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EMBRIAGUEZ DE MOTORISTA E CLÁUSULAS RESTRITIVAS NOS CONTRATOS DE SEGURO DE AUTOMÓVEL. ANGÉLICA L. CARLINI é advogada especialista em seguros, docente do ensino superior na PUC de Campinas, doutoranda em educação, acadêmica e catedrática da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro e do IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. 1.Introdução. 2. Contratos de Seguro – conceito e principais dispositivos legais que os regulam. 3. Hermenêutica a ser aplicada à legislação que incide sobre os contratos de seguro. 4. Função social do contrato de seguro. 5. Conclusão. 1. Introdução. Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), amplamente divulgada na imprensa, entendeu que a ingestão de álcool por parte do motorista do veículo segurado não desobriga a seguradora de indeniza- lo, porque a cobertura securitária tem por objetivo cobrir os danos decorrentes do acidente. A questão foi definida no julgamento de recurso especial apresentado por uma segurada contra decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que havia dado ganho de causa à seguradora entendendo que tendo constado no boletim de ocorrência que a segurada havia se negado a fazer o teste do bafômetro e, além disso, apresentava

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EMBRIAGUEZ DE MOTORISTA E CLÁUSULAS RESTRITIVAS NOS

CONTRATOS DE SEGURO DE AUTOMÓVEL.

ANGÉLICA L. CARLINI é advogada especialista em seguros,

docente do ensino superior na PUC de Campinas, doutoranda em

educação, acadêmica e catedrática da ANSP – Academia Nacional

de Seguros e Previdência, da AIDA – Associação Internacional de

Direito do Seguro e do IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do

Seguro.

1.Introdução. 2. Contratos de Seguro – conceito e principais

dispositivos legais que os regulam. 3. Hermenêutica a ser

aplicada à legislação que incide sobre os contratos de seguro. 4.

Função social do contrato de seguro. 5. Conclusão.

1. Introdução.

Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), amplamente

divulgada na imprensa, entendeu que a ingestão de álcool por parte do

motorista do veículo segurado não desobriga a seguradora de indeniza-

lo, porque a cobertura securitária tem por objetivo cobrir os danos

decorrentes do acidente.

A questão foi definida no julgamento de recurso especial apresentado

por uma segurada contra decisão do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais, que havia dado ganho de causa à seguradora entendendo que

tendo constado no boletim de ocorrência que a segurada havia se

negado a fazer o teste do bafômetro e, além disso, apresentava

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sintomas de embriaguez ou de ingestão de substancias tóxicas, e não

havendo qualquer prova em contrário, deve ser julgado improcedente o

pedido de condenação da seguradora ao pagamento de indenização.

O recurso apresentado pela segurada continha alegação de que ela não

tinha tido a intenção de causar o acidente, embora tenha colidido com

quatro veículos estacionados na via pública, conforme informa a Revista

Consultor Jurídico de 20 de dezembro de 2.005.

A decisão do STJ foi proferida pela 4ª Turma, e teve como relator o

Ministro Aldir Passarinho.

A notícia divulgada no final do ano de 2.005 é impactante para o

mercado de seguro brasileiro, que tem na comercialização de seguros de

automóvel um de seus mais expressivos segmentos de mercado,

inclusive para captação de novos negócios, como seguros residenciais,

de vida, entre outros.

De outro lado, em 18 de janeiro de 2.006, a imprensa divulgou notícia

de que a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei do deputado

Beto Albuquerque, do PSB do Rio Grande do sul, que aumenta a punição

para motoristas que cometerem crime culposo no trânsito e estiverem

sob efeito de álcool, substâncias tóxicas ou entorpecentes no momento

em que praticarem o crime.

Na proposta de lei, o condutor de veículo automotor que se recusar a

realizar exame de comprovação de embriaguez, será considerado como

embriagado se houver um testemunho do policial que atender a

ocorrência. O texto do projeto afirma que a embriaguez será

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comprovada por "notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor,

resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes".

O novo texto de lei tem por objetivo diminuir a impunidade no trânsito

no Brasil, cujos acidentes matam mais de vinte mil pessoas por ano,

embora os dados não sejam confiáveis em vista das poucas pesquisas

sobre o assunto e em razão da escassez de dados, vez que são

considerados mortos no trânsito apenas aqueles que morrem no local do

acidente. Os que falecem no hospital, momentos ou dias após o

acidente, ainda que de causas que tenham relação com o traumatismo,

não são considerados mortos de trânsito e por essa razão, não são

computados como números estatísticos de trânsito. Em alguns países

europeus o tempo para cálculo da morte como decorrente de acidente

de trânsito é de até trinta dias, o que torna as estatísticas muito mais

seguras.

