encontra a porta de acesso ao castelo (fig. 9); é possível que a porta da entrada (substituída no séc. xviii pela que é actualmente visível), também utilizasse este material e que ele também se encontrasse na base das restantes fachadas (actualmente cobertas por obras dos séculos xviii e xix).

Fig. 4 | Janela de chanfro do início do século XVI na fachada intermédia As janelas rectangulares por cima são do século XVIII.

É conhecida a zona onde inicialmente se implantou o palácio — na zona norte do actual perímetro do castelo — como se pode ver nas imagens mais antigas de Abrantes datáveis de 1731 e 1817 (figs. 1 e 2), tendo três fachadas: uma virada à vila, outra no lado oposto (onde se situa a porta de entrada no castelo) e uma fachada intermédia que une as duas primeiras. O palácio foi profundamente modifica-do por obras levadas a cabo pelo 1.º Marquês de Abrantes, D. Rodrigo Almeida e Meneses entre 1718 e 1733 (Morato 2002 [1860]: 167), sendo que o aspecto com que o palácio então ficou pode ser visto em fotografias antigas (fig. 5), es-tando praticamente por fazer uma análise de como seria o palácio inicialmente. No entanto, apesar destas modifica-ções, alguns dos vestígios do palácio quatrocentista podem ser identificados (como a porta e a janela atrás menciona-

dos) mediante uma cuidadosa observação e que permitem perceber melhor as intenções dos Almeidas com a sua construção.

Fig. 5 | Entrada do palácio dos Almeidas Arquivo Histórico de Abrantes

Para começar, é importante notar que o palácio não aproveitou as muralhas pré-existentes para servirem de paredes. A janela atrás mencionada que se encontra na fa-chada intermédia está perfeitamente integrada no aparelho envolvente, o que indica uma contemporaneidade de cons-trução. O contraste é, aliás, óbvio com as restantes janelas de calcário, que resultaram das obras do século xviii, sen-do claramente visível que foram feitas aberturas nas pare-des para elas serem colocadas.

Além disso, o cunhal existente entre esta fachada e a fachada da porta de entrada (fig. 6) aproxima-o mais dos cunhais encontrados em edifícios, como se pode ver nos cunhais da igreja de Santa Maria (fig. 7), não se identifi-cando nada semelhante no restante perímetro amuralhado, que apresenta uma forma curvilínea.

1 Quanto às muralhas medievais do castelo que existiriam nesta zona, foram decerto desmontadas aquando da construção do palácio.

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Por último, acrescente-se que toda esta política de pres-tígio foi reforçada com as mudanças operadas na igreja de Santa Maria do Castelo por D. Diogo de Almeida em meados do séc. xv, a qual foi transformada em panteão dos Almeidas, levando assim a cabo uma sacralização da linhagem, imitando desta maneira algo que começara a generalizar-se entre as famílias nobres a partir do século xiii (vd. Oliveira 2007: 3, 4).

castelo e memóriaO ramo principal dos Almeidas extinguiu-se em 1633 sem herdeiros directos. Em 1645, o rei D. João iv concedeu o condado de Abrantes a um parente dos Almeidas, D. Mi-guel de Almeida. Conhece-se um conjunto de 3 cartas da Câmara de Abrantes a opor-se a essa decisão e a pedir ao rei para que a vila fosse senhorio do rei e não do conde, algo que constitui uma clara prova da oposição local aos condes (Campos 2002b: 259–264). No entanto, a vontade do rei acabou por prevalecer e o rei escreveu uma carta à Câmara ordenando que fossem entregues as chaves do castelo ao conde (ibid.). Este pormenor sobre as chaves do castelo é bastante interessante porque mostra que em meados do século xvii, persistia a memória dos castelos serem vistos como símbolo da autoridade senhorial sobre a vila, algo que, aliás, permite compreender porque é que aquando da construção de uma muralha abaluartada no início do século xviii em redor de Abrantes, o castelo não foi destruído (fig. 1). O castelo manteve, assim, ao longo da Idade Moderna o seu simbolismo de senhorio, pelo que, a sua posse legitimava a autoridade daqueles que detinham o senhorio de Abrantes.

