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TRIBUNAL C RIMINAL DA C OMARCA DE LISBOA 8ª VARA CRIMINAL 1 Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa Acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo da 8ª Vara Criminal de Lisboa : I. RELATÓRIO Por Decisão Instrutória foram pronunciados, em processo comum e para julgamento com Tribunal Colectivo, os Arguidos: - JORGE MANUEL JARDIM GONÇALVES, filho de Agostinho Carlos Gonçalves e Maria Bernardete Estevam de Sousa, natural da freguesia e concelho do Funchal – Ilha da Madeira, nascido em 4 de Outubro de 1935, casado, bancário, actualmente reformado, residente na Rua Avenida da República, nº26, 10-A, em Lisboa, - FILIPE DE JESUS PINHAL, filho de António Pinhal e de Patrocínia de Jesus Pinhal, natural da freguesia de Castelo e concelho de Sesimbra, nascido a 7 de Novembro de 1946, casado, bancário, actualmente reformado, residente na Rua da Arriaga, nº23-A, em Lisboa, - ANTÓNIO MANUEL DE SEABRA E MELO RODRIGUES, filho de João Alves Rodrigues e Maria Ema Seabra e Melo Rodrigues, natural de Luanda, Angola, nacionalidade Portuguesa, nascido a 3 de Setembro de 1955, divorciado, licenciado em gestão de empresas, residente na Rua Dr. Augusto José Cunha, nº3, 18 C, em Algés, e - CHRISTOPHER DE BECK, filho de Frederic de Beck e Edith de Beck, natural da freguesia de Santa Isabel, concelho de Lisboa, nascido a 7 de Março de 1946, casado, bancário, actualmente reformado, residente no Monte do Pau Queimado, Santo Estêvão, em Benavente, pela prática dos factos descritos a fls. 7644 a 7916, pelos quais lhes imputa a prática, em co-autoria de: - um crime de manipulação de mercado, previsto e punido pelo artigo 379º, nº 1 do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, na redacção do Decreto Lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro; - um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal. * 1. Nos presentes autos, foi deduzida a Acusação imputando aos arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves, António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues, Filipe de Jesus Pinhal e Christopher de Beck, prática, em autoria, de um crime de manipulação de mercado, previsto e punido pelo artigo 379º, nº 1 do

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  • TRIBUNAL CRIMINAL DA COMARCA DE LISBOA 8ª VARA CRIMINAL

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    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    Acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo da 8ª Vara Criminal de Lisboa :

    I. RELATÓRIO

    Por Decisão Instrutória foram pronunciados, em processo comum e para julgamento com Tribunal Colectivo, os Arguidos:

    - JORGE MANUEL JARDIM GONÇALVES, filho de Agostinho Carlos Gonçalves e Maria Bernardete Estevam de Sousa, natural da freguesia e concelho do Funchal – Ilha da Madeira, nascido em 4 de Outubro de 1935, casado, bancário, actualmente reformado, residente na Rua Avenida da República, nº26, 10-A, em Lisboa, - FILIPE DE JESUS PINHAL, filho de António Pinhal e de Patrocínia de Jesus Pinhal, natural da freguesia de Castelo e concelho de Sesimbra, nascido a 7 de Novembro de 1946, casado, bancário, actualmente reformado, residente na Rua da Arriaga, nº23-A, em Lisboa, - ANTÓNIO MANUEL DE SEABRA E MELO RODRIGUES, filho de João Alves Rodrigues e Maria Ema Seabra e Melo Rodrigues, natural de Luanda, Angola, nacionalidade Portuguesa, nascido a 3 de Setembro de 1955, divorciado, licenciado em gestão de empresas, residente na Rua Dr. Augusto José Cunha, nº3, 18 C, em Algés, e - CHRISTOPHER DE BECK, filho de Frederic de Beck e Edith de Beck, natural da freguesia de Santa Isabel, concelho de Lisboa, nascido a 7 de Março de 1946, casado, bancário, actualmente reformado, residente no Monte do Pau Queimado, Santo Estêvão, em Benavente,

    pela prática dos factos descritos a fls. 7644 a 7916, pelos quais lhes imputa a prática, em co-autoria de: - um crime de manipulação de mercado, previsto e punido pelo artigo 379º, nº 1 do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, na redacção do Decreto Lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro; - um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal.

    *

    1. Nos presentes autos, foi deduzida a Acusação imputando aos arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves, António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues, Filipe de Jesus Pinhal e Christopher de Beck, prática, em autoria, de um crime de manipulação de mercado, previsto e punido pelo artigo 379º, nº 1 do

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    Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, na redacção do Decreto Lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro); de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d) e e), por referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal, e de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º, nº1, e 218º, nº2, alínea a), do Código Penal.

    * A fls. 2.223 António Francisco dos Santos Pragal Colaço requereu a sua constituição como

    assistente, foi dedudida oposição pelo Ministério Público e foi indeferido o requerimento por despacho proferido em 19 de Outubro de 2009 (fls. 4101 a 4106).

    Notificado do despacho, António Francisco dos Santos Pragal Colaço interpôs recurso do mesmo (cfr. fls. 4238 a 4245), o qual foi admitido a fls. 4439, com subida imediata e em separado (fls. 4429 a 4436; resposta ao recurso, apresentada pelo Ministério Público; fls. 5046 a 5061; resposta apresentada pelo arguido Christopher de Beck).

    * 2. Notificados da Acusação, os arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves, António Manuel de

    Seabra e Melo Rodrigues, Filipe de Jesus Pinhal e Christopher de Beck, requereram a abertura de Instrução.

    Como questão prévia, foi pelos arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves, António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues, Filipe de Jesus Pinhal e Christopher de Beck, invocada a nulidade da Acusação, por violação do disposto no artigo 283º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, consubstanciada na omissão de descrição, com rigor e de forma suficiente – não individualiza as condutas imputadas a cada arguido, nem especifica as circunstâncias de modo, tempo, lugar e motivação subjacente à prática dos factos –, de factos que permitam a imputação de tais ilícitos penais.

    Pelo arguido Jorge Manuel Jardim Gonçalves foi, ainda, invocada a nulidade da Acusação com fundamento na violação do disposto no artigo 97º, nºs 3 e 5, do Código de Processo Penal, consubstanciada na omissão da apreciação, crítica, dos motivos de facto e de direito que estiveram subjacentes à decisão de acusar.

    2.1. Na fase de Instrução, pelos arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves e Filipe de Jesus

    Pinhal foi invocada a nulidade da prova colhida em sede de Inquérito - recurso a meios de obtenção de prova proibidos e consequente nulidade, nos termos dos artigos 126º e 122º, nº1, do C.P.P. - pelas entidades reguladoras, por ter sido obtida com recurso a expedientes enganosos e à margem de qualquer processo sancionatório formal, com o fito de instruir os processos criminais e contra-ordenacionais que vieram a ser instaurados.

    Fundamentaram a nulidade arguida na circunstância de os documentos que instruem os presentes autos terem sido obtidos, pela CMVM e pelo Banco de Portugal, no âmbito de falsas acções de supervisão, em flagrante violação do princípio da lealdade processual. Há muito que as autoridades de supervisão tinham conhecimento dos factos com base nos quais vieram a ser instaurados estes autos e os processos contra-ordenacionais e levaram a cabo a instrução dos mesmos sem um processo de inquérito, recolhendo a prova em violação do direito ao silêncio e à não incriminação.

    O BCP sempre forneceu, às entidades de supervisão, de boa fé, todos os elementos por estas solicitados, considerando que estas actuavam no âmbito de uma acção de supervisão, encontrando-se, por isso, obrigado nos termos dos artigos 381º e 389º, nº 3, als. b) e c), do CVM.

    Assim, por terem sido obtidos pelas autoridades de supervisão, à margem de um processo formal, requereram que tais elementos fossem considerados prova proibida - por violação do direito à não incriminação e princípio da presunção de inocência, consagrados na CRP e Convenção Europeia dos

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    Direitos do Homem, aplicáveis às pessoas individuais e colectivas -, bem como todas as demais obtidas na sua sequência.

    No requerimento de abertura de instrução foi, ainda, invocada a inconstitucionalidade material, por

    violação dos artigos 20º, nº 4, e 32º, nºs 1, 2, 5, 8 e 10, da CRP, da interpretação dos artigos 54º, nºs 1 e 2, 43º, 50º e 58º, todos do RGCOC, 213º, nº 2, do RGICSF e 408º, nº 1, do CVM, segundo a qual nos processos contra-ordenacionais, cuja instauração é da competência da CMVM e Banco de Portugal, a obtenção de prova, fora dos casos de flagrante delito, pode ser realizada após a instauração formal de um processo.

    2.2. Declarada aberta a Instrução (fls. 4280), por Decisão proferida a fls. 4271 a 4280 foi apreciada e

    julgada improcedente a nulidade da Acusação, por se entender que a referida peça processual encontra-se elaborada com observância de todos os requisitos legalmente exigidos e elencados no nº3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, por, em suma :

    (i) a estrutura da Acusação assenta na existência de um plano, inicial, idealizado conjuntamente pelos arguidos, delineado no artigos 1º a 12º dessa peça, cujo objectivo era o aumento da cotação do título BCP e, consequentemente, o posicionamento, da instituição, no mercado; frustrado este plano e decorrendo da execução do mesmo prejuízos, decidiram os arguidos, mais uma vez conjuntamente e através de complexas operações financeiras e de Relatórios e Contas que fizeram aprovar em Assembleias Gerais e que sabiam não reflectir a real situação contabilística da instituição;

    (ii) em cada capítulo da Acusação encontra-se descrita a intervenção individual dos arguidos, na execução do plano que fora delineado conjuntamente pelos mesmos;

    (iii) embora na Acusação não esteja concretizado, com rigor, a data na qual foi o plano inicialmente elaborado, bem como o local, atendendo “à complexidade da matéria em causa e natureza sigilosa do comportamento” imputado aos arguidos, foi entendido não serem exigíveis tais elementos de facto, mostrando-se suficiente a indicação que se trata de um plano delineado, nos seus termos iniciais, no final da década de noventa e cujos contornos foram, ao longo do tempo, sofrendo alterações, determinadas também por todos os arguidos e motivadas pelas circunstâncias com as quais os mesmos iam sendo confrontados;

    (iv) tratando-se de co-autoria, modalidade de comparticipação que tem como elementos (dois) caracterizadores fundamentais - a decisão conjunta e a execução conjunta do facto (art. 26º do CP) -, basta a existência de um plano comum, um projeto de ação pactuado entre os diversos agentes, que preveja uma tarefa para cada um dentro do plano global, essencial para a produção do resultado por todos pretendido; e que essa tarefa seja efetivamente executada pelo agente; nessa medida e considerando as especificidades da co-autoria, o facto aparece como obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado, não sendo necessário que cada agente execute todo o comportamento descrito no respectivo tipo legal de crime mas, apenas, uma parte necessária da execução do plano de entre de uma razoável divisão de tarefas (domínio funcional do facto); a resolução, comum, de realizar o facto, bem como a visão de um objectivo comum constitui o elo entre os diversos agentes; e conclui que não necessita, a Acusação, de imputar, individualmente, aos agentes, a totalidade dos factos mas, apenas, que defina a existência de um desígnio comum que todos delinearam e/ou aderiram e impute a cada agente uma parte essencial na execução desse mesmo plano e não actos que, individualmente considerados, consubstanciem, por si só, uma conduta ilícita, requisitos estes verificados nessa peça processual uma vez que da mesma consta a definição do desígnio por todos os arguidos traçado e a descrição da intervenção de cada, nos vários momentos, com vista a alcançar esse objecto comum.

