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5ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS4 ENSAIOS & DIÁLOGOS

Vários fatores têm contribuído para a gênese e cronicidade da crise política, econômica e social brasileira. Há um aspecto, contudo, que tem sido pouco comentado. Refiro-me ao fato

de que grande parte de nossa população se tornou mais exigente, ha-vendo claramente ampliado a demanda por direitos sociais e por ci-dadania. Somos dezenas de milhões a cobrar acesso à saúde e à edu-cação, a se opor ao racismo e ao machismo, a apoiar a luta dos povos indígenas e da população LGBT. Nesse sentido o Brasil melhorou.

Entretanto, o que vem acontecendo é que nem o Estado, ou os políticos, isto sem mencionar o mercado, têm tido capacidade de responder satisfatoriamente a essa emergente característica de gran-de parte de nossa sociedade. Há um desgaste evidente das formas de representação política, o que tem dificultado a concretização destas aspirações em projetos e iniciativas concretos. Na verdade, as dezenas de milhões de pessoas que aspiram à justiça social e à democracia estão desorganizados, divididos e têm dificuldade em identificar estratégias potentes para viabilizar suas aspirações.

A Abrasco, o CEBES, os movimentos de reforma sanitária, em alguma medida, vêm contribuindo para essa mudança do perfil cul-tural e político de nosso povo. A prolongada luta pelo direito à saú-de, pelo SUS, pela humanização das instituições e das práticas em saúde, em defesa de cidades saudáveis e do meio ambiente, a cons-trução de políticas públicas em Ciência e Tecnologia, a luta contra a violência e em defesa da saúde mental, tudo isto, de distintas ma-neiras, ajudou a enraizar em nossa sociedade uma nova consciência, bem novos espaços sociais que atuam em defesa da cidadania. Um sintoma que indica a vitalidade deste movimento é a constante in-corporação, em nossas fileiras, de importante parcela da juventude.

A esperança de um Brasil mais justo e democrático está, portan-to, em nós mesmos. Está no fortalecimento da sociedade civil e em nosso engajamento para reformar o caráter patrimonialista e clien-telista do Estado nacional.

Entretanto, existe outro componente da crise brasileira que con-trapõe classes e agrupamentos sociais. Trata-se do acirramento da disputa pela apropriação da riqueza nacional e, em particular, do orçamento público. Nos últimos anos, quase metade do arrecadado em impostos vem sendo gasto com o serviço da dívida interna (pro-

cesso intensificado pelo aumento constante de juros pelo Banco Central sob o pretexto de controle da inflação) e com a isenção fiscal e transferência direta de recursos públicos para uma não admitida “bolsa empresa”, dois mecanismos de transferência do orçamento público para grupos econômicos minoritários e que já controlam grande parte da riqueza nacional. A “gastança”, a ir-responsabilidade fiscal dos governos não resultou, portanto, de investimentos em políticas públicas, mas de um perverso sistema de devolução do imposto arrecadado aos mais ricos. Assistimos a uma odiosa mistificação da opinião pública, realizada pela mídia, pelos partidos e lideranças políticas quando indicam que a recu-peração do Brasil passaria pelo desmonte de nossas ainda inci-pientes políticas públicas. O anunciado documento “Ponte para o Futuro” é a encarnação desta desfaçatez.

Teremos, ao contrário, que fortalecer as políticas públicas e a democratização da sociedade e do Estado brasileiro e a esperan-ça de que isto aconteça depende principalmente de nós mesmos, depende da capacidade de resistência e de luta da sociedade. Em nosso âmbito, precisamos fortalecer a Abrasco. E deveremos ain-da somar forças com setores democráticos e a favor da consolida-ção da cidadania.

A diretoria da Abrasco entendeu que a melhor forma de de-fesa do SUS e do direito à saúde é intensificarmos o esforço para prosseguirmos com a reforma sanitária. Organizar movimentos em que além de resistirmos às ameaças às conquistas existentes, atuemos ativamente para completar a reforma social e política ainda incompleta. Defender as políticas e programas do SUS que vem funcionando, mas, ao mesmo tempo, lutar para ampliar o or-çamento para as políticas públicas, para qualificar e aumentar a cobertura da Estratégia de Saúde da Família e de toda a rede de hospitais e de serviços de média complexidade.

Prosseguir na democratização da rede pública, radicalizando mecanismos de gestão participativa, extinguido a miríade de car-gos de confiança ainda existentes no SUS. De pressionarmos por uma reformulação da gestão pública que se contraponha à receita conservadora e antissocial da privatização e da terceirização do cuidado. Apontar a possibilidade concreta – inclusive financeira – da construção de uma nova política de pessoal que contemple direitos trabalhistas e a centralidade do cuidado ao usuário, com definição clara de responsabilidade sanitária. Resistir aos ataques à Vigilância Sanitária e em Saúde, fortalecendo a capacidade de regulação e de controle sobre o mercado e de enfrentamento de epidemias, investir no saneamento básico e na reforma de nossas

cidades. De nos associarmos a outros setores para o combate a violência e mudança radical das estratégias de enfrentamento do narcotrá-fico e do crime.

A diretoria da Abrasco entendeu a neces-sidade de intensificarmos a defesa da Educa-ção Pública. De adequarmos o financiamento das Universidade e do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia.

Para isto apelamos ao povo da saúde. As-sociem-se a Abrasco, coloquem suas anuida-des em dia. Nossa autonomia política depende disto. Participem das Comissões, dos Grupos Temáticos, dos Fóruns, organizem Núcleos Regionais de Saúde Coletiva, promovam se-minários, oficinas, tanto entre profissionais de saúde, quanto em conjunto com outros seto-res e, em particular, envolvendo os usuários. Relatem estas experiências, divulguem pro-blemas e estratégias de defesa da cidadania que funcionarem. Usem o nosso site, as nossas revistas, os meios de comunicação possíveis para socializarmos uma cultura democrática, solidária e reflexiva entre nosso povo.

Nossa esperança sobreviverá entre nós, tratemos de desatá-los.

EDITORIAL

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*Gastão Wagner de Sousa Campos é professor titular da Universidade Estadual de Campinas e presidente da Abrasco

A EspERAnçA sOmOs nós...POR gastãO wagneR

Nesta Ensaios & Diálogos, reforçamos a parceria com Caco Xavier, responsável pela capa e ilustrações. Caco é pesquisador na Fiocruz, e durante muitos anos atuou também como ilustrador e quadrinista, publicando no Programa Radis e em outras revistas nacionais. Para

a capa, Caco inspirou-se no famoso quadro de Rodolfo Amoedo, “O Último Tamoio” (1883), que mostra a morte de Aimberê, último

representante da nação tamoia, massacrada pelos colonizadores. Seu cadáver é amparado por José de Anchieta. “Tamoio” vem de “tamuya”,

que significa “ancião” na língua dos tupinambás, nação que liderou o combate aos portugueses, aliando-se aos franceses que ocupavam a Baía de Guanabara desde 1555. Anchieta teve um papel importante

como mediador de uma trégua entre tamoios e portugueses. O índio da capa, aparece como alegoria do Brasil. A figura de Anchieta foi

modificada, para tornar a relação ainda mais dramática. A ilustração é uma combinação de imagem realista com desenho. Uma mistura de

sangramento e vazamento da Samarco, que leva de roldão animais, pessoas, edificações, Congresso Nacional, mostrando ainda o país sem

saneamento sendo invadido pelas epidemias do Aedes Aegypti.

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7ENSAIOS & DIÁLOGOS

pOLÍTICA DE sAÚDE

Decorrido o afastamento da Presi-denta eleita, inicia-se mais um pe-ríodo de transição conservadora na história de nosso país. Com ocor-

rências e decorrências sob regime de exceção. Desta feita, não por imposição de força mili-tar, mas, de uma espécie de “exceção jurispru-dente” imposta por corporações autoritárias e privilegiadas na sociedade política e civil. Um regime de exceção promovido pela cumplici-dade patética das quadrilhas de traficantes da “pequena política” que desde muito tempo dirigem os parlamentos; pela cumplicidade, conivência ou covardia da alta hierarquia do poder judiciário (o minúsculo é intencional) e de alguns promotores que deveriam zelar pelas garantias e cumprimento dos preceitos constitucionais. Em decorrência, multiplicam--se as evidências de intimidações e persegui-ções, pela via da “judicialização” partidari-zada e da truculência policial, contra aqueles que denunciam tal situação e buscam resistir.

Estamos de novo num lugar e tempo histó-rico que muitos imaginávamos ter superado.

Há muito o que se refletir e se fazer em tempos assim, de retrocesso, de riscos e ame-aças na vizinhança. Compartilhamento de ânimo e busca de mobilizações por resistên-cia; críticas e autocríticas; pretensões para ou-sadias, reinvenções, inovações e renovações sobre as razões, modos e meios de se exercer a Política.

De início temos uma responsabilidade histórica, de constituição da memória crítica sobre o que tem ocorrido, para que outras ge-rações estejam mais atentas e não se iludam

com os aparentes avanços de nossa sociedade política e civil. Muitos sabem que as regras democráticas possíveis e viáveis são de mera conveniência para quem sempre mandou em nosso país, mas não sabiam quais eram os limites de tal convivência e conveniências consentidas. Os governos de Lula e de Dil-ma promoveram avanços significativos, mas pouco ousaram. Investiram em significativas políticas de caráter compensatório e redistri-butivo, em reformas institucionais tímidas, mas não ousaram radicalizar em temos de democratização participativa e, assim, em alterar regras do jogo secular de poder insti-tucional. Apostaram mais em conciliações e arranjos de governabilidade com o condomí-nio da Casa-Grande, buscaram “jogar o jogo” da governabilidade no mercado da pequena política e permitiram que muitos de seus pre-potentes se chafurdassem na mesma lama da secular corrupção.

Mas, se o limite tolerado são as pequenas e ocasionais compensações em termos de polí-ticas sociais, o que teria ocorrido se os gover-nos de Lula e Dilma tivessem ousado mais? Uma antecipação do que ora ocorre?

Muitos sabem que condôminos de estratos sociais mais privilegiados, ou seus pretenden-tes, guardam-se preponderantemente mais conservadores, preconceituosos e rancorosos em seu ilusório castelo meritocrático, mas não sabiam qual seria o seu limiar de exposição e mobilização política. Em tempos de exceção, descobrimos o despertar do fascista enrusti-

Que alternativas estratégicas para se lidar com a transição conservadora em REgImE DE ExCEçãO?POR alcides miRanda

A epidemia do Zika vírus e os Direitos Reprodutivos Grupo Temático Gênero e Saúde da Abrasco

CIÊnCIA & TECnOLOgIA

Considerações sobre o Código de Ciência e TecnologiaReinaldo Guimarães

Tecnologia, economia e política: uma reflexão para tentar sair do labirintoRenato Dagnino

O ativismo anti-vacinas na internetKenneth Camargo Jr.

sAÚDE mEnTAL

Fora Valencius: quando a luta reacende o desejoBruno C. Dias. Fotografias de Pâmela Perez

pRÁTICAs InTEgRATIVAs DE sAÚDE

Possibilidade de tratamento homeopático em autistasFábio Bolognani e Geórgia Fonseca

ALImEnTAçãO E nUTRIçãO

Quem regula quem no mercado global de alimentos?Reportagem de Bruno C. Dias

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pOLÍTICA DE sAÚDE

Que alternativas estratégicas para se lidar com a transição conservadora em regime de exceção?Alcides Miranda

sAÚDE COLETIVA

A Saúde Coletiva e a formação profissional em Saúde: Mais Médicos ou mais do mesmo? José Sestelo

COnFERÊnCIA nACIOnAL DE sAÚDE

8ª Conferência Nacional de Saúde: seu significado e a necessária retomadaNelson Rodrigues dos Santos

O tempo e seus significados: narrativa sobre a 15ª Conferência Nacional de Saúde José Ivo dos Santos Pedrosa

ZIKA

O Brasil da Dengue, Zika e ChikungunyaGustavo Bretas

Estamos postergando as medidas de impacto definitivo no combate ao Aedes egypti há três décadasEntrevista com João Gabbardo dos Reis

ZIKA VÍRUS – Desafios da Saúde Pública no BrasilComissão de Epidemiologia da Abrasco

Zika e Microcefalia: Uma Pandemia em ProgressoMaria Glória Teixeira

Nota do Grupo Temático Gênero e Saúde da Abrasco

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98 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

do no vizinho educado e no familiar querido. Descobrimos, na prática, como a induzida ignorância política e preguiça intelectual podem produzir massa e movimentos de manobra sobre a “inge-nuidade” ocasionalmente útil e descartável. Ou seja, descobrimos que o estado e regime de exceção não são somente institucionais e podem ser despertados e provocados na intimidade de nossas relações cotidianas.

Nas atuais circunstâncias, torna-se cada vez mais evidente que o golpe constitucional e o regime de exceção, em curso, são apenas sintomas mais proeminentes de degradação institucional em uma sociedade cronicamente adoecida e dependente de uma institu-cionalidade “democrática” saturada pelos arranjos e tráficos de “governabilidade” no referido mercado da pequena política.

Quando expoentes do que há de pior na sociedade se tor-nam referencias como um “mal necessário” (no discurso

dos mais cínicos) ou como alternativas de projeto político de tran-sição (no imaginário daqueles mais bestializados pela “fé cega” ou pela “faca amolada”) é porque chegamos àquele ponto irretor-nável, quando os tratamentos paliativos e meramente sintomáti-cos ao regime vigente só tendem a aumentar a agonia e piorar o quadro geral.

Ao que parece, teremos ainda que vivenciar e lidar com mo-mentos piores, para que haja algum entendimento mínimo sobre a gravidade e decorrências da atual crise (de retrocesso? de cres-cimento? de ruptura?). O Estado brasileiro é essencialmente uma representação temporal de poder político, administrativo e juris-prudente da sociedade. Em sendo assim, não basta somente focar em remediar estamentos degradados ou mesmo a degeneração de alguns segmentos partidarizados da sociedade política.

Em nosso país, já tivemos sociedades (políticas e civis) com re-presentações institucionais (estatais e corporativas) bem piores no passado, quando buscava-se justificar explicitamente e naturalizar legalmente a preponderância dos valores semifeudais de domínio da Casa-Grande (com seus estatutos e estratos de vassalagem e servidão...), a escravidão e a mercantilização da condição humana, o arbítrio patriarcal autoritário, o monopólio e o absolutismo reli-gioso, a noção de “inferioridade” dos mais explorados, a compla-cência caritativa para com os “indigentes” e os mais vulneráveis.

Quando se buscava justificar e naturalizar a função servil e intermediária de nossas elites na dependência neocolonial e na exploração econômica por parte de imperialismos sucedâneos. Elementos constitutivos típicos de um regime econômico de capi-

talismo periférico, com um “liberalismo de fa-chada”, pois, consubstanciado por oligopólios em comensalismo autorregulado e em secular parasitismo do Estado. A nossa história repu-blicana está permeada de ciclos com aberturas discretas, com reciclagens ambíguas e com dis-posições ou imposições autoritárias. Fases de aberturas, reciclagens e avanços regulados e contingenciados, em termos de políticas sociais compensatórias e de inovações institucionais adjutórias. Intercaladas por fases de espasmos autoritários a reter, circunscrever, redirecionar ou contingenciar as tensões por avanços. Hou-ve muitos espasmos autoritários na chamada “Velha República”, houve o período da dita-dura Vargas, houve várias tentativas de golpes constitucionais (1954, 1956, 1961), até a sua efe-tivação em 1964.

O que há de mais comum nesses repetiti-vos ciclos têm sido os discursos e as agendas aparentemente paradoxais, proeminentes nos momentos de transição (refiro-me ao “para-doxo de Lampedusa”: mudar para que tudo permaneça). Em tais transições quase sempre são anunciadas “mudanças” de agendas po-líticas e econômicas, contidas e subordinadas aos termos de conservação da ordem e do sta-tus quo. Como exemplo, realço o marco inau-gural de nossa história republicana, quando se instalou a república pela via de um golpe militar. Eis, pois, que estamos a lidar com um novo espasmo autoritário, agora sob a dire-ção e condução de determinadas corporações estamentais e da sociedade civil. Quando ini-ciativas de retrocesso político e institucional são ensaiadas com o apelo “da luta contra a corrupção” (tantas vezes repetido em ocasi-ões similares) e com mais uma “agenda de transição”, apresentada em nova roupagem, sob o pretexto da crise econômica. Espasmo autoritário de retrocesso em uma institucio-nalidade política com estado mórbido avan-çado; em uma sociedade política colonizada, consumida e depauperada pela apropriação utilitária do Estado, pela retificação mercan-til das relações institucionais, pela senilidade precoce de seus arremedos de democracia re-presentativa.

Vivemos ainda em uma sociedade em que muitos continuam tentando justificar implici-tamente e naturalizar ideologicamente outras formas menos aparentes de escravidão (tele-guiada) e de mercantilização da condição hu-mana (cidadãos consumidores); de racismo dissimulado; de arbítrio patriarcal autoritário em derivações colaterais (homofobia, sexismo etc.); de oligopólios do absolutismo religioso

observa-se forte polarização na sociedade civil, mas entre estratos minoritários da so-ciedade. A maior parte das pessoas, princi-palmente os mais explorados, assiste a tudo desencantada e, talvez, um pouco apreensiva (fosse adequado acionar a sonoplastia, cabe-ria talvez o fundo musical de “Vida de gado”: sonhando “com melhores tempos idos”, con-templando a vida de “uma cela”).

Para os golpistas de plantão, mesmo o atual “Estado Democrático de Direi-

to”, estatuto de naturalização jurisprudente de sua dominação e hegemonia, já não lhes serve, pois buscam retroceder para antes de 1988, enquanto suspiram por estar no espírito de época de uma Miami futura. Em mais um aparente paradoxo, buscam retroceder politi-camente ao passado para se realinhar econo-micamente com o futuro (autodestrutivo) do capitalismo global. Dadas as circunstâncias atuais, não há mais escrúpulos aparentes, arti-manhas, subterfúgios ou sutilezas. O jogo tor-na-se bruto e explícito, escancara-se a crueza das “relações de poder” nas instituições cor-roídas e corrompidas desde há muito tempo.

Os parlamentares “votando” pelo “impea-chment” no teatro do absurdo constrangem e envergonham profundamente a quase todos. Mas, uma vez passada a ressaca do gozo ou do escárnio, vira-se a página da etapa tática vencida e os mesmos correm afoitos para reo-cupar os seus lugares nos porões da frágil nau de nossa institucionalidade democrática. O

(o “reino” dos mercadores da fé); de disfarça-dos sensos de inferiorização social sob discur-so meritocrático; de complacência meramente caritativa para com os “indigentes” e os mais vulneráveis. Muitos professam a doutrina do “empreendedorismo’, nova fachada discursi-va para o empresariamento e mercantilização das políticas públicas (a introjeção de valores de mercado na esfera pública), para a explora-ção exaustiva do meio ambiente (a “fronteira final” do “desenvolvimento” capitalista), para a consolidação de nova modalidade de explo-ração imperialista sob a forma do capitalismo especulativo e rentista; para a legitimação so-cial de valores semifeudais reciclados (pois, continuam implicando em senhorio e relações de vassalagem e servidão).

Vivemos, pois, o decorrer de mais uma pretensão de reciclagem histórica. Quando mais uma vez poucos egos senhoriais tirâni-cos, amparados pelo seu grande poder eco-nômico e midiático, secundados por vassalos amorais (ou, se preferirem os gramscianos: de “intelectuais orgânicos” de estimação) e capatazes violentos, buscam assaltar o po-der de Estado para redefinir as condições de sua dominação e hegemonia. E, também de novo, sob a cumplicidade ativa ou a conivên-cia passiva de agregados da contemporânea Casa-Grande, que temem perder privilégios obtidos perante tamanhas desigualdades e iniquidades. Muitos resistem e se mobilizam contra tal empreendimento de retrocesso e

Os gOveRnOs de lula e de dilma PROmOveRam avançOs

significativOs, mas nãO OusaRam RadicalizaR, alteRaR

RegRas dO jOgO seculaR de POdeR instituciOnal

pOLÍTICA DE sAÚDE

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11ENSAIOS & DIÁLOGOS10 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

que seria do país se esses mesmos deputados (ou agora os senadores) tivessem derrotado momentaneamente o golpe pela via do “im-peachment”? Estaríamos alguns comemoran-do? E nos dias seguintes? Ora, pois, o golpe não se reduz e nem se resume a uma tática de assalto ao poder governamental. O golpe se traduz em um projeto e programa de transi-ção conservadora, com vistas ao futuro, pelo retrovisor. Basta observar a pauta de votações do Congresso Nacional e o conjunto de recen-tes deliberações que promovem o realinha-mento da institucionalidade e políticas públi-cas para com um projeto neoliberal satélite.

Nesse sentido e perspectiva, continua a proatividade de oligopólios proprietários dos meios de produção (material e imaterial, con-creta e simbólica) e dos meios de especulação rentista, a chamada plutocracia. Uma vez tendo sido conveniente para o momento tá-tico do golpe, busca-se agora a consolidação e naturalização do regime de exceção, com a já referida cumplicidade ativa e conivência passiva da parte de corporações estamentais autoritárias oriundas de todos os poderes institucionais republicanos, de corporações profissionais autoritárias e proeminentes na sociedade civil (OAB, CFM & Cia. Ltda.), de corporações religiosas autoritárias. Busca-se uma agenda de “reconciliação nacional” com mediações e inclusão de interesses de tais corporações autoritárias. Sim, o golpe não é somente o “começo do fim” do período de governo Lula-Dilma, é um momento tático inicial para mais uma transição conservadora dotada, por enquanto, de grosseiras estraté-gias institucionais. Não fossem grosseiras, já teriam atingido aos seus propósitos de forma bem menos trabalhosa, já teriam uma formu-lação política bem mais elaborada do que a grotesca “ponte para o futuro”.

E DAÍ, EnTãO?

Resistir é preciso! E a resistência passa inicialmente pela denúncia sobre a ilegitimi-dade do procedimento adotado para o de-sencadeamento da transição conservadora, por isso mesmo, indisfarçadamente golpista. A resistência passa por atitudes corajosas e firmes de desobediência civil diante dos inú-meros atentados às liberdades civis (órfãs do liberalismo) e aos direitos sociais (ainda em sua fase embrionária). No atual caso brasilei-ro, a reconhecida truculência e inabilidade do condomínio plutocrata relegou aos seus au-tores um golpe que lhes vai custar mais caro do que imaginavam, pelo menos em termos

de repercussão internacional (“pegou mal” até em Miami). É claro, já estão tratando de se livrar discretamente de seus gângsteres-ca-patazes mais proeminentes no parlamento e já clamam por “união” e pelo novo “pacto de “reconciliação nacional”. Do mesmo modo, continuarão tentando se livrar do “risco elei-toral” e eliminar a possibilidade da “candida-tura Lula” (pela via de mais uma “exceção do direito” ou pelas vias de fato). Para quem pre-tende resistir e se contrapor ao que se anun-cia, não é o caso de se iniciar uma oposição convencional ao novo governo que se instala, pois esta é a expectativa de quem busca ter-mos de “naturalização” da situação atual e de nova “normalidade democrática”. O “pecado original” do golpe e a condição de manuten-ção do regime de exceção, apoiados e con-sentidos por parcelas significativas de nossa sociedade, nos coloca em outra perspectiva. Contra o Estado e regime de exceção vigen-tes não podemos simplesmente reivindicar o retorno a uma “normalidade” democrática, aparente e traiçoeira. Negociar ou obtempe-rar com este pretenso “governo de transição” significa emprestar-lhe a aura de legitimidade que tanto necessita. Entabular e estabelecer quaisquer intermediações institucionais com tal governo ilegítimo, a partir de uma visão “pragmática” acerca da transitoriedade do regime exceção, significa avalizar a sua táti-ca golpista incompetente e o assalto ao poder estatal pela via dita branda (não pôde fazê-lo pela via dita dura), significa abstê-lo de seu “pecado original”, significa avalizar as suas estratégias institucionais e na gestação de seu oximoro de mudança.

Em sEnDO AssIm, E DAÍ?

Distintamente dos jogos táticos de inter-câmbio comensal, de jogos de “soma positi-va” e de “governabilidade de bastidores” no mercado da pequena política, importa cons-tituir e dinamizar uma estratégia de resistên-

pOLÍTICA DE sAÚDE

cia pacífica (não confundir com passiva) e de proposições radicais para um projeto político alternativo. Não há estratégias sociais e insti-tucionais radicais, que possam mobilizar co-rações e mentes, sem um sentido ético-social civilizatório (não me refiro ao sentido etno-cêntrico do termo, mas ao sentido de ética civil) e um inequívoco propósito político de democratização.

Entendo e defendo que o propósito inicial para um projeto político alternativo deva ser a luta por uma reforma política constitucional. Mesmo que, infelizmente, tal iniciativa possa previsivelmente se enviesar pela aparência e não se enraizar em substância.

Uma Assembleia Nacional Constituinte autorizada por um plebiscito convocado para tal fim. Eleita exclusivamente para elaborar uma proposta de reforma política abrangente e substancial (da institucionalidade às regras

de representação, participação e controle pú-blico), extinta após a deliberação de sua pro-posta final. Após a promulgação da Reforma, eleições gerais (da Câmara de vereadores à Presidência da República).

É claro que tal proposta estratégica para uma transição alternativa (àquela referida como conservadora) pode soar como “ingê-nua” ou inviável, se consideradas as análises conjunturais sobre a tal “correlação de forças” ou as tendências de hegemonia e preponde-rância política. Mas de que outro modo seria uma estratégia alternativa?

Somente uma nova eleição, agora ou em 2018, teria melhores possibilidades alternati-vas em termos de redirecionamento estratégi-co institucional e social?