Este memorial de autoridade do castelo, é particular-mente visível quando em 1718 o rei D. João v criou o título de Marquês de Abrantes e concedeu-o a D. Rodrigo Almei-da e Meneses, também ele aparentado com os Almeidas. O senhorio da vila, após a morte do anterior conde, tinha voltado para o rei (tal como desejava a população local), também por ausência de herdeiros directos, e agora ele era de novo entregue a um nobre. O Marquês teve o cuidado de se instalar no palácio dos Almeidas de modo a legitimar-

-se através da sua ligação aos velhos senhores de Abrantes, tendo inclusive tido o cuidado de se fazer enterrar no velho panteão dos Almeidas, na igreja de Santa Maria do Castelo. O Marquês levou ainda a cabo uma profunda remodela-ção do edificado. Embora, boa parte deste palácio tenha sido destruído aquando das Invasões Napoleónicas e pela dgemn, pode notar-se em fotografias antigas (fig. 3) que se-guia as convenções arquitectónicas da época, as quais eram dominadas pelo estilo clássico. Tendo em conta que na so-ciedade senhorial, o aspecto exterior da casa constitui um símbolo da posição, importância e hierarquia da família nobre na sociedade (Elias 1986: 31), a que se devem então estas mudanças? Até ao século xv, o nobre é um guerreiro em estado puro (Saraiva 2007: 17–20); não admira assim encontrarmos uma estrutura como o palácio-castelo dos Almeidas que reflecte uma imagem militar. No entanto, a partir de finais do século xv, é na corte que se começam a elaborar os valores da nobreza, onde para além dos valo-res tradicionais, também passam a ser importantes outros como a civilidade e as humanidades de raiz clássica (ibid.: 121, 122). Ora é exactamente no seio da corte que se inicia a divulgação dos primeiros tratados de arquitectura clássica a partir da década de 1540, tendo, aliás, o rei D. João iii tido um papel importante nesse processo (Moreira 1995: 350, 351). Assiste-se a partir de então à adopção deste estilo arquitectónico pela alta nobreza cortesã, sendo de destacar as Quintas da Bacalhoa e das Torres em Azeitão, o Paço da Ribeira em Lisboa, o Palácio dos Duques de Bragança em Vila Viçosa, o Palácio dos Duques de Aveiro também em Azeitão, acabando este estilo por se vulgarizar a partir do século xviii (Azevedo 1988). A arquitectura clássica pas-sa então a simbolizar a alta nobreza portuguesa, acabando este estilo por ser gradualmente emulado por outros gru-pos sociais3. Ora, o novo Marquês de Abrantes ao recons-truir o palácio dos Almeidas segundo o estilo clássico es-tava não só a fazê-lo de acordo com a sua auto-imagem de cortesão da alta nobreza, mas também (e talvez sobretudo) para transmitir à população de Abrantes uma imagem de si próprio diferente daquela com que até então eram vistos os ocupantes do castelo: uma imagem mais civil e corte-

Fig. 8 | Vista da fachada virada à vila e da fachada intermédia do casteloEntre ambas situa-se a torre que foi incorporada no palácio.

Ao longo da fachada virada à vila encontra-se a arcada manda construir pelo Marquês de Abrantes no século XVIII. Em primeiro plano, um dos dois

baluartes setecentistas que foram construídos junto ao castelo.

Fig. 9 | Fila de pedras de calcário na base da fachada da porta de entrada

Passemos agora para a análise do enquadramento pai-sagístico do palácio dos Almeidas. É notório que houve um cuidado da parte dos Almeidas em chamar a atenção com o seu novo palácio, o qual estava encostado à vila de Abran-tes, mais precisamente em frente da igreja de S. Vicente, a principal igreja paroquial de Abrantes, e da rua que ligava

a vila ao castelo (fig. 10). Além disso, tanto o xisto micácio, como o calcário moliano atrás referidos são pedras bastan-te brilhantes, pelo que sua presença atraía também a aten-ção sobre o palácio. Finalmente, note-se que o cuidado em colocar a porta de acesso ao palácio (e, consequentemente, do castelo) a meio da fachada do lado oposto ao da vila (a anterior porta medieval deveria ficar na fachada em fren-te à vila, tendo sido decerto tapada), levava a que quem quer que se dirigisse ao interior do castelo teria que passar sucessivamente pelas três fachadas do palácio até chegar à entrada, algo que fazia este parecer ainda maior do que era, prolongando ao máximo o seu impacto visual.