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    Sufragando a posição do Ministério Público, foi ainda entendido que não se encontra comprometido o direito de defesa, sendo demonstrativo disso a circunstância de, nos Requerimentos de Abertura de Instrução, os arguidos terem refutado “exaustivamente os factos descritos na Acusação, em moldes só possíveis a quem da acusação tem uma ideia muito clara e precisa”.

    Nessa Decisão - fls. 4271 a 4280 – foi igualmente entendido não proceder a nulidade da Acusação

    por inobservância do disposto no artigo 97º, nºs 3 e 5, do Código de Processo Penal, consubstanciada na omissão de fundamentação da decisão de acusar, por, em suma, os requisitos da Acusação constarem do artigo 283º do Código de Processo Penal, sendo esta uma norma especial relativamente à primeira.

    Foi ainda apreciada a questão suscitada respeitante à consequência do invocado vício, caso o mesmo se verificasse, entendendo-se que se o legislador tivesse pretendido impor, também ao Ministério Público, a obrigação de, findo o Inquérito, expor os fundamentos da decisão de acusar, a inobservância dessa formalidade não era cominada com a nulidade, constituindo uma irregularidade, “imediatamente perceptível” com a leitura, ainda que superficial, da Acusação, pelo que precludido se encontrava o direito de ser invocada, por aplicação do nº 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal.

    *

    2.3. Da decisão proferida a fls. 4271 a 4280 e que apreciou as nulidades da Acusação, interpuseram recurso os arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves (fls. 4763 a 4831; fls.4836 a 4906), Filipe de Jesus Pinhal (fls. 4675 a 4739), António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues (fls. 4633 a 4674) e Christopher de Beck (fls. 4909 a 4941), não admitidos, com fundamento na irrecorribilidade da decisão, por despacho proferido a fls. 5326 a 5328.

    Do despacho de não admissão do recurso foi, pelos arguidos Filipe de Jesus Pinhal e Jorge Manuel

    Jardim Gonçalves, apresentada Reclamação (cfr. fls. 5490 a 5495; 5497 a 5514), admitida por despacho de fls. 5568 e apreciada por Decisão proferida pelo Exmo. Senhor Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, a qual determina “após a decisão instrutória e em função do que aí vier a ser decidido e da forma como o for, seja proferido novo despacho que aprecie o requerimento de recurso”.

    Após Decisão Instrutória, foi proferido novo despacho – fls. 7171 – reiterando o anteriormente

    decidido, nos fundamentos e conclusão e, consequentemente, mantendo a rejeição dos recursos por inadmissibilidade legal.

    *

    3. No âmbito da Instrução foi (cfr. fls. 4281 a 4283) indeferida a perícia colegial, tendo por objecto a matéria indicada no ponto VII–A-1, de fls. 2904; perícia que foi nrequerida ser feita por perito com formação na área de econometria aplicada a operações em bolsa e a versar sobre a matéria indicada no ponto VII-A-1, de fls. 2904 e 2905 (e objecto de análise a fls. 207 a 505, pela CMVM); e duas perícias colegiais, tendo por objecto toda a matéria vertida na Acusação, estudos juntos aos autos e factos descritos a fls. 3471.

    *

    3.1. Sobre o despacho que indeferiu a realização de diligências probatórias foi, pelo arguido Filipe de Jesus Pinhal, apresentada reclamação (cfr. fls. 4397 a 4405; fls. 4464 a 4472), bem como pelos arguidos Jorge Jardim Gonçalves (fls. 4600 a 4617) e António Rodrigues (fls. 4473 a 4485), sendo este último por adesão aos fundamentos e pedido deduzidos na reclamação apresentada pelo segundo.

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    Ainda sobre o indeferimento de diligências probatórias requeridas em sede de Instrução, foi

    apresentada reclamação de fls. 5179 e 5180 e de fls. 5727 e 5728, pelo arguido Filipe de Jesus Pinhal (cfr. fls. 5183 e 5184), a fls. 5356 a 5361, e pelo arguido António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues (cfr. fls.5368 a 5373).

    3.2. Sobre as reclamações apresentadas foi proferido despacho de fls. 5322 e 5323 e despacho de

    fls. 5566 a 5568. No despacho de fls. 5322 e 5323 foi ainda determinada a “perícia de âmbito restrito à prática do

    crime de manipulação de mercado”, a realizar “com base na informação recolhida pela CMVM e avaliar se estes foram analisados da forma mais correcta” e justificada, entre o mais, pela questão suscitada no Parecer junto aos autos, elaborado pelo Professor Miguel Ferreira e nos termos do qual “os métodos de avaliação dos factos pela CMVM não são os correctos”.

    Assim e por forma a habilitar o tribunal “a avaliar a correcção metodológica de um ou de outro elemento de prova”, foi nomeado o Professor João Luís Correia Duque, Presidente e docente no Instituto Superior de Economia e Gestão – Universidade Técnica de Lisboa, e formulados, a fls. 5325, os quesitos objecto da perícia.

    *

    4. Também em sede de Instrução, pelo arguido António Rodrigues foi junto dois Estudos, da autoria do Professor Miguel Luís Sousa de Almeida Ferreira, intitulados “Parecer sobre estudos realizados pela CMVM : comportamentos das 17 offshore do BCP e análise da intervenção das offshore do BCP”- fls. 4486 a 4494 – e “O mercado secundário das acções do BCP e as transacções das offshore” - fls. 4495 a 4511 – e um Estudo da autoria dos Revisores Oficiais de Contas, Dr. José Silva Santos e José Manuel Parada, intitulado “Acusação do Ministério Público no âmbito do inquérito nº 7327/07.9TDLB – Relatório Pericial sobre matérias contabilísticas” ”- fls. 4512 a 4577 –, com a explicação de que se tratam de estudos e que a utilização do termo “relatório pericial” prende-se, não com a investidura dos respectivos autores como peritos mas, com os conhecimentos técnicos que os mesmos possuem.

    *

    5. Proferida Decisão Instrutória (cfr. fls. 6329), foram os arguidos despronunciados do crime de burla, previsto e punível pelos artigos 217º e 218º, do Código Penal e pronunciados pela prática de um crime de manipulação de mercado, previsto e punível pelo artigo 379º, nº1, do Código de Valores Mobiliários e de um crime de falsificação, previsto e punível pelo artigo 256º, nº1, alíneas d) e e), por referência ao artigo 255º, alínea a), do Código Penal.

    Notificados da Decisão Instrutória, pelo arguido Filipe de Jesus Pinhal foi invocada a irregularidade

    da mesma (fls. 6926 a 6940), que veio a ser apreciada por despacho de fls. 7125 e pelo arguido Jorge Manuel Jardim Gonçalves foi interposto recurso (fls. 6955 a 7034; fls. 7037 a 7121), que foi rejeitado por despacho de fls. 7170.

    *

    6. Pelo Banco Comercial Português foi requerido (fls. 2288 a 2302) que pelo tribunal fosse proferida decisão, reconhecendo-lhe a faculdade de deduzir, em separado, pedido de indemnização civil contra os arguidos e, subsidiariamente, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos (fls. 2305 a 2350).

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    Notificados, os arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves (fls. 7288 a 7293; 7311 a 7316), Filipe de Jesus Pinhal (fls. 7318 e 7319), António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues (fls. 7294 a 7300) e Christopher de Beck (fls. 7305 a 7308), deduziram oposição.

    Apreciado o requerimento apresentado pelo Banco Comercial Português (fls. 2321 a 2335), por

    despacho proferido a fls. 9258 a 9265, foi reconhecido ao mesmo a faculdade de apresentar, em separado, o pedido de indemnização civil.

    Desse despacho foi interposto recurso pelo arguido Christopher de Beck (fls. 9406 a 9414), admitido por despacho de fls. 9449.

    * * *

    7. Notificado nos termos dos artigos 313º e 315º do C.P.P., os arguidos Jorge Manuel Jardim Gonçalves (Contestação junta a fls.8782 a 9165), Filipe de Jesus Pinhal (Contestação junta a fls. 7929 a 8007 e Requerimento com indicação de meios de prova junto a fls. 7927 e 7928), António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues (Contestação junta a fls. 8488 a 8787) e Christopher de Beck (Contestação junta a fls. 8012 a 8161; 8163 a 8487) apresentaram Contestação.

    *

    7.1. Contestação do arguido Jorge Manuel Jardim Gonçalves:

    (1) Na sua Contestação, argumenta o arguido Jorge Manuel Jardim Gonçalves que no período de 20 anos e a partir do zero, foi construído o BCP, o maior banco privado português, sob a sua liderança, obra iniciada em 1985.

    Dessa obra beneficiaram os acionistas do BCP e os seus clientes mas, também, o sistema financeiro português para cuja modernização esta instituição deu um decisivo impulso e contributo, o que por todos é reconhecido.