Mesmo que Lula pudesse concorrer e ven-cesse a próxima eleição em 2018, conforme apostam muitos, qual seria a sua governabi-lidade futura? Não voltaria ele a negociar e traficar apoios no mercado da pequena políti-ca? Suas condições de “governabilidade” não estariam compatíveis com os termos de uma transição conservadora? Devo admitir que uma reforma política constitucional possa ser deturpada e também servir como novo arran-

*Alcides Silva de Miranda é médico e professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenador da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e membro da diretoria da Abrasco.

a nOssa históRia RePublicana está PeRmeada de ciclOs cOm abeRtuRas discRetas, cOm Reciclagens ambíguas e cOm disPOsições Ou imPOsições autORitáRias

se O futuRO se anuncia cOmO sOmbRiO, se as PRetensões de O tRansfORmaR Radicalmente POdem PaReceR ingênuas Ou utóPicas, tentemOs PelO menOs aPRendeR cOm O PassadO Recente

jo de legitimação para uma transição conser-vadora. Desde que se trate apenas de uma estratégia institucional, facilmente apropria-da por quem possa instrumentalizá-la mais convenientemente. Mas, em se tratando (também) de estratégia social bem articula-da, sustentada em mobilizações e movimen-tos que disputam protagonismo e a direcio-nalidade da grande política, não poderia ter outros processos e desfechos? Por fim, se não é possível projetar, tecer e fazer política sem tensões propositivas radicais (de raiz), mes-mo que aparentemente ingênuas e ilusórias, teremos que nos render ao pragmatismo utilitário de negociar ou traficar governabi-lidade nos (bastidores dos) palácios? Creio que se o futuro se anuncia como sombrio, se as pretensões de o transformar radicalmente podem parecer ingênuas ou utópicas, ten-temos pelo menos aprender com o passado

recente. Principalmente no que se refere às tentativas (menos ilusórias?) de trafi-car políticas compensatórias para os mais explorados e os miseráveis (“incluídos” mais como cidadãos-consumidores do que como sujeitos políticos), sem a necessária apropriação pública das políticas sociais, sem maiores tensionamentos por direitos sociais sob a égide de radicalização demo-crática (não somente democracia represen-tativa, mas democracia social). Precisamos de tensionamentos políticos ousados para que o Estado possa ser reapropriado pela e na esfera pública. Para tanto, não devemos temer (Temer?) as apostas estratégicas nos processos de democratização, mesmo cor-rendo os riscos advindos de suas imperfei-ções. Mesmo que, em tentando, não consi-gamos alterar a volta dos repetidos ciclos republicanos, não podemos prescindir do estatuto pedagógico da política, que mui-tas vezes só pode ser percebido no longo prazo, entre gerações.

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1312 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

O tema da formação de trabalhado-res para atuação na assistência à saúde das pessoas e o papel do Estado na regulação da articu-

lação desses elementos com o conjunto da sociedade é seminal para o campo da Saú-de Coletiva. A discussão atual, pautada pelo governo federal, em torno de um programa de incentivo à oferta de profissionais médi-cos para assistência à população de regiões consideradas como “vazios sanitários”, pela ausência de estruturas assistenciais, consti-tui uma boa oportunidade para recuperação de referências históricas à luz da conjuntu-ra de hoje. Juan Cesar Garcia foi um médi-co, cientista social e historiador argentino funcionário da OPAS nas décadas de 1960 a 1980 que teve papel destacado na veiculação de conceitos de Medicina Social no Brasil e contribuiu para a criação e consolidação de programas de pós-graduação como o do Ins-tituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS-UERJ). Em 1969 Garcia discutia as características gerais da educação médica na América Latina pos-tulando que o planejamento dos recursos hu-manos deve constituir parte importante dos planos nacionais de saúde e refletir o esforço coordenado de todas as instituições que te-nham a ver com a formação e utilização do pessoal de saúde.

Naquela época especialistas da OPAS/OMS tinham interesse em investigar o ensi-no da Medicina Preventiva e Social nos pa-íses sob a esfera de influência econômica e política dos Estados Unidos, como o Brasil, para subsidiar a atuação da organização nes-sa área, ainda sob o impacto dos seminários históricos de Vinã del Mar (1955) e Tehua-can (1956). Pesquisadores importantes para o campo da Saúde Coletiva como Guilher-me Abath, Célia Lúcia Monteiro de Castro, Hésio Cordeiro, Augusto Leopoldo Ayrosa Galvão e Guilherme Rodrigues da Silva par-ticiparam da coleta de dados coordenada por Garcia e realizada entre 1967 e 1968 em importantes escolas médicas.

Aquele estudo de corte transversal de ca-ráter descritivo suscitou discussões sobre a necessidade de apropriação de conhecimen-tos de pedagogia, administração e ciências da conduta para o desempenho de funções executivas nas escolas médicas. Em alguns países da região era requisito na expedição da licença para o exercício profissional, o cumprimento de pelo menos um ano de prá-tica remunerada em comunidades rurais. A percepção da existência de conflitos entre in-teresses individuais e coletivos ou a falta de consciência sobre a função social das carrei-ras universitárias pautou, então, o debate so-bre a necessidade de realização de um plane-jamento integral da educação universitária.

Da mesma forma, tornou-se evidente que os investimentos em formação de tra-balhadores de nível universitário para a assistência deveriam ser pautados pelas necessidades da população assistida e não pela demanda espontânea dos candidatos à formação universitária financiada pelo Es-tado. A dificuldade em lidar com o conceito de “demanda futura” pela assistência gerava

dificuldades na definição do papel de cada membro da equipe de saúde em formação.

A patente dissociação entre a educação médica, o planejamento econômico e de saú-de dos países, ao lado do assédio desmedido de postulantes à titulação, fundamentaram a proposta de que o planejamento da formação de recursos humanos deveria constituir par-te integrante dos planos nacionais de saúde. Em 1971 Garcia postulava paradigmas para o ensino de Ciências Sociais nas escolas de me-dicina. Sua crítica ao modelo dicotômico que separa o ciclo “básico” de formação da etapa de “clinica aplicada” apontava a necessidade de estabelecimento de uma clara articulação

entre essas duas esferas por meio do aporte de conteúdos humanísticos ou “psico-sócio--culturais” possibilitando simultaneamente a manipulação do abstrato e do geral em sua aplicação no concreto e no particular da si-tuação de assistência. Dito de outra forma, era preciso simultaneamente conhecer a “história natural da doença” e os fatores de ordem econômica, social e de organização que influem na efetividade das intervenções saindo da alienação da visão segmentada e distanciada da vida social.

O desenvolvimento do universo con-ceitual de Garcia chega em 1981, pouco an-tes da sua morte (1984), aos determinantes que criaram condições propícias ao desen-volvimento científico no campo da saúde relacionando-os, nos países dependentes e periféricos da América Latina, à produção agroexportadora e ao controle do aparato estatal pelos grupos econômicos que promo-vem esse modelo de produção e valorizam o viés de investigação que é conveniente aos seus interesses. Portanto, sem pretender re-duzir a contribuição de Juan Cesar Garcia ao recorte que foi mencionado acima, é possível

sAÚDE COLETIVA

é PRecisO fazeR valeR a funçãO RedistRibutiva dO estadO POR meiO de um sistema fiscal

Realmente PROgRessivO que tiRe de quem tem mais PaRa distRibuiR a quem tem menOs. exatamente O

cOntRáRiO dO que vigORa atualmente

dizer que se hoje se discute formação médi-ca e políticas públicas de alocação de profis-sionais em áreas mal assistidas é importante ter em conta certos elementos formulados anteriormente e que se relacionam de for-ma elementar com a própria concepção do campo da Saúde Coletiva no Brasil. O Ins-tituto de Medicina Social deu continuidade à trajetória protagonizada por Garcia por meio de autores como Hésio Cordeiro que examinou o aumento da afluência do capital industrial e financeiro para o setor saúde, a concentração empresarial dos meios de tra-balho médico e a transformação da prática autônoma em trabalho assalariado. Identifi-

cou as empresas de medicina de grupo, que vendiam serviços de assistência diretamente a empresas empregadoras, como elementos importantes na dinâmica de mudanças nos processos de relações de trabalho em curso e investigou, detalhadamente, o seu desempe-nho no estado do Rio de Janeiro a partir de dados primários, construídos sobre análise documental e entrevistas com informantes--chave. Cordeiro, portanto, foi capaz de per-ceber a articulação entre os elementos mais gerais e abstratos da dimensão econômica com a dimensão concreta e específica do de-sempenho do trabalho médico, identificando novos personagens na reprodução da dico-tomia já apontada por Garcia entre interes-ses individuais e coletivos relacionados com a assistência à saúde das pessoas. Assim, seguindo a mesma linha argumentativa de nossas referências fundamentais e tomando a caso concreto da política proposta pelo go-verno federal para o manejo do “vazio sani-tário” de algumas regiões do Brasil é possí-vel fazer algumas considerações sobre seus limites e possibilidades.

Em primeiro lugar é preciso que se diga

sAÚDE COLETIVA E A

FORmAçãO pROFIssIOnAL

Em sAÚDE: mAIs méDICOs OU

mAIs DO mEsmO?POR jOsé sestelO*

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15ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS14 ENSAIOS & DIÁLOGOS

que o vazio sanitário coincide, geografica-mente, com a topografia da imensa dívida social acumulada na periferia do sistema. Falta assistência na periferia de grandes ci-dades que contam com uma hipertrofia de oferta nas regiões centrais e nos polos mais dinâmicos de acumulação de atividade eco-nômica. Em outras palavras, não são as ne-cessidades de assistência que estão determi-nando a alocação de pessoal e infraestrutura de atendimento, mas a capacidade de paga-mento e de articulação política do segmento privilegiado que as utiliza. Trata-se de um caso de privatização e segmentação da lógica de atendimento do sistema de saúde.

Em segundo lugar não é possível aceitar esse caso de privatização e segmentação da assistência como algo de ocorrência natural, mas sim como fruto de decisões políticas que tem uma teleologia voltada para a ma-ximização de lucros pecuniários privados e socialização de riscos atuarias ou seja, em detrimento do interesse público em saúde.

Assim, é preciso fugir à polarização de simplesmente ser contra ou a favor de uma política pública da hora, evitando um viés corporativista relacionado com os interesses de grupos profissionais de saúde ou um viés governista fechado, pautado por uma verti-calização no processo de elaboração de polí-ticas públicas. Mais médicos pode significar mais do mesmo, ou seja, mantida a atual ló-gica organizativa do sistema de saúde pauta-da por decisões políticas que privilegiam os interesses de acumulação privada, o resul-tado será mais acumulação privada a partir

de uma base mais ampla de acumulação. Por outro lado, mais médicos pode significar um primeiro passo na reorientação para uma ló-gica de decisões políticas pautadas pelo inte-resse público em saúde, o que significa uma lógica sistêmica onde o trabalho médico se inscreve em um cenário maior que é deter-minado pelas necessidades de saúde da po-pulação e é regulado claramente pela função do Estado.

O Brasil é um país desigual, é também um país que possui um déficit de infraestru-

tura de serviços de relevância pública como saúde, transporte e educação. Uma realida-de bem diferente, portanto, do que se ob-serva nos países centrais. Para superar esse déficit sem se recorrer à barbárie é preciso fazer valer a função redistributiva do Esta-do por meio de um sistema fiscal realmente progressivo que tire de quem tem mais para distribuir a quem tem menos. Exatamente o contrário do que vigora atualmente em um sistema fiscal regressivo que financia um Estado permanentemente deficitário que as-sim, passa a tomar emprestado e remunerar regiamente os detentores de capital financei-ro em vez de cobrar o que devem pelo resga-te da dívida social.

A atual crise, previsível, na distribuição de recursos assistenciais, inscreve-se nesse cenário e assume peculiaridades no que se refere à prática da atividade profissional de assistência. A remuneração por procedimen-to que, independentemente do valor pago, avilta por princípio a relação assistencial, mercantiliza algo que não poderia ser preci-ficado. É surpreendente que as corporações

profissionais se debatam por reajustes em tabelas de procedi-mentos que transformam seus membros em tecnólogos para execução de protocolos elaborados fora do contexto terapêutico. A dupla jornada, no público e no privado, poderia também ser objeto de discussão como uma questão ética inadiável. Quem se sente impedido de servir ao interesse público em meio expedien-te e cuidar de interesses particulares no desempenho simultâneo da mesma atividade? Como se dá o processo de aprendizagem dessa questão ética nas escolas médicas coordenadas por profes-sores de meio expediente?

Finalmente, quantos estudantes das universidades são oriun-dos das comunidades desassistidas, dos chamados vazios sa-nitários? Onde fica a capacidade de o profissional reconhecer e valorizar aspectos culturais e peculiaridades do meio social onde exerce sua prática assistencial? Haverá possibilidade de cruzar essa fronteira apenas com estímulos pecuniários ao prestador? Oxalá essa discussão possa decretar o fim da interdição ao deba-te político qualificado e substantivo onde o conhecimento acu-mulado e a prática democrática possam caminhar juntos com a assistência à saúde das pessoas reafirmando o lema da Reforma Sanitária Brasileira: “saúde é democracia”.

*José Sestelo é Mestre em Saúde Comunitária – ISC/UFBA; doutorando em Saúde Coletiva IESC/UFRJ; Vice-presidente da Abrasco gestão 2015/2018.

RefeRênciasGARCiA, J.C. Historia de las instituciones de investigaciónen salud en América Latina, 1880-1930.Educ Med Salud, Vol. 15, No. 1 (1981). Características generales de la educación médica en laAmérica Latina. Educación Médica y Salud. p. 267-316. Anexo al Documento CD19/16 presentado a la XiX Reunión del Consejo Directivo de la Organización Panamericana de la Salud, celebrada en Washington,D. C., del 29 de septiembre al 10 de octubre de 1969.

Em 1969 Garcia discutia as características gerais da educação médica na América Latina postulando que o planejamento dos recursos humanos deve constituir parte importante dos planos nacionais de saúde e refletir o esforço coordenado de todas as instituições que tenham a ver com a formação e utilização do pessoal de saúde.

sAÚDE COLETIVA

mais médicOs POde significaR uma lógica

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17ENSAIOS & DIÁLOGOS16 ENSAIOS & DIÁLOGOS

A 8ª Conferência Nacional de Saúde – 8ª CNS, só pode ser lembrada e avaliada à luz dos movimentos no se-tor saúde, parte das lutas por liberdades democráticas em nosso país, em conjunto com outros marcos naquela

conjuntura como o 1º e 2º Simpósio Nacional de Política de Saúde na Câmara dos Deputados Federais em 1979 e 1982, o Convênio AIS do Ministério da Previdência Social com Municípios e Es-tados em 1983, o final da ditadura em 1985, a 8ª CNS em 1986, a Comissão Nacional da Reforma Sanitária - CNRS, em 1987 e a Constituição Federal de 1988.

O Relatório Final da 8ª CNS orientou a CNRS, cuja proposição final foi a matriz do debate constitucional. Igualmente decisivo desde os anos 70, foi o crescente número de municípios que avan-çavam práticas de atenção integral, equitativa e universalizada à saúde nas suas periferias, trocavam experiências, organizavam-se em colegiados e associações estaduais de Secretarias Municipais de Saúde - SMS e realizavam concorridos encontros regionais e nacionais, sem prever que já estavam implementando o que vi-riam a ser na Constituição, as três primeiras diretrizes constitucio-nais: da Universalidade, Integralidade e Igualdade. Era o Movi-mento Municipal de Saúde -MMS, que cruzou positivamente na 8ª CNS com o Movimento da Reforma Sanitária, conferindo-lhe mais consistência e segurança. Ao final dessa conjuntura que al-bergou a 8ª CNS e consagrou a Constituição “cidadã”, a sociedade mobilizada apontava para reforma democrática do Estado e seu reordenamento na direção social-democrata do Estado de Bem Es-tar Social. Sobre as conjunturas que se sucederam até nossos dias abordaremos alguns aspectos.

Nossa experiência na 8ª CNS foi já na sua preparação, na con-dição de SMS de Campinas e coordenação do colegiado de SMS de São Paulo. A comissão organizadora da 8ª CNS designou inicial-mente 12 vagas de delegados para as SMS, houve reação imediata das SMS nacionalemnte e foram elevadas para 80 vagas. Os 80 delegados SMS atuaram intensamente no elevado nível da pro-gramação oficial e reuniram-se paralelamente por três vezes, pro-duzindo um posicionamento municipal que foi lido e aprovado no plenário da CNS, com compromisso da Relatoria de inclui-lo no Relatório Final. Tivemos a honra da escolha para essa leitura, assim como de contribuir com o texto “Descentralização e Munici-palização” para constar no Relatório Final a convite da Comissão Organizadora.

Provavelmente subestimamos que simultaneamente aos am-plos debates e conquistas constitucionais, as elites financeiras e conservadoras, através dos seus intelectuais orgânicos, lideranças empresariais, políticas e partidárias, formulavam e negociavam novas estratégias “de Estado”. Na contra-mão da mobilização da

sociedade, durante a transição da ditadura para a Democracia, incluindo o debate consti-tucional, articularam o modelo “presidencia-lismo de coalisão”: um modelo para adequar após a ditadura, a continuidade da intensa atividade legisladora do Executivo Nacional, enviando para homologação no Legislativo, projetos de Lei sobre assuntos administrati-vos, orçamentários, tributários e outros no âmbito das estratégias “de Estado”, além das Medidas Provisórias de aplicação imediata com posterior aprovação pelo Legislativo.

Para manter função meramente homolo-gatória do Legislativo, a “governabilidade” do Executivo passou a depender crescente-mente da fragmentação do quadro partidário em dezenas de partidos, cujo apoio ao Execu-tivo atrelou-se ao gasto pelo erário público, da exorbitante multiplicação e entrega de Minis-térios, Empresas Estatais, Renúncias Fiscais, Licitações, Concessões, etc. Tornou-se ampla regra no quadro partidário e no Legislativo, o conjunto de bancadas de apoio, de barganha e de extorsão, visando manter coalisões majori-tárias – base de apoio da situação. A lógica da orçamentação e execução orçamentária dos ministérios e estatais, em regra acompanhou a grande retração da sua finalidade pública,

há mais de meiO séculO estamOs cOm a quebRa e

aviltamentO dO legislativO, PRazO suficiente PaRa atingiR

PeRniciOsamente nãO só O PeRfil dOs legisladORes, cOmO

a cultuRa POlítica

8ª Conferência nacional de saúde: sEU sIgnIFICADO E A nECEssÁRIA RETOmADA

POR nelsOn ROdRigues dOs santOs

COnFERÊnCIA nACIOnAL DE sAÚDE

e passou a albergar crescente submissão aos juros escorchantes da especulação financeira, aos lobbies do mercado e ao atendimento ás demandas da base de apoio da situação. Vale lembrar fato histórico bem constatado e estu-dado, de que o controle parlamentar do Exe-cutivo em nosso país de 1946 a 1963 era muito mais efetivo e crescente, incluindo a amplia-ção da bancada pluri-partidária consistente nos esforços desenvolvimentistas e democra-tizantes sob os referenciais da social-demo-cracia. Inúmeros parlamentares de grande vulto, dedicação, legitimidade representati-va e compromisso público eram influentes e reconhecidos. Com a quebra do Legislativo pela ditadura de 1964 a 1984, o seu perfil de 1963 foi levemente resgatado sob grande mo-bilização social entre 1986 e 1988. Após 1988 o engendramento do presidencialismo de coa-lisão “moderniza” e retoma o aviltamento do Legislativo. Há mais de meio século estamos com a quebra e aviltamento do Legislativo, prazo suficiente para atingir perniciosamente não só o perfil dos legisladores, como a cultu-ra política que gera as candidaturas ao legis-lativo e o próprio discernimento e exigência do eleitorado.

Paralelamente ao aviltamento da sua fun-ção legisladora, o Legislativo nacional foi aumentando sua função controladora com 286 Comissões Parlamentares de Inquéritos – CPIs, propostas entre !990 e 2015, porém, com apenas 23% concluídas (entre 1946 e 1964, das 169 propostas, 60% foram concluídas). A pró-pria delegação constitucional às instituições de controle – MP, TCU, PF e o próprio Judi-ciário – foi ocupando grande parte da função controladora. Somente nas situações de crise maior, no limite da capacidade do Executi-vo bancar todas as elevações das demandas fisiológicas subalternas, com conflito maior no seio da coalisão, as CPIs tornam-se mais efetivas. O presidencialismo de coalisão foi eficaz com sólida maioria a partir de 1994; a partir de 2003 teve que dispender mais recur-sos para manter a solidez e entrou em esgota-mento a partir de 2013.

A evolução das operações da Polícia fede-ral: da Lava Jato a Zelotes e outras, denotam que, além desse esgotamento, o processo po-lítico instalado “queimará” alguns locuple-tadores do erário público, mais explícitos, expostos e/ou politicamente indesejáveis, visando proteger a elite historicamente locu-pletadora, a começar do sistema financeiro

especulativo, e na sequencia barrar o avanço das investigações hoje para ela apontadas. De quebra tentariam constitucionalizar a exclusão das conquistas sociais, hoje na maior parte descumpridas e já excluídas na prática, como na saúde, educação, emprego, pre-vidência social, transporte coletivo, segurança pública etc.

Um segundo exemplo de estratégia “de Estado” que emergiu após a ditadura, foi a crescente e efetiva negociação e atendimento das demandas sociais, negociando isoladamente com cada seg-mento e fragmento da sociedade: trabalhadores rurais e urbanos das grandes, médias e pequenas empresas por ramos da produ-ção e comércio, desempregados, empresários pequenos, médios e grandes por ramos da produção e comércio, professores do ensino público e privado, setores de atividades públicas e privadas (saú-de, educação, transporte, habitação, previdência, energia, etc.). Essa estratégia estimuladora das reivindicações e lutas fragmen-tadas corporativistas, conferiu ilusão inicial para cada corporação, retraindo o desenvolvimento e fortalecimento das lutas sociais unitárias que avançavam antes da ditadura. Nesse contexto foram proscritas as heranças do sindicalismo pré-1964 de lutas unitárias entre as categorias e com o conjunto da sociedade, que se desen-volviam sob a visão dos direitos humanos, sociais e de cidadania, tendo as lutas trabalhistas como vanguarda das lutas sociais e o debate do projeto de nação, assumido com transparência pelo con-junto da sociedade.

Essas heranças foram substituídas por novo ideário trabalhista com base nos direitos dos trabalhadores sindicalizados com dissí-dios por categorias, que vêm sendo contemplados pela elevação da capacidade de consumo, no mercado fortemente subsidiado com recursos públicos, de bens e serviços privados de saúde, edu-cação, transporte, previdência, etc. Esse mercado, por coincidência ou não, é parte evidente da cadeia de interesses e poderes formada nos 26 anos do presidencialismo de coalisão. Finalizando, decli-namos nosso objetivo de contribuir para a formulação de diag-nósticos e estratégias pela contra-hegemonia na área da saúde e consequentes mobilizações pela democratização do Estado, sob o signo de a luta continua! *Nelsão, como é chamado pelos amigos, é membro do conselho consultivo do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado e professor aposentado da Unicamp.

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19ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS18 ENSAIOS & DIÁLOGOS

Todos os anos que temos no Brasil as Conferências Nacionais de Saúde e começam os murmurinhos entre os sujeitos que circulam nos cenários de

saúde sobre as etapas municipais e estaduais, os delegados, quem irá financiar o desloca-mento até Brasília e outras questões, fico me lembrando da 8ª Conferência, porque eu esta-va lá. Simples assim... Eu estava lá! Não! Não é tão simples assim. Eu estava lá porque me encontrava completamente implicado, envol-vido e capturado pelo Movimento da Refor-ma Sanitária e esta implicação foi sendo cons-truída desde a formação médica consentânea à emergência da Saúde Coletiva, a luta pela democracia, à constituição de uma aliança entre intelectuais de esquerda, movimentos sindicais e movimentos populares.

Para expressar o que senti ao chegar na 8ª CNS transcrevo parte de um capítulo de um livro organizado por Souza e colaboradores (2011) denominado “O grito da Reforma sa-nitária: um sopro de esperança” que balançou a estrutura da oligarguia que diz: “Brisa por-que o arcaísmo da cultura e das relações políticas não permitiu que o grito da Reforma Sanitária, emitido no sudeste do Brasil, aqui chegasse com a força de um tufão ou vendaval, mas como uma brisa que traz imagens quase miragens, pois nun-ca foram imaginadas, tais como o direito à saú-de. O que poderia significar direito à saúde para uma população que sempre excluída e subjugada aos poderes dos neo-coronéis em que o acesso aos serviços de saúde dependia de favores e subservi-ência? O que poderia significar democracia para aqueles que nem o voto lhe pertencia, não tinham acesso às informações e sobreviviam sob a cultura do medo e do silêncio? Que bicho é esse chamado

de conferencia de saúde que diz ser um lugar em que as pessoas podem falar, contar e dizer aos ou-tros e ao mundo suas necessidades? Delegado?...Só de polícia!”.

Então, naquele momento, ter chegado lá em Brasília já significava uma vitória! Estáva-mos juntos e a força das vozes e dos aplausos de quatro mil delegados parecia ser capaz de mudar tudo. Momento mágico de empode-ramento, de sentir-se cidadão, protagonista, caminhante de uma trilha que vinha sen-do percorrida por diversas veredas e que se encontravam ali! Todos queriam cidadania, justiça, democracia e isso era saúde. Nas ro-das de conversa que frequento sempre digo com muito orgulho que participei de todas as Conferências Nacionais de Saúde que acon-teceram após 1986, ou seja, no contexto da democracia e da institucionalidade do Siste-ma Único de Saúde, inclusive da 15ª, em de-zembro de 2015. Já fui delegado, observador, ajudante de relatoria, debatedor e faria qual-quer tarefa para estar presente, porque ainda hoje sinto a mesma energia e força que emana da sensação de estar junto, estar com, imer-so no coletivo. E, agora, ao pensar sobre esta trajetória me pergunto o que o Deus Tempo permite perceber de 1986 até agora. As pes-soas, as coisas e as relações mudaram; e com isto vieram novos movimentos, desenhos, organizações, desenhos institucionais, rotas

O tempo e seus significados nARRATIVA sObRE A 15ª COnFERÊnCIA nACIOnAL DE sAÚDE

POR jOse ivO dOs santOs PedROsa

COnFERÊnCIA nACIOnAL DE sAÚDE

e repetindo Emir Sader - novos personagens entraram em cena.

O grande coletivo que em 1986, bradava que saúde é democracia e a considerou como Direito de Todos e Dever do Estado; em 2015, se transformou em um conjunto de coletivos que, tendo vivenciado experiências diversifi-cadas, traziam consigo uma adjetivação pró-pria para a democracia que queriam. Os direi-tos de cidadania conclamados como tais em 1986 e consagrados na Constituição de 1988, agora ganhavam expressão objetiva sendo discutidos e disputados quais suas formas e extensão. E, nesse sentido, tornava-se eviden-te que as propostas que seriam colocadas em votação traziam desde as etapas estaduais, a marca dos interesses dos atores que circulam no cenário da saúde e que genericamente, re-cebem o nome de usuários, gestores e traba-lhadores da saúde.

Mas não é possível negar que cada Confe-rência também é um momento de reencontro, de animação, onde amigos e companheiros de idos tempos tornam a se juntar e discutem as velhas e novas lutas, preferências, tendências e siglas partidárias. Com exceções, é claro, a maioria das pessoas presentes que circula-vam no espaço da 15ª CNS já tinham partici-pado de outras Conferências. E, lembrando a letra da música de Belchior eternizada na voz de Elis Regina me questionei: - “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não ...”. Ainda somos os mesmos embora não vivamos como nossos pais? E a interrogação é minha. O tempo político fez emergir sujei-tos que construíram suas identidades sociais porque o contexto democrático permitia a vo-calização de suas necessidades. Como esses sujeitos estavam representados na 15ª CNS? De 1986 para agora existe toda uma geração que não conhece a história da constituição do SUS no Brasil, uma geração para a qual o conceito de saúde se resume no cotidiano ao acesso aos serviços de atendimento médico--hospitalar, tecnologias de diagnóstico e con-trole e consumo de medicamentos.