Sabe-se que havia invejas na corte face ao favorecimen-to dos reis portugueses para com os Almeidas (Almeida 2010: 18). Como tal, percebe-se melhor o forte investimen-to que houve da parte dos Almeidas nas obras do castelo-

-palácio, que o aproximavam da frente urbana onde o rei e nobres em visita2, bem como a população local (decerto insatisfeita por o senhorio da vila pertencer a um nobre, como se verá na secção seguinte), poderiam vê-lo e sentir toda a retórica que lhe era imanente.

Fig. 10 | Igreja de São Vicente e rua de acesso ao castelo vistos da torre do palácio

2 Até ao início do séc. XVI, Abrantes foi visitada por D. Duarte, o Regente D. Pedro, D. João II (tendo aqui nascido D. Jorge, filho bastardo deste rei) e ainda D. Manuel (tendo aqui nascido dois dos seus filhos, além de ter construído um palácio na vila) (Morato 2002 [1860]: 74, 75, 79–81).

3 Note-se, no entanto, que, conforme as circunstâncias, podia haver também outras motivações para a adopção da arquitectura clássica. Por exemplo: não deixa de ser interessante notar que a adopção pela Coroa portuguesa da arquitectura clássica em meados do século XVI coincide com o apogeu do império português, pelo que se pode também ver aqui uma forma de emolução do imperialismo romano.

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dgemn) ao longo das muralhas viradas à vila (fig. 11) para os restantes soldados (ibid.: 176–178). Já sem a presença dos marqueses, o castelo seria ainda mais alterado a partir de 1809, quando ocorreram importantes obras de fortificação (Campos 2002a: 16, 17). A sua importância como depósito de abastecimentos militares aumentou com a construção de mais um paiol junto à torre de menagem (demolido no século XX) e de uma caserna, também com munições, jun-to à chamada “Porta da Traição” e cujas ruínas são ainda visíveis (SIDCARTA 149 I–1–1–1, 149 II–1–1–1) (figs. 2 e 12). As velhas muralhas medievais nos lados virados à vila e ao rio são adaptadas a cortinas escarpadas (fig. 13), tendo sido instaladas várias canhoneiras nos seus parapeitos e o terre-no no interior do castelo foi terraplanado de modo a servir simultaneamente, de reforço das muralhas contra ataques de artilharia, assentamento das peças de artilharia e praça-

-de-armas. Foi ainda colocado um alambor na base das da maior parte das restantes muralhas. É possível que esta pro-funda remodelação se relacione com o facto de as muralhas em redor de Abrantes não estarem concluídas, pelo que, o castelo, devido ao seu importante papel como depósito de abastecimentos militares, tenha sido reforçado nos lados onde era mais provável um ataque inimigo.

Com a Revolução Liberal de 1820 e o fim dos senhorios, o castelo transforma-se na sua totalidade num espaço mili-tar, mantendo-se aí um quartel até ser transferido para Vale de Roubam, onde o novo quartel foi criado de raiz, já em meados do século XX.

Fig. 11 | Fotografia do quartel construído para a Legião Portuguesa em 1798Arquivo Histórico de Abrantes

Fig. 12 | Caserna do início do século XIX

Fig. 13 | Cortina escarpada com canhoneiras nos parapeitos do início do século XIX

sã e menos dura e militar; algo decerto reforçado, com a abertura de grande quantidade de janelas nas paredes do palácio, ajudando assim a passar uma ideia de abertura, de ligação com o exterior. Com estas obras, o Marquês procu-rou então aliar a memória do espaço com uma imagem de si próprio que esperava que facilitasse a aceitação do seu senhorio a nível local. De qualquer forma, para não deixar dúvidas nos mais renitentes que estava ali para ficar, man-dou construir por debaixo da fachada virada para Abrantes, uma gigantesca arcada ainda hoje visível, que se destinava não só a impressionar pela escala, conferindo assim pres-tígio ao Marquês, mas também a mostrar de uma forma simbólica quão fortes eram as fundações da sua casa.