    Nos 20 anos, foi o primeiro responsável do BCP, pelo que assume a responsabilidade institucional do que ocorreu neste banco durante esse período em que foi seu líder e seu rosto, com todas as consequências no que se não incluem actos ou omissões que, more legis, exijam intervenção pessoal, livre e deliberada, como é o caso dos ilícitos criminais imputados nos autos, negando ter (i) ordenado ou criado as 17 Cayman; (ii) realizado as transações com os títulos detidos seja pelas 17 Cayman, seja pelas offshores Góis Ferreira; (iii) praticado quaisquer actos destinados a dissimular perdas daquelas offshores; (iv) falsificado a contabilidade do BCP referente aos anos de 2000 a 2006; ou (v) divulgado documentos de prestação de contas que contivessem informação que não fosse completa, objetiva e verdadeira.

    Argumenta que motores destes autos foram a carta de Joe Berardo, datada de 28 de Novembro de

    2007, e a carta que a complementa, datada de 11 de Dezembro de 2007, sendo o objectivo, imediato, visado pelos presentes autos, impedir que a lista liderada pelo arguido Filipe Pinhal pudesse vir a ser eleita, na Assembleia Geral de Janeiro de 2008, para o Conselho de Administração do BCP. No seu entender, estava em causa uma questão de projecto: (i) ou um banco que não podia ser controlado por qualquer acionista, gerido por profissionais em dedicação exclusiva ao Grupo BCP, (ii) ou uma entidade controlada por um acionista, ou por um número limitado de acionistas, podendo os gestores, salvas as restrições legais, acumular o desempenho em órgãos sociais do BCP com os de outras sociedades extra Grupo. Esta foi a chamada “guerra de poder”.

    Na Assembleia Geral de 12 de Abril de 2010, foi alterado o artigo 16.º, n.º 10, - norma que

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    consagrava que nenhum acionista, independentemente da percentagem de capital de que fosse titular, podia, em AG, ter mais do que 10% dos votos - e revogado o artigo 12.º - norma que estatuía que não podia sentar-se no CA do Banco quem estivesse em corpo social que não fosse do Grupo -, ambos dos Estatutos do BCP.

    No seu entender, a alteração do artigo 16º,nº10, e a revogação do artigo 12º , operada na Assembleia Geral de 12 de Abril de 2010, consistiu na abertura de porta para transformar a Sonangol no accionista maioritário do BCP, com assento no Conselho de Administração.

    A garantia de que tais alterações seriam sem regresso assenta na punição sofrida : as penas de inibição de gestão bancária de 9 e 5 anos, com execução imediata, em sede contraordenacional, do Banco de Portugal (BdP) e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), tornava certo que os arguidos, atenta a morosidade do sistema de administração de Justiça, com dois graus ordinários de recurso, mais o da jurisdição constitucional, não seriam obstáculo nos próximos anos.

    Essa garantia havia sido anunciada, em vários registos e em diversas sedes, pelos então Presidente do Conselho Directivo da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e Governador do Banco de Portugal, Dr. Vítor Constâncio. Em 24 de Janeiro de 2008, em entrevista à RTP, o então Governador do Banco de Portugal, Dr. Vítor Constâncio, veio “…condenar, na praça pública, os factos e seus responsáveis que deram origem aos presentes autos, quando a notícia da sua ocorrência – as referidas cartas de Berardo – tinham tido lugar, a 28 Novembro e 11 de Dezembro de 2007” : “[...] há muitas pessoas no BCP que não participaram de actos que tenham a ver com essas operações, poderão não ter tido conhecimento nenhum. Há diferentes graus de envolvimento, isso foi explicado, há os que conceberam, há os que participaram, há os que tiveram conhecimento em momento posterior e não denunciaram às autoridades e há, finalmente, os que nunca souberam de nada”.

    (2) Pronunciando-se sobre a Acusação – e Despacho de Pronúncia – invoca a violação de “uma

    multiplicidade de normas estruturantes do Direito Processual Penal, colocando em causa princípios basilares deste ordenamento - o princípio da defesa, o princípio do contraditório, e o da lealdade processual” porquanto :

    (i) existe omissão, na Acusação e Pronúncia, das circunstâncias de tempo, de modo, de lugar e quanto à motivação;

    (ii) não descreve, com o nível de clareza e inteligibilidade exigidos, elementos de facto penalmente relevantes, nem procede à indicação individualizada de quaisquer condutas relativamente a qualquer dos arguidos, recorrendo a um conjunto de fórmulas ora conclusivas, ora indeterminadas, de par com juízos de valor e de conceitos jurídicos;

    (iii) não procede à necessária articulação dos factos com as normas consideradas infringidas pela sua prática;

    (v) a ausência de imputação de um qualquer comportamento concreto assume particular expressão no tocante ao arguido Jardim Gonçalves cujo nome apenas vem mencionado em 16 dos 1195 pontos do libelo (na versão da pronúncia), pontos esses em que não se encontram, sequer, descritas quaisquer condutas, e, por maioria de razão, quaisquer factos penalmente relevantes;

    (vi) só a descrição da participação individualizada de cada agente é que permite apurar o enquadramento das condutas adoptadas no plano gizado e aferir se o agente teve um contributo objectivo para a realização do ilícito.

    Defende o arguido que descontadas as descrições, meramente enunciativas, quanto à constituição

    e vida das sociedades, alegadamente criadas e instrumentalizadas para aumentar artificialmente as

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    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    cotações do BCP, e quanto à alegada dissimulação de perdas daquela instituição bancária, o libelo limita-se a:

    a) Indicar, por referência aos estatutos das sociedades, as funções institucionais desempenhadas por cada um dos Arguidos, ao longo do período em questão;

    b) Referir a existência de um alegado plano gizado pelos arguidos, com os objetivos descritos na acusação;

    c) Mencionar a existência de procurações conferidas aos arguidos por algumas sociedades; d) Descrever concessões de crédito autorizadas por alguns dos arguidos; e) Mencionar a existência de divulgação de informação pública, autorizada pelo Conselho de

    Administração do BCP, cujo teor o MP tem por desconforme; f) Indicar os Relatórios e Contas aprovados pelo BCP, e a medida em que entende que os

    resultados, aí plasmados, estão em desacordo com os normativos, aplicáveis à matéria. Não consta da Acusação a descrição de quaisquer circunstâncias, de facto, passíveis de preencher

    os elementos subjetivos dos tipos de ilícito, rejeitando a Jurisprudência dos Tribunais Superiores a existência de quaisquer presunções de dolo exigindo a narração sintética, no libelo, de todos os actos materiais e concretos necessários à comissão da infração, de entre os quais, os relacionados com o preenchimento do elemento subjetivo do tipo.

    (2.1) Ainda por referência ao crime de falsificação de documento, não está em causa a inserção (ou

    narração), por qualquer dos arguidos, de qualquer facto falso. Os documentos em causa não foram elaborados pelos arguidos cingindo-se a questão à não

    realização de quaisquer reparos ou correcções nos respectivos documentos e a aprovação da sua submissão à Assembleia-Geral.

    Argumenta que a omissão de reparos não configura a conduta descrita no tipo o qual pressupõe - alínea d) - que seja o agente a realizar a narração de facto falso. No caso em concreto, a elaboração dos documentos de prestação de contas resultam das normais obrigações de qualquer sociedade comercial. Os arguidos, enquanto membros de órgãos de gestão, sabiam que, necessariamente, tais documentos iriam ser elaborados, refletindo a situação da respetiva instituição financeira e mesmo que tivessem conhecimento de que algum facto pudesse ser, eventualmente, menos exacto, esse conhecimento não teria qualquer relevância para efeitos do tipo de falsificação previsto na alínea d).

    Entre o tipo previsto na alínea d) e o tipo previsto na alínea e) do nº1 do artigo 256º do C.P. -

    crime de falsificação e crime de uso de documento falsificado - existe um concurso aparente de normas, concluindo o arguido que só pode haver punição pelo crime de uso de documento caso seja usado por pessoa distinta daquela que o falsificou, pelo que a imputação das duas modalidades do crime de falsificação em concurso efectivo constitui manifesta impossibilidade dogmática.

    Ainda por referência ao crime de falsificação de documento, sendo um crime “de intenção”, para

    que se considerasse preenchido integralmente o elemento subjetivo de ilícito, além do mais, que se imputasse individualmente a cada um dos arguidos a sua específica intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter benefício legítimo.

    No que respeita ao plano, a Acusação nada refere quanto à data, local e demais circunstâncias, em

    que o mesmo terá sido alegadamente acordado, nem contém quaisquer elementos que permitam a sua

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    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    balização, no tempo, o que é assumido pelo Despacho de Pronúncia e justificado atenta a “complexidade da matéria em causa e a natureza sigilosa do comportamento que é imputado aos Arguidos”.

    (2.2) Rejeita o argumento extraído do facto de os arguidos terem apresentado Requerimentos de

    Abertura de Instrução onde rebatem a versão esplanada na Acusação, referindo que : a) em tais peças processuais limitaram-se a rebater as apreciações e conclusões que o MP retira,

    relativamente à actividade levada a cabo pelas várias sociedades indicadas na acusação, em particular pelo BCP;

    b) relativamente ao seu alegado envolvimento na execução e fins das operações de mercado indicadas, limitou-se a negar a sua participação, direta ou indireta, nessas operações, bem como qualquer envolvimento num qualquer plano gizado, com vista ao aumento de cotação do título do BCP, ou a ocultação de perdas, resultantes de actos de manipulação de mercado;

    c) grande parte da defesa aí expedida apenas se tornou possível, em virtude dos estudos e das defesas apresentadas pelo BCP, no âmbito dos processos contra-ordenacionais, movidos pelo Banco de Portugal e pela Comissão de Mercado dos Valores Mobiliários, contra aquela instituição bancária.

    Conclui, assim, que a omissão de descrição fáctica dos factos, penalmente relevantes, associada à utilização, em sede de acusação, de conceitos jurídicos, de conceitos vagos e de juízos de valor e, bem assim, a omissão de articulação dos factos descritos, com as normas consideradas infringidas pela sua prática, viola os princípios da certeza e da suficiência e da confiança e lealdade em sede processual penal, consagrados nos artigos 283.º, n.º 3, al. b), e 308.º, ambos do CPP, com a consequente inviabilização do direito de defesa do arguido e do contraditório, violação esta cominada de nulidade processual.