Pensando nessa geração e na realização da 15ª lembro-me de uma música de Tulipa Ruiz:

EXPIROUSinto falta de um tempo que eu ouvi dos amigos‘Tava escrito num livroTocou numa vitrolaFoi dançado, cantado, recitado, faladoPublicado, sentido, decupado, contadoMas eu não ‘tava aliQuando é que a saudade Daquilo que a gente não viveu passa?Se passa, parece que já foi, mas quando você vê voltaVolta porque tem a tua cara, tem a ver com a tua históriaQuando é que a saudade Daquilo que a gente não viveu passa?Pretérito mais que perfeitoTodo tempo, todo instante que passouSe passar batido, perde seu sentidoSe não faz sentido, é porque expirouE pergunto: a luta pelo direito à saúde passou batido? Perdeu

o sentido? Expirou?O tema da 15ª Conferência “Saúde Pública de Qualidade para

Cuidar Bem das Pessoas: Direito do Povo Brasileiro” convida a uma reflexão profunda da inserção da saúde como setor no proje-to político nacional. Mas, na prática, o que se discutiu foi: quanto custa e qual a extensão do acesso aos serviços de saúde, sejam públicos ou privados. Para Gastão Wagner, a 15ª CNS ... esse nos-so ensaio de democracia direta, carinhosamente denominada de ‘controle social’ (controle do Estado pela sociedade, e não vice--versa!), vem abrindo espaço importante para que ‘usuários’ e tra-balhadores da saúde compartilhem, em alguma medida, o poder na condução do Sistema Único de Saúde. Desta feita, pela primei-ra vez, tivemos como presidente do Conselho e da Conferência uma mulher e ainda uma representante dos usuários: Maria do Socorro de Souza. Foi tão difícil o reconhecimento e a valoriza-ção deste lugar que sua institucionalização não teve potência de tornar-se instituinte. A utopia da sociedade controlar o Estado re-sultou na cristalização de tudo que se desejava fluxo: conferencia formalizada, conselhos normatizados e a participação regulada.

Então pensar na 15ª CNS leva ao resgate do significado da Oi-tava. Nesta última se exigia espaços participativos de vocalização das necessidades e diálogo com a sociedade para sua resolução. Na 15ª, estava em discussão desde a representatividade e se colocava em dúvida a legitimidade do espaço como fórum democrático de discussão e proposição de diretrizes para a formulação da

O tema da 15ª conferência “saúde Pública de qualidade para cuidar Bem das Pessoas: Direito do Povo Brasileiro” convida a uma reflexão profunda da inserção da saúde como setor no projeto político nacional. Mas, na prática, o que se discutiu foi: quanto custa e qual a extensão do acesso aos serviços de saúde, sejam públicos ou privados

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2120 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

Política Nacional de Saúde. Havia algo no ar que circulava o Centro de Convenções Ulis-ses Guimarães em Brasília que se reproduzia na ansiedade, na inquietação, na incerteza sobre o que se estava fazendo ali. A cada mo-mento um chegava e dizia notícia diferente sobre o que acontecia no Congresso: pedidos de impeachment da presidenta, agenda retró-grada do Congresso Nacional, crise econô-mica e escândalos políticos. E, logicamente a partidarização chegou à 15ª CNS pelo lado mais temível que existe, qual seja o de negar saúde como política.

A presença de Dilma Rousseff na Confe-rência, conduzida pela Presidente do Conse-lho Nacional de Saúde, foi uma operação de tamanha complexidade que gerou múltiplos significados e manifestações: nervosismo com o esquema de segurança, intolerância de modo generalizado e serviu de analisa-dor das divergências e contradições presen-tes – Estão transformando a nossa Conferência em palanque político – ouvi de um delegado representante de usuários. - Eu vim aqui para discutir os problemas de saúde que enfrento e não ficar escutando discurso de político - ouvi de um trabalhador de saúde.

Isso tudo traz para a superfície questões que nunca foram resolvidas na nossa demo-cracia e, de certa forma, são responsáveis pelo contexto que vivemos. Democracia re-presentativa sem representatividade, legali-dade primando sobre a legitimidade e atores políticos comprometidos com interesses pri-vados. Traz também para a visibilidade os efeitos da inclusão social feita por meio do consumo sem uma educação voltada para a cidadania em que o Estado é apreendido como uma mesa de negociação, os atores po-líticos como gerentes e as políticas públicas como contratos.

Ao mesmo tempo a realização da 15ª Con-ferência Nacional de Saúde foi também um encontro de aprendizagem, possibilidades e esperanças. O potencial de mobilização pos-sibilitou a realização de mais de 4700 Confe-rências Municipais, 27 Conferências Estadu-ais e 6 Plenárias Populares, com participação de aproximadamente 985 mil pessoas. Dos 3260 representantes eleitos compareceram e credenciaram-se 2947, sendo 773 convidados e 84 participantes por credenciamento livre. Os convidados prioritários foram entidades e movimentos que não participam ou pou-co participam de conselhos ou conferências. Sua realização precedida pela marcha em defesa dos SUS, com mais de 10 mil pessoas e pelo I Encontro Latino-americano de Enti-dades e Movimentos Populares pelo Direito Universal à Saúde, com a participação de delegados de 13 países, produziu profundas reflexões sobre o acontece no Cone Sul, em que as populações dos países latino-ameri-canos iniciaram, no início do século XXI, um ciclo de lutas contra as políticas neoliberais, implementadas por governos de direita e contra as oligarquias locais e as empresas transnacionais que delas se beneficiaram. Nestas lutas está a tentativa dos povos por libertarem-se da exploração, do colonialismo e da crescente exploração de recursos natu-rais por parte das oligarquias nacionais e das empresas transnacionais (Carta de Brasília. I Encontro Latino-americano de Entidades e Movimentos Populares pelo Direito Univer-sal à Saúde, 29 e 30/12/2015).

As Plenárias Livres, por sua vez, represen-taram estratégias que possibilitaram a pre-sença do inusitado, daqueles que apesar de reconhecidos, ainda não eram vistos e muito menos ouvidos, sem oportunidades de par-ticipar nos espaços formais como os negros, Povos dos Terreiros, Populações do Campo, Floresta e das Águas, LGBT, moradores de rua, ciganos e estudantes. O momento da 15ª Conferência Nacional de Saúde foi um acon-tecimento político cuja potência em direção à afirmação dos valores contidos na Consti-tuição Federal de 1988 e no cumprimento dos princípios do SUS. Suas diretrizes, moções, proposições fazem parte de um outro mo-mento político após a Plenária Final.

COnFERÊnCIA nACIOnAL DE sAÚDE

havia algo no ar que circulava o centro de Convenções Ulisses Guimarães em

Brasília que se reproduzia na ansiedade, na inquietação, na incerteza sobre o

que se estava fazendo ali

*José Ivo é professor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Piauí e membro da diretoria da Abrasco

22O Brasil da dengue, Zika e Chikungunya

26entrevista COm JOãO gaBBardO dOs reis

29Zika vÍrus – desafiOs da saúde PúBliCa nO Brasil

32Zika e miCrOCefalia: uma Pandemia em PrOgressO

38a ePidemia dO Zika vÍrus e Os direitOs rePrOdutivOs

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2322 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

O Brasil vive atualmente três epidemias paralelas, com consequências ainda imprevisíveis. Não sabemos, até o momento, qual será o impacto final do Zika. Temos uma mortalidade elevada por Dengue e a continuida-

de da epidemia de Chikungunya. A história das doenças trans-mitidas pelo Aedes aegypti nas Américas pode ser dividida em três fases: a primeira, marcada pelas grandes epidemias de Febre Amarela dos séculos XVII, XVIII e XIX, que acompanharam a ex-pansão mercantilista e tiveram um impacto enorme nas cidades portuárias, dizimando suas populações repetidas vezes. Uma se-gunda, no século XX, marcada pelo uso da vacina contra a Febre Amarela e pela quase eliminação do mosquito com o uso de DDT - Dicloro-Difenil-Tricloroetano, um dos mais conhecidos inseticidas de baixo custo que começou a a ser utilizado na Segunda Guerra Mundial para eliminar insetos e combater as doenças emitidas por eles como a Malária, Tifo e Febre amarela, era usado também por fazendeiros para controlar pestes agrícolas.

Vivemos agora, no Brasil, a terceira fase, caracterizada pela ex-pansão crescente da ocorrência dos quatro sorotipos do vírus da Dengue e pelo aparecimento da Zika e Chikungunya. A presença do vetor se estendeu por todas as regiões das Américas, onde sua

O bRAsIL DA DEngUE, ZIKA E ChIKUngUnyAPOR gustavO bRetas

reprodução é possível, sendo limitado somen-te pela temperatura nos extremos sul e norte do continente e nas áreas de altitude eleva-da. As estratégias atuais para o controle dos vetores do Aedes aegypti, e em algumas situ-ações, também o Albopictus, se mostram ine-ficientes. A expansão da Dengue que atinge os limites estacionais e altitudinais do Aedes Aegypti nas Américas, assim como a rápida disseminação da Zika e Chikungunya, indi-cam de uma forma clara a dificuldade de con-trolar o vetor. Até mesmo países como Cuba e Singapura: uma ilha e uma cidade estado, com sociedades organizadas e instrumentos de coerção, como uso de recursos humanos, técnicos e financeiros abundantes, não foram capazes de impedir ou interromper a ocorrên-cia de epidemias. O principal fator para a du-ração e a intensidade da epidemia parece ser a imunidade da população.

Ressalto que não temos evidências sufi-cientes para estabelecer uma estratégia de controle que vise minimizar ou conter as epi-demias causadas pelos vírus Zika e Chikun-gunya. Para o Dengue, assim como ocorreu com a Febre Amarela no passado, já existem vacinas, que ainda não estão disponíveis para o uso na população. Não é possível afirmar de qual densidade de vetores seria possível conter ou mesmo diminuir o impacto das epi-demias. Um fator complicador para o contro-le dessas epidemias é a escala do fenômeno. Trata-se de controlar o mosquito no espaço do território brasileiro e, por que não, em nossos países vizinhos, para evitar a reintro-dução. Isso ocorrerá por um tempo longo e desconhecido, possivelmente até o apareci-mento de vacinas, o que certamente levará anos. Além do mais, o Aedes é sabidamente difícil de controlar, até mesmo em espaços e períodos limitados; vide o esforço de Singa-pura. O segundo fator complicador se rela-ciona com as precárias condições ambientais, acesso deficiente de grande parte dos brasilei-ros para água e saneamento básico. Como fa-cilitadores da reprodução do mosquito temos no Brasil a desordem urbana, a deficiência na coleta de dejetos sólidos, e o uso excessi-vo de recipientes plásticos. Faz então sentido gastar recursos repetidamente, desde o início das epidemias de Dengue nos anos oitenta,

Como pensar em drones e mosquitos transgênicos quando ainda temos grande partedos brasileiros vivendo nestas condições?

EspECIAL CApA l ZIKA

com visitas domiciliárias, uso de inseticidas e larvicidas, quando não estamos modificando os determinantes que mantém a presença do vetor?

O acesso regular a moradias adequadas, água, saneamento básico e coleta de lixo, por exemplo, são condições basilares para o su-cesso de um possível controle do vetor e fa-zem parte das condições mínimas para uma vida saudável. E o que fazer agora? E como? Proponho aos abrasquianos apoiarem cienti-ficamente a sociedade e o Ministério da Saú-de a tomarem decisões racionais, que minimi-zem o impacto das doenças que têm o Aedes como vetor, que denunciem o uso incorreto (e recorrente) de recursos para a saúde em estra-tégias pouco eficientes, contumazes e que não modificam o curso natural dessas doenças.

E todos nós, abrasquianos, deveríamos enfatizar e incentivar o debate sobre a neces-sidade de dispormos com urgência de gru-pos de pesquisa e desenvolvimento, capazes de produzir testes diagnósticos, tratamentos e vacinas para novos agentes infecciosos, no menor tempo possível. Não uma política mesquinha que mostra um trabalho desinte-grado das diversas instituições com parceiros internacionais. Precisamos de uma política de Estado clara, que una os esforços dos diver-sos centros de forma conjunta, com parcerias ancoradas em regras claras, mecanismos de garantia de financiamento e capacidade de escalar a produção.

Precisamos ainda de uma política transpa-rente de vigilância: onde os bancos de dados e as informações sejam disponibilizadas às

Como facilitadores da reprodução do mosquito temos no brasil a desordem urbana, a deficiência na coleta de dejetos sólidos, e o uso excessivo de recipientes plásticos

Fernando Frazão/Agência Brasil

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2524 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

EspECIAL CApA l ZIKA

Universidades e Instituições de Pesquisa para serem analisadas e divulgadas aos brasilei-ros. Temos que exigir do Ministério da Saúde maior transparência na divulgação da utili-zação dos recursos para o acompanhamento vis a vis dos objetivos dos programas e cam-panhas de controle. Historicamente, o gasto de recursos tem sido elevado e o impacto nas repetidas epidemias não mensurado. O custo elevado e a baixa efetividade da campanha de controle de Aedes, na conjuntura atual das ci-dades brasileiras, nos obriga - como técnicos e cidadãos, a perguntar ao Ministério da Saúde qual é o objetivo dos diversos componentes dessas campanhas? O uso de inseticidas e lar-vicidas deve ter objetivos claros, relacionados não só com o controle do Aedes, mas também com seu impacto nas doenças. Se os investi-mentos feitos nessas estratégias não são capa-zes de impactar a disseminação das doenças, deveriam ser abandonadas. A epidemia de Zika demonstrará que as atividades de con-trole não têm um efeito sobre a história natu-ral da doença e, portanto, são um desperdício de fundos públicos. Sabe-se que a maioria dos criadouros de Aedes nos domicílios está na sombra, no entorno ou dentro da casa, a estra-tégia de controle precisa estar fundamentada numa campanha contínua que responsabilize os moradores. É falacioso propor que o Esta-do se responsabilize por tudo. O Estado não é capaz de visitar e investigar criadouros em todas as casas com a frequência necessária

para mantê-las livres de criadouros! O melhor controle vetorial é a ampliação do saneamen-to básico e acesso à água potável.

As campanhas de esclarecimento têm cria-do confusão, a mídia aumenta essa confusão ao dizer que o mosquito Culex pode transmi-tir Zika: está errado, e existe literatura sobre isto. Encontrar o vírus não significa capaci-dade de transmissão, só ajuda a confundir ainda mais o que já é complicado. O uso de mosquitos transgénicos, esterilizados e o uso de drones para mapeamento, não tem eficiên-cia demonstrada. Devem ser tratados como experimentos, estudos piloto para um possí-vel uso focal e restrito. Provavelmente, novas técnicas de vacinas e controle vetorial somen-te estarão disponíveis num futuro quando a maior parte da população brasileira já estará imune ao vírus Zika. Os dois principais eixos que determinam a duração da epidemia são a densidade de mosquitos e a imunidade de grupo da população. Em áreas com densida-des altas de mosquitos, a epidemia atingirá um percentual maior da população. Faltando dois meses para as Olimpíadas, deveríamos falar mais sobre Chikungunya: pela sua carac-terística de causar artrite e tendinite agudas e crônicas, atuando mais intensamente em ar-ticulações que já sofreram algum agravo (e a maioria dos atletas sofrem de problemas em articulações) , o Chikungunya tem um poten-cial maior que o Zika de prejudicar as Olim-píadas brasileiras e deixar um triste legado.

*Gustavo Bretas é médico, formado na UFRJ, foi residente de Doenças Infecciosas e Parasitárias na UFRJ, tem Mestrado de Epidemiologia na Escola Nacional de Saúde Pública, Mestrado de Medicina Tropical na London School of Higiene and Tropical Medicine, é ex-professor do Instituto de Medicina Social da UERJ, consultor de doenças transmissíveis da Organização Panamericana de Saude no Ecuador e Suriname.

O programa de controle do Aedes de Cingapura é reconhecido no mundo como o mais rigoroso. Em 2014, cientistas iniciaram os testes em laboratório

de mosquitos Aedes aegypti machos infectados com a bactéria Wolbachia para o combate a dengue

O melhOR cOntROle vetORial é a amPliaçãO dO saneamentO básicO e acessO à água POtável

faz sentidO gastaR RecuRsOs RePetidamente, desde O iníciO das ePidemias de dengue nOs anOs

Oitenta, cOm visitas dOmiciliáRias, usO de inseticidas e laRvicidas, quandO nãO estamOs mOdificandO Os

deteRminantes que mantém a PResença dO vetOR?

25ENSAIOS & DIÁLOGOS

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2726 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

“EsTAmOs pOsTERgAnDO As mEDIDAs DE ImpACTO

DEFInITIVO nO COmbATE AO Aedes egypti hÁ TRÊs DéCADAs”

Entrevista com João Gabbardo dos Reis POR bRunO c. dias

Quando a Nota Técnica Intergrupos temá-ticos da Abrasco intitulada ‘Microcefalia e do-enças vetoriais relacionadas ao Aedes aegypti: os perigos das abordagens com larvicidas e nebulizações químicas – fumacê’ foi publica-da no Portal Abrasco em 02 de fevereiro, foi jogada luz sobre a relação entre agentes quí-micos e seus efeitos na formação de fetos, já re-gistrada cientificamente por diversos estudos. No entanto, foi a decisão de João Gabbardo dos Reis, médico sanitarista e secretário de saúde do Estado do Rio Grande do Sul (SES/RS) em suspender o uso do larvicida Pyriproxyfen no estado, anunciada em 13 de fevereiro, que deu grande visibilidade à nota e ao polêmi-co tema. Afinal, é válido o uso de larvicidas e produtos químicos que podem causar intoxi-cação no combate ao mosquito Aedes aegypti? Para o secretário, recentemente eleito presi-dente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS), é evidente que nenhu-ma pessoa escolheria consumir água com agentes químicos, e que cabe aos estados e municípios a escolha sobre as formas de con-trole vetorial, desde que em acordo com os protocolos do Ministério.

No entanto, aponta que o combate à trí-plice epidemia deve passar diretamente por ações de longo prazo.

“Estamos postergando as medidas de im-pacto definitivo no combate ao Aedes aegypti há três décadas. Precisamos enfrentar a questão do saneamento básico, a disponibilidade de água potável a toda população e o cuidado com os resíduos sólidos”, explicou Gabbardo dos Reis em entrevista exclusiva. Leia na ín-tegra:

ensaios & diálogos em sC: Passada a po-lêmica inicial da decisão da ses/rs sobre a suspensão do Pyriproxyfen, como o senhor qualifica a manutenção da suspensão deste larvicida no estado do Rio Grande do Sul? Algum outro larvicida ou produto químico sendo utilizado, mesmo que de origem bio-lógica?

João gabbardo dos reis: A decisão de que o larvicida não seja utilizado em água para consumo no Rio Grande deve-se ao pa-norama que temos no Estado. Mais de 90% das casas têm acesso à rede de distribuição de água, onde o tratamento com cloro já impe-de a proliferação de larvas de mosquito. As áreas que precisam armazenar água de outras fontes estão em sua maioria no Interior, onde não há água encanada. Nesses locais, não re-conhecemos a necessidade de utilizá-lo, por-que acreditamos que o controle mecânico de infestação de larvas é mais eficaz do qualquer uso de fórmula química, seja o Pyriproxyfen ou outra. Nesses casos, o cuidado de deixar os reservatórios protegidos, seja com tampa ou tela, já é suficiente.

Salientamos que a restrição ao larvicida é exclusiva para água de consumo humano. O uso segue liberado para as demais indicações

EspECIAL CApA l ZIKA

de locais com água parada e que não podem ser eliminadas, como em chafarizes, potes e vasos de cemitérios e em reservatórios de re-aproveitamento de água da chuva. A medida é totalmente preventiva, para que tenhamos uma segurança no caso de ter alguma rela-ção com casos de alteração no sistema neuro-lógico. Não há nenhuma evidência científica demonstrando a causa e consequência disso, mas se temos a alternativa de não usar o lar-vicida, por precaução, não vamos utilizar no Rio Grande do Sul.

ensaios & diálogos em sC: Pesquisado-res, médicos e parte da sociedade em geral acredita que, para o enfrentamento ao Aedes aegypti, todos os instrumentos são válidos, incluindo larvicidas químicos. Como avalia e dialoga com esse posicionamento?

João gabbardo dos reis: O combate ao Aedes deve contar com todas as ferramentas disponíveis. E os larvicidas são parte desse programa. Contudo, no Rio Grande do Sul, esses químicos já eram pouco utilizados em água para consumo, visto que a larga maioria das residências possui água encanada. Nesses locais, temos a convicção que a correta utilização desses reservatórios, ficando fechados, já garante uma proteção suficiente. Isso representa uma das nossas políticas de enfrentamento no estado, que dá prioridade à prevenção através da eliminação de possíveis criadores do mosquito. Nas outras situações, seguimos os outros protocolos do Ministério da Saúde quanto ao uso desses produtos. Gostaria de saber destas pessoas o que responderiam se lhe fossem oferecidos dois copos d’água: um com larvicida e outro sem larvicida. Óbvio que todos gostariam de receber água sem larvas nem larvicida.

Ensaios & Diálogos em SC: O estado do rio grande do sul é um dos “celeiros” do Brasil, dada à importância das atividades agrícolas nessas terras. Infelizmente, é sabi-do do alto consumo de agrotóxicos no campo brasileiro, em todos os estados. No aspecto da saúde, como a SES/RS discute a questão do uso dos agrotóxicos e outros químicos

tanto no trabalho do produtor rural quanto na mesa dos consumidores?

João gabbardo dos reis: O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e o Rio Grande do Sul é o quarto estado com maior volume de vendas de agrotóxicos, al-cançando 50 mil toneladas por ano. A exposi-ção dos trabalhadores rurais a esses químicos representa um problema de saúde pública. Além disso, há o risco do consumo de alimen-tos e água com resíduos contaminados por es-ses produtos. Por isso, nosso Centro Estadual de Vigilância em Saúde mantém programas permanentes de monitoramento da água, do solo e dos alimentos. Esses instrumentos nos disponibilizam meios para identificar situ-ações que irão necessitar de alguma ação de intervenção.

ensaios & diálogos em sC: além de che-fiar a SES/RS, o senhor preside o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CO-NASS). A realidade brasileira é muito dife-rente nas 27 UFs. Como está sendo feito o de-bate sobre as formas alternativas de combate ao Aedes aegypti com os demais secretários?

João gabbardo dos reis: Este tema tem sido discutido amplamente no CONASS. Recentemente convidamos pesquisadores renomados que defendem o uso da proteção química. Em nossa última assembleia, con-

“estamos postergando as medidas de impacto definitivo no combate

ao Aedes egypti há três décadas. Precisamos enfrentar a questão do

saneamento básico, a disponibilidade de água potável a toda população e o

cuidado com os resíduos sólidos”

Andréa Menezes/SES-RS

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2928 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

Em outubro de 2014, um surto de uma doença exantemática febril de etio-logia desconhecida foi identificado no Rio Grande do Norte, Nordeste

do Brasil, cujas manifestações clínicas eram febre baixa ou nenhuma febre, exantema maculopapular, prurido, artralgia e edema de membros, com duração de 4 -7 dias. Nos meses seguintes, casos semelhantes foram identificados em outros estados do Nordeste e a seguir em outras regiões do país. No iní-cio de maio de 2015, o vírus Zika (ZIKV), um arbovírus que até então não tinha circulado no Brasil tampouco na América Continenal foi confirmado por testes de RT-PCR em 16 de 46 amostras da Bahia e Rio Grande do Nor-te por Zanluca e colaboradores. Em um cur-to período de tempo a infecção por ZIKV foi

gunya (CHIKV). Estes três arbovírus (DENV, CHIKV e ZIKV) têm o mosquito Aedes aegypti como principal vetor.

A co-circulação dos vírus Dengue, Chi-kungunya e Zika no Brasil dificulta o mane-jo clínico dos pacientes, tem implicações na transmissão em idosos, grávidas e crianças pequenas, além de apresentarem ainda limi-tada retaguarda laboratorial. O impacto da co-circulação viral ainda é pouco conhecido. Como no caso de reinfecção pelos diferentes sorotipos do DENV, é possível que a intera-ção de arboviroses (Dengue sorotipos 1-4, CHIKV e ZIKV) resulte em viremias mais in-tensas ou outras alterações imunológicas que deflagram doenças autoimunes como a Sín-drome de Guillain-Barré.

A associação dos casos de microcefalia

ZIKA VÍRUs DEsAFIOs DA sAÚDE pÚbLICA nO bRAsIL

Pela cOmissãO de ePidemiOlOgia da abRascO

vidamos pesquisadores que são contrários e os que defendem medidas de médio e longo prazo. Apresentamos aos secretários experi-ência exitosa de município que conseguiu em dez anos sair de uma situação dramática de infestação e altas taxas de dengue para uma realidade totalmente controlada, sem a pre-sença do vetor, sem dengue, sem usar larvici-das, nem inseticidas, usando apenas práticas sustentáveis, naturais e de baixo custo.

ensaios & diálogos em sC: Quais são as ações que ainda precisam ser tomadas para melhorar, ampliar e potencializar o combate ao Aedes aegypti no enfrentamento da trípli-ce epidemia? E, em particular, na epidemia das crianças com microcefalia?

Na abertura do Dia D de Combate ao Mosquito, em 13 de fevereiro, o secretário estadual da Saúde João Gabbardo dos Reis suspendeu o uso do larvicida diretamente nos reservatórios

João gabbardo dos reis: Temos que tra-balhar cada vez mais a conscientização por parte das pessoas. São dentro dos pátios, e até dentro das residências, que encontramos cerca de 80% dos focos do mosquito. Por isso, por mais que o poder público desempenhe suas atribuições, essas medidas seriam de pouco impacto sem a compreensão e parceria da sociedade, que precisa entender que tam-bém tem seu papel nesse enfrentamento.

Estas ações são as medidas de curto prazo, imediatas. Estamos postergando as medidas de impacto definitivo no combate ao Aedes aegypti há três décadas. Precisamos enfrentar a questão do saneamento básico, a disponibilidade de água potável a toda população e o cuidado com os resíduos sólidos.