A busca de soluções para formar melhor o motorista brasileiro e,

conseqüentemente, coibir as condutas abusivas é procurada

sistematicamente pela sociedade brasileira nos últimos anos e, embora

não se possa negar que o Código de Trânsito Brasileiro tenha

contribuído muito para a disseminação de uma nova cultura entre os

motoristas, é inegável que a ausência de maior fiscalização e de

punições mais rigorosas amenizou o impacto inicial trazido pelo CTB.

Os altos índices de acidentes de trânsito com suas conseqüências

materiais e imateriais sempre tão graves, influem diretamente na

precificação dos contratos de seguro, tornando-os não raro inacessíveis

para uma expressiva parcela da população brasileira.

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Por outro lado, a falta de uma cultura de contratação de seguros no

Brasil expõe todos os cidadãos, que ficam arriscados a sofrer danos

materiais e imateriais causados por motorista que não tenha condições

financeiras de assumir os prejuízos e que não tenha se acautelado com

a contratação de um seguro. Nesses casos, a sentença judicial

transitada em julgado se transforma em um quadro para ornamentar a

parede, porque nenhuma valia terá para recuperar ou minimizar os

prejuízos causados.

Pensar na implantação de uma verdadeira cultura de seguro de massa,

tanto no ramo de automóvel como de responsabilidade civil facultativa,

normalmente transacionado junto com o seguro de automóvel, passa

pela necessidade de fortalecer esse instituto jurídico. E só se poderá

fortalecer o contrato de seguro se ele se tornar mais conhecido em seus

aspectos jurídicos, técnicos e econômicos.

Discutir a recente decisão do STJ à luz da realidade nacional dos

acidentes de trânsito, tendo como pano de fundo a necessidade de

fortalecimento das atividades de seguro no Brasil, é uma questão de

grande relevância social.

2. CONTRATOS DE SEGURO – CONCEITO E PRINCIPAIS

DISPOSITIVOS LEGAIS QUE OS REGULAM.

O Código Civil brasileiro definiu contratos de seguro no artigo 757, que

determina: “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga,

mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo

do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos

predeterminados.”

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Dois aspectos são fundamentais na análise: o interesse legítimo; e,

os riscos predeterminados.

A expressão interesse legítimo não era adotada pelo Código Civil de

1.916, que tratava o contrato de seguro no viés indenizatório, impróprio

contudo para os contratos de seguro de pessoas em que a inviabilidade

de indenização é por demais evidente. O que se indeniza no seguro de

vida não é o valor da vida perdida, sabida a impassibilidade de

encontrar valor pecuniário para esse bem.

A expressão interesse legítimo tem sido saudada pelos estudiosos do

assunto como mais adequada do ponto de vista técnico securitário. Em

que pese a carência de mais robusta discussão científica sobre a

extensão da expressão interesse legítimo, é razoável afirmar que se

deve entender por interesse legítimo aquele interesse legalmente

defensável, que é legítimo exatamente por estar rigorosamente de

acordo com a legislação em vigor.

Sobre o assunto Tzirulnik, Cavalcanti e Pimentel (2.003, 32), afirmam:

“Ao dizer que a garantia se reporta ao interesse, a norma legal se refere

a uma relação jurídica relevante, isto é, o interesse há de ser protegido

pela ordem jurídica.”

E são ainda mais preciso os autores quando afirmam (2.003, 32): “Se o

interesse consiste na posição juridicamente relevante de um sujeito de

direito para com um bem da vida, a idéia de legitimidade é acostada

para relevar a importância de que a pertinência entre o sujeito e o bem

da vida seja de ordem a fazer com que aquele queira sua preservação,

não desdenhe o status quo e não queira, e nem lhe seja vantajosa, a

realização do risco garantido.”

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Só é legítimo o interesse que não afrontar a legislação em vigor e,

quando a preservação do bem da vida for o verdadeiro ideal do sujeito

contratante do seguro. Isso implica para o segurado cuidar desse bem

da vida com o mesmo desvelo que teria se ele não estivesse amparado

pela cobertura de um contrato de seguro.

O Código Civil contempla, ainda, previsão para riscos assumidos pelo

segurador conforme artigo 760. Esse artigo determina a existência de

cláusulas de riscos cobertos e conseqüentemente, embora não

expressamente mencionado, cláusula de riscos não-cobertos nos

contratos de seguro.