    Invocou a inconstitucionalidade da norma interpretada no sentido de sustentar a validade da

    acusação e/ou da pronúncia, em patente desrespeito pela estrutura acusatória do processo, pelo princípio do contraditório, pelo direito de defesa, pelos princípios da confiança e lealdade em sede processual penal e pelo princípio do ne bis in idem, por violação dos artºs 2.º, 20.º, n.º 4.º, 26.º, n.º 1, 29.º, n.º 5, e 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

    Defende o arguido que caso se entenda que a ausência de factos, nos termos alegados, não importa a nulidade da acusação e da pronúncia, impõe-se a sua absolvição, em conformidade com o disposto no artº 311.º, n.º 1, do CPP, por ausência de imputação de quaisquer factos susceptíveis de preencherem os elementos do tipo dos ilícitos pelos quais se encontra pronunciado.

    Invoca, ainda, o arguido Jorge Jardim Gonçalves que a Acusação enferma de nulidade por violação

    do disposto no artigo 97.º, nºs 3 e 5, do CPP, consubstanciada na inexistência, na Acusação, de uma apreciação crítica dos motivos de facto e de direito da decisão de acusar, sendo insuficiente o elencar dos meios de prova uma vez que nada explicita, quanto à sua relação com os factos descritos na Acusação, defendendo o arguido que essa peça está sujeita às exigências de fundamentação de facto e de direito estabelecidas no n.º 5 do citado artigo, sem as quais não lhe é possível conhecer e sindicar, nesta sede, a motivação do MP, citando, nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.03.2006.

    A não observância da exigência de fundamentação, de facto e de direito, é cominada, no seu entender, de nulidade, nos termos dos artigos 120.º, n.º 2, al. b), e 122º, ambos do CPP, sendo inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 20.º, n.º 4.º, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação no sentido de não considerar aplicável, a norma extraída dos artºs 97.º, n.ºs 3 e 5, e 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, à decisão contida na acusação.

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    À cautela, refere que, caso se entenda que a falta de fundamentação, de facto e de direito, não é subsumível no quadro das nulidades, não deixará a Acusação de enfermar de invalidade, por irregular, nos termos do artigo 123.º do CPP, vício que foi tempestivamente invocado, em conformidade com o sentido das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional - Acórdão n.º 42/2007, Acórdão n. ° 337/86, de 30 de Dezembro; Acórdão n.º 383/97, de 14 de Maio; e Acórdão nº 694/03 de 24 de Março - pois, tratando-se de um processo de especial complexidade – qualidade reconhecida no despacho de fls. 2168 – cuja consulta e análise, inclusive da acusação, implicaram o recurso a diversos técnicos, especializados, nomeadamente em econometria e contabilidade.

    A aplicação do prazo de três dias “mais não é que restringir de forma inadmissível e injustificada o direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, desta forma se limitando, de modo desproporcionado e sem fundamento material, o núcleo essencial daquele mesmo direito”. Conclui, assim, pela violação dos princípios da defesa e do contraditório; omissão de fundamentação do despacho de acusação e nulidade da acusação e da pronúncia por violação do disposto nos artºs 283.º, nº 3, al. b), e 308.º, n.º 2, do CPP.

    (2.3) Invoca, ainda, que o acervo probatório dos presentes autos foi obtido com recurso a meios

    proibidos de obtenção de prova, colhidos pelas entidades reguladoras com recurso a expedientes enganosos e à margem de qualquer processo sancionatório formal, tendo como único objetivo, firme e concretizado, o de instruir os processos punitivos que acabaram por ser instaurados, isto porque :

    I. os elementos probatórios dos autos resultam todos, sem qualquer excepção, das actuações levadas a cabo pela CMVM e pelo BdP;

    II. o acervo documental constante dos presentes autos foi recolhido no âmbito de putativas acções de supervisão levadas a cabo por aquelas entidades;

    III. a decisão de recolha dos testemunhos que aqui acabaram por ser prestados assentam nas informações constantes daqueles documentos;

    IV. a instrução dos autos de contraordenação instaurados pelo BdP e pela CMVM foi levada a cabo à margem de um processo de inquérito e todo o acervo probatório foi reunido em violação do direito ao silêncio e à não auto incriminação : dos autos de contraordenação instaurados pelo BdP e pela CMVM, entidades reguladoras, constata-se que estas tiveram notícia dos putativos ilícitos contraordenacionais – e dos penais – em momento bastante anterior à data da instauração de cada um desses processos, o que não só levou a que a sua instrução fosse levada a cabo à margem de um processo de inquérito, como também a que todo o acervo probatório fosse reunido em violação do direito ao silêncio e à não auto incriminação e integrando nos presentes autos a informação obtida no âmbito da atividade investigatória levada a cabo à margem de qualquer processo e em desrespeito de princípios basilares do Direito Processual Penal.

    A título de exemplo, refere o arguido que em 8 de Julho de 2008, foram apensados aos presentes autos milhares de documentos remetidos pela CMVM (cf. termo de apensação, de fls. 552) que constituem os seus apensos I a XIX, sendo que aquela entidade apenas instaurou o respetivo processo contra-ordenacional em 29 de Dezembro de 2008.

    Conclui, ainda, que os vícios da prova recolhida naqueles processos comunica-se ao presente

    processo-crime, não podendo, nestes autos, utilizar-se a prova obtida com recurso a meios enganosos e em violação das mais diversas garantias constitucionais vigentes nesta matéria, mesmo que esta tenha sido recolhida no quadro de outro processo, e que os direitos fundamentais desrespeitados digam respeito a um sujeito distinto dos arguidos nos presentes autos, contrapondo, assim, ao argumento constante da Decisão Instrutória.

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    O Banco de Portugal deveria ter dado início ao processo contraordenacional assim que tomou

    conhecimento da notícia do crime, atento o disposto nos artºs 48.º e 54.º do RGCO e no artº 262.º do CPP, conhecimento que, no seu entender não ocorreu em momento posterior a Novembro de 2007.

    Contudo, só no dia 26 de Dezembro de 2007, na sequência da Nota Informativa n.º 3131/07 do Departamento de Supervisão Bancária, foi deliberado pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal dar início ao presente processo contra-ordenacional, tendo os arguidos sido notificados de que, a partir de 27 de Dezembro de 2007, lhes assistiria os direitos e deveres processuais previstos no artº 61.º do CPP, subsidiariamente aplicável por força do preceituado no n.º 1 do artº 41.º do RGCO, conjugado com o disposto no artº 232.º do RGICSF.

    Atento o “considerável grau de concretização” das condutas indiciadas a que a Nota faz referência,

    a notícia dos alegados ilícitos terá ocorrido em momento muito anterior à elaboração daquela peça, conclusão extraída igualmente da circunstância de, no dia 27 de Dezembro de 2007, data do início do processo, terem sido autuados número superior a quatro anexos contendo “milhares de documentos”, bem como do teor das informações veiculadas em diversos órgãos da comunicação social, em particular, a notícia publicada no Diário Económico , no dia 15 de Outubro de 2007, de cujo teor consta “Fontes de ambos os reguladores foram pouco claras sobre o que estes pensam fazer, referindo que apenas na segunda-feira irão abordar a questão com os gabinetes jurídicos.”, e a notícia publicada na edição de 3 de Dezembro de 2007 do Jornal de Negócios.

    A confirmar tal conclusão, consta logo no início da acusação deduzida pelo Banco de Portugal que “na sequência de diligências de investigação a que o Banco de Portugal deu início em Novembro de 2007, que se prolongariam durante o primeiro semestre de 2008”.

    Em 27 de Novembro de 2007, foi remetida, ao Banco de Portugal, uma “participação para efeitos de investigação de irregularidades e ilícitos de natureza contra-ordenacional e penal”, pelo Comendador José Berardo, e que está junta a fls. 5 e ss. dos autos.

    No dia 4 de Outubro de 2007, os Senhores Drs. João Paulo Rui Salvado Querido e Miguel Milheiriço Dias Melancia, na qualidade de técnicos do Banco de Portugal, informaram os responsáveis do BCP de que iriam proceder a uma acção de supervisão à fiabilidade dos reportes de Fundos Próprios Consolidados, com a realização de uma inspecção no Banco, tendo, para esse efeito e na mesma data, entregue uma credencial e um pedido inicial de elementos que constam do Apenso D-12.

    Nessa ocasião, foi ainda acordado entre os técnicos do Banco de Portugal e os responsáveis do BCP que, atendendo à elevada quantidade de informação solicitada, esta iria sendo remetida ao Banco de Portugal até ao dia 26 de Outubro de 2007 e que no dia seguinte seria realizada a inspecção no BCP.

    Não obstante alguns dos elementos solicitados terem sido, entretanto, fornecidos ao Banco de Portugal, essa acção de supervisão e a correspectiva inspecção nunca chegaram a realizar-se.

    No dia 7 de Dezembro de 2007, no decurso desta última acção de supervisão, os técnicos do Departamento de Supervisão Bancária do Banco de Portugal entregaram aos responsáveis do BCP um novo pedido de elementos que está junto ao Apenso D-12 dos autos, solicitando informação sobre as 17 sociedades offshore e cópia de normativos internos que regulassem especificamente o relacionamento entre o Grupo BCP e entidades com características de veículos, informação que foi prestada mediante cartas de 13.12.2007, de 14.12.2007, de 18.12.2007, de 19.12.2007, de 20.12.2007 e de 28.12.2007, constando a mesma dos Anexos I a IV daqueles autos.