Agên

cia

Bras

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EspECIAL CApA l ZIKA

esPeRamOs cOntRibuiR cOm O diálOgO entRe a academia, em esPecial Os

gRuPOs envOlvidOs cOm as Pesquisas, a POPulaçãO e O gOveRnO

confirmada em diferentes estados brasileiros espalhando-se para vários países da América Latina e Caribe, além de casos importados re-latados nos Estados Unidos e Europa.

Em novembro de 2015, o Ministério da Saúde decretou Emergência em Saúde Pú-blica e em 1 de fevereiro de 2016 também a Organização Mundial da Saúde identificou a situação emergencial de importância inter-nacional, facilitando as iniciativas de investi-gação e de controle da doença no país. A cir-culação de ZIKV ocorreu simultaneamente a epidemias de Dengue de grandes proporções em regiões densas e cronicamente infestadas pelo Aedes aegypti e simultaneamente à circu-lação de outro arbovírus emergente, Chikun-

com a infecção de gestantes por ZIKV foi apresentada recentemente pelas imagens e análises da virologia e patologia fetal por pa-tologista da Eslovênia e confirmada por estu-dos no Brasil que realizaram a identificação e sequenciamento do vírus em líquido amini-ótico de duas gestantes que tiveram infecção durante a gravidez e fetos com microcefalia. Embora a microcefalia esteja associada a mui-tas exposições ambientais, alterações genéti-cas, uso de drogas durante a gestação, além de infecções como rubéola, toxoplasmose e ci-tomegalovírus, entre outras, a associação com a infecção pelo ZIKV acompanha o aumento de casos de microcefalia e outras malforma-ções neurológicas no Brasil desde 2015.

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“gostaria de saber destas pessoas o que responderiam se lhe fossem oferecidos dois copos d’água: um com larvicida e outro sem larvicida. óbvio que todos gostariam de receber água sem larvas nem larvicida”

ENSAIOS & DIÁLOGOS

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3130 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

EspECIAL CApA l ZIKA

Em boletim epidemiológico, o Ministério da Saúde divulgou 641 casos confirmados de microcefalia até 02 de março de 2016, com o critério vigente de perímetro cefálico de 32 mm. A investigação de 4222 casos de micro-cefalia já descartou 1046, sendo também no-tificados outros casos de malformação neuro-lógicas (82) cuja associação com o vírus Zika tem sido indicada por exames laboratoriais.

Outras hipóteses, nunca confirmadas, fo-ram aventadas para explicar o aumento

de microcefalia, entre elas, a suposição de que esta e outras malformações estão associadas com o uso do larvicida pyriproxipheno. Além de evidências em estudos recentes que vin-culam as alterações neurológicas de bebês e a infecção prévia da gestante pelo ZIKV, vale lembrar que na epidemia na Polinésia France-sa em 2013-2104, onde não se utilizou este lar-vicida foram constatados casos de microefalia em estudo retrospectivo, e que o município do Recife, um dos locais mais afetados pela epidemia de Zika e maior número de casos de microcefalia, não utilizou o referido larvicida.

A transmissão do vírus Zika no Brasil traz muitas preocupações: o contexto social e eco-lógico nas Américas, particularmente no Bra-sil, favorece a propagação de arbovírus e a ocorrência de casos graves associados à co-cir-culação viral; a estratégia atual para combater o vetor na maioria das áreas tem-se mostrado ineficaz; as condições climáticas e ambientais são adequadas para a atividade e reprodução do vector; cidades lotadas com intenso fluxo de viajantes torna o Brasil não só vulnerável a grandes surtos, mas também um ponto de dispersão dos casos para o resto do mundo.

Apesar das dificuldades econômicas e políticas enfrentadas pelo Brasil, grupos de pesquisa e instituições estão trabalhando in-tensamente para responder a este enorme de-safio para a saúde pública mundial. Vários estudos têm sido propostos ou estão em an-damento para responder perguntas básicas sobre esta doença emergente, porém ainda pouco se sabe. Uma agenda científica foi ela-borada em articulação entre o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Fundação Oswaldo Cruz, propondo seis linhas abrangentes de investigação, que vão da produção de conhe-cimento sobre a infecção, a doença e os desfe-chos, desenvolvimento de testes diagnósticos, protocolos de manejo clínico e desenvolvi-mento de vacinas, até intervenções sobre o sistema de saúde. Entre as várias perguntas ainda não esclarecidas estão:

Qual a real dimensão da epidemia de ZIKV no Brasil? Qual o percentual de gestan-tes acometidas e entre elas qual a proporção de bebês que apresentam alterações neuro-lógicas? Quais as características imunológi-cas das gestantes que facilitam a infecção do feto? Que perfil genético do feto ou que tipo de resposta imune atuam para desencadear quadros mais graves de acometimento neu-rológico?

Como se comporta a dinâmica temporal e espacial de distribuição de vetores infectados pelo ZIKV e sua relação com casos assintomá-ticos e sintomáticos? Como se dá a interação entre o Aedes aegypti e o ZIKV? Existem outros vetores com potencial de transmissão? Quais serão as implicações clínicas da co-circulação de ZIKV, com Dengue e Chikungunya?

Estas são apenas algumas das muitas per-guntas a serem respondidas. A rápida expan-são aparente de área de transmissão ZIKV no Brasil é um enorme desafio emergente de saú-de pública, não só para o país, como para toda a América. E como tal deve motivar a ação organizada de toda a sociedade, em especial dos epidemiologistas e demais profissionais de saúde.

Vários estudos epidemiológicos estão sen-do conduzidos ou encontram-se em fase de planejamento no país com o objetivo de se co-nhecer a doença do ponto de vista clínico, epi-demiológico e laboratorial. Modelos animais têm sido sugeridos para investigar como o ví-

rus afeta o tecido nervoso. Outros grupos de pesquisa procuram vias bioquímicas e proteí-nas no sistema nervoso central, alvos da infec-ção congênita e possíveis locus terapêuticos. Já estão sendo realizados esforços de síntese de uma vacina protetora e imunoterápicos, além de realização de reação sorológica sensí-vel e específica, com pequena reação cruzada a outros flavivirus.

pERspECTIVAs

Diante do desafio de se enfrentar uma doença ainda pouco conhecida e com poucos recursos diagnósticos, cabem algumas pro-postas, entre elas:

Fortalecer o SUS – o sistema de vigilân-cia epidemiológica para detecção de casos suspeitos, reforçar rede de apoio e assistên-cia aos pacientes acometidos, organizar rede de laboratórios com critérios bem definidos para investigação de suspeitos utilizando-se reação PCR até a disponibilidade de exames sorológicos.

Assegurar que o Sistema Único de Saúde garanta um seguimento adequado às ges-tantes e aos recém-nascidos, em especial aos que apresentarem qualquer má formação. Investir de forma arrojada no controle de vetores, formação de profissionais de saúde e participação da comunidade no enfrenta-mento da epidemia.

O controle do Aedes é complexo, especial-mente considerando a grande capacidade de adaptação do vetor. Saneamento básico, co-leta adequada do lixo e limpeza urbana são essenciais para reduzir drasticamente a popu-lação de mosquitos. Requer a ação conjunta do poder público e da população. Além de medidas individuais e métodos de controle biológico, que não agridam o meio ambien-te, a redução da densidade vetorial requer a utilização, com rigor técnico, de larvicidas e inseticidas que tenham prévia aprovação da ANVISA e eficácia comprovada.

Aprimorar os sistemas de informação em saúde do DATASUS como SIM, SINASC, SI-NAN, SIH para continuar trazendo informa-ções de referências para direcionar investiga-ções epidemiológicas específicas.

Na área de pesquisa - Coordenar esforços de pesquisa com a integração de grupos no sentido de racionalizar e aumentar a rapidez

Microscopia electrônica permitiu obter imagem detalhada da estrutura do vírus. Conhecer as proteínas que compõem o invólucro do Zika ajudará os cientistas a identificar as células que ele infecta

de respostas sobre os vários aspectos da doen-ça no país. Para tanto, sugere-se divulgar pro-tocolos de investigação em andamento para facilitar a comparação de resultados, facilitar o intercâmbio de materiais biológicos e resul-tados parciais de pesquisas; propor e condu-zir estudos multicêntricos. Fortalecer o De-partamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) no sentido de formular, implementar e priori-zar agenda de pesquisa de interesse nacional. A Abrasco atua de modo a promover a inte-gração de esforços, estimulando e mediando, auxiliando a formação de redes de pesquisa que atuem de forma solidária, potencializan-do investimentos e racionalizando empenhos e competências. Na condição de associação de caráter científico com grande respeitabilidade no país, esperamos contribuir com o diálogo entre a academia, em especial os grupos en-volvidos com as pesquisas, a população e o governo, divulgando os resultados dos estu-dos, informando políticas e estimulando a sua aplicação imediata.

a estratégia atual para combater o vetor na maioria das áreas tem-se mostrado ineficaz; as condições climáticas e ambientais são adequadas para a atividade e reprodução do vector

Quais serão as implicações clínicas da co-circulação de ZIKV, com

dengue e chikungunya?

Ilustração John Lieber

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3332 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

O Zika vírus (ZIKV) é um arbovírus do gênero Flavivirus, isolado pela primeira vez em 1947, na floresta Zika, em Uganda (Dick et al). Possui um único sorotipo e duas linhagens (Africana e Asiática). Vários mosquitos do

gênero Aedes (Aedes africanus, Aedes luteocephalus, Aedes aegypti, Ae-des albopictus, Aedes furcifer, e Aedes vittatus) têm sido encontrados infectados pelo ZIKV, e podem estar envolvidos no seu ciclo de transmissão, embora o Aedes aegypti seja considerado seu principal vetor (Ioos et al, 2014). A partir da década de 1960, o conhecimen-to sobre Zika era apenas de relatos de casos isolados e de peque-nos inquéritos sorológicos realizados em comunidades da África e Ásia (Ioos et al 2014; Paixão et al, 2016). Em 2007, ocorreu um surto desta virose na ilha Yap (Micronésia) situada na Oceania (Duffy et al, 2009). A seguir, 2013 e 2014, uma epidemia atingiu a Poliné-sia Francesa quando 11,5% da população (33.000 casos) buscaram atendimento nos serviços de saúde devido à zika (ECDPC, 2014).

As infecções pelo ZIKV,na grande maioria das vezes, produz um quadro clínico de curso autolimitado (em torno de três a sete dias) que se caracteriza por exantema pruriginoso acompanhado de febre baixa (ou sem febre), mal estar geral, dor e edema ar-ticular, hiperemia de conjuntiva sem secreção (Ioos et al, 2014). Inquérito sorológico realizado em Yap/Micronésia revelou que infecções assintomáticas são frequentes (Duffy et al, 2009). Na epidemia da Polinésia Francesa foi verificado, pela primeira vez, um aumento no número de casos da Síndrome de Guillan Barré (Oehler et al, 2014), que levou à suspeita e posterior confirmação da associação causal deste acometimento neurológico com o ZIKV (Blake et al, 2016). No segundo semestre de 2014, surgiu em cida-des do Nordeste do Brasil uma grande concentração de casos de uma doença exantemática de origem desconhecida (DEE), que em abril de 2015 foi diagnosticada como Zika (Campos et al; Luz et al 2015). Além dos casos agudos e da síndrome de Guillan Barré já descritos na literatura, o ZIKV no Brasil foi relacionada à ocorrên-cia de uma epidemia de microcefalia, que eclodiu cerca de um ano após a notificação dos primeiros casos de DEE (Teixeira et al 2016) Este artigo, apresenta uma síntese da história e da atual situação epidemiológica da zika e das malformações congênitas relaciona-das ao ZIKV, as evidências que vêm sendo produzidas sobre esta relação causal e discute algumas questões em torno deste evento surpreendente e inusitado, que passou a se ser um dos mais gra-ves problemas para a Saúde Pública do século XXI.

EmERgÊnCIA DO ZIKV nO nORDEsTE DO bRAsIL E A TRÍpLICE EpIDEmIA

Os primeiros casos de DEE, procedentes de Natal/RGN, foram notificados ao Minis-tério da Saúde (MS) em outubro de 2014. À partir de então várias cidades, situadas na mesma região do Brasil, passaram a infor-mar sobre a ocorrência desta doença (Luz et al 2015, Teixeira et al 2016), razão pela qual em fevereiro de 2015 o MS solicitou às Secre-tarias Estaduais de Saúde que estabelecessem o monitoramento desta doença. Mesmo após a identificação do ZIKV em pacientes residen-tes em Camaçari/BA (Campos et al 2015) e, a seguir em Natal/RGN, Maceió/Al, Sumaré e Campinas/SP e Belém/PA não foi possível implementar um sistema de vigilância com registros de DEE (como Zika), caso a caso, de modo que não se dispõe de dados epidemio-lógicos para se estabelecer a magnitude das epidemias de Zika, até o presente momento. De acordo com estimativas preliminares do MS, deve ter ocorrido de 440.000 a 1.300.000 de casos em 2015, com grande concentração em cidades da região Nordeste do Brasil. (ECDPC 2015).

A emergência do ZIKV no Brasil estabele-ceu uma situação epidemiológica nunca regis-trada no mundo ocidental, qual seja, a circula-ção simultânea de três arbovírus transmitidos pelos mesmos mosquitos do gênero Aedes, principalmente o Aedes aegypti, no mesmo es-

paço urbano: Dengue, CHIKV e ZIKV. Estes três arbovírus, atualmente, estão se manifes-tando sob a forma de epidemias em várias ci-dades brasileiras, aumentando sobremaneira os problemas de saúde das populações, a de-manda aos serviços de saúde e da previdência social. Esta situação não é trivial, não só por ser inédita, mas principalmente pela impossi-bilidade de contenção, na medida em que não se dispõe de medidas de controle suficiente-mente efetivas para impedir a circulação des-tes arbovírus, dois dos quais nunca haviam circulado nas américas (ZIKV e CHIKV), en-contrando, portanto, toda a população suscep-tível. Assim, na medida em que estes vírus vão se disseminando para outras cidades infesta-das pelo Aedes aegypti e/ou Aedes albopictus, as epidemias vão se sucedendo no Brasil, país de dimensões continental onde mais de 80% da população reside em área urbana.

São muitos os efeitos adversos das infec-ções por estes arbovírus no organismo huma-no, que vai além das manifestações gerais de febre, cefaleia, exantemas, dores musculares e articulares, dentre outras que surgem na fase aguda destas viroses. De fato, enquanto uma pequena proporção dos casos de dengue evo-lui para formas hemorrágicas graves de ele-vada letalidade, a Chikungunya tem a capaci-dade de perpetuação da resposta inflamatória e evoluir em grande proporção, para formas sub-agudas e crônicas: principalmente em mulheres após os 40 anos. Por sua vez, pacien-tes acometidos com Zika podem desenvolver a Síndrome de Guillain-Barré, que além de exigir atendimento de alta complexidade, pode resultar em óbito. Por fim, a hipótese do ZIKV ser agente causal de malformações con-gênitas graves veio tornar mais inquietante e ameaçadora a atual situação epidemiológica desta tríplice epidemia, por colocar sob risco o desenvolvimento cognitivo e motor de par-cela importante da nova geração de crianças do Brasil e de outros países das Américas.

A EpIDEmIA DE mICROCEFALIAO aumento de nascimentos de crianças

com microcefalia em diferentes unidades hos-pitalares de atendimento materno-infantil, públicas e privadas, em Pernambuco, foi o primeiro sinal de alerta para um dos maiores e mais graves problemas para a Saúde Pública

do século XXI. Os especialistas em neonatologia e neuropediatria nunca haviam se deparado com número tão grande de casos de microcefalia em tão pouco tempo. A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES/PE) foi então comunicada e o primeiro le-vantamento constatou a ocorrência de 29 casos de recém-nascidos com período gestacional à termo, que apresentaram perímetro ce-fálico menor ou igual a 29cm (normal é igual ou maior que 32cm), de mães residentes em diferentes regiões do estado. A SES deu sinal de alerta para a rede de serviços do SUS e notificou o Minis-tério da Saúde/MS. Imediatamente, no dia 26 de outubro de 2015 uma equipe composta por técnicos da SES/PE, MS e OPAS deu início a investigação epidemiológica do problema.

A microcefalia é uma malformação congênita determinada por problemas genéticos (primárias) ou não genéticos (secundárias). São muitas as causas secundárias exemplo de radiações, drogas, pesticidas, desnutrição grave, infecções congênitas. Estas últimas são provocadas por vários agentes como rubéola, toxoplasmose, citomegalovírus, herpes e sífilis (TORCHES). Exames laboratoriais realizados em Pernambuco em alguns recém-natos com microcefa-lia e respectivas mães, permitiram afastar, na grande maioria dos casos, as principais doenças infecciosas relacionadas às malforma-ções congênitas que incidem em nosso meio. Contudo um infecto-logista (Dr. Carlos Brito) alertou para que em uma Unidade Hospi-talar de atendimento a emergências infecciosas de Recife, o maior número de casos de DEE/como Zika havia ocorrido em março da-quele ano e levantou a hipótese de aquela concentração de casos de nascimentos de bebês com microcefalia no mês de outubro poderia estra relacionada ao fato das mães encontrarem-se entre janeiro e março no primeiro trimestre da gestação e que pudessem terem sido expostas à infecção pelo ZIKV. Embora não se pudesse des-cartar outras causas para aquele surto de microcefalia, o raciocínio do profissional era muito lógico do ponto de vista temporal, pois o concepto quando atingido nesta fase embrionária por agentes te-ratogênicos são mais vulneráveis a ocorrência de malformações.

Desde então, outras evidências, além das acima referidas, da existência da relação entre ZIKV e o aumento dos casos de mi-crocefaliatais como superposição geográfica entre a concentra-ção de casos de microcefalia e a circulação deste agente; detecção de RNA do ZIKV em líquido amniótico de gestantes cujos bebes tinha diagnóstico de microcefalia intra-útero (Schuler-Faccini et al, 2016), em tecido do sistema nervoso central e vísceras de feto que foi a óbito e em material de aborto em tecido placentário e em

ZIKA E mICROCEFALIA:

UmA pAnDEmIA Em pROgREssOPOR maRia glóRia teixeiRa

EspECIAL CApA l ZIKA

Esta é uma síntese da história e da atual situação epidemiológica do zika e das malformações congênitas relacionadas

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recém natos nascidos em outros países cujas mães tinham histó-ria de terem sido expostas ao ZIKV no Brasil (Martine et al, 2016; Mlakar et al, 2016; ); morte in vitro de células-tronco neuronais humanas infectadas pelo ZIKV(Garcez PP et al 2016); resultado de estudo de coorte de gestantes do Rio de Janeiro confirma a re-lação entre ZIKV e malformações (Brasil et al, 2016);inexistência de evidências de relação entre os casos e outros fatores causais a exemplo de pesticidas, medicamentos, imunógenos, etc. Eviden-temente, que ainda são necessários a conclusão das pesquisas de cunho epidemiológico que vêm sendo conduzidas com o objeti-vo de estudar rigorosamente os critérios de causalidade e a exis-tência de interação com outros fatores biológicos e ambientais.

Independente das controvérsias que vêm sendo levantadas sobre a este tema, que têm gerado calorosos debates envolven-do comunidade científica, instituições responsáveis pela Saúde Pública, militantes das causas ambientais e a sociedade como um todo, a epidemia de microcefalia continuou progredindo. Cer-ca de 6 meses após o alerta epidemiológico da SES/PE todas as Unidades Federadas do país já notificaram casos, distribuídos em 1285 municípios, sendo 897 situados na Região Nordeste. Em sín-tese, até semana epidemiológica 14 de 2016, foram notificados ao Ministério da Saúde 7015 casos de microcefalia, dos quais apenas 45,3% (3.179) foram investigados e 1.113 confirmados. No que se refere aos óbitos já são 235 notificações com 50 confirmações entre os 80 investigados (MS, 2016). Estes dados nos dá a dimensão da tragédia que está em curso no Brasil e em toda a América Latina, onde já se detectou circulação autóctone do ZIKV em 33 países. A Colômbia primeiro país das américas, após o Brasil, a ser atingido pela epidemia de zika, também já começou a registrar nascimen-tos com esta temida malformação do SNC (PAHO, 2016).

DIFICULDADEs DE COnTROLE DA TRÍpLICE EpIDEmIA

A ocorrência destas três arboviroses está intimamente relacio-nada à distribuição e a dispersão do Aedes aegypti e também Aedes albobictus, vetores comuns aos três agentes. O primeiro, e mais im-portante transmissor, vem sendo alvo de campanhas e programas de combate desde o início do século XX, obtendo sucesso nos pri-meiros cinquenta anos, pois ao ser eliminado das Américas pos-sibilitou a erradicação da Febre Amarela urbana, promulgada em 1958 (OPAS, 1958). Infelizmente, a reintrodução e dispersão deste mosquito em muitas cidades situadas nos países nesta região desde

os anos de 1970 foi acompanhada da re-emer-gência do Dengue (Teixeira & Barreto, 1996). Esta virose foi se expandindo e produzindo epidemias de grande magnitude não só nas Américas, como também em outras regiões do mundo, de modo que na primeira década do ano 2000 passou a se constituir em um dos mais graves problemas de saúde do mundo no campo das doenças infecciosas. A expansão e elevada incidência de Dengue acompanhou a dispersão do Aedes aegypti, anteriormente só encontrado nas regiões mais próximas do Equador, e que hoje infesta países situados desde 35° Norte e 35° Sul desta linha (WHO, 2016). Neste cenário, o Brasil vem contribuin-do com quase 80% das notificações de dengue das Américas, a cada ano, correspondendo a cerca de 60% dos registros informados à OMS (Teixeira et al, 2009).

Muitos países desenvolvem programas de controle das doenças transmitidas pelos Aedes em áreas urbanas, todos baseados no combate sistemático a estes mosquitos, con-siderado único elo vulnerável da cadeia de transmissão, por não se dispor de drogas an-tivirais nem de vacinas com a eficácia desejá-vel para uso em Saúde Pública. Contudo, tem sido muito baixa a efetividade das medidas de prevenção que vêm sendo implementadas contra o Dengue que é baseada no combate sistemático aos Aedes, que era considerado o único elo vulnerável da cadeia epidemioló-gica de transmissão. Esta realidade tem sido constatada mesmo em países que adotam efi-cientes programas de controle vetorial, pois não se tem observado impacto sobre a cir-culação do vírus do Dengue, como pode ser constatado nas epidemias que se sucedem (Oii, 2006, Teixeira et al, 2009).

Assim, à semelhança do Dengue, não se tem perspectivas a curto ou médio prazo de se interromper, ou mesmo reduzir de modo importante, a circulação do Zika vírus nem do Chikungunya, agentes infecciosos que re-centemente vem emergindo e/ou reemergin-do em áreas urbanas do mundo ocidental e também têm se revelado com elevada força de transmissão (Duffy et al 2009, Morrison et al 2014, ECDPC, 2014, Luz et al, 2015, Teixeira et al 2015).

A iniciativa adotada pelo Ministério da Saúde do Brasil, em 11 de novembro de 2015, de declarar a epidemia de microcefalia em Emergência de Saúde Pública de Interesse Nacional (Brasil, 2015), foi tempestiva e refle-tiu competência técnica e aguerrida luta das

equipes de profissionais de saúde para desen-volver as atividades e responsabilidades ine-rentes às suas funções, mesmo em circunstân-cias tão adversas quanto as que o Ministério da Saúde e todo o SUS vem atravessando nes-tes últimos tempos. Desde o início, os resul-tados das investigações epidemiológicas de campo conduzidas, aliadas às contribuições da comissão de especialistas de diversas áre-as do conhecimento, permitiram vislumbrar que a epidemia de microcefalia iria progredir e viria a se constituir no maior problema de saúde para a infância a ser enfrentado nesta segunda década do século XXI. Com este sen-so de responsabilidade e compromisso com a saúde da população os dirigentes do MS fo-ram convencidos a emitir aquela Declaração, logo reconhecida como pertinente pela OMS apenas quatro meses depois (1º de feverei-ro 2016) quando esta organização declarou a Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional baseada, principalmente, nas informações epidemiológicas emitidas siste-maticamente pelo MS da Brasil.

Considerada uma das maiores tragédias ocorridas na segunda metade do século XX, as malformações congênitas produzidas pela talidomida, droga lançada no mercado a par-tir de 1956 em cerca de 40 países, atingiu mais de 10 mil crianças em todo o mundo, tendo sido banida do mercado em 1961, interrom-pendo aquela espantosa epidemia (Vargesson 2015). O ano de 1976 registrou o maior nú-

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mero de casos (2419) de poliomielite no Brasil (MS, 1992), doen-ça da infância que produzia importantes incapacidades motoras, mas não comprometia o desenvolvimento cognitivo das crianças acometidas. Se a proporção de casos confirmados da síndrome de Malformações Congênitas produzidas pelo ZIKV entre o total de notificados ao Ministério da Saúde se mantiver, em apenas seis meses 2476 crianças brasileiras serão portadoras desta grave mal-formação, cujas sequelas impedem o pleno desenvolvimento das suas funções cognitivas, dificuldade que terá repercussões negati-vas por toda a vida.

Desafortunadamente, não se dispõe de vacina e a efetividade das ações de combate vetorial é muito limitada, significando que, nos dias atuais, não se vislumbra a possibilidade de interrupção da cadeia de transmissão do ZIKV. Ao contrário, a perspectiva é de que haja progressão e expansão para outros municípios do Bra-sil e também para outros países situados na mesma faixa de risco de ocorrência de Dengue.

Assim sendo, Zika é uma pandemia em progresso e, possivel-mente produzirá mais casos que as epidemias acima referidas que atingiram crianças em muitas áreas do globo. Assim, frente a este inusitado e preocupante problema emergente de Saúde Pública, cabe unir esforços de toda a sociedade brasileira para tentar prote-ger ao máximo as gestantes e também buscar mitigar as dificulda-des que as famílias enfrentam para prover os cuidados necessários a estas crianças. Ademais, é premente a necessidade de condução de pesquisas para ampliar o conhecimento sobre as repercussões das infecções do ZIKV no organismo humano e, principalmente, para o desenvolvimento de tecnologias de prevenção e controle destas infecções.

Embora a microcefalia esteja associada a muitas exposições ambientais, alterações genéticas, uso de drogas durante a gestação, além de infecções como rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus, a associação com a infecção pelo ZiKV acompanha o aumento

de casos de microcefalia e outras malformações neurológicas no Brasil desde 2015

Não disposmos de medidas de controle suficientemente efetivas para impedir a circulação destes arbovírus, dois dos quais nunca haviam circulado nas américas

*Glória Teixeira é epidemiologista e integrante dos comitês de Avaliação e Controle de doenças vetoriais do Ministério da Saúde, é ainda professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e membro da diretoria da Abrasco

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O GT de Gênero e Saúde da Abras-co, frente às questões colocadas pela infecção pelo Zika vírus, ma-nigfestam sua posição em favor da

proteção das mulheres. As mulheres têm sido vítimas não apenas do mosquito, mas das me-didas adotadas pelas políticas públicas (são elas que devem se proteger, usar repelentes, roupas de mangas compridas, preservativo, bem como protelar a gravidez) e das consequ-ências de possíveis complicações congênitas em seus bebês.