o castelo militarMas o castelo não perdeu por completo o seu papel militar. Se, até meados do séc. xvii, devido a um longo período de paz fronteiriça, este papel praticamente se eclipsou, sendo mais evidentes os aspectos atrás referidos, a partir da Guer-ra da Restauração (1640–1668), o papel militar do castelo começou gradualmente a tornar-se mais importante. Há nesta altura notícias de reparações nas muralhas do caste-lo (Campos 2002a: 15), mas vai ser no início do séc. xviii, aquando da Guerra da Sucessão de Espanha, que irão ocor-rer importantes alterações, quando Abrantes foi declarado como chave da província da Estremadura, tendo sido ini-ciada a construção de um recinto abaluartado em redor da vila (que nunca chegou a ser concluído), tendo sido encostados dois baluartes ao castelo (Morato 2002 [1860]: 162–164), sendo essas obras visíveis no mapa de Abrantes de 1731 (fig. 1). No entanto, note-se que nunca chegou a ser construída uma praça-forte abaluartada em redor do castelo; o engenheiro responsável pelo mapa de 1731 (fig. 1) ainda sugeriu um projecto dessa natureza desenhando-o a linha azul, mas tal não chegou a ser executado. Mesmo os dois baluartes construídos não foram tanto feitos numa ló-gica de modernização do castelo, mas sim para interceptar com artilharia um ataque inimigo quer pela entrada em Abrantes junto à igreja de Santiago, quer pela Rua da Barca que ligava Abrantes ao rio Tejo, como se pode inferir atra-

vés de uma cuidadosa análise da sua implantação espacial. Mesmo assim, ocorreram algumas intrusões militares no interior do castelo, mais precisamente na sua metade sul, junto à torre de menagem medieval (ou seja, no lado mais afastado do palácio), através da construção de 3 paióis sub-terrâneos (por razões de segurança) (fig. 1), que ainda hoje aí permanecem, e da abertura de uma porta na muralha4 (como se pode ver pelo seu “estilo chão”, além de escavações arqueológicas em curso no âmbito do pnta castab terem revelado que o seu alicerce era coberto por material dessa época) de modo a facilitar um municiamento mais rápido dos baluartes exteriores.

De qualquer forma, apesar destas alterações, dificilmen-te se pode falar em modernização da fortificação, quando simultaneamente ocorre a reconstrução do palácio dos Al-meidas (que ocupa uma parte significativa do perímetro do castelo), sendo inexistentes as defesas junto à sua entrada (a torre que aí se situa foi integrada no palácio), algo que cer-tamente enfraquecia a defesa do castelo em caso de ataque. Passou a caber ao perímetro abaluartado que estava a ser construído em torno de Abrantes, o principal papel militar; o castelo perdeu autonomia do ponto de vista militar, pas-sando a estar integrado numa estrutura mais alargada que abrangia toda a vila, através dos dois baluartes que lhe es-tavam encostados e servindo como depósito de munições. O castelo permaneceu, no fundo, inalterado, e, apesar do reforço que se verifica do seu papel militar, continuará a de-sempenhar simultaneamente um importante papel como memorial de autoridade senhorial.

Mas será a partir de finais do século xviii que o papel militar do castelo, até então em equilíbrio com outros pa-péis, se tornará dominante. Foi em 1798 que o governo de-cidiu instalar em Abrantes 3500 soldados da Legião Portu-guesa, tendo a Câmara deliberado que parte dos moradores deveria disponibilizar as suas casas para tal (Morato 2002 [1860]: 175, 176). A reacção da população contra tal decisão foi rápida e a Câmara optou então por instalar os militares no castelo, tendo pedido ao Marquês de Abrantes (e este acedido) que disponibilizasse o seu palácio para acomodar parte da tropa, tendo construído um quartel (demolido pela

4 Actualmente conhecido pela incorrecta designação de “Porta da Traição”.

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conclusãoNeste artigo, foram identificados três diferentes significa-dos que o castelo assumiu durante a Idade Moderna:

1 Foi adaptado a residência senhorial nos séculos XV e XVI de uma dinastia em ascensão — os Almeidas — que procuraram, com a posse do castelo, transmitir uma imagem militar que engrandecia e definia exemplar-mente a sua nobreza.