    Enquanto decorreram as supostas acções de supervisão, o BCP nunca foi informado pelo Banco de Portugal de que: (i) corria contra si um processo contraordenacional; (ii) que assumia a qualidade de suspeito, imputado ou Arguido, em processo de tal natureza (iii) ou sequer que estava a ser investigada

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    matéria de um ponto de vista da sua pretensa relevância contra-ordenacional, pelo que toda a prova documental foi voluntariamente fornecida pelo BCP ao Banco de Portugal, sem que aquele soubesse que estava a ser alvo de uma investigação realizada no âmbito de um processo sancionatório e destinado a apurar a sua eventual responsabilidade contraordenacional ou criminal e, nessa convicção, bem sabendo que a falta de colaboração consubstanciava a prática da contraordenação prevista, no caso da falta de colaboração para com o Banco de Portugal, nas als. g) e j), do artº 210.º do RGICSF, o BCP forneceu à CMVM e ao Banco de Portugal todas as informações que lhe foram por estas solicitadas.

    Igual conduta aponta relativamente à CMVM. Os autos da contraordenação instaurados pela CMVM indiciam que esta entidade tomou conhecimento da notícia do crime, em momento bastante anterior a Dezembro de 2008, data em que foi instaurado o processo contraordenacional, tendo a prova de suporte da acusação sido colhida à margem de um qualquer processo e em violação das respetivas garantias de defesa, em particular, do BCP.

    No seu entender, o processo físico iniciou-se em 3 de Dezembro de 2007, com um ofício, através do

    qual a CMVM solicitou, ao BCP, um conjunto de elementos relacionados com as notícias divulgadas nos meios de comunicação, relativamente à existência de um contrato de concessão de crédito, constituído ou renovado no ano de 2006, entre o BCP e a sociedade Somerset Associates Limited cujo beneficiário económico é o Dr. José Góis Ferreira : (i) do dossier da referida sociedade, incluindo processos de abertura de conta, identificação de todas as relações contratuais estabelecidas entre as partes, indicação da utilização que foi dada a esses financiamentos e extrato ou descritivo dos movimentos nas contas abertas junto de entidades do grupo BCP; cópia de quaisquer contratos de concessão de crédito entre o BCP e o Dr. José Góis Ferreira que ainda não tivessem sido entregues à CMVM, na sequência do ofício da CMVM de 17 de Outubro de 2007.

    Para reforçar a sua conclusão que a CMVM adquiriu notícia do crime cerca de um ano antes da instauração do processo contraordenacional, menciona as já citadas notícias publicadas no Diário Económico, no dia 15 de Outubro de 2007 e de 3 de Dezembro de 2007, no Jornal de Negócios e, ainda :

    i) o conteúdo das “conclusões preliminares” enviadas ao BCP, por carta datada de 21 de Dezembro de 2007, as quais contêm a descrição de factos que constituem a base factual da Acusação que veio a ser deduzida, mas também, a conclusão - al. e) – que ocorrera violação do dever de prestar informação verdadeira ao mercado;

    ii) os pedidos de informações, dirigidos à autoridade congénere holandesa, no dia 27 de Março de 2008; à autoridade congénere de Cayman, em 29 de Maio de 2008; à congénere das British Virgin Islands, em 4 de Junho de 2008; à Comissão do Mercado de Capitais Angolana, de 11 de Junho de 2008;

    iii) o Departamento de Assuntos Jurídicos e Contenciosos da CMVM esteve, desde o início da alegada acção de supervisão, envolvido no processo, solicitando elementos, informações e propondo autuações, apesar de, formalmente, apenas ter sido deliberado o envio, para aquele departamento, do “Relatório Final da Ação de Supervisão ao BCP”, elaborado pelo Departamento de Supervisão de Mercados, no dia 4 de Dezembro de 2008, não dispondo aquele departamento de quaisquer competências em sede de supervisão.

    (iv) a deliberação do Conselho Directivo da CMVM contém em anexo uma proposta de Acusação que lhe havia sido remetida pelo Departamento de Assuntos Jurídicos e Contenciosos da CMVM, ou seja, a deliberação formal que determinou o início do processo de contraordenação já continha incorporada a minuta da Acusação;

    (v) a participação que o Comendador José Berardo remeteu ao Banco de Portugal foi remetida à CMVM, na mesma data.

    Enquanto decorreu a suposta acção de supervisão, o BCP nunca foi informado pela CMVM que (i)

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    tinha a qualidade de suspeito, investigado ou arguido (ii) ou sequer que estava a ser investigada matéria de um ponto de vista da sua pretensa relevância contra-ordenacional ou penal, constando das conclusões preliminares da CMVM de 21 de Dezembro de 2007 que prosseguiria “a ação de supervisão em curso”, estando aquele legitimamente convicto de que os pedidos efetuados pela CMVM estavam inseridos, todos eles, numa ação de supervisão, e foi nessa convicção e sabendo que a falta de colaboração consubstanciava a prática da contraordenação prevista no artº 389.º, n.º 3, als. b) e c), do CdVM, e que incorria na prática de um crime de desobediência, previsto no artº 381.º do mesmo Código, que o BCP forneceu à CMVM todas as informações que lhe foram por esta solicitadas.

    Em suma, pugna pela inadmissibilidade de valoração de prova obtida ao abrigo de putativas

    acções de supervisão por a recolha de elementos probatórios junto do visado sob o manto da supervisão, quando pretendia instruir os respectivos processos contraordenacionais, se mostrar contrária ao direito ao processo equitativo e ao princípio da lealdade, enquanto exigência do princípio da legalidade, e violar o direito à não auto incriminação, direito fundamental, sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias previsto no título II, da Parte I, da CRP, decorrente da tutela da dignidade da pessoa humana e do princípio do Estado de Direito Democrático (artºs 1.º e 2.º, da CRP), do princípio do processo equitativo (artºs 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 5, da CRP), e do princípio da presunção da inocência (artº 32.º, n.º 1, da CRP), e encontra-se consagrado no artº 6.º da CEDH e no artº 14.º do PIDCP.

    Conclui, assim, que a prova recolhida antes e após a abertura formal daqueles processos de contraordenação íntegra o conceito de prova de valoração proibida, o que gera a respectiva nulidade insanável, nos termos dos artºs 126.º e 122.º, n.º 1, do CPP, aplicáveis ex vi artº 41.º, n.º 1, do RGCO, bem como das ulteriores provas obtidas por seu intermédio porque são “fruto de prova proibida”.

    Invoca a inconstitucionalidade da norma extraída dos artºs 116.º, n.º 1, al. e), 120.º, n.º 3 e

    213.º, n.os 1 e 2, do RGCISF, artºs 361.º, nº2, al. a), 408.º, do CdVM e artºs 33.º, n.º 1, 41.º, n.º 2, e 54.º, n.º 2, do RGCO, 125.º, 126.º, nºs 1, e 2, al. a), n.º 3, 241.º, e 262.º do CPP, interpretada no sentido de que o BdP e a CMVM, enquanto autoridades administrativas reguladoras e supervisoras, podem acusar uma pessoa coletiva sujeita à sua supervisão com base em provas, nomeadamente documentos, obtidas dessa mesma pessoa coletiva no âmbito de um procedimento de supervisão de caráter não sancionatório, ao abrigo dos seus poderes de supervisão e sob a cominação implícita da prática de uma contraordenação e de um crime, nos termos previstos no RGCISF, já depois de aquela entidade ter tido notícia de factos com eventual relevância contraordenacional ou criminal, mas sem que tenha instaurado o respetivo processo contraordenacional e sem que tenha informado a visada de que era suspeita da prática de atos ilícitos contra-ordenacionais ou criminais e/ou que estava a investigar a prática de factos ilícitos contraordenacionais ou criminais – por violação dos artºs 2.º, 20.º, n.º 4.º, 26.º, n.º 1 e 32.º, n.os 1, 2, 5, 8 e 10, da Constituição da República Portuguesa.

    Defende ainda que tal norma, com a interpretação no sentido apontado, viola também as normas consagradas ou decorrentes dos artºs 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da O.N.U., gerando a sua inaplicabilidade e, bem assim, uma violação de incisos com acolhimento constitucional, nomeadamente nos termos dos artºs 8.º e 16.º, n.º 1, da CRP.

    (3) Suscita ainda a nulidade dos processos contraordenacionais por inexistência do inquérito

    e, consequentemente, da prova.

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    Argumenta o arguido que independentemente da confusão de atribuições e de competências que são legalmente conferidas à CMVM e ao Banco de Portugal, cabe a estas entidades assegurar uma efectiva separação destes campos, pelo menos sob o ponto de vista processual.

    Enquanto supervisoras, aquelas entidades actuam no quadro do Direito Administrativo; enquanto investigadoras, acusadoras e decisoras de um processo punitivo, atuam em obediência a regras próprias do direito sancionatório. Não podem, sob a mera aparência de fiscalizador e com as prerrogativas que lhe são atribuídas nessa sede e com essa finalidade específica, agir como investigador, com o único propósito concretizado de recolher prova para instruir um processo contraordenacional que pretende e sabe que vai instaurar. Essa conduta é profundamente desleal e contrária aos princípios basilares de qualquer ramo de direito sancionatório.

    A notícia do crime obriga à comunicação desses factos à entidade competente para instaurar e instruir o processo contraordenacional.

    Transpondo este princípio para a realidade orgânica do Banco de Portugal e da CMVM, o

    cumprimento desta norma obriga à existência de dois órgãos, ou, pelo menos, dois departamentos estanques, responsáveis pelo exercício isolado de cada uma destas competências, mas também, à obrigação de instauração de um processo contraordenacional assim que haja notícia do ilícito. A atribuição de competências ao Banco de Portugal e à CMVM para sancionar as infrações, no quadro da Supervisão Geral, não admite a possibilidade de instrução e investigação à margem de um processo contraordenacional formalmente instaurado. E tanto assim é que o RGICSF e o CdVM regulam os processos contraordenacionais em título próprio e distinto do título correspondente à Supervisão stricto sensu. O Banco de Portugal e a CMVM actuam no âmbito de dois ordenamentos processuais diversos, pautados por princípios enformadores totalmente distintos - a Supervisão Fiscalizadora obedece a um quadro de direito administrativo e a Supervisão Sancionatória deve o mais estrito respeito às regras e princípios de qualquer ramo de direito sancionatório – e quando confrontado com indícios da prática de um ilícito de mera ordenação social – notícia do crime –, fica obrigado a instaurar o competente processo contraordenacional, prosseguindo a sua investigação ao abrigo das regras e princípios próprios deste ramo de Direito (por aplicação directa do disposto nos artºs 241.º e 262.º do CPP, quer por força aplicação do disposto no artº 54.º do RGCO).