Não há dúvidas de que são elas que aca-bam arcando com a maior parte dos cuidados em relação à prole e, por vezes, são abando-nadas por seus companheiros diante de um contexto de tamanho sofrimento causado pela síndrome do Zika congênita.

Apoiamos o movimento em prol da ob-tenção de um permissivo legal para o aborto nos casos de gestantes expostas ao Zika vírus. A garantia dos direitos sexuais e reproduti-vos das mulheres brasileiras requer medidas urgentes por parte dos poderes legislativo, executivo e judiciário, que incluem:

- A ampliação de permissivos legais para o aborto garantindo que as mulheres possam optar pelo prosseguimento ou não de uma gravidez, quando esta a expõe e/ou o con-

cepto a riscos para a saúde física e/ou mental; - A ampliação e garantia do acesso aos

métodos contraceptivos possibilitando às mulheres planejar sua vida reprodutiva de acordo com seus desejos e necessidades;

- O amplo e garantido apoio às famílias com crianças nascidas com síndrome do Zika congênita;

- A garantia e qualidade da atenção pré--natal e ao parto às mulheres que decidam continuar com a gravidez e atenção ao recém--nascido;

- O aprimoramento da vigilância em saú-de e as implicações para a saúde da mulher e, em especial para a saúde reprodutiva;

- O acesso a exames específicos para diag-nóstico preciso de infecção por Zika vírus du-rante o pré-natal.

A situação de incerteza que vivemos e as graves consequências que têm se apresentado particularmente às mulheres e crianças im-põem ações urgentes. A busca de maior co-nhecimento sobre a doença, seus mecanismos de ação e suas consequências não podem ser um empecilho para que as medidas indicadas acima sejam tomadas a fim de garantir a inte-gridade física, psicológica e moral das mulhe-res, em especial, das mais pobres e vulnerá-veis às desigualdades sociais no Brasil.

A EpIDEmIA DO ZIKA VÍRUs E Os

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3938 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS38

Após quase cinco anos de intensos debates e ser aprovado pelas duas casas do Congresso Nacional, foi à sanção da presidenta da repúbli-

ca o projeto de lei que, na Câmara, obteve a numeração 2177/2011 e o apelido de “Códi-go de Ciência e Tecnologia”. No Senado ga-nhou o número 77/2015. Foi uma tramitação incomum, posto que durante os quase cinco anos foram realizados dezenas de debates em várias instâncias, no Congresso e fora dele. Outro aspecto algo inusitado foi a convergên-cia das muitas correntes político-ideológicas quanto ao conteúdo do projeto. Finalmente, merece registro a tímida participação das entidades representativas das empresas e da sociedade civil organizada nos debates. No campo da comunidade científica e tecnoló-gica, merece destaque o manifesto intitulado “Aliança em Defesa do Novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação” assinado por 17 entidades nacionais e estaduais, em defesa do projeto.

Após o anúncio da aprovação final do Se-nado houve muitos aplausos e algumas crí-ticas. Dentre essas últimas, merece reflexão a que prenuncia que a aprovação da Lei reforça a trajetória de privatização da atividade de pesquisa no Brasil, em particular pela previ-são da ampliação dos canais de interação en-tre as entidades produtoras de conhecimento científico e tecnológico e as instituições que potencialmente demandarão esse conheci-mento, em particular as empresas industriais.

O Comitê de Assessoramento de Ciência, Tec-nologia e Inovação em Saúde da Abrasco pe-diu contribuições que alimentassem o debate sobre o tema no seio da entidade e o texto que se segue tem essa finalidade.

Em agosto de 2014 os Cadernos de Saúde Pública [(30) no 8, agosto de 2014, pp.1591-1608] publicaram um debate ancorado em um texto de minha autoria intitulado “Luz e Som-bra na Pós-Graduação em Saúde”. Debateram o texto Carlos Morel, Luís Eugênio Souza, Maurício Barreto, Rita Barata e Moisés Gol-dbaum. O texto procurava recuperar a traje-tória da pós-graduação brasileira (com ênfase no setor de saúde) e a necessidade de ajustes na sua organização, de modo a aperfeiçoar a sua colaboração no processo de amadure-cimento do sistema de inovação brasileiro. E para que isso acontecesse, enfatizava a neces-sidade de reforçar o papel da demanda por conhecimento de base científica e tecnológica num sistema que foi historicamente organiza-do com grande ênfase na oferta desse conhe-cimento. Considerando que a pós-graduação tem sido, no Brasil, o principal motor da ativi-dade científica e tecnológica, não haverá pre-juízo em estender as ideias contidas naquele texto ao conjunto do sistema nacional de ino-vação que em maior ou menor grau, depen-dendo da área de conhecimento, se organiza a partir da oferta. Acredito que o texto abaixo, que contém partes do artigo dos ‘Cadernos’, se for lido nessa perspectiva ampliada, dialo-ga com a crítica que aponta como privatizante o projeto aprovado.

A pós-graduação (PG) na forma que co-nhecemos hoje completará 50 anos em 2015. Foi em 1965 que o prof. Newton Sucupira, então conselheiro do Conselho Federal de Educação (hoje Conselho Nacional) relatou o parecer que introduzia no Brasil uma política de PG. Mas o sucesso da PG no Brasil gerou algumas sombras que, meio século depois,

COnsIDERAçõEs sObRE O

CóDIgO DE C&T

Por reinaldo Guimarães

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

ENSAIOS & DIÁLOGOS

é fundamental reconhecer as limitações das políticas públicas e a necessidade de ampliar as

discussões sobre a autodeterminação reprodutiva, a crise de zika abriu um amplo espaço para

retomada do debate sobre as restrições legais da autonomia sexual e reprodutiva das mulheres

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4140 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

impõem importantes desafios. Dentre eles, o peculiar padrão da relação estabelecida no Brasil entre as atividades de pesquisa, por um lado e de ensino pós-graduado, por outro. As preocupações quanto a essa relação não são novas e já no início da década de 1990, Eunice Durham (NUPES/USP) apontava que “[O problema] situa-se na excessiva vinculação da pesquisa à pós-graduação ...... os in-centivos para a pesquisa acabaram sendo canalizados para os programas de pós-graduação. Isso provoca uma grave distorção em todo o sistema.... Para os docentes, a criação de um curso de Pós-graduação passa a ser vista como um pré-requisito para a constituição de um núcleo de pesquisa e não, como seria desejável, uma de suas consequências.”1

Bem mais recentemente (2011), retomei essa questão em artigo no qual afirmava: “A partir da década de 1970 e por mais de 20

anos, o desenvolvimento da pesquisa, em particular nos aspectos vincu-lados a sua infraestrutura, foi essencialmente tributário da expansão do parque da pós-graduação. Em outras palavras, pode-se dizer que, desde os anos 1970, a pesquisa procura a pós-graduação e aí se desenvolve.”2

Entre os dois textos, passaram quase 25 anos e vale indagar o que pode ter se modificado no mundo da PG. A meio caminho do cinquentenário que agora se aproxima, o diagnóstico de Durham ia ao centro do problema ao denunciar uma organização equivoca-da nas instituições onde a PG se localiza, isto é, no âmbito da ofer-ta de conhecimento. Sugeria que a busca da elevação da qualidade acadêmica na PG era o principal desafio a enfrentar e, para isso, a pesquisa deveria ter antecedência e primazia na organização do ensino pós-graduado. Para isso, uma proposta de reorganização das relações entre a pesquisa e a PG era necessária e, talvez, sufi-ciente para enfrentá-lo. No caso, corrigir o sentido da relação de ‘PG → pesquisa’ para ‘pesquisa → PG’.

Entretanto, numa perspectiva atual àquele desafio – que con-tinua atual e que considero permanente – coloca-se outro que se situa não apenas na interface pesquisa/PG nas universidades e institutos de pesquisa, mas principalmente na interface desse binômio com o ambiente externo a eles. Trata-se de incorporar na análise da distorção o lado da demanda por conhecimento de base científica e tecnológica, constituído pelas necessidades dos serviços, da indústria e da sociedade em geral. Num campo com-plexo como o da saúde humana, no qual se articulam com gran-de e crescente proximidade uma política de Estado, um parque

industrial relevante e crescentes demandas sociais pelo direito à saúde, essa ampliação analítica é essencial.

Para ancorar a análise da pós-graduação brasileira a partir das relações entre a oferta de conhecimento e a demanda da sociedade pelos mesmos, lanço mão de uma “família conceitual” nascida nos anos de 1980 e de-senvolvida na década seguinte por autores europeus e norte-americanos que tem como eixo o conceito de Sistemas de Inovação. Estes podem ser sucintamente definidos como uma rede de instituições públicas e privadas cujas atividades e interações iniciam, modificam e difundem novas tecnologias. Podem ser na-cionais, regionais, locais ou setoriais. Quanto ao seu desenvolvimento, os sistemas de ino-vação nos diversos países têm sido classifi-cados pelos economistas da tecnologia como maduros, imaturos e “caminhando para a maturidade” (em situação de catching-up).

Pode-se afirmar que temos, no Brasil, um sistema nacional de inovação ainda ima-

turo4 e as dificuldades na relação entre o sis-tema de pós-graduação e a demanda da so-ciedade por novas tecnologias, entre outros aspectos, expressa essa imaturidade. Trabalho recente sugere que, a partir da contribuição de alguns setores (agropecuária, aeronáutica), o Brasil pode estar entrando numa trajetória de catching-up5. Pelo lado da oferta de conhe-cimento, a imaturidade do sistema de ino-vação setorial de saúde no Brasil é sugerida, entre outras características, pela comparação dos perfis de financiamento das atividades de pesquisa e desenvolvimento em saúde entre nós e os países de renda alta. Nestes, as fon-tes privadas (predominantemente no lado da demanda) contribuem, em 2010, com cerca de

60%, e as públicas (predominantemente no lado da oferta) com 30%6. No Brasil, o perfil de 2003 a 2005 é inverso. As fontes privadas contribuem com 23,5% e as públicas com 75%. Além disso, na vertente do uso dos recursos, a indústria financia apenas a si própria e as universidades são o destino da quase tota-lidade dos dispêndios públicos. Finalmen-te, é importante notar, entre nós, a pequena participação das instituições e dos gestores públicos do sistema de saúde como fonte de recursos para a P&D (Pesquisa e Desenvol-vimento) em saúde (11%)7. Posta em outros termos, a imaturidade de nosso sistema de inovação setorial pode ser indicada pela sua organização ser ainda fortemente assentada no componente da oferta de conhecimento e não na demanda do mesmo pela indústria, pelo sus e pelas demandas sociais.

Outros indicadores colaboram com a evi-dência de imaturidade do nosso sistema

setorial de inovação em saúde. Entre os prin-cipais indicadores estão a baixa densidade proporcional de pesquisadores no país, es-trutura de financiamento ainda instável, de-sequilíbrio entre as áreas de conhecimento e o predomínio de um padrão de fomento trans-versal que tende a descolar as prioridades das políticas setoriais das prioridades de pesquisa no mesmo setor (esse último indicador pode estar a ocorrer pela já mencionada baixa pre-sença do gestor federal do SUS no cenário da pesquisa e PG em saúde).

Mas para a imaturidade dos nossos siste-mas de inovação, nacional e setorial de saú-de, também colaboram debilidades do lado da demanda, talvez em grau ainda maior. No componente industrial, o próprio pa-drão da nossa industrialização, associada e subordinada aos centros de poder político e econômico globais. Esse padrão gerou uma grande dificuldade para incluir a necessidade de inovações autóctones nas estratégias das empresas, e mesmo algumas políticas indus-triais setoriais de grande sucesso – como foi o caso da indústria de medicamentos genéri-cos – prescindiram de demanda consistente aos produtores de conhecimento científico e tecnológico (mesmo no campo das inovações farmacotécnicas). No componente de servi-ços, observa-se um distanciamento histórico

entre os gestores da prestação de serviços e os produtores de co-nhecimento. Esse distanciamento, que poderia se chamar de um ‘olhar antiacadêmico’, diminuiu após a criação do SUS e princi-palmente na última década. No campo da sociedade, a escassez de demandas diretamente dirigidas aos produtores de conhecimento decorre da própria fragilidade de sua ação política, tradicional-mente espasmódica e com baixo padrão de organização.

Cabe registrar que nos últimos anos, nos três componentes da demanda (indústria, SUS e sociedade), observam-se mudan-

ças positivas nesse padrão estrutural. No plano industrial, a colo-cação da inovação como eixo da política de ciência e tecnologia8, bem como o renascimento das políticas industriais (Política Indus-trial, Tecnológica e Comércio Exterior, Política de Desenvolvimen-to Produtivo e Política Brasil Maior) nas quais a inovação também tem presença forte, vêm colaborando com a disseminação desse conceito para inúmeros setores industriais, inclusive o complexo industrial da saúde que, nas três versões mencionadas de política industrial, é apresentado como setor industrial prioritário.

No plano dos gestores dos serviços públicos de saúde deve ser destacado, desde a criação da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde em 2003, o crescente envolvimento do gestor federal do SUS com os temas, tanto da pesquisa científica e tecnológica, quanto da inovação e das rela-ções entre saúde e desenvolvimento econômico e social. Embora ainda timidamente, esse envolvimento tem se disseminado por algumas secretarias estaduais de saúde em unidades da federação com maior inserção no mundo da pesquisa, desenvolvimento e inovação em saúde.

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

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no Brasil, temos um sistema nacional de inovação ainda imaturo e as dificuldades na relação entre o sistema de pós-graduação e a demanda da sociedade Por novas tecnoloGias exPressa essa imaturidade

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4342 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

As pressões da sociedade organizada so-bre a pesquisa e a PG em saúde não são

habitualmente diretas, mas mediadas pelos gestores de serviços e pela indústria. Mas não devem, por este motivo, ser subestimadas. Em alguns dos mais bem sucedidos programas de saúde entre nós, a atividade direta da socie-dade civil tem sido decisiva para estimular a incorporação de conhecimento e tecnologia nas práticas de saúde. O programa de comba-te ao HIV/AIDS é, talvez, o principal exemplo disso. Numa outra clave, acrescento que sem uma pressão desse tipo, serão infrutíferas as tentativas de controle do Aedes aegypti.

A questão que se coloca é se a esses movi-mentos da demanda, de modo geral positivos, tem correspondido uma adequada percepção pelo lado da oferta e, mais importante ainda, se essa percepção tem gerado os ajustes re-queridos. Daí a importância de debater os de-safios desse importante componente da oferta que é a PG. E deriva dos argumentos coloca-dos até aqui aquilo que considero o principal desafio atual da PG em saúde humana no Brasil, que pode ser enunciado sinteticamente como o de aumentar a sua contribuição para o amadurecimento do nosso sistema setorial de inovação em saúde.

Para enfrentar esse desafio, considero ne-cessário operar dois movimentos simultâneos. Por um lado, trabalhar para que as demandas da sociedade tenham um papel mais relevan-te que o atual na organização da atividade de P&D. Por outro, fazer com que a atividade de P&D tenha um papel bem maior que o atual na organização das atividades de ensino pós--graduado nas universidades e institutos. Di-zendo de outro modo, trata-se de ampliar a correção da dinâmica histórica hegemônica no desenvolvimento da pós-graduação. Atenuar a relação ‘PG → pesquisa → sociedade’ e re-forçar a relação ‘sociedade → pesquisa → PG’.

A organização de um sistema nacional de ciência e tecnologia assentado no lado da oferta de conhecimento esteve associada, tal-vez numa relação de causação circular, ao pa-pel de liderança das comunidades científicas como lideranças propriamente científicas e também como lideranças políticas. Esse pa-drão de organização teve a virtude inquestio-nável de ancorar o sistema em fundamentos

meritocráticos, expressos essencialmente na doutrina da revisão por pares para orientar a alocação de recursos financeiros e de ou-tras formas de estímulo. Entretanto, tal qual o sucesso da PG, que não deixou de lançar algumas sombras e desafios, esse bem suce-dido sistema meritocrático no campo da política científica e tec-nológica também gerou uma contrapartida indesejada, que foi a de construir (ou, sendo mais justo, de estimular a construção) um sistema no qual as demandas econômicas e sociais estiveram, na maioria das vezes, excluídas. Importante ressaltar que esse qua-dro não foi um plano consciente das lideranças científicas, mas uma circunstância decorrente, como já mencionado, do nosso pa-drão de industrialização, da visão não muito alargada de nossos gestores públicos e de um regime de baixa pressão da sociedade organizada, todos a dificultar (ou pelo menos a não estimular) a geração de demandas aos produtores de conhecimento de base científica e tecnológica.

Muitos ajustes conceituais e organizativos foram verificados nas duas últimas décadas nas agências, em particular na

CAPES. A maioria deles em sinergia com um aumento da eficiên-cia e alcance da agência e alguns na direção de um fortalecimento da demanda na organização do sistema de PG (a admissão de cur-sos de PG de vertente profissional, por exemplo). Todos eles são bem-vindos e devem ser registrados. No entanto, para superar o desafio aqui proposto, talvez sejam necessários ajustes de maior monta, em especial nos conceitos e metodologia do tradicional processo de avaliação da agência.

Um primeiro ajuste deveria ser a possibilidade de admissão de avaliadores oriundos de instituições e campos de atuação extra--acadêmicos. Os comitês atuais são compostos exclusivamente de pesquisadores, pares dos principais atores a ser avaliados. Não se trata de uma iniciativa fácil e admito que deva ser implantada com cautela. Em primeiro lugar, em relação às áreas ou setores do conhecimento nas quais isso poderia ser viável. Em áreas de ciência fundamental, é pouco provável que se possa operar desse modo, mas em áreas de aplicação a probabilidade seria certamen-te maior. Suspeito que em áreas e setores mais ligados à formação profissional, bem como em grande parte das ciências sociais, há espaço para essa providência. Estou certo de que o setor de saúde humana é perfeitamente elegível para ela.

Em segundo lugar, a intensidade da participação (proporção de não acadêmicos nos comitês de avaliação) deveria ser calibrada

com as cautelas necessárias, sempre lembran-do de que a matéria que está sendo avaliada tem base em conhecimento científico e técnico.

E em terceiro lugar, e talvez o mais impor-tante, será essencial a qualificação dos

participantes não acadêmicos. As experiên-cias de participação de atores externos na formulação e avaliação de políticas setoriais, em particular no campo da saúde humana, têm mostrado o quão difícil é esse processo de qualificação, seja no plano técnico, seja na ausência de conflito de interesses. Nas comu-nidades científicas e tecnológicas, ao longo da história, foi constituído um balizamento ético e técnico bem assentado, muito embora dis-tante da neutralidade e objetividade que certa sociologia da ciência quer fazer crer9. É muito provável que, numa população cuja formação tenha se dado em outros balizamentos, difi-culdades possam advir.

Como pretendemos mostrar ao longo do texto, o polo mais “deficitário” nesse dese-quilíbrio é o da demanda. Da indústria, da gestão dos serviços de saúde e da sociedade é que devem ser reivindicados os movimen-tos mais importantes em direção ao catching--up e ao amadurecimento do nosso sistema setorial de inovação em saúde. Mas também há muito que fazer no lado da oferta dos de-

1 Eunice Ribeiro Durham - Estudos sobre a Pós-graduação. A Pós-graduação no Brasil – problemas e perspectivas. NUPES. Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior Universidade de São Paulo. Documento de Trabalho 8/96. 22 p. http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt9608.pdf2 Guimarães R - Desafios da pós-graduação no Brasil – Revista de Saúde Pública 2011;45(1):1-13. http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n1/2549.pdf3 Bengt-Åke Lundvall - Product Innovation and User-Producer Interaction. Industrial Development Research Series No. 31. Aalborg University Press 1985. http://vbn.aau.dk/files/7556474/user-producer.pdf 4 Freeman, C. - Continental, national and sub-national innovation systems—complementarity and economic growth. Research Policy 31 (2002) 191–211. http://www.deu.edu.tr/userweb/sedef.akgungor/dosyalar/freeman.pdf 5 Wilson Suzigan, Eduardo da Motta e Albuquerque, Silvio Antonio Ferraz Cario, [Orgs.] . – Em busca da inovação : interação universidade-empresa no Brasil. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2011. – (Economia Política e Sociedade, 3) ISBN 978-85-7526-582-6.6 John-Arne Røttingen et al. - Mapping of available health research and development data: what’s there, what’s missing, and what role is there for a global observatory? The Lancet, Volume 382, Issue 9900, Pages 1286 - 1307, 12 October 2013.7 Vianna, CMM et al. – Brazil, Financing Resource Flows in Health R&D.In Landriault, E, Matlin, SE. Global Forum for Health Research. 2009 . http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?rep=rep1&type=pdf&doi=10.1.1.168.54638 Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação. 9 Pierre Bourdieu - The Peculiar History of Scientific Reason. Sociological Forum, 6 (1) Mar. 1991, pp. 3-26. http://www.compilerpress.ca/Competitiveness/Anno/Anno%20Bourdieu%20The%20Peculiar%20History%20of%20Scientific%20Reason%201991.htm

safios políticos, administrativos e burocráticos que ainda (e cada vez mais) entravam as nossas universidades públicas e outras instituições produtoras de conhecimento científico e tecnológico, o progressivo engessamento político-administrativo provocado pela ação muitas vezes desastrada de órgãos de controle e outras instâncias centrais, isso sim tem sido um permanente produtor de desequilíbrios e quebras de expectativa.

O projeto aprovado no Congresso Nacional não trata apenas das relações entre demanda e oferta. Mais ainda, na minha leitura, não restringe a demanda ao setor privado nem apenas à indús-tria. A definição das Entidades de Ciência Tecnologia e Inovação (ECTI) parece-me suficientemente ampla para abrigar o campo dos serviços e as entidades da sociedade civil organizada. Portan-to, abre-se aí uma oportunidade de serviços de saúde e movimen-tos sociais se aproximarem dos grupos de pesquisa com vistas a melhorar sua performance e atingir seus objetivos.

Para finalizar, devem ser enfatizados outros aspectos abarcados pelo PL 77/2015 igualmente importantes para a organização

da oferta de conhecimento. Entre eles, a que dá maior flexibilidade de atuação às instituições científicas, tecnológicas e de inovação (ICTs) e respectivas entidades de apoio. Também a possibilidade de dispensa de licitação, pela administração pública, nas contra-tações de serviços ou produtos inovadores. A proposta também altera a Lei 8.666/93 para estabelecer possibilidade de dispensa de licitação, para a contratação de bens e serviços destinados a ativi-dades de P&D. O projeto dá tratamento prioritário e simplificado na importação de equipamentos, produtos e insumos a serem usa-dos em pesquisa. Permite também a concessão de visto temporá-rio ao pesquisador sob regime de contrato ou a serviço do governo brasileiro, assim como ao beneficiário de bolsa de pesquisa conce-dida por agência de fomento. Finalmente, simplifica a prestação de contas dos recursos destinados à inovação.* Reinaldo Guimarães é vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades - ABIFINA e membro do Comitê de Assessoramento de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da Abrasco

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

abre-se então uma oportunidade de serviços de saúde e movimentos sociais se aproximarem dos grupos de pesquisa com vistas a melhorar sua performance e atingir seus objetivos

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4544 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

Tecnologia, economia e política: uma reflexão para tentar

POR RenatO dagninO

1. InTRODUçãO Este texto possui como provocação o

convite formulado pela revista “Ensaios & Diálogos em Saúde Coletiva” da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) para aprofundar a análise que realizei em “As ex-pectativas do ‘Marco Legal da Ciência e Tec-nologia’” (Carta Maior, 29/02/2016).

As sugestões feitas nesse sentido me le-varam a emoldurá-lo com considerações que explicam o contexto ao qual ele se refere de um modo que invade um território quase auto-proibido para os acadêmicos. Justifico minha opção dizendo que são questões rela-cionadas à CTI até agora envolvidas por uma neblina ideológica as que têm impedido nos-so desenvolvimento. E, também, apontando o fato de que, mais do que no passado recente, a exploração desse território é indispensável para que atendamos o que a sociedade espera dos intelectuais.

O texto foi organizado em cinco seções além desta, de introdução, que reproduzem ideias contidas em outros escritos; o que ex-plica o defeito de algumas delas estarem tra-tadas em mais de um lugar. As três seções que seguem apresentam um resultado dessa exploração focalizando os aspectos do contex-to da CTI. Depois de evidenciar o papel do aspecto tecnocientífico naquele território, o

que é realizado na seção 5, a seção 6 mostra a escassa aderência que possui em relação a ele a política de CTI que vem sendo elaborada. O texto ali apresentado, que é justamente o que levou àquele convite, deve aparecer agora aos olhos de quem já o conhecia mais fundamen-tado. Para os demais leitores, ele poderá fun-cionar como um estudo de caso que, ao mes-mo tempo, (1) ratifica o que foi escrito antes acerca das relações entre a CTI e a sociedade; (2) mostra a escassa relevância de nossa PCTI para alterar essas relações; (3) evidencia o tris-te papel que vem desempenhando a comuni-dade de pesquisa como ator hegemônico do processo decisório que a origina.

Devido ao seu processo de produção, o texto pode ser lido de trás para frente. Isto é, seguindo o caminho indicado acima que lhe originou: ele se iniciou, justamente, pela sua última seção.

2. UmA pALAVRA sObRE O COnTExTO gLObAL: A CRIsE DO CApITALIsmO

Um dos objetivos desta seção, o de avaliar o binômio risco-oportunidade que a atual cri-se do capitalismo coloca para a orientação da política de CT&I (PCTI) em curso na América Latina, e que se tem caracterizado pelo au-mento da subvenção à P&D na empresa pri-vada, demanda um comentário sobre o cará-ter desta crise. Depois, indico aspectos que ele desvela e que parecem sugerir a necessidade de um encaminhamento bastante distinto do que vem sendo proposto.

Segundo divulgado, a origem da crise glo-bal se localiza nos mercados financeiros dos países centrais ou de capitalismo avançado (daqui para frente, países avançados). Deri-vada do seu sintoma financeiro, sua manifes-tação mais evidente, essa interpretação não atenta para os aspectos econômico-produti-vos. Muito menos para os mais ligados ao pla-no da PCTI que é o que me interessa destacar.

Começo assinalando que estamos frente a uma crise capitalista clássica, de realização do valor. Uma crise devida à impossibilidade de realizar o valor gerado no interior do sistema, amplificada por aspectos econômico-produti-vos associados ao processo de globalização e interpenetração dos mercados. Compreender

sua verdadeira origem descortina um panora-ma acerca dos aspectos relacionados à política produtiva e, mais especificamente à PCTI que revela a necessidade de sua urgente inflexão.