2 O castelo, ao longo da Idade Moderna, constituiu um memorial de autoridade senhorial sobre a vila de Abrantes, o que explica a instalação dos marqueses de Abrantes neste local no século XVIII, bem como o facto de o castelo não ter sido destruído aquando da constru-ção de uma muralha abaluartada em Abrantes também nesse século.

3 O castelo só passou a ter um papel militar mais rele-vante a partir do século xviii, embora coexistindo com outros papéis; somente nas circunstâncias políticas do início do século xix o castelo passou a ter um papel exclusivamente militar.

Como se pode ver, a sua história é bastante mais com-plexa do que as análises até agora efectuadas davam a en-tender, as quais indicavam um uso exclusivamente militar para o castelo. Por último, note-se ainda que novas análises e a identificação de novos dados podem vir de futuro a re-velar outras vivências relacionadas com o castelo de Abran-tes durante a Idade Moderna.

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Ana CruzDoutorada em Quaternário, Materiais e Culturas, pela Universida-de de Trás-os-Montes e Alto Douro e Mestre em Arqueologia Pré-

-Histórica e Arte Rupestre. • É arqueóloga e responsável pelo Centro de Pré-História do Instituto Politécnico de Tomar, onde coordena os trabalhos inseridos no pnta. Por isso tem desenvolvido, nesta região um vasto trabalho de investigação sobretudo na área da Pré-Histó-ria recente e Proto-História. • Tem inúmeros trabalhos publicados em publicações da especialidade e muitas participações em congres-sos. • Integra a equipa de investigação Grupo do Quaternário e Pré-

-História do Centro de Geociências e o Instituto da Terra e Memória.

Ana GraçaMestre em Arqueologia, Pré-História e Arte Rupestre, licenciatura em Arqueologia da Paisagem e bacharelato em Conservação e Res-tauro. • É técnica superior do Centro de Pré-História do Instituto Po-litécnico de Tomar, onde desenvolve atividade de arqueóloga e por isso tem participado em muitos trabalhos de investigação arqueoló-gica na região. • Tem interesse científico na área da Proto-História e Romanização. • Integra a equipa de investigação Grupo do Quater-nário e Pré-História do Centro de Geociências e o Instituto da Ter-ra e Memória. Ana Paredes CardosoLicenciada em Estudos Portugueses com especialização em História da Arte, fez mestrado também em História da Arte Portuguesa, am-bos pela Universidade do Algarve. • Trabalhou na delegação regional de Faro do antigo ippar. • Em 2007, regressou a Abrantes, onde, des-de então, tem desenvolvido trabalho na área da valorização e divulga-ção do património local. • É membro convidado do cehla (Centro de Estudos de História Local de Abrantes) e é colaboradora na revis-ta Zahara e imprensa regional.

Álvaro BatistaLicenciatura em Técnicas de Arqueologia pelo Instituto Politécnico de Tomar. • Participação em diversos eia (Estudos de Impacte Am-biental) e em inúmeras atividades de campo: prospeções, escavações de emergência ou inseridos em pnta, abrangendo períodos desde o Neolítico ao tardo-Romano e posterior. • Autor e co-autor de diver-sa bibliografia arqueológica, em publicações da especialidade desta-cando-se, a Carta Arqueológica do Concelho de Constância (2004) e a do Concelho de Abrantes (2009). • É funcionário do Município de Abrantes, onde presta serviço no Gabinete de Arqueologia.

Charters de AlmeidaTermina em 1964 o Curso Superior de Escultura, na Escola Superior de Belas Artes do Porto, onde já era professor assistente. • Em 1971, concorre e é nomeado professor efetivo nessa escola. Cargo que veio a abandonar, em 1972, para se dedicar, em exclusivo, ao trabalho de atelier. A partir daqui uma brilhante carreira leva-o a várias partes do mundo onde deixou a sua marca em intervenções no espaço públi-co de muitas cidades. • Continua ligado ao universo académico, sen-do com frequência convidado para participar em aulas e palestras em Portugal e no estrangeiro. O seu trabalho tem sido mostrado e reconhecido em muitas exposições e muitos prémios nacionais e es-trangeiros. • Em 2011 recebe o Doutoramento “Honoris Causa”, pela Universidade Lusíada de Lisboa. • Em 2006 faz protocolo de doação, reforçado em 2011, de uma parte significativa da sua obra, para criar, em Abrantes, um núcleo museológico do seu trabalho. Davide DelfinoDoutor em “Quaternário: materiais e culturas” pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro; Diploma de especialização em Arque-ologia, variante Pré-História e Proto-História (Universitá Statale di Milano); Licenciatura em Conservazione dei Beni Culturali Archeo-