    A recepção da denúncia apresentada pelo Comendador Berardo, ao Banco de Portugal, em Novembro de 2007, e da qual a CMVM teve acesso ao abrigo da cooperação institucional existente, obrigava à instauração imediata de dois processos contraordenacionais, por cada uma daquelas entidades, em cumprimento das disposições conjugadas dos artºs 48.º, 241.º, 245.º, 246.º, 248.º e 262.º, do CPP, o que não ocorreu, continuando o Banco de Portugal e a CMVM, a levar a cabo diligências de investigação à margem de qualquer processo contraordenacional formalmente instaurado, rejeitando a posição dos mesmos que a “supervisão tem uma dimensão sancionatória” e que “o processo [contraordenacional] não segue a estrutura acusatória”.

    Não estando as diligências de recolha de prova formalmente integradas numa fase de investigação, tal como prevista no artº 54.º do RGCO (e também nos artºs 241.º e 262.º, do CPP), e tendo esta decorrido de forma secreta e desleal , com violação das garantias de defesa dos arguidos (cf. artºs 20.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5, 8 e 10, da CRP), enferma de nulidade absoluta, insanável, invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso, sendo materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artºs 2.º, 20.º, nºs 1 e 4, e 32.º, nºs 1, 2, 5, 8 e 10, da CRP, a norma que resulta dos artºs 54.º, nºs 1 e 2, 50.º, 43.º e 58.º, todos do RGCO, artº 213.º, n.º 2, do RGICSF, e artº 408.º, n.º 1, do CdVM, se interpretada no sentido de considerar que, nos processos contra-ordenacionais, nomeadamente, nos processos contraordenacionais para os quais é competente o Banco de Portugal ou a CMVM, a fase de

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    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    investigação, e com ela as atividades de obtenção de prova, fora de casos de flagrante delito e iniciada após notícia do ilícito contraordenacional, pode ser realizada pelas entidades administrativas fora da existência de um processo contraordenacional formalmente instaurado.

    Argumenta, ainda que o “processo contraordenacional”, até fls. 13689, é um vasto amontoado de

    documentos, sem qualquer sequência e articulação lógica, sem rubrica nas folhas rubricadas conforme impõe o artº 165.º CPC e que tem como fim último a garantia da sua autenticidade, e sem estarem ordenados cronologicamente, estando a deliberação que determina a instauração do procedimento contraordenacional, datada de 29.12.2008 (cf. fls. 13689), autuada depois do fax do Banco de Portugal datado de 5.1.2009 e recepcionado na CMVM nessa mesma data (cf. fls. 13674 e ss.).

    Invoca a inconstitucionalidade decorrente da confusão no mesmo órgão dos poderes de

    investigação, acusação e julgamento e conclui pela impossibilidade da prova recolhida pelo Banco de Portugal e pela CMVM ser utilizada e valorada nesses ou noutros processos, designadamente, nos presentes autos.

    A CMVM e o Banco de Portugal são entidades públicas integradas na administração indireta do Estado, que exercem poderes de regulação e supervisão da atividade dos agentes económicos : a CMVM exerce os referidos poderes no quadro dos valores mobiliários; o Banco de Portugal exerce-os no âmbito do exercício da atividade das instituições de crédito e das sociedades financeiras.

    O Banco de Portugal tem, no âmbito da função de supervisão do mercado de valores mobiliários, competências materialmente administrativas – designadamente as competências inerentes ao exercício da supervisão (artº 17.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro) – e outras que, materialmente, são (quase) jurisdicionais – em particular, a competência para o processamento das contraordenações previstas na respetiva Lei Orgânica, bem como para a aplicação das respetivas sanções (artº 10.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro).

    A CMVM tem, no âmbito da função de supervisão do mercado de valores mobiliários, competências materialmente administrativas – designadamente as competências inerentes ao exercício da supervisão (artº 4.º do Estatuto da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 473/99, de 8 de novembro) – e outras que, materialmente, são (quase) jurisdicionais – em particular, a competência para o processamento das contraordenações previstas no respetivo Estatuto, bem como para a aplicação das respetivas sanções (artº 9.º do Estatuto Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, já mencionado).

    As competências sancionatórias exercidas por órgãos que integram, em princípio e de acordo com a

    generalidade da doutrina, a Administração – e que, materialmente, integram a função jurisdicional do Estado – são uma manifestação do poder punitivo do Estado, defendendo, assim, que tratando-se de processos materialmente penais e por força da norma do artº 32.º, n.º 10, da CRP, a instrução de processos contraordenacionais e aplicação das respectivas sanções tem de ser efectuada por órgãos distintos no âmbito da pessoa coletiva sob pena de se verificar um pré-juízo contra os sujeitos visados.

    Encontram-se concentradas no Conselho de Administração do Banco de Portugal e no Conselho Diretivo da CMVM as competências para regulamentar o exercício de determinada atividade, emitir as autorizações necessárias para alguém a exercer, impor o cumprimento das diretivas por ele emanadas e, finalmente, aplicar coimas em resultado de processos de contraordenação - artº 10.º, n.º 4, da Lei Orgânica do Banco de Portugal e artº 9.º, als. p), q) e r) do Estatuto da CMVM -, circunstância que assume

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    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    ainda maior gravidade na medida em que os departamentos do Banco de Portugal e da CMVM (Departamento de Supervisão Bancária e Departamento de Supervisão de Mercados, Emitentes e Informação, respetivamente) que instruem os procedimentos administrativos de supervisão e os processos de contraordenação, fazem-no sob a direcção do Conselho Diretivo.

    Conclui, assim, que as normas constantes dos artºs 10.º, n.º 2, 13.º, n.º 2, al. c), 14.º, 16.º, 17.º e

    21.º, al. b), todos da Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei n.º 5/98, de 31 de Janeiro e do artº 9.º, nas als. p), q) e r), do Estatuto da CMVM, concentrando num só órgão ou departamento do Banco de Portugal e da CMVM as competências para investigar a prática de alegados ilícitos, deduzir a respetiva acusação, e julgar a verificação da mesma, aplicando a respetiva sanção, é inconstitucional, por violação dos artºs 2.º, 20.º, n.º 4.º, e 32.º, n.ºs 2, 5 e 8, da Constituição da República Portuguesa,

    Tudo isto para concluir que a prova recolhida pelo Banco de Portugal e pela CMVM não pode ser utilizada e valorada nos processos de contra-ordenação e nos demais processos, designadamente, nos presentes autos.

    Defende o arguido Jorge Jardim Gonçalves a necessidade de aplicação das regras e princípios

    processuais penais in totum aos processos contra-ordenacionais movidos pelo Banco de Portugal e CMVM

    Argumenta que mesmo que se admita que a cumulação das vertentes de supervisão e sancionatória é legítima, à face do quadro constitucional português, traz à colação o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.04.2002, por forma a reforçar a ideia de proximidade entre os ilícitos contra-ordenacionais e os ilícitos penais.

    No sentido da aplicabilidade dos princípios e garantias penais e processuais penais aos processos

    contraordenacionais quando estão em causa infrações puníveis com coimas bastante elevadas, cita Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e conclui pela aplicabilidade de todas as garantias decorrentes do artº 6.º da CEDH - instrumento convencional diretamente aplicável no nosso ordenamento jurídico, nos termos do artº 16.º da CRP -, aos processos contraordenacionais instaurados pela CMVM e Banco de Portugal, atentos os critérios de aferição de ilícitos materialmente penais a natureza da infração e o grau de severidade da sanção.

    Extraindo consequências dessa conclusão, defende o arguido que . (i) os processos contraordenacionais movidos pelos Reguladores devem, nomeadamente: 1. Obedecer a uma estrutura acusatória; 2. Assegurar as mesmas garantias de imparcialidade previstas para o processo penal; 3. Assegurar as garantias de recolha de prova; 4. Assegurar todas as garantias infraconstitucionais previstas pelo legislador ordinário para o

    processo penal (designadamente, no tocante à necessidade de audição do arguido antes da dedução da acusação, de existência de inquérito, de produção e valoração de prova, de definição do objeto do processo em respeito pelo preceituado nos artºs 283.º, n.º 3, do CPP, e de organização dos processos em obediência a regras que permitem sindicar da fidedignidade dos elementos dele constantes e o modo como foram obtidos).

    (ii) as diversas violações da lealdade processual, das regras de recolha e obtenção de prova, de valoração de prova, organização do processo, entre outros, ocorridas in casu, devem ter as mesmas consequências previstas em sede processual penal.

    Invoca a inconstitucionalidade :

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    a) por violação dos artºs 2.º, 3.º, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 4.º, 26.º, n.º 1, e 32.º, da Constituição da República Portuguesa : da norma extraída do artº 389.º, n.º 1, al. a), do CdVM, com a sanção aí estabelecida e as sanções acessórias previstas nos artºs 404.º e 405.º, todos do CdVM, e da norma extraída dos artºs 211.º a 232.º, do RGCISF, interpretadas no sentido de que as infrações aí tipificadas não são materialmente penais e, por isso, não beneficiam, na íntegra, das garantias, princípios e regras de foro penal e processual penal;

    b) por violação dos artºs 2.º, 3.º, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 4.º, 26.º, n.º 1, e 32.º, da Constituição da República Portuguesa : a interpretação do artº 41.º do RGCO, no sentido de as referidas garantias, princípios e regras, não se compreenderem na remissão operada por este dispositivo.

    Defende, ainda, que tais normas, com a interpretação no sentido apontado, violam, também, as regras consagradas ou decorrentes dos artºs 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da O.N.U., gerando a sua inaplicabilidade e, bem assim, uma violação de incisos com acolhimento constitucional, nomeadamente nos termos dos artºs 8.º e 16.º, n.º 1, da CRP.

    Caso assim não se entenda, defende o arguido a aplicação subsidiária das normas constantes do CPP ao Direito Contraordenacional – artigos 31º e 41º, nº1, do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações posteriores.

    (4) Na Contestação, o arguido Jorge Jardim Gonçalves deduz defesa por impugnação, negando a

    prática dos ilícitos imputados. No que concerne ao crime de manipulação de mercado, defende tratar-se de um crime de perigo

    concreto, pelo que o tipo só é preenchido quando o bem jurídico - o regular funcionamento dos mercados - tenha sido efectivamente posto em perigo, ou seja, o perigo de lesão do bem jurídico concretiza-se pela prática de condutas idóneas a alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados.