Esta crise foi “chocada” nos últimos 30 anos pela incorporação ao mercado mundial de 1,2 bilhão de operários de baixos salários dos países da antiga União Soviética, da Ín-dia e, principalmente, da China. O diferencial de salário deles em relação aos operários ale-mães (de 30 dólares por hora) é, no caso dos chineses (de 60 centavos) de 50 vezes! De fato, das mais de 3 bilhões de pessoas que atual-mente trabalham no mercado global, metade ganha menos de 3 dólares por dia.

O fato da remuneração do trabalhador ser tão baixa nesses países (ou, no caso chinês, ser subestimado na contabilidade das empresas exportadoras que registram como “salário” algo bem inferior ao que no capitalismo é o custo de reprodução da força de trabalho) barateia seu preço internacional. E ao mesmo tempo torna difícil (e em muitos casos nem é isso que se pretende) que as mercadorias que produzem sejam lá compradas. Na verdade, grande parte das mercadorias que são expor-tadas, ao contrário do que ocorreu nas econo-mias não-planificadas do Japão e da Coréia do Sul há décadas atrás, é produzida visando o mercado dos países periféricos. E, à medida em que produtos mais sofisticados e confiá-veis começam a ser produzidos, coisa que já está ocorrendo na China, também para o dos países avançados.

Esse novo estilo de competição encontra na China sua quintessência, onde se alia uma intervenção (“socialista”) do Estado, que des-conecta o salário do valor da força de trabalho e que promove a inovação segundo padrões capitalistas que favorecem um downgrading custo-efetivo e tecnologicamente programa-do. O qual se revela quando usamos muitas das ferramentas e outras mercadorias made in China. Sua baixa qualidade é hoje no Brasil responsável por uma interessante “inversão de valores” no que respeita à oposição que afligia os consumidores durante o período da substituição de importações, entre o pro-duto importado e o nacional. Países que não possuem um Estado capaz de engendrar uma

situação tão “perfeita” não têm obtido resultado tão marcante no comercio internacional.

Um dos resultados desse movimento foi, por um lado, o bara-teamento do custo de reprodução da força de trabalho nos países avançados; o que viabilizou o arrocho salarial que o neolibera-lismo já estava provocando desde o final dos anos de 1970 para aumentar o lucro da classe proprietária. Como era de se esperar, aumentou a concentração de renda e riqueza e muitos dos que tra-balhavam nos setores agora não mais competitivos em função des-se novo estilo de competição perderam seus empregos e salários.

Por outro lado, e ao mesmo tempo em que o aumento da con-centração de renda ia incubando uma crise de realização no centro do sistema capitalista, o lucro da venda das mercadorias prove-nientes dos países de baixos salários ia a ele retornando; o que não é novo para quem se lembra dos petrodólares que se transforma-ram em eurodólares na década dos setenta.

Como se sabe, a China tem mais de 1 trilhão de dólares aplica-do em títulos do governo estadunidense. Dólares que permitiram retardar a eclosão da crise através do financiamento do Tesouro e que são “cobrados” através da pressão que ela exerce para que o governo estadunidense solucione a crise. Solução essa que, ani-mada por um espírito nacionalista-estatista que desfaz os mitos benfazejos da globalização e da “mão invisível” propalados pelo neoliberalismo, tem-se traduzido em medidas de favorecimento às suas classes proprietárias.

3. CARACTERIZAnDO O COnTExTO bRAsILEIRO: mARgEm DE LUCRO, TAxA DE LUCRO E “CRIsE pOLÍTICA”

Há estudos que mostram que a taxa de lucro das montadoras instaladas no Brasil (e não deve surpreender se algo semelhante ocorra em outros países latino-americanos) é três vezes maior que nos EUA: aqui é 10% e lá, 3%.

Há indícios de que a taxa de lucro seja aqui uma das maiores do mundo. De fato, é de senso comum que a opção investimento produtivo vs. aplicação financeira é condicionada pela compara-ção da taxa de lucro com a taxa de juros. E dado que existem em-presários que investem na produção, apesar de há muitos anos termos aqui uma das maiores taxas de juros, é provável que a taxa de lucro que auferem seja também uma das maiores.

Essa constatação, embora seja essencial para caracterizar a fal-sidade do argumento que embasa a oposição das elites frente às

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

sAIR DO LAbIRInTO

Devido ao seu processo de produção, o texto pode ser lido de trás para frente.

isto é, seguindo o caminho que lhe originou: ele se iniciou, justamente,

pela sua última seção

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políticas públicas implementadas na última década, não será aqui explorada.

Vou me ater a algo mais conjuntural. Vou tratar da “crise po-lítica” que as elites vêm “fabricando” no último ano e pouco ao perceberem que essas políticas, que por diversas vias implicam numa elevação da remuneração dos trabalhadores, serão manti-das gerando uma situação que as ameaça. A desestabilização de um funcionamento do ciclo econômico que as têm beneficiado e que poderia continuar fazendo, na medida em que essa elevação seguisse provocando um aumento na demanda pelos bens e servi-ços que suas empresas vendem e, consequentemente, na sua ma-rem de lucro, é a forma que encontraram para tentar retornar aos salários de fome que por séculos existiram.

Inicio a abordagem, cujo caráter que muitos considerarão re-ducionista e “economicista”, simplificando dois conceitos da Eco-nomia Convencional.

Margem de lucro (ou mais simplesmente, lucro): quantidade de dinheiro que “sobra” para o empresário depois de vender seu produto (ou serviço) e pagar o custo daquilo que necessita para produzir (matéria prima, energia, máquinas que se desgastam, e força de trabalho).

A participação da força de trabalho no custo total - o salário -, embora varie entre os setores econômicos, é muito significativa quando avaliado para o conjunto da economia. Todos os outros insumos que o empresário necessita incorporam o trabalho huma-no (e o seu custo) na sua cadeia produtiva. E o que é dito sobre o impacto do aumento no preço dos combustíveis no custo de pra-ticamente todas as mercadorias, é ainda mais notório no caso do salário.

A margem de lucro, que é tanto maior quanto mais o empre-sário puder produzir e vender, é um elemento central para tomar decisões sobre seu comportamento futuro.

Se sua expectativa individual acerca de sua margem de lucro é alta, o que ocorre quando sua demanda vem crescendo, ele pre-fere investir para ampliar sua capacidade produtiva a aplicar no mercado financeiro.

Mas, como se sabe, essa decisão não depende só disso. Para explicá-la preciso do segundo conceito considerado no cálculo em-presarial: a taxa de lucro.

Diferentemente da margem, que é uma quantidade de dinhei-ro, a taxa de lucro é uma porcentagem. É um quociente entre duas quantidades de dinheiro: a margem de lucro e a quantidade que o empresário precisou gastar para produzir e vender.

Não por acaso, ela é muito semelhante à taxa de juros, que é também um quociente; entre o juro e a quantidade de dinheiro que ele aplica.

Quando o custo dos insumos para pro-duzir aumenta, o denominador do quociente aumenta: a taxa de lucro cai. E se a expectati-va do empresário sobre sua margem de lucro futura não é boa, se ele prevê que ela não vá acompanhar o aumento de custo, se considera que sua taxa de lucro pode diminuir, ele vai preferir a aplicação financeira ao investimen-to produtivo.

Agora estamos prontos para “modelizar” a partir desses conceitos, a “crise política” fa-bricada pela elite empresarial.

O custo da força de trabalho vem crescen-do sistematicamente ao longo da última déca-da em consequência de políticas públicas que sobre ele incidem diretamente, como a que regula o salário mínimo, ou indiretamente, como a da previdência social, da educação, do Bolsa Família, etc. Isso levou a um aumento no custo de produção de bens e serviços.

Mas, em função de um efeito tão de senso comum quanto o que eu disse acima – o cha-mado multiplicador Keynesiano -, essas po-líticas, junto com outras que ativaram setores como o da construção civil, ao aumentarem a massa salarial, desencadearam o crescimen-to da demanda e da produção fazendo com que aumentasse a margem de lucro; e que os empresários, respondendo individualmente aos sinais do mercado, realizassem algum investimento.

Como em muitos setores havia capacida-de produtiva ociosa, uma vez que a demanda ficou muito tempo estagnada, os empresários não tiveram que investir pesadamente em má-quinas e instalações caras, o que levou a um aumento ainda maior da sua taxa de lucro.

Esse aumento foi além do setor industrial; abarcou outros, como o financeiro e o agro-negócio. E foi potencializado por políticas de-

fensivas em relação à crise global que incluí-ram redução de impostos, não fiscalização da sonegação (que atinge 10% do PIB) e por uma conjuntura favorável no mercado de commo-dities.

A bonança infiltrou-se, inclusive, na “má-quina pública”. Mas o impacto econômico positivo sobre o empresariado foi sendo dilu-ído à medida que se incorporaram entrantes – desde multinacionais até “empreendedores” que saíram da informalidade. A isso se somou o fato de que as políticas defensivas frente a uma crise global em agravamento forçaram o aumento de tarifas, e que arrefeceu a deman-da e o preço internacional de commodities.

A esse respeito, e sobre a colocação fre-quente que atribui à diminuição da receita da exportação de commodities as dificuldades econômicas que o país vem enfrentando, e que, por consequência, ela seria um impor-tante condicionante da crise política, vale a pena uma digressão.

Essa colocação se apoia no fato de que das nossas exportações, um pouco mais do que 65% corresponde às commodities (nesta ordem: soja, minério de ferro, petróleo, frango e açú-car). O que significa que o peso da exportação de commodities (US$ 191 bilhões em 2015) no PIB - indicador denominado na literatura de commodity dependence – de cerca de 6,6% do PIB seja bastante alto. Coisa que não é de hoje: esse indicador era bem menor antes da aber-tura neoliberal de nossa economia ocorrida a

partir dos anos de 1990, que inicia um processo de desindustriali-zação e desnacionalização em agravamento. Mais do que aqui, a reprimarização que havia começado mais de uma década antes no conjunto da América Latina levou a que praticamente todos os de-mais países da região apresentem maiores commodity dependences: 40% na Bolívia, 25% no Chile e no Equador e 11% na Argentina (outros países considerados emergentes como a África do Sul e a Índia também apresentam indicadores superiores ao brasileiro, de 13% e 8% respectivamente).

Não há como negar que a combinação da queda da deman-da mundial por commodities e, consequentemente, do seu pre-ço internacional, que se inicia em 2013 depois de uma década de alta, tenha levado a uma diminuição da receita da exportação de commodities. É, entretanto, questionável o impacto direto dessa diminuição no crescimento econômico e na erupção da crise po-lítica. Sobre a primeira, há que considerar que o Brasil é um dos países mais fechado do mundo dentre os 250 pesquisados pelo Banco Mundial; ou seja um dos que menos dependem do comér-cio exterior para o dinamismo de sua economia. Nosso coeficiente de abertura (que é a média entre exportação e importação divi-dido pelo PIB), apesar de décadas de subsídio à exportação que aumentam as vantagens comparativas citadas, continua sendo pouco superior da 12% do PIB. O que mostra que fronteira brasi-leira de acumulação capitalista “legítima” (por oposição à espúria condicionada pelo nosso padrão periférico de desenvolvimento) é interna. E que o país possui um potencial de crescimento enorme que pouco depende do mercado externo e da receita advinda da exportação de commodities.

A segunda causalidade - a erupção da crise política – demanda uma explicação que se inicia por uma constatação que aparente-mente a fundamenta. A de que a receita das commodities que é pri-meiramente absorvida pelos que financiam a influente “chamada bancada do boi” (uma das que fomenta a crise) beneficia, prin-cipalmente a montante, outras empresas de bens e serviços. Mas isso não autoriza a colocação pretensamente ingênua que entende a interrupção desse bônus de receita como uma dificuldade in-terposta à “nação brasileira”; como se um território em que uma enorme e sempre renovada concentração de riqueza e, em conse-quência, de renda (apenas amainada nos últimos anos) pudesse de fato ser considerado uma nação. O que parece mais provável é que a interrupção desse bônus que serviu para compensar o cres-cimento do preço da força de trabalho tenha desencadeado, pela via da diminuição da expectativa de lucro, a crise política.

Situações como a presente são recorrentes na história do capitalismo; principalmente, do periférico. Elas costumam fazer com que, antes mesmo que caia a margem de lucro ou até independentemente das expectativas individuais dos empresários, piore a avaliação que, corporativamente, possuem acerca sua taxa de lucro futura, e que surjam ameaças de desestabilização política.

Pelo menos três trajetórias - não excludentes - são historica-mente verificáveis: (a) se se mantiverem os salários, diminui o in-vestimento, o emprego e a demanda e aumenta a sujeição nacional frente à cobiça globalizada e a instabilidade social: a cena será a de um empate de “tragédia grega”; (b) se os empresários contarem com poder de coerção ideológica ou física suficientes para a redu-zir o preço da mão-de-obra, se eles (e o Estado) investirem na pro-

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

Vou me ater a algo mais conjuntural. Vou tratar da “crise política” que as elites vêm “fabricando” no último ano e pouco ao

perceberem que essas políticas, que por diversas vias implicam numa elevação da remuneração dos trabalhadores, serão mantidas

gerando uma situação que as ameaça

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dução, e se for tecnologicamente possível gerar emprego, um cover do malfadado general Mé-dici irá repetir que “a economia vai bem mas o povo vai mal”; (c) se for mantida ou aumen-tada a remuneração do capital financeiro (que não se limita aos juros) o resultado será uma tragédia grega encenada numa república de bananas com sério risco de “apodrecimento”.

Até aqui, supondo que existam limites, estaríamos no terreno dos conceitos e tendên-cias da Economia. Adentrando ao da política (ou da Psicologia, como preferem alguns), é esperável que quando os empresários, e não estou falando dos que escutam a mídia e sim daqueles que a “constroem”, se deparam com a vitória de uma coalizão cuja promessa elei-toral implica um aumento do salário, ocorra uma “greve dos investidores”.

Ocorre o que os marxólogos chamam de uma “resposta de classe”. O comportamento do empresariado (da classe empresarial, ou o que eles chamam de “classe capitalista”) dei-xa de ser um agregado de reações individuais aos sinais de mercado. Passa a ser resultante de uma intenção da elite de inviabilizar pelos meios alcançáveis o cumprimento de promes-sas que a prejudica. Dizem eles, que numa “crise de realização do capital” (e elas seriam normais e periódicas no capitalismo), o em-presariado ultrapassa aqueles limites. Deixa de responder ao mercado (mesmo quando seus sinais sejam positivos) e substitui seu ho-rizonte de curto prazo - da economia -, pelo de longo prazo - da política. Deixa de se pre-ocupar com movimentos táticos adequados para as batalhas individuais em busca de lu-cros extraordinários que ocorrem em seu seio. E passa a se concentrar nos movimentos estra-tégicos necessários para vencer a guerra con-tra a “classe trabalhadora”; o que marxólogos consideram ser o seu “inimigo principal”.

Voltando a conceituação que estamos usando: o empresariado passa a se preocupar muito mais com sua taxa de lucro do que com sua margem de lucro. Mesmo que esta esteja aumentando e tenda a crescer, a classe empre-sarial, ao sentir que sua taxa de lucro futura está ameaçada, boicota, às vezes até de uma forma suicida que vai além de “deixar os bois no pasto”, a ordem econômica que criou para atender seus interesses.

muitas outras coisas, subsidiar o aumento da produção de bens e serviços pelas empresas de maneira a desencadear um “transbor-damento keynesiano-fordista” que promoveria o círculo virtuoso do emprego, aumento do consumo, etc. Ainda que esse processo que nos levaria ao desenvolvimento seja cada vez menos exequí-vel, a proposta desenvolvimentista se mantém hegemônica. A ponto dos que a defendem, embora afirmem o contrário, impeçam a convivência da que vou analisar em seguida nos espaços em que se decidem as políticas públicas.

Não me parece necessário detalhar essa proposta uma vez que é uma reedição - fragilizada pelos contextos tecnoprodutivos na-cional e mundial e com bem menor probabilidade de êxito – da nacional-desenvolvimentista que orientou nossa política produti-va até o neoliberalismo.

Ainda sem batizar a segunda proposta, enuncio, para acentuar o contraste, as noções em que se fundamenta a diferença entre elas.

A primeira noção, é a de que esses dois processos - crescimen-to econômico e desenvolvimento - respondem a duas dinâmicas distintas. A da produção e circulação de bens e serviços, ou dinâ-mica do mercado (no capitalismo), pode ser entendida como res-ponsável pelo crescimento. O desenvolvimento, responsabilidade essencial do Estado, é fruto de suas políticas sociais.

O crescimento econômico é um resultado de atividades de ini-ciativa da classe proprietária ou classe empresarial. Ele não leva necessariamente (e a experiência de países periféricos como o nos-so o evidencia) ao desenvolvimento.

O desenvolvimento não pode prescindir de políticas sociais. Aquelas que a classe proprietária poderia chamar “antieconômi-cas”, dado que subtraem do seu fundo de acumulação de capital a parte do recurso público aplicado para contrabalançar a tendência concentradora da dinâmica do “mercado” que ela engendra em seu benefício.

Mas o desenvolvimento requer também políticas econômicas. As quais talvez devessem ser chamadas pela classe trabalhado-ra de “antissociais”, uma vez que as atividades que engendra, além de implicarem a apropriação do excedente social que geram (mais-valia) pela classe proprietária, tendem a concentrar poder econômico e político contribuindo para a assimetria social.

Isso porque é a taxação das atividades privadas o que possi-bilita as políticas sociais. Seu impacto econômico, em adição ao que ganham os vendedores de força de trabalho envolvidos com essas atividades, possibilita a elevação do bem-estar do conjunto da sociedade; ou seja, o desenvolvimento.

A segunda noção em que se fundamenta a proposta que se opõe ao neodesenvolvimentismo é a de que embora o crescimento facilite a ocorrência do desenvolvimento, ele não é uma condição necessária. O que ele faz é gerar um fluxo de renda que pode ser realocado na margem, mediante a ação do Estado, sem mexer no estoque de riqueza da classe proprietária, sem “cutucar a onça...”; o que, entretanto, é insuficiente.

A terceira noção se relaciona à importân-cia das relações com o exterior para o cresci-mento. Contrariando a informação disponível que coloca o Brasil entre os últimos países em participação do comércio externo no PIB, o neodesenvolvimentismo superestima a ex-portação intensiva em recursos ambientais e a hoje não mais possível substituição de im-portações intensivas em tecnologia como ala-vancas de crescimento. Ao fazê-lo, subestima o papel do consumo de massa e desfoca nosso potencial tecnocientífico das enormes deman-das cognitivas contidas em atividades econô-mica e socialmente prioritárias e passíveis de atendimento sem recorrer à empresa privada.

A quarta noção que centraliza o debate se relaciona à maneira como as políticas públicas (em especial a impositiva e as sociais) buscam promover o desenvolvimento atuando sobre a dinâmica do “mercado”.

Essa dinâmica é entendida, pela propos-ta que em seguida batizarei, como parte de um sistema que integra, ademais, a dinâmica produzida pelas políticas públicas. A imagem que sugiro desse sistema é a de um conjunto de duas bombas hidráulicas que funcionam uma contra a outra. Ele possui baixa eficiên-cia: dissipa energia e aumenta a entropia do macrossistema social em que está inserido provocando tendência ao caos.

A primeira bomba – dinâmica do “mer-cado” – atua em nosso tecido socioproduti-vo, em que tem lugar a produção de bens e serviços a partir da propriedade concentrada dos meios de produção pelos empresários, no capitalismo, ou pela burocracia estatal, como aconteceu no socialismo real. Quando há in-vestimento privado (que corresponde a 80% do total) ela conduz a uma produção socio-tecnicamente concentrada; que por sua vez provoca centralização do excedente gerado e da riqueza, inchamento das cidades, dano ambiental, aumento da dependência cultural, econômica e tecnocientífica, etc.

Não obstante, dado que a eficiência da di-nâmica do “mercado” é avaliada com critérios gerados no meio empresarial, que por cons-trução deixam de lado as “externalidades”, seu efeito aparece maquiado para a socie-dade. Uma economia que apesar de praticar

O que interessa à elite golpista implica, num estilo “ovo e galinha”, a fabricação econômica e potencialização - midiática e política - da crise, é a desestabilização do País e do seu governo. A conjuntura – nacional, com a radicalização dos “coxinhas”, e internacional, com a renascença do neoliberalismo – se lhe afigura como favorável. Não obstante, o “dia seguinte” ao golpe não irá contar com um entorno como o que possibilitou o “milagre eco-nômico” que o golpe cívico-militar engendrou à custa da repres-são e do arrocho salarial. O resultado tenderá a ser uma cena que combina as piores características das outras três e que nem para o empresariado é desejável.

4. TRAjETóRIAs ALTERnATIVAs nO COnTExTO bRAsILEIRO: O DEbATE DA EsqUERDA

O texto que originou a seção anterior, quando originalmente publicado, continha uma provocação aos leitores para que entras-sem em contato caso quisessem conhecer as trajetórias alternati-vas àquela que a direita vem construindo.

Como muitos leitores o fizeram, publiquei o texto que segue, que se iniciava respondendo a um deles que reclamou de eu não distinguir entre empresários rentistas e produtivos (ou entre a oligarquia e a burguesia), e de tê-los “demonizado”. Sobre o primeiro, reafirmo que aquela diferença é hoje, no mundo finan-ceirizado, cada vez mais tênue. Sobre o segundo, e por falar em demônios, dizer que sempre soube distinguir entre um Boilesen, que financiava a tortura dos que lutaram para que fosse possível a democracia que alcançamos, e um Kurt Mirrow, que escreveu A Ditadura dos Cartéis.

Desde o lado onde esses leitores que se interessaram e eu nos situamos – o esquerdo – vou focar-me em duas propostas em ges-tação no campo da esquerda latino-americana para orientar as políticas públicas que incidem sobre nosso tecido socioprodutivo. Para que possamos gerar uma dinâmica autossustentada, alterna-tiva àquelas propostas pela direita que analisei na seção anterior, elas me parecem merecer um debate fraterno, mas profundo.

Porque quero logo situar as distinções entre as propostas inicio salientando que elas vêm recolocando em um tema recorrente no âmbito da esquerda e que já motivou muitas cisões e defecções no nível político. É o tema simples e quase simplório da relação entre crescimento econômico e desenvolvimento. O primeiro entendido como aumento do PIB per capita e o segundo, como o processo de elevação do bem-estar do conjunto da sociedade; o qual, por incluir o das gerações futuras, impõe a consideração ambiental.

De um lado, encontra-se a proposta neodesenvolvimentista; eu a tratarei brevemente, pois é bem conhecida.

Embora negue que o crescimento é condição suficiente para o desenvolvimento como faz a direita, entende que o crescimento, ainda que ameaçando equilíbrios que vão desde o cultural ao am-biental, é uma condição necessária para o desenvolvimento. Para promover o crescimento, considera conveniente, claro que entre

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uma elevadíssima taxa de juro conta com quem aloque recursos para a produção, só pode ser caracterizada como uma que propor-ciona às empresas uma das mais altas taxas de lucro do mundo. O que evidencia o caráter concentrador da relação entre o Estado e nossa classe proprietária.

A segunda bomba, que atua através das políticas sociais do Estado é a que durante o “estado de bem-estar” contrabalançou os efeitos perniciosos da primeira e manteve o sistema relativamen-te equilibrado. Depois de muitas décadas dirigido por coalizões pouco preocupados com o desenvolvimento, essa bomba vem au-mentando sua potência. Inaugura-se uma tendência a distribuir; se não a riqueza, pelo menos a renda. Ação que tem esbarrado numa estrutura estatal adversa, dado que conformada secular-mente para atender aos interesses da classe proprietária, e numa correlação de forças políticas desfavorável, advinda de nossa an-cestral e enorme concentração de poder econômico e político.

Além de forjar continuamente ameaças à governabilidade, ela impossibilita as “reformas de base” que desde o início dos ses-senta permanecem como condição para minorar o sofrimento da metade da nossa população que não possui o suficiente para viver dignamente.

A eficiência dessa segunda bomba também é muito baixa. Evi-dencia isso é que nem mesmo coibir a sonegação de impostos, ou adotar uma escala progressiva do imposto de renda e da proprie-dade, de modo a aliviar a absurda carga sobre o consumo e retirar nossa Administração Pública do grupo das mais injustas do mun-do. Sua eficiência para distribuir o excedente econômico gerado socialmente; que é o que se espera de qualquer Estado capitalista que pretenda legitimidade, contribui para manter nosso país entre os mais desiguais do mundo.

Entre as muitas evidências disso, menciono duas: a coexistên-cia do programa - redistributivo - Bolsa Família, que custa 0,5% do PIB e beneficia 14 milhões de famílias, com o “programa” – con-centrador - Serviço da Dívida Pública (o chamado “Bolsa Elite”), que custa até 8% do PIB e que beneficiaria 20 mil famílias; o fato de que quem tem um Gol paga IPVA e quem tem um jatinho não paga nenhum imposto similar.

Retomando o fio da meada apresento a segunda proposta que participa do debate da esquerda mantendo o foco na relação cres-cimento-desenvolvimento. Contrariamente à neodesenvolvimen-

tista, que se baseia na noção de que o melhor que podemos lograr é o equilíbrio entre aque-las duas dinâmicas, ela afirma que nossas vi-das dependem da desconstrução do sistema por elas formado.

E aponta que já está em construção outro sistema, o da Economia Solidária. Ao con-trário do crescimento competidor (o que não quer dizer competitivo) que o neodesenvolvi-mentismo implica, ela se fundamenta na soli-dariedade.

Ela propõe o fortalecimento da Econo-mia Solidária que está emergindo da Econo-mia Informal. Que é aquela onde “se vira” a maior parte dos 160 milhões de brasileiros em idade de trabalhar que são “suplementares” aos pouco mais de 40 que possuem “carteira assinada” e estão “incluídos” na Economia Formal. Vale salientar que o indicador 40/160 (25%), que é um dos menores do mundo, é muito mais importante do que a taxa de ocu-pação – quociente da população ocupada e a população economicamente ativa - para ava-liar a desocupação de nosso potencial de ge-ração de renda.

Nos empreendimentos solidários, ao con-trário do que ocorre nas empresas privadas e estatais, a propriedade dos meios de produção é coletiva. Por isso, trabalhadores associados se dedicam à produção de bens e serviços de modo autônomo, autogestionário e descon-centrado. E, também, ambientalmente susten-tável, porque, como dizia meu avô, “nenhum animal abodega o local onde trabalha”.