Por fim, no artigo 768 o Código Civil de 2.003 repete em parte o que

dispunha o artigo 1.454 do Código Civil de 1.916, quando determina

que: “O segurado perderá o direito à garantia se agravar

intencionalmente o risco objeto do contrato.”

Nenhuma outra previsão poderia se esperar! Se a garantia contratual

está vinculada a interesse legítimo do segurado sobre pessoa ou coisa,

nada mais correto e coerente esperar que o segurado não agrave

intencionalmente o risco objeto do contrato, porque ele segurado tem

interesse legítimo, ou seja, a preservação da coisa ou da pessoa é de

seu interesse, lhe traz vantagens pecuniárias ou afetivas.

Nesse sentido a lição dos autores Tzirulnik, Cavalcanti e Pimentel,

quando afirmam (2.003, 81): “Há retidão conceitual na norma. Quando

durante a execução do contrato celebrado o segurado agrava

intencionalmente o risco, o comportamento revela o perecimento do

interesse legítimo, objeto do contrato.Afinal, para que seja legítimo o

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interesse garantido é imprescindível que o segurado deseje preservar o

status quo e não queira, nem lhe seja vantajosa, a realização do risco.”

A realização do risco deverá ser, portanto, como regra, fruto de conduta

culposa do segurado, ilícita porque fruto de ato eivado de imperícia,

imprudência ou negligência intencionais, porém com o resultado final

não desejado. A realização do risco é que não pode ser intencional,

embora o ato praticado estivesse eivado de intencionalidade desde o

momento de sua consecução podendo resultar ou não desse ato a

materialização do risco.

Esse elemento é de fundamental importância na compreensão do artigo

768 da legislação civil. A expressão agravar intencionalmente,

contida no artigo, interpretada exclusivamente de forma gramatical,

poderá levar à compreensão de que todo e qualquer ato praticado pelo

segurado e do qual decorra dano à coisa segurada, ficará isento de

indenização por parte da seguradora por ser furto de ação intencional.

Assim fosse estaria descaracterizada a função do contrato de seguro de

bens, que somente mereceria indenização quando os fatos causadores

de danos fossem oriundos de caso fortuito ou de força maior, ou seja,

de atos que dispensassem por completo a intencionalidade da parte.

O ato ilícito culposo é fruto de uma conduta intencional. Não há

intencionalidade do resultado, mas há intencionalidade na prática de ato

culposo, comissivo ou omissivo.

Nesse sentido, enfatiza Cavalieri Filho (2.000,35) “A vontade, como

elemento subjetivo da conduta, é a carga de energia psíquica que

impele o agente; é o impulso causal do comportamento humano. Não se

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confunda, entretanto, vontade com intenção. .... Haverá vontade desde

que os atos exteriores, positivos ou negativos, sejam oriundos de um

querer íntimo livre. Já, a intenção é a vontade dirigida a um fim

determinado. É a bússola da vontade, seu elemento finalístico, que a

norteia para o objetivo eleito.”

Vontade tem, portanto, dois elementos fundamentais para serem

levados em conta: a vontade de praticar uma determinada conduta e, a

vontade de obter um determinado resultado. Nisso consiste, em linhas

gerais, a diferença entre culpa e dolo. Ambas, é certo, vão gerar o dever

de indenizar caso haja prejuízo a outrem, mas nem por isso a diferença

deve entre elas deve ser minimizada.

A vontade de praticar uma conduta capaz de causar um dano, a si

próprio ou a outrem, não é amparada pelos contratos de seguro,

enquanto que a vontade de praticar um ato eivado de imprudência,

imperícia ou negligência, porém sem almejar nenhum resultado danoso,

é exatamente aquela protegida pelos contratos de seguro.

Decorre dessa conclusão a constatação de que o indivíduo praticante de

um ato deve estar, em princípio, de posse plena de seu domínio mental

para poder quantificar em que medida está praticando um ato com

intencionalidade de resultado ou, um ato cujo resultado não pode ser

previsto. Em outras palavras, aquele que se sujeita de forma voluntária

à perda ou redução de sua capacidade de discernimento, já sinalizou a

intencionalidade de correr todos os riscos, exatamente porque se

encontra em uma situação em que não é mais possível administra-los.

3. METODOS DE INTERPRETAÇÃO A SEREM APLICADOS À

LEGISLAÇÃO QUE INCIDE SOBRE OS CONTRATOS DE SEGURO.

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A interpretação do direito é assunto que adquire cada vez maior

relevância na atualidade. A renovação de Códigos, como ocorreu com o

Código Civil, o surgimento de novas leis especiais e, a complexidade da

vida social exigem um estudo mais aprofundado e constante da

interpretação e aplicação do direito, de modo a permitir que o texto de

lei seja permanentemente útil para a organização da vida social e para a

efetivação da justiça.