comunicantes

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2008 com a tese “Francisco de Campos (c.1535–1580) e a “Bella Ma-niera” entre a Flandres, Espanha e Portugal”. • É Professora Adjunta na Escola Superior de Tecnologia do Instituto Politécnico de Tomar, onde exerce as funções de Diretora da Licenciatura em Conservação e Restauro. • Tem vários livros publicados. É autora de diversos arti-gos publicados em revistas da especialidade. • É membro integrado de uma Unidade de Investigação & Desenvolvimento - Centro de In-vestigação e Estudos em Belas Artes (cieba) — Secção Francisco de Holanda — da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e investigadora em projetos de I&D do Centro de Estudos em História da Arte da Faculdade de Letras da mesma Universidade.

Peter MatthaesPeter Matthaes licenciou-se em Química pela Universidade de Géno-va em 1996, tendo-se tornado então diretor do laboratório científico do Museo d’Arte e Scienze, fundado pelo seu pai, Gottfried Mattha-es. • O seu trabalho está relacionado com a autenticação de objectos de arte, através da aplicação de métodos científicos. É especialista na datação de madeiras, pinturas, bronzes e cerâmicas. • Desde Agosto de 2010, após o falecimento do seu pai, passou a dirigir o museu em conjunto com a sua irmã Patrizia.

Rui Oliveira LopesÉ investigador associado do Centro de Investigação e Estudos em Ci-ências da Arte e do Património - Francisco de Holanda, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. • Licenciado em História e com Mestrado em Teorias da Arte da fbaul, onde apresentou dis-sertação sobre a relação da imagem sagrada e do seu público na Pin-tura Portuguesa do Renascimento. • Tem tese de doutoramento sobre a confluência da arte Cristã na Índia, China e Japão entre os séculos xvi a xviii. • Tem desenvolvido investigação sobre o reflexo do po-der político e religioso através da arte; a arte como instrumento de co-municação com o sagrado; a antropologia da arte e as leis universais da arte que transcendem as fronteiras culturais e os estilos artísticos.

logici (Universitá di Genova). • Participou e/ou coordenou mais de uma vintena de escavações ou trabalhos de campo na Itália, Grécia e Portugal no âmbito da Proto-História, Arqueologia Clássica, Arque-ologia Medieval e Arte Rupestre. • Coordenou sessões temáticas no xvi Congresso da União das Ciências Pré-Históricas e Proto-Histó-ricas (u.i.s.p.p); é autor de mais de duas dezenas de publicações em livros e revistas na Itália, Bulgária, Portugal sob o tema da antiga me-talurgia e da Proto-História, bem como de duas dezenas de comuni-cações em congressos nacionais e internacionais. • É membro da As-sociation Pour la Recherche sur l’ Age du Bronze (aprab, dirigida por Claude Mordant) desde 2008. • Foi colaborador da Soprinten-denza per i Beni Archeologici della Ligúria (Itália). Atualmente é co-laborador da Câmara Municipal de Abrantes para o projeto do miaa.

Fernando António Baptista PereiraLicenciado em História, pós-graduado em Museologia e Doutorado em Ciências da Arte (História da Arte) pela Faculdade de Belas-Ar-tes da Universidade de Lisboa, é Professor Associado nesta escola. • Autor de vasta bibliografia nos domínios da História e Crítica de Ar-te, assim como de numerosos Catálogos de Colecções de Museus e de Exposições de que foi Comissário. • Organizador de museus em Portugal e em Macau e Comissário de Exposições no nosso país, em Espanha e no Brasil. Dentre as suas últimas realizações, destacam-se a Exposição “De Pedro o Grande a Nicolau ii. Arte e Cultura do Im-pério Russo nas Colecções do Museu Hermitage”, 2007–8, o concei-to e a programação do Museu do Oriente, 2005–8, e a Exposição

“Símbolos da República”, na Reitoria da Universidade de Lisboa, Ou-tubro de 2010.