Embora ainda submetidos à dinâmica do “mercado”, comprando ou vendendo para a Economia Formal, esses empreendimentos tenderão a formar cadeias produtivas cada vez mais densas, completas, entrelaçadas e autossuficientes. Seu alvo é o consumo de

bens e serviços dos trabalhadores e suas famí-lias, a demanda de outros empreendimentos solidários e, também, a dos cidadãos que pas-sarão a recebê-los via intermediação do poder de compra do Estado em troca do imposto que pagam. Eles estão substituindo a bandei-ra do “emprego e salário”, que a realidade dos fatos está arriando, pela do “trabalho e renda” que o movimento social, à revelia dos neodesenvolvimentistas, vem içando.

Se denominarmos de neodesenvolvimen-tista a tendência que decorre da visão de mundo que a fundamenta - o neodesenvol-vimentismo -, parece legítimo chamar os que apoiam um cenário cuja trajetória que parte da cena atual e origina uma cena de chegada coerente com esta visão de “neodesenvolvi-mentistas”.

Referir a seus opositores no debate da es-querda, obriga-nos, de modo simétrico, a ar-ranjar um nome para aqueles que não adotam como valor básico, no plano social, o desen-volvimento, e sim a solidariedade (e, no plano produtivo, superando o fordismo e o toyotis-mo, a autogestão); aqueles que não acreditam que vá ocorrer o surgimento de “empresários schumpeteriamos” (da Economia da Inova-ção) e a emergência de “empreendedores” (da Economia Criativa); aqueles cuja expecta-tiva é o fortalecimento dos empreendimentos solidários; aqueles que estão construindo um cenário cuja cena de chegada – a Economia Solidária – é bem distinta daquela que nos oferecem hoje as economias desenvolvidas e que seu establishment segue recomendando para a periferia. Por correspondência e coe-rência, me parece legitimamente adequado, chamá-los de “solidaristas”.

Os “solidaristas” propõem um decidido apoio governamental aos empreendimentos solidários; proporcional se não maior, por ra-zões de justiça, equidade e respeito ambien-tal, ao seu potencial de absorver a enorme e ociosa capacidade de geração de riqueza da-queles que numa “jobless and jobloss economy” não serão absorvidos pela Economia Formal.

Na medida em que recebam do governo benefícios, qualitativamente semelhantes (ainda que na forma e no conteúdo bem dis-tintos) e quantitativamente proporcionais, aos que usufruem as empresas. Inclusive, os relacionados à capacitação naquelas habilida-des e competências que efetivamente neces-sitam para se tornarem econômica e cultural-mente sustentáveis; o que pouco tem a ver com a educação “bancária”, para o trabalho,

que conduz à qualificação necessária para ge-rar lucro e que chegou a possibilitar ascensão social.

À medida que sejam apoiados, irão desenvolvendo, mediante a Adequação So-ciotécnica da tecnociência convencional pro-duzida para e pelas empresas, a Tecnologia Social que os tornará crescentemente susten-táveis.

O empoderamento social daí resultante levará à consolidação de redes de Economia Solidária que funcionarão como uma “porta de saída” digna, autônoma e soberana, para os hoje imprescindíveis programas compen-satórios.

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

estãO substituindO a bandeiRa dO “emPRegO e saláRiO”, que

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e Renda” que O mOvimentO sOcial, à Revelia dOs

neOdesenvOlvimentistas, vem içandO

Seu impacto econômico, por ser de difí-cil antevisão para a “Velha Economia” onde foram formados os analistas da direita, mas, também, os do desenvolvimentismo”, tende a permanecer invisibilizado. Para atestar o que digo, aproveito a frase “Brazil Heads for Worst Recession Since 1901”, escrita em 4 de janeiro na casa matriz da direita brasileira e que apre-senta mais de 8 mil resultados no Google. Ela só é crível se aceitarmos que uma economia que, em simultâneo à piora de indicadores como a taxa de desemprego apresenta um ra-zoável desempenho da “economia real” (cuja dinâmica é enviesada pela produção e o con-sumo dos que estão na Economia Informal), deva ser avaliada mediante ferramentas orto-doxas herdadas da “Velha Economia”.

Embora os empreendimentos solidários necessitem, como o fazem as empresas, do apoio Estado, eles poderão, tendencialmen-te, dele prescindir. No limite, não mais serão necessários os recursos que o Estado arreca-

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da taxando a classe proprietária e aloca para compensar, mediante políticas sociais, aquilo que a classe trabalhadora deixa de receber pelo trabalho (não pago) que realiza. Passará a ser desnecessária essa função. Numa socie-dade em que a propriedade dos meios de pro-dução e do conhecimento deixa de ser privada e passa a ser coletiva, o Estado não precisará garantir, pela via do gasto social, as condições materiais e ideológicas de exploração do trabalhador que asseguram as relações sociais de produção capitalistas.

Será consideravelmente diminuído o enor-me custo – econômico, social, tecnocientífico e ambiental - associado à concentração que existe nos planos da produção e circulação de bens e serviços e aos mecanismos de subsídio, transporte, comércio, propaganda, regulação, taxação, garantia da propriedade etc. que elas envolvem e que a sociedade, diretamente ou através do Estado, incorre.

Também será desnecessária a nossa (mi-nha e sua, prezad@ leitor@) sísifica tarefa dos que a partir do Estado e fora dele buscam impedir que o mercado destrua o planeta e malbarate ainda mais aquilo que de humano todavia possui nossa Humanidade.

O crescimento econômico resultante da produção aumentada da Economia Solidária que opõem ao neodesenvolvimentismo os “solidaristas” será, afinal, sem coerção e com solidariedade, o próprio desenvolvimento que queremos.

Concluindo, sustento que proposta dos “neodesenvolvimentistas”, de recuperar o tecido produtivo pela via do reerguimento a indústria, vis-à-vis a dos “solidaristas”, de fazê-lo sem desprezar a oportunidade da Economia Solidária, merece ser mais bem debatida.

5. FOCAnDO O COmpOnEnTE TECnOCIEnTÍFICO Todos os processos de transformação progressista do capitalis-

mo, e aí me refiro temerariamente a um espectro que vai da revolu-ção russa aos dos governos pós-neoliberalismo latino-americanos, tiveram e têm que transformar o aparelho econômico-produtivo e tecnológico herdado.

Processos como os nossos, em que essa transformação de lon-go alcance tem que ocorrer no marco de um capitalismo periférico conturbado por recursivas crises de governabilidade, demandam ações nas frentes externa e interna. Duas propostas que convivem no seio da esquerda as avaliam de forma distinta. Vou argumentar que só uma delas nos permitirá sair por cima do labirinto - político mas com causação econômica - em que a direita recorrentemente nos tenta embretar.

Esta seção se aproxima do objetivo central deste texto, que é aprofundar a reflexão sobre a necessidade de reorientação da PCTI latino-americana e, em especial, brasileira. Para isso, ela re-toma e sintetiza quatro aspectos já apresentados.

O primeiro, é que o considerável esforço de investimento em P&D e em capacitação realizado nos países avançados para ex-pandir os segmentos intensivos em conhecimento não foi suficien-te para que eles se defendessem da competição que implicava a nova divisão internacional do trabalho. E, dessa maneira, pudes-sem evitar a crise. Na verdade, a lição dos neo-schumpeterianos que observaram o cenário tecnológico-produtivo dos anos 70, que a partir da Ásia colocara pressões competitivas inéditas, parece não ter sido levada à prática; talvez ela sequer possa ser de fato implementada.

O que serve de alerta para aqueles que - interessada ou ingenu-amente - propõem que se adote na América Latina uma estratégia semelhante.

Com exceção do agronegócio, cuja expansão tem sido faculta-da pelas imensas propriedades de terra agricultável, a permissi-vidade do controle ambiental, a permanente contenção do preço da mão-de-obra e a realização de P&D a isto adaptada, nossa es-trutura produtiva não favorece essa estratégia. Nossa indústria, implantada no bojo de um padrão de desenvolvimento cultural-mente dependente, economicamente periférico, ambientalmente irresponsável e socialmente injusto, não poderia deixar de ser con-

centrada em segmentos de baixa intensidade tecnológica. Mais do que o fato em si do Brasil poder ser o “celeiro do mundo”, é o padrão de desenvolvimento aqui implantado que ex-plica nosso perfil produtivo concentrado na exploração e exportação de commodities.

A escassa capacidade de inovação de nossa indústria e sua baixíssima propensão a realizar P&D têm como causa primeira a manutenção do baixo preço da força de traba-lho que esse padrão condiciona. O mercado não se engana quando se trata de comparar o preço dos fatores de produção para escolher o “mix tecnológico” que determina sua rota de expansão: a especialização produtiva latino--americana em fatores baratos – força de tra-balho e matérias-primas naturais – é coerente com a racionalidade empresarial. Mas como sabemos há muito tempo, esse padrão con-diciona também comportamentos miméticos em nossa elite. Dentre tantos outros, imita-mos um estilo e uma agenda de pesquisa tec-nocientífica que aqui se revelam, e a exceção do agronegócio confirma a regra, pouco ade-rente ao nosso perfil produtivo.

O segundo aspecto é que o principal mer-cado para as mercadorias produzidas nos pa-íses de baixos salários com aquele novo estilo de competição tende a se reduzir em função da deterioração do padrão de vida dos assala-riados dos países avançados.

O que torna a fronteira de expansão até agora perseguida pela indústria latino-ameri-cana em função de sua especialização nesses produtos, ainda mais difícil de ser explorada. A menos que estejamos dispostos a agravar o apartheid social e econômico em que vivemos fazendo com que o salário do trabalhador – no caso brasileiro, de 4,50 dólares por hora – se aproxime do que é contabilizado como valor de reprodução da força de trabalho chi-nesa (o “salário” lá e de menos de um dólar por hora). Uma estratégia como essa não é apenas socialmente suicida; como se sabe, foi justamente o movimento contrário ensaiado no campo das políticas públicas dos últimos anos o responsável pela relativa proteção que países como o Brasil desfrutaram até há pou-co em relação à crise mundial.

O terceiro, é que no nosso caso existe um mercado potencial grande para aquele tipo de produtos e que cresce com a política de redução da pobreza em curso. Eles têm sido produzidos com tecnologias duplamente ina-dequadas. Por um lado, dado que não-com-petitivas, para o mercado externo. Por outro,

dado que, além disto, são incompatíveis com a criação de oportunidades de trabalho (que pelas razões conhecidas não serão oportuni-dades de emprego em empresas privadas) e renda que a política de inclusão social tencio-na alavancar, para a nação.

Essa constatação abre uma fronteira de inovação com desafios quantitativos, dado a dimensão do mercado interno (e também externo passível de exploração) das famílias e, indiretamente, do Estado. E qualitativos, dado a originalidade imposta pelos requisitos sociais, econômicos e ambientais. Novos obje-tivos terão que ser atendidos pela PCTI. A sua agenda decisória, como também a agenda de pesquisa da comunidade científica, terá que ser alterada. E, no campo tecnológico-produ-tivo, novos atores (como os empreendimentos da Economia Solidária) terão que ser incorpo-rados aos processos de inovação e de produ-ção dos bens e serviços que a materialização desse cenário implica.

A tendência ao desemprego e à precariza-ção do trabalho que faz com que hoje quase 60% da nossa força de trabalho esteja à mar-gem do mercado formal se está agudizando; inclusive em função do oportunismo dos em-presários que “desovam” desemprego tecno-lógico programado aproveitando a crise. O que torna ainda mais urgente a inflexão da PCTI no sentido do que tem sido denomina-do Tecnologia Social - a tecnologia alternativa àquela produzida pelas e para as empresas privadas - demandada para tornar sustentá-veis os empreendimentos da Economia Soli-dária.

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

Numa sociedade em que a propriedade dos meios de produção e do conhecimento deixa de ser privada e passa a ser coletiva,

o Estado não precisará garantir, pela via do gasto social, as condições materiais e ideológicas de exploração do trabalhador que asseguram

as relações sociais de produção capitalistas

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O quarto aspecto tem a ver com a dimensão ecológica, que sinaliza que uma crise de

proporções muitíssimo maiores e que contém um desafio tecnocientífico enorme. Hoje a po-pulação mundial consome 40% mais recursos do que a Terra consegue repor. E com um crescimento anual de 2 a 3% vamos precisar em 2040 duas Terras para atender a demanda. A atual crise é vista por muitos como uma cri-se terminal do modo de produzir capitalista. Para lograr um estilo de desenvolvimento al-ternativo - não baseado na exploração ilimita-da de uma natureza limitada e de uma socie-dade cujos limites de tolerância estão também a se esgotar – temos que incorporar a ecologia como dimensão estratégica da PCTI.

É claro que as características de uma política-meio como a PCTI, em especial aquelas que emergem dos aspectos apontados, demanda políticas-fim capazes de alterar o estilo de desenvolvimento até agora adotado e contribuir para modificar a relação de forças políticas vigente. E é claro também que o papel do governo, à semelhança do que ocorreu no Brasil (crise de trinta, “cinquenta anos em cinco”, “industrialização pesada”) quando conjunturas no mercado mundial alavancaram políticas agressivas, é fundamental. Há agora a possibilidade de que as alianças que materializem esse novo ciclo de investimentos não sejam feitas “por cima”. E que os aliados não sejam buscados dentre aqueles que têm sido sempre os beneficiados dos ciclos anteriores e, em geral, das políticas públicas.

Na frente externa, excetuando as alianças provocadas pelo crescente apetite estadu-nidense, nossos adversários não mudaram muito. Por isso, as ações não têm como diferir substantivamente da proposta nacional-de-senvolvimentista pactuada por nossas elites. Trata-se de adicionar valor às commodities, buscar arranjos de integração regional que diminuam nossa dependência dos centros de poder mundial, proteger o mercado para garantir a lucratividade das empresas locais (nacionais e estrangeiras), ganhar a confiança do “mercado global” para atrair investimento estrangeiro (direto ou especulativo), etc.

Pelo menos duas dificuldades se somam às que essa propos-ta enfrentou. A primeira é a mundialização e financeirização do sistema capitalista - unipolar “neoliberalizado” - associadas às rupturas tecnocientíficas que quem o domina provoca, explora e aproveita. Ela tem sido exaustivamente analisada pela esquerda (e, é claro, pela direita) para propor ações, inclusive no âmbito econômico-produtivo interno, para superá-las.

A segunda dificuldade, ainda que associada a anterior é mais recente: a “invasão chinesa”. Pouco sensível às políticas nacionais (taxa de cambio, “vaca holandesa”, etc.), ela acentuou a desindus-trialização (a participação da indústria no PIB diminuiu de 22% em 1985 para 10%) e a reprimarização (o coeficiente de importação industrial que chegou a ser de 3% está em 26%). Embora causada por um inaudito diferencial de salário industrial médio de mais cinco vezes em relação ao nosso, ela não tem provocado reflexões e muito menos ações à altura.

Sua gravidade me leva a “engatar” com a abordagem da frente interna.

Aqui não há univocidade de ação possível. A direita - e aqui qualquer distinção passadista entre burguesia nacional e o impe-rialismo é ilegítima – clama pelo aumento da mais-valia absoluta e, desde que bancada pela subvenção à produtividade, da relativa.

Na linha do nacional-desenvolvimentismo focado na frente ex-terna, a esquerda, no primeiro caso, tem-se portado convencional e reativamente defendendo o “emprego e o salário”. No segundo, proativamente, através da “qualificação” das várias “mãos-de- obra”, do subsídio à inovação, da construção das infraestruturas, etc., que satisfazem o interesse da classe proprietária (que vota na direita) e, via “transbordamento”, podem melhorar a vida dos que já são alvo das políticas sociais (e, assim se espera, votarão na esquerda).

Além da “invasão chinesa”, a renitente informalidade agrava-da pela tendência mundial da jobless e jobloss growth economy,

fragiliza a proposta do neodesenvolvimentismo de esquerda cujo dinamismo social se baseia na inexequível absorção dos excluí-dos na economia formal. Em especial na indústria, que é nostalgi-camente vista (pelo retrovisor!) como a redenção de nossos países e, de forma míope, como a menina-dos-olhos de seus governos.

As relações entre a população latino-americana em idade ati-va (160 milhões no caso brasileiro) e os que por possuírem “car-teira assinada” se posicionam na economia formal (pouco mais de 40 milhões) e, destes, com os que trabalham na indústria de transformação (2 milhões) e os que trabalham em casas ricas (7 milhões) são uma evidência da inviabilidade da proposta neode-senvolvimentista.

Outro aspecto que questiona a viabilidade da “reindustrializa-ção” como estratégia para sair da crise é a comparação com outros momentos em que o País passou por situações semelhantes. Nas recessões de 1981 a 1983, de 1990 e 1992, a participação da indús-tria no PIB era, respectivamente, 33% e 25%. O que permitiu que

a partir do patamar de industrialização exis-tente fosse possível retomar com algum êxito as atividades industriais. O que vemos hoje, quando essa participação não alcança 10%, sugere um problema que não pode ser visto somente como uma maior dificuldade quan-titativa para uma retomada. Ao que parece estamos frente a uma situação que é qualitati-vamente diferente e muito mais adversa para tentar uma “reindustrialização” que tenha por eixo a empresa privada.

Outra proposta, ainda minoritária no seio da esquerda, por ter seu foco na frente

interna, pode tornar os nossos países, sobre-tudo se integrados, menos suscetíveis à de-sordem capitalista global. Em vez de uma improvável e subordinada “inclusão” dos excluídos no circuito econômico-produtivo capitalista, ela propõe sua absorção viável e soberana na “dobradinha” Economia Solidá-ria – Tecnologia Social.

Ela é claramente proativa. De imediato, ao invés do círculo vicioso consumista que tem resultado da incipiente distribuição de renda, ela projeta para o futuro uma sociedade base-ada na solidariedade, na propriedade coleti-va dos meios de produção, na autogestão, na responsabilidade ambiental e na produção de valores de uso.

Exemplos brasileiros, como a excelente relação benefício x custo do Bolsa Família (0,45% do PIB versus 30 milhões de pessoas ti-radas da miséria), dão ideia do que é possível alcançar quando a proposta da “dobradinha” passar a ser alavancada pelo poder de compra dos programas e empresas estatais. Se uma parte dele, estimado entre 14 a 20% do PIB e distribuído entre União (60%), Estados (20%) e Munícipios (20%) e, por tipo de despesa, entre custeio (70%) e capital (30%), digamos 4,5% para fazer a conta “redonda”, pudesse ser orientado à Economia Solidária, podería-mos tirar mais 300 milhões da miséria. Mas somos só 200 (!), diria o leitor atento. Pois é, isso dá uma imagem da revolução de trabalho e renda que a “dobradinha” provocaria.

Ela permitirá por exemplo evitar que 97% do orçamento do Minha Casa Minha Vida vá para empreiteiras num país onde praticamen-

te 100% das casas pobres resulta da autoconstrução; que cadeias produtivas solidárias, que possam competir em efetiva igualda-de de condições com empresas desde sempre subsidiadas (e hoje agraciadas com maior taxa de lucro do mundo), produzam os bens e serviços públicos e de primeira necessidade com preço justo e com a qualidade que só quem come ou usa o que produz pratica.

A primeira proposta subordina a mudança econômico-produ-tiva e seu rebatimento social a um estilo neodesenvolvimentista “para fora”. O que, ainda que compreensível, dada a relação de forças políticas e as limitações impostas pela governabilidade, é como se mostrou acima, evitável.

A segunda proposta, é evidente, não exclui as suturas emer-genciais ou substantivas sugeridas pela primeira: sinteticamente, a maior diferença é a imediata troca da bandeira das políticas: de “emprego e salário” para “trabalho e renda”.

Para avaliar a dificuldade de construir a plataforma cogniti-va de lançamento (a Tecnologia Social) da Economia Solidária, refiro-me novamente a uma comparação brasileira que confronta essa proposta com a do neodesenvolvimentismo, que pretende “incluir” os trabalhadores informais mediante um processo de reindustrialização intensivo em tecnologia. Como resultado de um programa governamental de mais de 30 anos, existem aqui 200 incubadoras de “empresas de base tecnológica” apoiadas com cerca de meio bilhão de Reais por ano que incubam em média 10 empresas por ano (com taxa de mortalidade superior a 50%) ge-rando 3 empregos cada uma. E 70 incubadoras tecnológicas de co-operativas populares apoiadas com cerca de 20 milhões de Reais que incubam em média 10 empreendimentos solidários por ano gerando 10 postos de trabalho cada.

Os que defendem essa outra proposta sabem que aquela “do-bradinha” não é apenas um “quebra-galho” reativo para espe-rar que expedientes convencionais tentados há décadas deem resultado. Sabem que é um processo cuja construção - utópica, sistêmica e global - depende do debate com seus pares também interessados num futuro que, apesar de ainda capitalista e peri-férico, pode ser solidário. Mas sabem também que o longo prazo começa hoje e que a forma mais sensata de não se embretar num labirinto é sair por cima, concebendo hoje alternativas para além do imediatismo em que a direita nos quer envolver.

6. AVALIAnDO O qUE EsTAmOs FAZEnDO: O mARCO LEgAL DA CIÊnCIA E TECnOLOgIA E InOVAçãO

Em 11 de janeiro foi promulgada a lei 13.243/2016 do “Mar-co Legal da Ciência e Tecnologia e Inovação” (MLCTI) cujo objetivo é induzir comportamentos virtuosos dos envolvidos com a pesquisa em “ciências duras” e a pesquisa e desenvolvi-mento (P&D) que ela alimentaria.

Em seu discurso, a presidenta destacou que o MLCTI irá fomentar a cooperação universidade-empresa de modo a

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transformar “mais ciência básica em inovação, e inovação em competitividade, gerando um novo ciclo de desenvolvimento econômico no País”.

“É um momento histórico para a ciência brasileira”, comemo-rou a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ci-ência presente à cerimônia, ressaltando que “a presidente Dilma falou bem claro sobre a importância de o professor na universida-de colaborar com inovadoras”.

Lembrando o processo que originou o “Código de Ciência, Tec-nologia e Inovação” mediante o PLC 77/2015 que o MLCTI sancio-nou, o presidente da Academia Brasileira de Ciências, referindo-se a “um sonho que se realiza” disse: “Foram 5 anos de luta. Foi um movimento muito bonito, que deu força à ciência brasileira”.

“É a luta de uma nação que acredita que a ciência, a tecnolo-gia e a inovação são as ferramentas que ajudarão o País a sair da crise”, disse o presidente do CNPq.

Para o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, “a nova Lei amplia a inserção do Brasil entre os países mais inovadores,

além de gerar mais riqueza, empregos, renda e consequente as-censão social”. Adicionando um tom pragmático, disse que ela “cria possibilidades de novos investimentos na ciência e tecnolo-gia. Cria facilidades e permite às instituições públicas buscarem dinheiro para seus projetos”.

Como costuma acontecer quando expectativas otimistas sobre o MLCTI proclamadas num diapasão de magister dixit (o mestre disse) e aceitas pelo sentido comum como investidas de um estatu-to de vox Populi vox dei (voz do povo voz de deus) essas manifesta-ções repercutiram favoravelmente na imprensa, no meio político, e nas universidades e instituições de pesquisa públicas. Nelas, do-centes e pesquisadores renomados de algumas das mais prestigio-sas, diretamente interessados no persistente fomento à cooperação universidade-empresa há que anotar, declararam sua satisfação.

Diferentemente daqueles líderes da comunidade de pesquisa das “ciências duras” duas entidades, agora num tom explicita-mente corporativo e na defesa de seus representados, manifesta-ram-se criticamente.

A primeira foi a Associação Nacional de Pesquisa e Desen-volvimento de Empresas Inovadoras. Embora saudando, entre outros aspectos, as implicações para a “desburocratização” des-sa cooperação, ela criticou os vetos presidenciais ao PLC 77/2015 concentrando-se, como era de se esperar, em aspectos financeiros de interesse das empresas que já se utilizam do sistema de fomen-to à inovação, como os relativos às bolsas que o MLCTI facultará aos professores e estudantes interessados em realizar P&D na em-presa e os relativos à utilização do poder de compra do Estado.

A segunda foi o Sindicato Nacional dos Docentes das Insti-tuições de Ensino Superior, preocupado que o MLCTI reforce o processo em curso de privatização da educação pública. Ao fle-xibilizar o regime de Dedicação Exclusiva e possibilitar que em-presas privadas remunerem dirigentes, docentes e pesquisadores das instituições públicas de pesquisa e ensino por meio de funda-ções de apoio, ele reforçaria a indução à complementação de seu rendimento mediante a reorientação de parte de seu potencial de trabalho custeado com o fundo público.

Não obstante a sua postura crítica, esse último ator não questiona as ideias-força que animam a elaboração do MLCTI; e, de resto e há varias décadas, a política de CTI sem que se diagnostique adequadamente os contextos em que ela se insere e sobre o qual ela preten-de incidir. Correndo o risco de uma generali-zação indevida e de simplificá-las, mas dado o imperativo de fazê-las caber no espaço des-te texto, elas podem ser assim sintetizadas: (a) que as empresas industriais locais veriam no aumento de sua atividade de P&D uma pos-sibilidade de incrementar seu lucro; (b) que sua maior lucratividade aumentaria a compe-titividade do País e que estas levariam, “por transbordamento” ao desenvolvimento; (c) que, por verem a P&D como uma oportuni-dade de ampliar seu lucro aumentariam seu envolvimento com as instituições públicas de ensino superior e de pesquisa; (d) que essas instituições geram resultados de pesquisa e pessoas aptas a realizá-la que seriam de inte-resse das empresas locais.

A avaliação da viabilidade de efetivação das expectativas de que o MLCTI venha a propiciar o “avanço da ciência”, a “competi-tividade”, o “desenvolvimento econômico” e a “ascensão social”, se baseia em argumentos de pesquisadores do campo dos Estudos So-ciais da Ciência e Tecnologia relacionados ao tema e em evidências empíricas disponíveis sobre os países líderes em CTI e sobre o Brasil (embora, em favor da brevidade, se omita sua fonte, elas são facilmente acessáveis).

As expectativas atinentes às mudanças que o MLCTI provocaria no comportamento das empresas e do complexo público de ensi-no superior e de pesquisa - refraseadas para resumi-las - são abordadas em sequência. Para as expectativas numeradas a seguir se indica o argumento que questiona a viabili-dade de sua efetivação de modo a possibilitar um debate que oriente com segurança nosso potencial tecnocientífico para o desenvolvi-mento do País; o que, sem dúvida, é o desejo dos que as enunciaram.

As EmpREsAs (InOVADORAs)...

1. serão mais lucrativas porque terão mais acesso aos resul-tados da pesquisa pública (a realizada no complexo público de ensino superior e de pesquisa)

Não existem indicadores sobre a importância desses resulta-dos para o Brasil, mas, o que ocorre em países avançados como os EUA, onde ela pode ser avaliada pelo porcentual do gasto em P&D pelas empresas que é alocado nas universidades e institutos de pesquisa, que é de 1% (sendo que 99% é gasto intramuros), não autoriza esta expectativa; há também que considerar que em rela-ção ao PIB estadunidense o montante alocado pela empresa para P&D universitária é apenas 0,02%.