Para Venosa (2.004, 175) “Interpretar o direito não significa

simplesmente tornar clara ou compreensível a norma, mas

principalmente revelar seu sentido apropriado para a vida real.

interpretar é, de fato, a ponte que liga o abstrato ao mundo real.”

Completa o pensamento de Venosa a afirmação de que o intérprete é

um renovador, porque atualiza a extensão e a compreensão da norma.

Nesse aspecto, provavelmente, resida a maior importância do trabalho

do intérprete no mundo contemporâneo, porque a sociedade muda com

grande velocidade, propõe questões de ordem social cada vez mais

complexas e, com isso, exige que o aplicador da norma realize um

esforço contínuo de compreensão dos múltiplos significados da mesma,

para poder solucionar os problemas concretos que se apresentam.

Interpretar, para uma expressiva parcela dos estudiosos do tema

(Maximiliano, Grau, Bastos, Reale, entre outros), significa extrair o

verdadeiro significado da norma e de posse desse conhecimento, aplicá-

lo ao caso concreto que pede solução mais adequada e, destaque-se,

mais adequada deve sempre ser sinônimo de mais justa.

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Vários são os métodos de interpretação que podem ser utilizados,

segundo os estudiosos do tema. Os mais tradicionalmente citados são:

A) GRAMATICAL OU LITERAL - é o ponto de partida da

interpretação. Através dele se busca alcançar o sentido real, o

significado de cada vocábulo utilizado pela norma. O intérprete, para

utilizar este método, deve ter um perfeito conhecimento gramatical.

Durante algum tempo essa era a única interpretação permitida.

B) INTERPRETAÇÃO LÓGICA OU TELEOLÓGICA – tem em vista a

conclusão que faz sentido daquela que não faz. O que se procura é

desvendar o sentido e o alcance da norma, compatibilizando-a com o

ordenamento. A lei deve ser analisada segundo sua finalidade e a

conclusão do intérprete não pode ser contrária ao sentido da lei.

C) HISTÓRICO – é utilizado para se examinar o momento, a época em

que a lei foi editada, bem como as condições políticas e sociais que

fizeram a lei surgir.

D) SISTEMÁTICO – leva em conta que o ordenamento jurídico possui

unidade e coerência e que a norma não pode ser vista de forma isolada.

As normas se relacionam por conexão, subordinação e analogia. Todas

as normas devem estar subordinadas aos princípios gerais que orientam

o ordenamento e o sistema. A interpretação sistemática parte do

pressuposto de que o sistema jurídico é concebido para ser um todo

harmônico. Dentre os muitos sentidos que um artigo de lei pode possuir,

o mais correto deve ser o que preserva a harmonia do conjunto, do

ordenamento enquanto sistema.

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Os estudos de hermenêutica apontam que nenhum dos métodos deve

ser utilizado isoladamente. Um método deve ser utilizado sempre em

conjunto com os demais, porque não se pode afirmar, em princípio, que

qualquer um deles seja mais relevante que o outro.

Nesta reflexão sobre contratos de seguro e embriaguez de motorista de

veículo segurado, nossa atenção se volta para os métodos de

interpretação lógico e sistemático.

O primeiro, lógico ou teleológico, nos informa que interpretar é procurar

o sentido ou a finalidade da norma. Em outras palavras, é procurar o

valor a ser protegido, aquele bem público importante para a sociedade

e que por isso, deve ser amparado pela norma para desse modo

proteger todos os cidadãos.

No método sistemático, por sua vez, a idéia principal é que o sistema

jurídico deve constituir um todo harmônico e para isso, todas as normas

de um sistema jurídico devem estar subordinadas a princípios gerais de

direito.

Para Celso Antonio Bandeira de Mello (2.000, 73) “Princípio é o

mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce, disposição

fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o

espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e

inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalização do

sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido

harmônico.”

Na atualidade, os princípios têm merecido cada vez mais destaque nos

estudos jurídicos porque eles são a forma de permitir à lei que dê conta

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das múltiplas e diversas mudanças que têm ocorrido na sociedade

contemporânea. Com a utilização de princípios a lei se torna mais apta a

acolher as novas demandas sociais, sugerindo uma flexibilidade que

está longe de causar insegurança jurídica e, muito próxima de integrar

o ordenamento evitando lacunas indesejáveis.