    Conclui o arguido que as operações imputadas não integram o conceito de facto idóneo à alteração do regular funcionamento dos mercados, nem as mesmas foram praticadas com o propósito descrito na acusação, na medida em teriam ao seu dispor meios eficazes – que estes não eram - para atingir os efeitos alegadamente pretendidos (rendibilidade das acções) e não existia qualquer motivo para proceder ao tratamento contabilístico das diversas situações aqui em causa, em moldes distintos dos adoptados pelo Banco, argumentando não se mostrar possível definir uma única forma válida de tratamento de operações contabilísticas nas contas e, menos ainda, declarar que a forma de tratamento é falsa porquanto, a informação, por inadequação de critério, poderia estar errada, mas não é suscetível de um juízo de falsidade.

    Conclui, assim, que não há acção praticada pelos arguidos susceptível de integrar o primeiro

    segmento do artº 379.º, n.º 1, do CdVM e, mesmo que assim não se entendesse, as condutas imputadas não se mostram idóneas para alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado.

    Invoca, ainda, a falta de consciência de que tais condutas fossem idóneas para alterar o regular funcionamento dos mercados e a ausência de intenção de praticar quaisquer actos idóneos para esse efeito.

    Pronunciando-se sobre o crime de falsificação de documentos, defende que os Relatórios são

    tradução fiel da realidade contabilística do BCP, elaborados com base em elementos preparados por vários departamentos do Banco e nos quais depositou – como deposita – toda a confiança profissional, tendo as contas sido aprovadas na convicção de que correspondiam às exigências legais vigentes na

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    matéria e que eram absolutamente adequadas a retratar a situação económica do Banco, pelo que não se verificam os pressupostos da responsabilidade criminal.

    Sustenta, ainda, que, na Pronúncia, a imputação do crime de falsificação é sustentada no conteúdo dos Relatórios e Contas aprovados em que também assenta a alegada informação falsa transmitida ao Regulador e ao Mercado, para efeitos de imputação do crime de manipulação.

    Tendo a “falsificação de documentos” sido realizada como um meio para atingir o crime de manipulação de mercado e não sendo possível cometer-se este ilícito sem a prática do crime de falsificação de documento, não é admissível a punição do arguido pela prática, em concurso efectivo, dos dois ilícitos, sob pena de violação do princípio jurídico-constitucional ne bis in idem, também designado princípio da proibição de dupla valoração (consagrado no artº 29.º, n.º 5, da Constituição), configurando a situação a existência de concurso aparente.

    Invoca, assim, a inconstitucionalidade da norma extraída dos artºs 255.º, al. a), 256.º, als. d) e

    e), do CP, e artº 379.º do CdVM, interpretada no sentido da admissibilidade de aplicação cumulativa das normas referidas, ao mesmo recorte fáctico, por violação dos artºs 2.º, 3.º, 13.º, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 29.º, 30.º e 32.º, da Constituição da República Portuguesa, bem como a violação das normas consagradas ou decorrentes dos artºs 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da O.N.U..

    Prosseguindo a análise dos demais pressupostos da responsabilidade criminal, invoca o arguido a

    existência de erro porquanto, não é pacífica a solução propugnada sobre as diversas matérias objecto do processo penal, situação que tem consequências ao nível da culpa dos agentes. Desconhecia o arguido que o BCP era o verdadeiro UBO das offshore, que essas entidades estavam a ser instrumentalizadas para aumentar a cotação do título ou dissimular perdas e que as contas deviam ter sido elaboradas (e provisionadas) nos moldes alegados na Pronúncia. Este desconhecimento coloca o arguido numa situação de erro sobre a factualidade típica e sobre a proibição, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 16.º CP, situação que surge muito particularmente realçada pelo facto de as condutas terem sido praticados num meio empresarial organicamente complexo, “assente numa imbricada divisão de competências”. Não obstante o exercício dos cargos estatutários no BCP ao longo dos anos, as procurações que lhe foram cometidas, as diversas aprovações em Reuniões Conselho de Administração e as aprovações dos Relatórios e Contas, desconhecia o arguido que as opções que estavam a ser tomadas pelo Banco não eram ilícitas e, por maioria de razão, que eram criminalmente punidas : desconhecia – como desconhece – que, a aceitar-se a tese da pronúncia, a solução encontrada pelo Banco no sentido de achar UBO’s para as 17 Cayman não era válida; que os contratos celebrados não eram lícitos (ou que eram capazes de servir os propósitos descritos na acusação); que Góis Ferreira não era UBO material das sociedades offshore Góis Ferreira; que as regras contabilísticas aplicáveis ao BCP, desde 2002 eram as descritas na pronúncia – por oposição às aplicadas pelo BCP –; que as offshore e as demais sociedades indicadas no libelo deviam estar refletidas nos Relatórios e Contas do BCP nos moldes vertidos na pronúncia.

    Caso não se entenda haver erro sobre a proibição, então estamos em presença de erro sobre a ilicitude, nos termos e para os efeitos do artº 17.º do CP, atentas “ as práticas usuais do sector financeiro, bem como a especial complexidade da informação contabilística”, o que afastando a censurabilidade exclui a culpa do Arguido.

    Invoca, ainda, a prescrição do procedimento criminal e o princípio “in dubio pro reo”.

    Independentemente da bondade das considerações jurídicas e demais apreciações tecidas pela pronúncia

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    – que o arguido não aceita –, em face da inexistência de qualquer indício capaz de demonstrar o mais pequeno envolvimento do arguido – e dos demais – na criação das 17 sociedades Cayman e offshore Góis Ferreira e, por maioria de razão, com os objetivos pretendidos pela pronúncia, não poderá o Tribunal a quo dar como demonstrada a sua participação naquilo que entende ser o plano de valorização do título e ocultação de perdas do BCP. Do mesmo modo, a existência de várias interpretações possíveis relativamente aquilo que deve ser entendido como UBO, sobre qual era o regime aplicável em sede consolidação de contas, entre outros, não pode deixar de ser valorado em favor dos arguidos quando toca a saber se participaram no alegado plano descrito na pronúncia, ou seja, não pode dar-se como demonstrado que os arguidos agiram bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punida por lei e com o objetivo concretizado de cometer os ilícitos em que vêm acusados.

    Defende, ainda, que o respeito pelo mesmo princípio leva ainda a considerar demonstrada toda a factualidade apresentada pelos arguidos em sede de Defesa que integre essa mesma situação de non liquet, designadamente no que toca ao modo como foram criadas as offshore, aos objetivos pretendidos pelos arguidos na busca de UBO’s, à materialidade subjacente à operação ABN e ao projecto Baía de Luanda, entre outros, sendo a valoração da prova produzida nos presentes autos em moldes distintos contrária ao princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, o que implica a sua nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 18.º e 32.º, da CRP.

    Arrolou testemunhas e juntou documentos.

    * 7.2. Contestação apresentada pelo arguido Filipe de Jesus Pinhal: (1) O arguido Filipe de Jesus Pinhal negou a prática dos ilícitos pelos quais se encontra

    pronunciado, pelas razões expostas na Contestação junta a fls. 7929 a 8007. Na Defesa apresentada contesta a existência de um plano como o descrito no Despacho de

    Pronúncia ou qualquer decisão conjunta, descrevendo o BCP como uma instituição complexa e com uma gestão segmentada, assente em princípios como a autonomia, confiança e seriedade.

    No processo de aprovação de crédito não existia interferência material ou real dos membros da administração e dependia da confiança depositada nos altos quadros e nos quadros intermédios.

    Rejeita a iniciativa na apresentação das operações de crédito, bem como o dever de analisar substancialmente os processos de aprovação e renovação de créditos concedidos às 17 sociedades offshore Cayman, às sociedades offshore Goes Ferreira e à Dazla, nas quais interveio, o que justifica por se tratar de operações originadas em departamentos que não estavam sob a sua supervisão ou hierarquia e, ainda, por todas essas operações serem analisadas autonomamente pelas estruturas que tinham essa competência e que de si não dependiam ou reportavam.

    Nega qualquer iniciativa, no plano da constituição das sociedades offshore Cayman e Góis Ferreira, bem como a execução, o acompanhamento ou o conhecimento da constituição e da actividade das sociedades offshore Cayman e Góis Ferreira.

    Refuta qualquer responsabilidade ou conhecimento ou tomada de posição relacionada com títulos transaccionados no BCP ou em sociedades com contas no BCP.

    A informação de gestão, a elaboração da contabilidade individual e a consolidação de contas estavam fora do perímetro de intervenção, de execução, de conhecimento ou, sequer, do seu controlo,

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    razão pela qual nega ter ocultado prejuízos incorridos - rejeita a existência de perdas definitivas mas apenas, créditos vivos – ou divulgado contas falsificadas, bem como a intervenção, directa ou indirecta na elaboração das mesmas.

    Afirma nunca ter sido responsável pelo Private, pela Sucursal de Cayman, pela Direcção Internacional, pela Direcção de Relação com os Investidores, pela Servitrust – Investment Management and Services, S.A. e pelo Centro Corporativo, nem ter acompanhado, directa ou indirectamente, a actividade de cada uma dessas áreas ou ter a seu cargo a hierarquia, a responsabilidade ou o acompanhamento, directo ou indirecto, de tais Direcções e Departamentos.

    Rejeita, ainda, ter tido entre as suas funções as relações com as autoridades de supervisão, bem como a preparação, elaboração, resposta e envio de informações e de relatórios para as mesmas.

    Por último, refere não ter dado causa a quaisquer prejuízos para o BCP ou para terceiros e declina qualquer responsabilidade por danos ou aproveitamento indevido ou vantagem ilegítima.

    Em suma, conclui o arguido Filipe de Jesus Pinhal não ter violado, consciente e deliberadamente, a lei, nunca ter pretendido enganar o Banco ou as autoridades de supervisão, não ter distorcido a realidade que conhecia ou adulterado registos contabilísticos, retido ou alterado informações em que confiava e que assumiu como boas.

    Arrolou testemunhas e juntou documentos.