Filomena GasparLicenciatura em História, variante de Arqueologia, pela Universida-de de Coimbra. • Publicou em co-autoria a Carta Arqueológica do concelho de Abrantes; a Carta Arqueológica de Vila de Rei e a Car-ta Arqueológica de Pampilhosa da Serra (com segunda publicação revista). • É autora de vários artigos sobre arqueologia publicados em revistas da especialidade. • Arqueóloga da Câmara Municipal de Abrantes desde Novembro de 1994.

Francisco henriquesLicenciado em Design Gráfico, trabalhou em gabinetes de design e agências de publicidade. • Mais tarde ligou-se à pós-produção vídeo, na concepção de filmes de publicidade para televisão, actuando no âmbito da composição de imagem, do grafismo e dos efeitos visu-ais. Possui várias especializações em Manipulação e Composição de Imagem e Animação 2 e 3D. • É investigador do Centro de Investi-gação e de Estudos em Belas-Artes (cieba), no núcleo de Ciências da Arte e do Património-Francisco de Holanda e colabora em publi-cações de reflexão teórica no âmbito da arte. • Após o mestrado em torno dos retábulos escultóricos de Nicolau Chanterene, desenvol-ve o seu doutoramento na mesma área — Geometria e Significação

— alargado a todas as obras de tipologia retabular do período da Re-nascença em Portugal.

Gustavo PortocarreroLicenciatura em História, variante Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. • Mestrado e Doutoramento pela Universidade de Lampeter, Wales (Reino Unido). • Investigador do cieba — Centro de Investigação e Estudo em Belas Artes. • Desde 2007 que integra a equipa que estuda a Coleção Estrada. • Atualmente é colaborador da Câmara Municipal de Abrantes no projeto do miaa.

Jayshree Mungur-MedhiLicenciada em História pela Universidade de Mauritius (Ilhas Maurí-cias). • Tem mestrado em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre pelo Instituto Politécnico de Tomar e Universidade de Trás-os-Mon-tes e Alto Douro (ipt/utad). • É doutoranda em “Quaternário, Ma-teriais e Culturas”, pelo ipt/utad, tendo como projeto de investiga-ção o estudo arqueométrico das cerâmicas gregas da Coleção Estrada.

Luís Manuel de AraújoDoutorado em Letras pela Universidade de Lisboa, professor da Fa-culdade de Letras de Lisboa, no Departamento de História (Institu-to Oriental), onde leciona matérias de História e Cultura Pré-Clás-sica. • Foi o presidente da Comissão Organizadora do iv Congresso Ibéricode Egiptologia que se realizou em Lisboa e integra atualmen-te a equipa do Lisbon Mummy Project que estuda as múmias huma-nas egípcias do Museu Nacional de Arqueologia. • Estudou já a maior parte das coleções egípcias existentes em Portugal, tendo publicado doze livros e mais de cem artigos.

Luiz OosterbeekLicenciado em História e Doutor em Arqueologia (1994). • Professor Coordenador do Instituto Politécnico de Tomar (ipt), onde é mem-bro do Conselho Geral. • Professor convidado de diversas universi-dades da Europa e do Brasil. Diretor do Gabinete de Relações Inter-nacionais do ipt, onde também coordena os cursos de Mestrado em Arqueologia. Professor convidado da utad, onde coordena o curso de Doutoramento em Quaternário, materiais e culturas. Secretário-Geral da União Internacional das Ciências Pré-Históricas e Proto-Históricas, Vice-Presidente de herity International. • Diretor de projectos de ar-queologia e gestão do património em Portugal, Brasil e Angola. • Dire-tor do Museu de Arte Pré-Histórica de Mação. • Responsável do Grupo de Quaternário e Pré-História do Centro de Geociências (fct). • Au-tor de cerca de 25 livros e 150 artigos.

Maria Teresa Desterro Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1984), obteve o grau de Mestre em História da Arte pela mesma Faculdade (1996) e tem Doutoramento em História de Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, defendido em

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câmara municipal de abrantesoutubro de 2013