Exemplo dessa afirmação acontece com o Código de Defesa do

Consumidor, uma legislação com clara inspiração principiológica,

extremamente moderna, que tem dado conta das inúmeras inovações

ocorridas no plano das relações de consumo exatamente por conta de

seus princípios, que permitem uma interpretação capaz de construir

maior flexibilidade e atualização da legislação.

Possível concluir, portanto, que os métodos de interpretação lógica e

sistemática se completam, um a buscar o sentido da norma e outro a

verificar, principalmente, se esse sentido está em consonância com os

princípios gerais do direito e com as demais normas do ordenamento

jurídico.

No caso analisado por este artigo, o STJ entendeu que não deve ser

aplicada a perda do direito à indenização derivada do contrato de seguro

ao segurado que se recusa a realizar exame de dosagem alcoólica após

a ocorrência do acidente, ainda que existam elementos de prova

testemunhal da aparência de embriaguez. A alegação do STJ é de que o

segurado não pretendeu o resultado danoso, embora estivesse

supostamente embriagado.

O artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro determina que é infração

gravíssima dirigir sob a influência de álcool em nível superior a seis

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decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente

ou que determine dependência física ou química.

O artigo 276 do mesmo Código de Trânsito, determina que a

concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova

que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor.

Some-se a esses o parágrafo quarto do artigo 54 do Código de Defesa

do Consumidor, Lei 8.078/90, que determina que: “As cláusulas que

implicarem em limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas

com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.”

Considerados os artigos do Código de Trânsito Brasileiro, do Código Civil

e do Código de Defesa do Consumidor, como decidir o caso concreto que

ora se analisa, em que uma pessoa guiando um veículo amparado por

um contrato de seguro colidiu com quatro veículos que se encontravam

estacionados na via pública, se recusando a realizar exame de dosagem

alcoólica após o acidente, em que pese aparentar estado de

embriaguez?

A interpretação lógica ou teleológica nos impele a procurar o bem

jurídico protegido pela lei. Qual é o bem jurídico que se pretende

proteger no Código de Trânsito? A vida, tanto do condutor do veículo

como daqueles que vão conviver com ele na via pública.

E o bem jurídico protegido pela legislação civil ao tratar do contrato de

seguro, exigindo que o segurado não agrave intencionalmente o risco? A

vida, novamente é a resposta! A vida daqueles que vão conviver com o

segurado. É por isso que seguro, em especial na modalidade automóvel,

não pode se constituir em um alvará para que o segurado saia pelas

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ruas de forma alucinada causando os danos que bem entender,

simplesmente pelo fato de que possui um contrato de seguro que

cuidará de indenizar os resultados desses danos.

E qual o bem jurídico que pode estar protegido por cláusulas restritivas

de direito, permitidas pelo Código de Defesa do Consumidor? Também

se pode responder que a vida, o maior bem público a ser defendido em

uma coletividade pode ser protegido através de cláusulas que limitem

direitos, de tal sorte a lembrar permanentemente ao cidadão que seus

direitos não são absolutos e sim relativizados em uma sociedade que

tem na garantia do bem comum sua principal função.

E se utilizarmos a interpretação sistemática, que resultado obteremos?

A análise de artigos de codificações diversas, Código Civil vedando a

agravação intencional de risco, o Código de Trânsito vedando a direção

de automotor por motorista embriagado, e Código de Defesa do

Consumidor permitindo cláusulas restritivas de direito, conduz a um

mesmo resultado: o sistema da legislação brasileira tem como princípio

fundamental a proteção da pessoa humana, de sua dignidade em todos

os aspectos, dos mais elementares aos mais sofisticados.

Para confirmar essa interpretação lógica e sistemática, basta analisar o

disposto na Constituição Federal brasileira, em seu artigo 1º. Um dos

fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa

humana, ou seja, o respeito mais amplo possível a todos os seres

humanos que habitem no país.

A esse respeito, escreve Nelson Rosenvald (2.005, 8): “Percebemos que

o significado de dignidade se relaciona ao respeito inerente a todo ser

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humano – por parte do Estado e das demais pessoas –

independentemente de qualquer noção de patrimonialidade. É

simultaneamente valor e princípio, pois constitui elemento decisivo para

a atuação de intérpretes e aplicadores da Constituição no Estado

Democrático de Direito. O homem se encontra no vértice do

ordenamento jurídico, pois o direito só se justifica em função do ser

humano.”

Se o direito só se justifica em função do ser humano e, se o respeito

devido ao ser humano por parte do Estado e de toda a sociedade

transcende a noção de patrimonialidade, não existem elementos

jurídicos para admitir que um condutor de veículo automotor, guiando

embriagado e em flagrante contraposição ao disposto na legislação de

trânsito, receba cobertura de um contrato de seguro, fundado este na

vedação de agravar intencionalmente o risco, conforme determinação

legal e cláusula restritiva expressa.