    * 7.3. Contestação apresentada pelo arguido António Manuel de Seabra e Melo Rodrigues: (1) Invoca o arguido António Rodrigues a nulidade da Acusação por os autos não fornecerem

    qualquer indício que seja capaz de sustentar a imputação, nos termos em que lhe é feita, de ter quinhoado naquilo que se designa por uma estratégia e que essa estratégia não aparece evidenciada com quaisquer elementos seguros, tendo esta ausência de fundamento, no plano processual, como consequência a nulidade da Acusação, por violação do disposto no artigo 283º, nº3, alínea b), do Código de Processo Penal.

    Citando os ensinamentos do Professor Germano Marques da Silva, “é elemento essencial da

    acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção. É que são estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que serão objecto do julgamento” (“Curso de Processo Penal III”, Editorial Verbo, 1994, pág. 115), e os ensinamentos dos Professores Jorge Miranda e Rui Medeiros, em comentário ao artigo 32º, nº1, da Constituição de República Portuguesa, “…os direitos a uma ampla e efectiva defesa não respeitam apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direitos ou possam condicionar a decisão definitiva do caso” (“Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 354), reitera os fundamentos por si invocados em fase prévia do Processo e nos quais estribou a nulidade da Acusação, por si invocada: a Acusação não contém a articulação, concreta e precisa de factos ilícitos e sem factos concretos não pode haver imputação de ilícitos, nem se pode desenhar a autoria.

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    E conclui não lhe ser possível defender-se, convenientemente, de uma imputação especulativa, sem elementos de suporte e que se esgota num simples raciocínio dedutivo; de um propósito que lhe é atribuído, em compropriedade com os demais arguidos, sem que lhe seja dito, com clareza, por que razão lhe é atribuído esse propósito. Não sendo explicitado o motivo pelo qual foi seleccionado, pelo Ministério Público, para lhe ser atribuído o gizar de um plano que desconhece e não sabendo quais as razões da sua eleição, não pode, verdadeiramente as contestar, sem ser pelo recurso à reiterada negação.

    (2) Na Defesa apresentada, o arguido António Rodrigues analisa o conteúdo da Acusação, em três

    pontos: (i) a utilização de um conjunto de sociedades offshore, controladas pelo BCP, para compra e venda

    de acções desse banco; (ii) das perdas decorrentes da compra e venda de acções, através dessas offshore, e respectiva

    dissimulação em dois contextos: num contexto financeiro e num contexto não financeiro (vertente imobiliária);

    (iii) as “concretas actividades manipulatórias”, a divulgação de informação falsa ao mercado, a falsificação da contabilidade e o indevido recebimento de quantias a título de participação nos resultados.

    Argumenta o arguido António Rodrigues que a estrutura da Acusação assenta na atribuição, aos arguidos, de um “plano” elaborado para fazer face a necessidades de capital em função das aquisições efectuadas, fazendo parte integrante desse plano “a realização de um conjunto significativo e sistemático de intervenções no mercado, a partir de um grupo de veículos offshore materialmente sobre a alçada do BCP, com vista a estabilizar a cotação do título aumentando a liquidez das acções, omitindo-se publicamente que era o BCP a induzir tal liquidez”. Para a “sustentação do preço das acções por parte do BCP”, era efectuada a compra de acções próprias, em momento de baixa de preço, e a venda em momentos de subida do preço.

    As operações encontram-se descritas, na Acusação, ligadas entre si como actos materiais de

    execução da estratégia delineada entre os arguidos. Porém, não havendo plano, “os actos materiais praticados têm outra explicação”.

    Nega, o arguido António Rodrigues, a existência de qualquer estratégia desse teor e rejeita a leitura que é feita dos factos narrados na acusação, envoltos nessa intenção.

    No que concerne aos factos descritos na Acusação e que lhe são imputados, o arguido António

    Rodrigues aceita que “a maior parte” – ressalvando algumas imprecisões na descrição desses factos - são “verdadeiros na sua estrita materialidade”, mas apresenta dos mesmos uma explicação diversa e que qualifica como sendo a “correcta, verdadeira e adequada”, mormente:

    (i)a constituição das sociedades offshore; (ii) a razão da existência dos financiamentos concedidos às sociedades offshore; (iii) a natureza da assunção, por parte de três identificadas pessoas, da posição de UBO’s de tais

    sociedades offshores; (vii) a natureza e razão da existência do contrato celebrado com o ABN; (viii) a natureza e justificação das operações sequentes, enquadradas no objectivo final de

    recuperação de crédito e constituindo cada, uma etapa com vista a alcançar esse fim almejado, contrariando a concepção da Acusação, como dissimulação num universo imobiliário.

    Inicia a exposição e explicação dos factos pela análise do elemento subjectivo dos ilícitos

    relativamente aos quais se encontra pronunciado, argumentando que os actos cuja prática lhe é imputada

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    não têm, em si mesmo, quaisquer tons de ilícito. Só os ganham em virtude de, previamente, lhes ser atribuída uma intenção determinada: manipular o mercado, mistificar a realidade concernente às cotações e depois mascarar a documentação, falsificando-a, em conformidade com o tal dito plano. É essa intenção pré-definida, que vai desvalorizar axiologicamente os factos praticados, crivando-os de motivações que não têm e de ilegalidades das quais não padecem.

    Considera, porém, que as imputações que lhe são feitas encontram-se “…órfãs de provas ou mesmo de meros indícios, abandonadas à mercê de um raciocínio de base puramente especulativa”.

    Defende o arguido António Rodrigues que o plano, também denominado de estratégia ou desígnio,

    é o racional da Acusação - tudo explica e tudo interpreta – e o elemento absorvente – sem ele, os factos teriam forçosamente outra interpretação.

    Porém, tal estratégia não aparece evidenciada, nos autos, com quaisquer elementos seguros e pese embora o esforço para o plano tudo explicar – são elencadas as unidades orgânicas envolvidas (artigo 9º e seguintes da acusação), indicada a entidade que executou cada operação (artigo 32) e descrita a operação e a actuação (artigos 78 e seguintes) -, considera que o essencial permanece sem explicação.

    Refere, desde logo, a circunstância de nunca ter trabalhado no BPA e com base nesse facto excluísse, ainda que parcialmente, do perímetro do artigo 85º da Decisão Instrutória. Os actos por si praticados e que lhe são imputados incorporam-se no desempenho da sua actividade, mormente no conjunto de diligências levadas a cabo com vista à recuperação de crédito, negando o carácter ilícito que lhes é atribuído.

    A segunda ordem de questões incide sobre a constituição das offshore, negando ter tido qualquer

    papel na constituição das 17 sociedades offshore, quer na constituição das quatro sociedades Góis Ferreira.

    O terceiro ponto que o arguido entende que carece de explicação prende-se com o financiamento concedido às offshore: nega qualquer intervenção na origem da concessão de crédito às 17 sociedades offshore; admite ter intervindo na origem da concessão de crédito às sociedades Góis Ferreira mas, alerta para o facto dos créditos concedidos a estas sociedades localizarem-se vários anos antes de o plano ser gizado, ou seja, os créditos foram concedidos em 1996/1997 e o plano, tal como concebido pela Acusação, só nasceu em 1999.

    Conclui, o arguido António Rodrigues, que o plano, quando analisado, demonstra uma fragilidade absoluta e congénita. E sendo atribuído um tão absoluto protagonismo ao “plano”, impor-se-ia a justificação da sua existência, a indicação de indícios, sólidos e viáveis, capazes de atribuir a sua paternidade a pessoas em concreto. Todavia, a Acusação não explica, nem tenta explicar, o que permite afirmar a existência de um plano e a razão da atribuição, aos arguidos, da concepção, elaboração e execução do mesmo.

    Nega a prática do crime de manipulação de mercado e do crime de falsificação porquanto, não

    realizou operações de natureza fictícia, idóneas para alterar o mercado ou inidóneas; não visou causar prejuízo a quem quer que fosse, nem obter para si benefício ilegítimo; nem fez constar falsamente de documento qualquer facto juridicamente relevante.

    Rejeita qualquer intervenção na constituição das sociedades "offshore", argumentando que tendo sido quem se apercebeu, em 2002, da inexistência de registo de UBO, no que diz respeito às 17 sociedades "Cayman" , e caso os arguidos tivessem pretendido ocultar a ausência de UBO, empenhar-se-iam (nomeadamente o arguido Filipe Pinhal) em solicitar a Frederico Moreira Rato, Ilídio Monteiro e Bernardino Gomes, que aceitassem a assunção dessa qualidade desde o início das sociedades; e nunca

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    Processo nº 7327/07.9 TDLSB da 8ª Vara Criminal de Lisboa

    unificariam a situação das 17 sociedades Cayman no quadro das diligência de recuperação encetada mas o inverso, ou seja, procurariam mantê-las desagregadas.

    Refere nunca ter tido a responsabilidade pelos pelouros ligados à concessão de crédito e confrontado com a situação que descobrira, participou-a ao presidente do Banco, Jorge Jardim Gonçalves e ao Vice Presidente, Filipe Pinhal. Reportada a situação aos Vice Presidente e Presidente do Banco, caberia a estes tomarem as diligências que entendessem necessárias, seja para divulgação do ocorrido, seja para a respectiva análise, nomeadamente mediante o recurso a auditoria, não sendo tais medidas da sua competência.

    Argumenta que caso pretendesse esconder as perdas potenciais das sociedades devedoras, teria caminhos bem mais seguros, lineares e letais, tais como, constituída a provisão de duzentos milhões de euros, em Novembro de 2002, efectuasse o "write-off" dos créditos, para que a situação ficasse fechada.

    Arrolou testemunhas e juntou documentos. *

    7.4. Contestação do arguido Christopher de Beck:

    (1) Na Contestação, invoca o arguido Christopher de Beck a nulidade da Acusação porquanto, esta peça “… não contém a descrição dos factos que, concreta e individualizadamente, lhe são imputados e que de per si preencham os tipos de crime de que é acusado.

    Admite que na Acusação são descritos, em concreto, alguns factos nos quais participou - (i) aprovações de créditos, juntamente com outro administrador às 17 sociedades Cayman e Góis Ferreira (nºs 556 e 569 d