O argumento que sustenta a decisão do STJ é que o segurado, ainda

que guiando embriagado, não pretendia causar nenhum dano a outrem,

ou pelo menos, que não há prova dessa intencionalidade. Nessa

interpretação, guiar embriagado seria o mesmo que guiar em velocidade

acima da permitida pela legislação, uma prática culposa mas não dolosa

porque não se pretende necessariamente um resultado danoso.

Mas essa análise tecnicamente correta e defensável, coloca de lado a

interpretação lógica e sistemática da norma. Interpretado o Código Civil

em seu artigo 768 isoladamente, a decisão do STJ é aceitável.

Interpretado o artigo 768 à luz da Constituição Federal e do Código de

Trânsito, evidentemente a decisão deixa de proteger a dignidade da

pessoa humana, deixa de respeitar esse fundamento constitucional e

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esse princípio que perpassa todo o ordenamento jurídico nacional, qual

seja, a proteção do valor supremo da vida humana.

Se considerada a proteção que o ordenamento jurídico nacional destina

à pessoa humana em sua integralidade física e moral, não se pode

aceitar que alguém decida guiar um veículo em estado de embriaguez,

arriscando sua própria vida e a de outras pessoas com esse gesto,

simplesmente amparada pelo fato de que possui um contrato de seguro

de automóvel, seguro esse que responderá pelos resultados

decorrentes de seu ato voluntário.

Ingerir bebida alcoólica para além dos índices permitidos na legislação

de trânsito é prática que se assemelha ao dolo, porque há intenção de

violar o dispositivo de lei, ainda que não haja intenção de causar danos

a outrem. Por demais sabidos e conhecidos os efeitos que as

substâncias alcoólicas causam ao sistema nervoso central, podendo

levar as pessoas a agirem de forma totalmente descontrolada, perigosa

para si própria e para os outros. Quem ingere álcool para além do

permitido por lei para guiar sabe, ou devia saber que o resultado final

pode fugir ao seu controle físico e mental.

Por fim, e ainda amparada pela interpretação sistemática, não coibir a

embriaguez de motoristas de veículos automotores de forma severa é

caminhar na contramão do atual momento histórico, negando um dos

objetivos constitucionais mais celebrados pela sociedade brasileira, que

é o da construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.

De fato, como construir justiça e solidariedade se os tribunais brasileiros

minimizam a atitude de guiar embriagado, ignorando todos os extensos

malefícios sociais que esse ato pode causar?

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4. FUNÇÃO SOCIAL E BOA-FÉ OBJETIVA APLICADAS AOS

CONTRATOS DE SEGURO.

Criticado por muitos juristas quando de sua promulgação, o Código Civil

não conseguiu ser unanimidade em quase nenhum de seus múltiplos

aspectos. Acusado de não trazer as inovações necessárias para a

solução dos conflitos privados na sociedade contemporânea, o Código

Civil mereceu em um primeiro momento de sua entrada em vigor mais

críticas do que elogios.

Alguns aspectos, no entanto, foram aplaudidos por muitos. Um desses

foi a nova ordem contratual que o Código Civil introduziu nas relações

privadas, com vertentes que em alguns casos já eram de muito

reconhecidas pelos tribunais brasileiros em sua produção

jurisprudencial.

O Título V, dos CONTRATOS EM GERAL, contém um primeiro capítulo

que trata das disposições gerais e que em preliminares, contém três

artigos bastante inovadores e, por essa razão, que têm sido objeto de

rigoroso estudo científico da parte dos civilistas brasileiros.

No artigo 421 o princípio da função social dos contratos, no artigo 422 a

boa-fé objetiva e, no artigo 423 o princípio da interpretação mais

favorável ao aderente, nos contratos em que existirem cláusulas

ambíguas ou contraditórias.

Dos princípios supra referidos, o da boa-fé objetiva e o da interpretação

mais favorável ao aderente já eram amplamente aplicados aos contratos

de seguro por força da construção do pensamento jurisprudencial

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brasileiro dos últimos anos. Já o princípio da função social do contrato

merece um pouco mais de reflexão.

Humberto Theodoro Júnior (2.004,31) afirma que: “A função social do

contrato consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos

sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre

as partes que o estipulam (contratantes).”

E continua (2.004,33): “Reconhece-se, de longa data, e não apenas nos

tempos atuais, que os contratantes, embora livres para ajustar os

termos da convenção, deverão agir sempre dentro dos limites

necessários para evitar que sua atuação negocial se torne fonte de

prejuízos injustos e indesejáveis para terceiros.”

Na pesquisa de Cláudio Luiz Bueno de Godoy (2.004,132), encontramos:

“Giovanni Ettore Nanni, forte na lição de Renan Lotufo, bem acentua

que “os contratos atualmente cada vez mais interferem em terceiros,

espraiando seus efeitos à comunidade, em que devem ser protegidas

também as partes não contratantes, admitindo-se também a

intervenção nos negócios quando o contrato não estipular uma função

social, uma vez que o contrato não é mais limitado às partes,

transcendendo e outorgando uma função social frente a toda a

sociedade.”

Assim, considerada a definição de função social do contrato, é fácil

compreender a importância da aplicação desse princípio aos contratos

de seguro em qualquer de suas modalidades. Talvez não seja exagero

afirmar que no contrato de seguro, mais do que em muitos outros, a

função social desponta com rara clareza e com contornos tão nítidos.

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Basta que se pense em um único exemplo: a fábrica destruída pelo

incêndio pode significar desemprego e falência. Coberta por um seguro

de incêndio significa a continuidade da produção econômica, positiva

para os empresários, para os empregados e para o Estado arrecadador

de tributos. Lucra toda a sociedade!

E a função social do contrato de seguro de automóvel, também é clara?

Segue os mesmos contornos propostos para o exemplo do seguro de

incêndio, em especial na atualidade, em que o veículo é utilizado como

fonte facilitadora da obtenção de trabalho e renda, quando não é ele

próprio, o veículo, a fonte de trabalho e renda de muitas pessoas.

Mas essa fonte de trabalho e de renda para muitos não pode se

constituir em fonte de geração de prejuízos para outros, decorrente do

uso indevido, inadequado, ou imprudente. O ideal de convívio social é

que o veículo seja utilizado de forma correta, em estrito cumprimento à

legislação de trânsito em vigor.

A legislação garante que o causador do dano, patrimonial ou

extrapatrimonial, deve indenizar. Mas o ideal da sociedade é que o dano

não ocorra até porque muitas vezes, o resultado do ato praticado é

verdadeiramente irreparável. A indenização pela perda da visão não

restitui esse sentido fundamental; a indenização pela perda das pernas

não faz o indivíduo indenizado voltar a caminhar e, a indenização pela

morte não ressuscita a pessoa falecida.

Portanto, em que pese ser clara e expressa a lei quanto ao dever de

indenizar, reclama a ordem social que se coíbam as possibilidades de

ocorrência do dano sabido que muitos deles serão indenizáveis, mas não

representarão jamais a volta ao status quo ante.

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É também nesse viés que a função social dos contratos de seguro deve

ser analisada. Os contratos de seguro se justificam pela preocupação do

sujeito com seu patrimônio e com o patrimônio dos outros, quando se

trata do seguro de responsabilidade civil em suas múltiplas

modalidades. A propósito, o seguro de responsabilidade civil representa

um avanço na organização social de uma nação, porque significa que os

indivíduos estão transferindo a preocupação que têm consigo próprios

para os outros membros da sociedade, superando o caráter

individualista, o que é sempre um aspecto positivo.

Mas, ainda mais importante que difundir uma cultura de contratação de

seguro de responsabilidade civil para prevenir danos indesejáveis

causados a terceiros, é preciso difundir uma cultura de não causar

danos que possam ser evitados pelo simples cumprimento da legislação

em vigor. É o que ocorre com a direção de veículo automotor por pessoa

embriagada, ou o que ocorre com a direção de veículo automotor em

velocidade excessiva, para além dos limites previstos para o local.

A indenização não cumpre a função de devolver o pai ao filho, a esposa

ao marido, o filho à mãe, ou ainda, não cumpre a função de repor

membros arrancados, danificados irremediavelmente, ou que tenham

perdido por completo sua atividade motora. A indenização não recupera

a visão, o olfato, a audição. Compensa pela perda, torna menos

dolorosa a ausência, mas não traz de volta o que irremediavelmente se

perdeu.

Evitar o dano é o grande objetivo a ser alcançado pela sociedade para

obtenção da paz e da justiça, e para alcançar esse objetivo é necessária

a conjugação de esforços de todos os segmentos sociais, inclusive do

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Poder Judiciário. Por isso é que não se pode admitir, pacificamente, a

decisão do Superior Tribunal de Justiça.

No tocante ao princípio da boa-fé objetiva importa recordar a lição de

Judith Martins-Costa (1.999, 411) “A expressão “boa-fé” denota “estado

de consciência”, ou convencimento individual de obrar (a parte) em

conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos

direitos reais , especialmente em matéria possessória. Diz-se

“subjetiva” justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete

considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado

psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má

fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.”

E continua: “Já por “boa-fé objetiva” se quer significar – segundo a

conotação que adveio da interpretação conferida no parágrafo 242 do

Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros

ordenamentos, e, bem assim, daquele que lhe é atribuída nos países de

common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard

jurídico, segundo o qual “cada pessoa deve ajustar a própria conduta a

esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com

honestidade, lealdade, probidade.” Por este modelo objetivo de conduta

levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como

status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma

aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.”

A boa-fé objetiva aplicada aos contratos é, portanto, uma limitadora da

vontade das partes contratantes, que independentemente do que

julgarem melhor para si próprias no contrato, devem agir de forma a

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não ferir o ordenamento jurídico, os princípios gerais do direito e o fim

social dos negócios jurídicos.

Nesse sentido é que Rosenvald (2.005,90) afirma: “O recurso

interpretativo ao princípio da boa-fé será a forma pela qual o operador

do direito preservará a finalidade econômico-social do negócio jurídico e

determinará o sentido do contrato em toda a sua trajetória,

preservando a relação cooperativa, mesmo que a operação

hermenêutica contrarie a vontade contratual.”

O Superior Tribunal de Justiça ao deixar de aplicar a cláusula restritiva

que veda ao segurado o direito à indenização quando estiver guiando

embriagado, protegeu a vontade individual do contratante do seguro

mas não protegeu o interesse público.

Além disso, a decisão do Superior Tribunal de Justiça deixou de

considerar o caráter mutual dos contratos de seguro, que se fundam em

uma coletividade de pessoas que contribuem com o pagamento de

prêmios para um fundo comum, que será regularmente utilizado para o

pagamento de indenizações oriundas de riscos pré-determinados que se

materializam durante a vigência do contrato.

Essa coletividade de pessoas que contribuem para a formação de um

fundo comum representa um valor maior que a vontade individual do

contratante. Respeitar as cláusulas do contrato de seguro, inclusive

aquelas que limitam direitos, é uma forma de garantir o equilíbrio do

grupo segurado e, também nesse sentido, cada segurado tem obrigação

de agir com a mais absoluta boa-fé objetiva.

5. Conclusão.

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A decisão do STJ divulgada em dezembro de 2.005 não foi a primeira

nesse mesmo sentido, ou seja, admitindo que a embriaguez não deve

ser causa de exoneração do dever de indenizar por parte do segurador.

Em outros momentos recentes a mesma Quarta Turma do Superior

Tribunal de Justiça já haviam se manifestado nesse sentido, em decisões

proferidas por outros relatores além do Ministro Aldir Passarinho.

Essas decisões sinalizam uma tendência que com o passar do tempo,

pode ser absorvida por outros Tribunais e por outras Turmas do STJ,

razão pela qual deve haver uma reação por parte dos juristas que se

dedicam ao estudo dos contratos de seguro e à repercussão desses

contratos na sociedade, com o objetivo de que haja uma profunda e

rigorosa discussão sobre o tema.

Um motorista alcoolizado nem sempre pretende produzir um resultado

danoso conduzindo um veículo, mas está cientificamente provado que

um motorista alcoolizado tem seus reflexos drasticamente diminuídos,

sua atenção desconcentrada e, via de conseqüência, assume um risco

acima da média, um risco maior, diferente por completo do risco que

assume um motorista que não fez uso de substância alcoólica.

Essa decisão de assumir o risco maior não pode ter eventual resultado

negativo transferido para o segurador porque, como todos sabemos, em

um contrato de caráter mutual, todos os segurados vão contribuir para o

pagamento dessa indenização.

Ninguém que pretenda tomar conta de um bem, patrimonial ou

extrapatrimonial, poderá faze-lo de forma bem sucedida se estiver

embriagado ou de alguma forma privado de sua capacidade plena de

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discernimento, de bom senso e da lucidez necessária para adotar as

medidas mais corretas.

Por isso é que o assunto merece reflexão, estudo e discussão científica e

técnica. Para além da discussão de uma decisão do STJ está a discussão

do modelo de sociedade que temos e do modelo de sociedade que ainda

pretendemos construir neste país e, parece correto afirmar que no

modelo que queremos, se espera do cidadão que seja cada vez mais

responsável e solidário em relação aos demais cidadãos.

REFERÊNCIAS:

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