2. serão mais lucrativas porque absorverão pessoal mais qua-lificado para P&D

O fato de que na indústria manufatureira, que é o setor alvo daqueles líderes da comunidade de pesquisa que compartem esta expectativa (haja vista as características da pesquisa que reali-zam), as empresas locais contrataram para P&D durante os anos de bonança econômica - entre 2006 e 2008 - apenas 68 dos 90.000 mestres e doutores formados em “ciência dura” (enquanto que nos EUA esta proporção é de mais de 50%), e que dificilmente um instrumento legal por mais potente que seja possa mudar as carac-terísticas estruturais de nosso contexto periférico, parece apontar a inviabilidade desta expectativa.

3. serão mais lucrativas porque terão mais incentivo à P&DTalvez devido ao enorme crescimento dos recursos e mecanis-

mos de apoio, apenas 12% das empresas locais que não introdu-ziram inovações no mercado (que segundo se pensa aumentariam seu lucro se realizassem P&D) apontam como causa de seu com-portamento a “escassez de fontes de financiamento”, enquanto que as que declaram ser as “condições de mercado” são 70%.

4. serão mais lucrativas porque passarão a basear sua estraté-gia inovativa na P&D

A informação levantada pela PINTEC/IBGE - que cobre quase duas décadas - sobre o comportamento inovativo das empresas lo-cais (que é a que fundamenta boa parte dos argumentos apresen-tados neste texto) mostra que ele vem se baseando na aquisição de máquinas, equipamentos e insumos (frequentemente provenien-tes do exterior) e que as atividades de P&D, além de relativamente bem menos importante, se concentra invariavelmente num peque-no grupo em que a participação das multinacionais vem crescendo significativamente.

5. irão produzir bens e serviços inovadores à escala mundialNesse período, mais de 80% das inovações de processo lan-

çadas no mercado pelas empresas locais o são apenas para elas mesmas e alguns poucos décimos porcentuais são novidades à escala mundial; o que, mais uma vez, torna muito improvável o cumprimento desta expectativa.

6. usarão os recursos adicionais disponibilizados através do mlCti para alavancar maiores dispêndios em P&d

Ao contrário do que ocorre nos países da OCDE, onde, para cada dólar disponibilizado pelo governo para P&D as empresas

gastam outros nove, as empresas locais be-neficiadas tendem a diminuir os recursos próprios alocados à P&D (fenômeno deno-minado crowding out); apesar do substancial aumento dos recursos públicos disponibili-zados ocorrido na última década, a parcela da Receita Líquida alocada pelas empresas inovadoras à inovação diminuiu de 3,8% para 2,5% e a orientada à P&D permaneceu está-vel em 0,6%; as inovadoras que declararam realizar P&D para inovar diminuíram de 33% para 11% (uma queda de 67%); as inovadoras que apontaram a P&D como importante para sua capacidade de inovar diminuíram de 34% para 12% (uma queda de 65%), e as que apon-taram a aquisição de máquinas e equipamen-tos se mantiveram em cerca de 80%.

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Ilustração Thomas Kuh

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7. sendo mais lucrativas, crescerão mais e desencadearão um ciclo de desenvolvimen-to no País

O fato da indústria manufatureira ter um porte diminuto (e decrescente) – sua partici-pação no PIB é 9%, e somente 2 dos 160 mi-lhões em idade ativa (cuja imensa maioria sobrevive na economia informal) nela traba-lhem com carteira assinada, torna improvável um poder de indução de crescimento (muito menos de desenvolvimento) que torne viável esta expectativa.

8. sendo mais lucrativas, crescerão mais e aumentarão a competitividade do País

Nossa competitividade se deve a vanta-gens comparativas naturais ou associadas ao baixo preço da mão-de-obra, e os produtos portadores de inovações de produto ou pro-cesso que são demandantes de P&D já con-tam com circuitos de produção e difusão de conhecimento consolidados (Embrapa para o agronegócio, etc.) e relativamente pouco sen-síveis a instrumentos como o MLCTI.

O COmpLExO pÚbLICO DE EnsInO sUpERIOR E DE pEsqUIsA:

1. irá contribuir para gerar resultados de pesquisa para a empresa local

Embora na última década o número de matrículas em unidades de ensino superior públicas venha crescendo numa taxa supe-rior à das privadas (que praticamente não realizam pesquisa e são pouco sensíveis ao seu sistema de fomento) e tenha ultrapassado a proporção de 20%, é pouco provável que o MLCT possa aumentar significativamente a produção nacional de resultados de pesquisa.

2. irá obter recursos suplementares me-diante o aporte das empresas para P&D con-junta

Em países avançados como os EUA o por-centual do gasto total das universidades que é captado por esta via é de apenas 1%; na Unicamp que é provavelmente a universida-de brasileira onde este porcentual é mais ele-vado ele não chegue a 0,8%, sugere que para o conjunto das universidades ele seja inferior a 0,2%.

3. em função da maior proximidade com a empresa, irá formar pessoas e realizar pes-quisas mais conducentes à competitividade do País

As universidades públicas, cuja participa-ção no complexo é quantitativamente mais

importante, engendram profissionais e resul-tados de pesquisa muito semelhantes àqueles que nos países avançados são essenciais para a competitividade de suas empresas; o moti-vo deles aqui não serem contratados, como apontado anteriormente, não se deve à sua inadequação ao ambiente empresarial e não tem porque se alterar significativamente “por decreto”, dado que decorre de uma condição estrutural e recorrente típica dos países cita-dos na periferia do sistema capitalista.

4. como o MLCTI fará crescer o apoio às empresas, aumentará sua relação com elas

O fato de que apesar do incentivo já conce-dido às empresas inovadoras, apenas 7% pos-suem relações com universidades e institutos de pesquisa e que, destas, 70% consideram essas relações de baixa importância, não au-toriza esta expectativa.

5. os arranjos institucionais que o MLCTI irá criar ou ativar, e que levará a um aumento do segmento de empresas inovadoras, terão impacto significativo na geração de emprego

Conforme já mencionado, o maior progra-ma dessa natureza, que funciona há mais de 30 anos e custa meio bilhão de Reais por ano, é responsável por 200 incubadoras de “em-presas de base tecnológica” (a maior parte de-las software houses) que incubam menos de 10 empresas por ano (com taxa de mortalidade superior a 50%) que geram 3 empregos cada uma.

6. a universidade pública, agora estimu-lada a atender a demanda incrementada da empresa, irá aumentar sua relação com ela

Apesar da América Latina ser a região onde desde meados do século passado mais se tem falado, escrito, teorizado e tentado fo-mentar essa relação, obstáculos estruturais associados à nossa condição periférica, que reforçam a legítima baixa propensão da em-presa a realizar P&D - uma atividade em todo o mundo custosa, arriscada, com frutos de di-fícil apropriação, etc. -, seguirão inibindo esta demanda; sobretudo dada a tendência à de-sindustrialização e reprimarização e a “ame-aça chinesa”.

7. a demanda empresarial pelo que os que suportam o MLCTI chamam de novo co-nhecimento tecnocientífico, que provocará a “inserção do Brasil entre os países mais ino-vadores”, engendrará pesquisas originais que tornarão as universidades mais “compe-titivas”

Não tenderão a ser conhecimentos novos e sim os já desenvolvidos nos países avançados o que poderá alavancar a improvável inser-ção contida na expectativa citada acima; além do que é justamente neles que estão focadas suas atividades de ensino e pesquisa.

8. a compensação financeira recebida pe-los docentes aumentará a propensão da uni-versidade pública a colaborar com a empre-sa e irá transformar seu ethos

Apesar de compensações orientadas para os líderes da comunidade de pesquisa das “ciências duras” e suas equipes, como as que o MLCTI pretende, existirem há mais de cin-co décadas, nunca silenciaram as vozes dos que consideraram que a universidade pública deve servir ao que é “público” (e aos pobres que pagam o imposto que a mantém) e não ao “privado”.

9. em função da maior proximidade com a empresa, aumentará sua contribuição para o desenvolvimento

Se entendermos por desenvolvimento o processo de elevação do bem-estar do con-junto da sociedade (o qual, por incluir o das gerações futuras, impõe a consideração am-biental) é difícil aceitar a ideia de que o co-nhecimento que ele requer seja aquele que proporciona o sucesso empresarial; contribui-rá mais para ele a orientação do potencial tec-nocientífico do complexo para a formação de profissionais e a realização de pesquisa con-cernentes ao componente cognitivo associado às demandas materiais e culturais da maioria da população.

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

É difícil aceitar a ideia de que o conhecimento que ele requer seja aquele que proporciona o sucesso empresarial; contribuirá mais

para ele a orientação do potencial tecnocientífico do complexo para a formação de profissionais e a realização de pesquisa concernentes

ao componente cognitivo associado às demandas materiais e culturais da maioria da população

Antes de concluir, vale a pena sintetizar o argumento desenvolvido. O MLCTI pare-ce não levar em conta a evidência empírica disponível sobre o resultado das medidas de política que vêm sendo implementadas com o mesmo objetivo, nem as inovações concei-tuais que vêm sendo proporcionados pelos analistas da PCTI. O fato de que a conjun-tura atual torna o contexto que determina o comportamento da empresa local ainda mais adverso à realização de P&D contribui ainda mais para a avaliação apresentada sobre es-cassa viabilidade daquelas expectativas.

Não obstante, há dirigentes políticos como o governador de São Paulo, que no final de abril deste ano, insatisfeito com os critérios de pesquisa adotados pela Fapesp, afirmou, apa-rentemente se referindo à existência de uma “máfia das universidades sugando dinheiro público”, que “gastam dinheiro com pesqui-sas acadêmicas sem nenhuma utilidade práti-ca para a sociedade. E que “a Fapesp tem 1% do orçamento. Tem mais de 800 milhões em conta. E o Butantã sem dinheiro para fazer va-cina”. Apesar de oportunisticamente traves-tida de uma preocupação com a “sociedade” aderente ao que se está aqui criticando, sua declaração é em tudo coerente com o que pro-põe o MLCTI. A reação corporativa do “alto clero” da comunidade de pesquisa visando a comprovar que o que se investiga é social-mente relevante não se fez esperar. Embora pelas linhas tortas que invocam razões espú-rias típicas do embate político, isso talvez pro-picie uma discussão com a qualidade e a rele-vância que a parte da sociedade que financia nossa atividade tecnocientífica merece.

*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp e tem atuado como professor convidado em várias universidades no Brasil e no exterior.

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Vacinas são provavelmente a inter-venção de maior sucesso, segu-rança e baixo custo do arsenal da saúde pública. Desde o início da

sua adoção, porém, elas têm enfrentado opo-sição, frequentemente motivada pelo medo e ignorância.

No entanto, a utilização generalizada de vacinas tem reduzido drasticamente a mor-bimortalidade de todo um conjunto de doen-ças. Pela primeira vez na história da huma-nidade uma doença viral grave, em muitos casos letal – a varíola – foi exterminada da face da terra. E outra – a poliomielite – está em vias de extinção.

*Definir exatamente o que seria a boa ciência vai além do escopo deste texto; sobre a má ciência, basta o comentário de McGarity e Wagner(1): “Conquanto filósofos e sociólogos da ciência possam debater algumas das qualidades precisas que definem a ciência, todos eles concordam que pesquisa conduzida com um resultado predeterminado não é ciência”.

pela própria revista – escrito por um autor desacreditado que foi banido da profissão médica no Reino Unido devido às múltiplas infrações éticas cometidas na elaboração do tal artigo.

Anti-establishmentarianismo, desconfian-ça da ciência e da medicina e adesão à falácia naturalista (tudo que é “natural” é necessa-riamente “bom” e “saudável”) são os motores que impulsionam o antivacinacionismo. E é na internet que encontram terreno fértil para sua propagação. Sites com nomes sedutores, como “Vaccine Truth”, “Vaccine Reeducation Forum”, “National Vaccine Information Center” propagam ativamente desinformação sobre vacinas(7), legitimando-se uns aos outros e constituindo uma barragem de pseudo--expertise em torno de afirmações facilmente desmentidas, mas aceitas como verdade pelo seu público cativo.

O ativismo anti-vacina representa um de-safio para nós, profissionais e pesquisadores de saúde coletiva, pelo potencial que traz de comprometimento de uma política de saúde pública com sólidas fundações científicas. A ciência é um empreendimento humano e, como tal, está sujeito às mesmas vicissitudes de qualquer atividade humana. Há muitas

RefeRências(1) McGarity TD & Wagner WE. Bending Science: How Special Interests Corrupt Public Health Research. Cambridge, Mass. & London, UK:Harvard University Press, 2010 (p. 7) (2) Mnookin, S. The panic virus: a true story of medicine, science, and fear. New York: Simon and Schuster, 2011.(3) van den Hof, S., Meffre, C. M., Conyn-van Spaendonck, M. A., Woonink, F., de Melker, H. E., & van Binnendijk, R. S. Measles outbreak in a community with very low vaccine coverage, the Netherlands. Emerging infectious diseases, 7(3 Suppl), 593, 2001 (4) Pegorie, M., Shankar, K., Welfare, W. S., Wilson, R. W., Khiroya, C., Munslow, G., ... & McCann, R. Measles outbreak in Greater Manchester, England, October 2012 to September 2013: epidemiology and control. Euro Surveill, 19(49), 20982, 2014(5) Barlow, R. S., Reynolds, L. E., Cieslak, P. R., & Sullivan, A. D. Vaccinated children and adolescents with pertussis infections experience reduced illness severity and duration, Oregon, 2010–2012. Clinical Infectious Diseases, 58(11), 1523-1529, 2014(6) Wakefield AJ, Murch SH, Anthony A, et al. ReTRacTeD: ileal-lymphoid-nodular hyperplasia, non-specific colitis, and pervasive developmental disorder in children. The Lancet. 1998;351(9103):637-641.(7) Moran M. Why are anti-vaccine messages so persuasive? A content analysis of anti-vaccine websites to inform the development of vaccine promotion strategies. in143rd APHA Annual Meeting and Exposition (October 31-November 4, 2015) 2015 Nov 3. APHA.(8) Camargo Jr, K.R. Public health and the knowledge industry. Revista de Saúde Pública, 43(6), 1078-1283, 2009(9) Colins H & Pinch T. Dr. Golem: How To Think About Medicine. Chicago: The University of Chicago Press, 2005 (p. 202)

evidências de interferência indevida dos interesses comerciais nas ciências biomédicas (8), mas, no entanto, é o exame siste-mático das afirmações científicas que expôs esses problemas. A ciência tem de fato mecanismos de auto-correção. Como Harry Collins e Trevor Pinch, dois sociólogos da ciência que estudam o funcionamento interno da investigação científica durante dé-cadas, colocaram, “A ciência pode estar errada (...), mas isso não torna o ponto de vista oposto correto. Na ausência de pesquisas cuidadosas sobre o ponto de vista oposto, a ciência é provavel-mente o caminho a se apostar. Isto é ainda mais provavelmente verdadeiro, se a ciência estiver continuamente colocada sob es-crutínio” (9).

*Kenneth R. de Camargo Jr. é Professor Associado, IMS/UERJ, Editor de Physis, Editor Associado do American Journal of Public Health e membro da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco.

O ATIVIsmO AnTI-VACInA nA InTERnET

Por KENNEth r. DE CaMarGo Jr.

CIÊnCIA E TECnOLOgIA

as vacinas estãO mais uma vez sOb ataque, alimentada Pela má ciência, infORmações de má qualidade e tOdO um exéRcitO de aPROveitadORes QUE têM CoMo EstratÉGIa DE MarKEtING Para sEUs PROdutOs duvidOsOs desacReditaR a ciência

a ciência é um empreendimento humano e, como tal, está sujeito às mesmas vicissitudes de qualquer atividade humana

Apesar de seus sucessos, ou talvez por causa deles, no entanto, as vacinas estão mais uma vez sob ataque. Alimentada pela má ciência* (1), informações de má qualida-de (2) e todo um exército de aproveitadores que têm como estratégia de marketing para seus produtos duvidosos desacreditar a ci-ência, mesmo a mais sólida, uma onda de negação do conhecimento sobre vacinas tem varrido o mundo industrializado, trazendo de volta doenças (como o sarampo nos EUA) previamente erradicadas, por vezes com consequências letais (3-5).

Pais assustados são expostos a versões exageradas (ou fabricadas) de possíveis efei-tos colaterais relacionados com vacinas, ao mesmo tempo que os riscos reais de doen-ças evitáveis são minimizados, levando-os a manter seus filhos longe do programa de vacinação recomendada. Particularmente notório é o mito persistente, sem base na re-alidade e totalmente demolido por um gran-de número de estudos científicos adequados, todos publicados em respeitáveis revistas acadêmicas com revisão por pares, de uma ligação entre vacinas e autismo, decorrente de um estudo cheio de falhas e conflitos de interesse (6) – e que foi removido (retracted)

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Estava tudo muito calmo, até. Ao menos, na superfície. Transformada em lei há quase 15 anos (completou no úl-timo dia 06), o processo de desistintucionalização da aten-ção psicossocial, mais conhecido como lei antimanicomial

seguia seu curso de política pública. Não que não houvesse batalhas em curso, é claro. Parte inte-

grante de uma estrutura ministerial e de um governo que, mes-mo que historicamente comprometido com valores progressistas, vinha mantendo o subfinanciamento crônico e apoiando práticas mercantilistas no interior do Sistema Único de Saúde (SUS), a Co-ordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde (CGMAD/MS) seguia suas linhas de ação: prioridade da atenção psicossocial junto à Estratégia Saúde da Família, imple-mentação - ainda que de forma lenta - a Rede de Apoio Psicosso-cial (RAPS), e negação total do debate político para a realização da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial.

Estava tudo muito calmo. Até o momento em que os interesses palacianos falaram mais alto do que os republicanos e puseram o Ministério da Saúde no balcão de negociações dos podres poderes de Brasília e, em nome de uma dita governabilidade, nomeou-se Marcelo Castro em 05 de outubro de 2015.

Se parte das ações e dos encaminhamentos da gestão anterior foram mantidos sob a nova direção, Castro havia de escolher a saúde mental para deixar a marca de sua gestão, assinalando o compromisso com os setores mais conservadores do pensamento da medicina e da psiquiatria. Em reunião com mais de 600 repre-sentantes de entidades profissionais e acadêmicas e movimentos sociais realizada em 10 de dezembro de 2015, o ministro anun-ciou Valencius Wurch Duarte Filho para a chefia da CGMAD/MS, mostrando uma postura irredutível na escolha do ex-diretortécni-co da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, cidade do estado do Rio de Janeiro, instituição esta que carregou o sombrio título de maior hospital psiquiátrico privado da América Latina até março de 2012, quando foi definitivamente fechada.

Com a força de uma faiscante centelha, a decisão de Castro operou uma verdadeira explosão que jogou para o alto tudo o que estava aparentemente calmo, revelando cada contradição; cada peça de uma política reativa que - por interesse ou decorrência - se mostra um retrocesso descomunal nas formas de entendimento, de respeito e de posicionamento ético-profissional no trato e no cuidado da loucura, da diferença, e a da assistência à saúde e à vida das pessoas afligidas pelo sofrimento psíquico.

O som foi audível, o recado, claro, e o Fora Valencius começou a ecoar em toda a sociedade brasileira, tanto nos serviços e nos espa-

ços que conformam a RAPS quanto na acade-mia, nas páginas de jornais e sites de imprensa e no dia a dia do Ministério, movimentado pela ocupação do gabinete da CGMAD - interven-ção política que ultrapassa a marca de 100 dias.

O Fora Valencius tomou as ruas. As ruas, sempre elas a nos mostrar por onde passam os verdadeiros espaços da cidadania; a orien-tar e ensinar que o processo de desinstucio-nalização não pode ser só uma lei, mas sim um constante processo de mobilização e de debate social sobre os papeis e possibilidades da loucura e da diferença em sociedade.

A ocupação permaneceu por 121 dias, um pouco mais de quatro meses de produção de novos sentidos em Saúde Mental, que só foi desmantelado por ação coercitiva da Polícia Federal, após expedição por parte do Judiciá-rio de um mandato de reintegração de posse movido pela União.

O agravamento da crise política do go-verno Dilma Rousseff levou a uma grande mudança dos atores num curto tempo. Com a saída de Marcelo Castro do comando do Ministério, uma nova rodada de discussões com movimentos sociais com José Agenor Álvares da Silva, ministro interino, acele-rou a exoneração de Valencius, assinada na portaria 916, publicada no Diário Oficial da União em 09 de maio.

Toda essa movimentação ficou expressa na cobertura afetiva-jornalística-clínica feita pela carioca Pâmela Perez. Lotada atualmen-te no CAPS infantil Maria Clara Machado, no subúrbio do Rio, Pâmela é formada em psi-cologia há 15 anos e trabalha com fotografia há 10. Começara no início do ano passado a mesclar esses campos numa produção audio-visual sobre autistas adultos.

A convocação do Fora Valencius e o cha-mado de tantos colegas para que ela fizesse as fotos dos atos foram tão demolidores de cer-tezas de Pâmela. “Sempre tive a convicção de

que seria somente psicanalista até que chegou a fotografia. Levei um tempo para entender que poderia fazer as duas coisas ao mes-mo tempo”, explica.

Acompanhar a mobilização na audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), em 14 de dezembro de 2015, e a manifestação (L)Ocupa Brasília, em 14 de janeiro deste ano, mostrou a força os corpos em luta para a pro-fissional e, principalmente, que a Reforma Psiquiátrica é e sempre será uma construção.

sAÚDE mEnTAL

FORA VALEnCIUs qUAnDO A LUTA REACEnDE O DEsEjO

POR bRunO c. dias | fOtOgRafias de PÂmela PeRez

“A reforma foi feita há 30 anos, e essa luta estava adormecida. Vimos que não tem nada garantido, dada a facilidade da nomeação de Valencius, que pode pôr por terra um projeto de muitos anos. Colocar o meu corpo e regis-trar tantos outros nas manifestações mostrou que não será tão fácil assim”, disse ela, desta-cando a capacidade que os registros visual e audiovisual têm de tornar concretos trabalhos singulares e subjetivos feito no dia a dia da Saúde Mental no SUS.

“Fiquei feliz em perceber como minha fo-tografia pode ser registro histórico, pode ser jornalismo e como pode ser clínica também. Quem trabalha com saúde mental tem muito desejo. Isso acaba se transformando em força política, mostrando um serviço que fazemos tão bem. Não estamos falando somente da imagem, mas de um trabalho com esse pa-ciente que está no mundo para mostrar a sua potência dentro deste movimento, em prol da diferença e pela liberdade de expressão e de existência. Isso eu ganhei para a minha vida”, completa Pâmela, que divide nas próximas páginas 15 olhares das manifestações do Fora Valencius.

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6564 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

sAÚDE mEnTAL

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67ENSAIOS & DIÁLOGOS66 ENSAIOS & DIÁLOGOS

sAÚDE mEnTAL

Um dos grandes mistérios da Humanidade continua sen-do a causa de vários sofrimentos dos seres humanos, dentre elas a da intrigante desordem do desenvolvi-mento infantil a que se denomina Autismo. Segundo as

considerações do comitê Autismeurope, apoiados pela Comissão Europeia, o autismo é uma deficiência que se agrupa num vasto espectro de perturbações que partilham características comuns, mas que se manifestam de diferentes modos em cada indivíduo. Os sinais característicos são os problemas de interação social, da linguagem e do comportamento. O grau de Autismo varia num contínuo de severo a fraco, interagindo com o nível geral de inteli-gência que também varia, por sua vez, desde profundas dificulda-des de aprendizagem adicionais, passando pelo padrão normal, ou até em casos raros, chegar a níveis de inteligência próximos do genial. É importante observar que o Autismo não é mais visto como uma entidade única. Hoje o compreendemos como um dis-túrbio do desenvolvimento complexo, cujas manifestações mais visíveis se apresentam na esfera comportamental, incluindo prin-cipalmente o déficit sócio-relacional.

pRÁTICAs InTEgRATIVAs DE sAÚDE

pOssIbILIDADE DE

TRATAmEnTO hOmEOpÁTICO Em AUTIsTAs

POR fábiO bOlOgnani e geóRgia fOnseca

A Homeopatia, vertente terapêutica da medicina hipocrática, é baseada na Lei dos Semelhantes, e foi desenvolvida e estabelecida como ciência pelo médico alemão Samuel F. Hahnemann, tendo sua primeira publicação experimental em 1796

Pâmela Perez,a fotógrafa

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6968 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

pRÁTICAs InTEgRATIVAs DE sAÚDE

a homeopatia tem demonstrado certas vantagens econômicas

no tratamento de doenças crônicas, devido ao baixo custo medicamentoso e a ausência de

efeitos nocivos

Embora a etiologia precisa não seja atualmente conhecida, os re-centes estudos apontam para uma origem biológica, de base genéti-ca, que determina alterações na bioquímica e morfologia cerebrais, alterações metabólicas orgânicas e distúrbios nos sistemas gastroin-testinal e imunológico dos pacientes. Mas apesar de todo avanço científico existente, o diagnóstico continua sendo exclusivamente clínico. A maior prevalência no sexo masculino (4 meninos para 1 menina) e a presença de fatores relacionados ao Autismo como co--morbidade em patologias de base genética bem definida reforçam estas considerações.

O Autismo é agora a desordem do desenvolvimento que figu-ra em primeiro lugar nos atendimentos do Serviço às Desordens do Desenvolvimento do sistema de saúde americano, sendo mais comum que Síndrome de Down, diabetes infantil e câncer infantil. Nos últimos 4 anos a síndrome cresceu 97%, enquanto a paralisia cerebral aumentou 16%, a epilepsia 16% e o retardamento mental 20%. Setenta por cento de toda a população de autistas tem agora menos de 14 anos de idade e as últimas referências estatísticas de 2014 fazem alusão de 1 autista a cada 42 nascimentos.

Muitas foram as propostas sobre a origem do transtorno au-tista, derivando daí múltiplas metodologias terapêuticas, medi-camentosas ou não, que de forma irregular puderam beneficiar alguns indivíduos, seja num sentido de atenuação do sofrimento pessoal, familiar ou social ou no sentido de estimular a integra-ção sócio familiar. A grande vertente da ciência é de procurar a racionalidade que possa abranger um conhecimento mais íntimo das causalidades, com objetivo de removê-las para alívio ou cura do mal. É nítido que os recursos e saberes atuais ainda são insu-ficientes para que se possa elaborar um projeto de ordem tera-pêutico medicamentoso no sentido de abranger a sintomatologia real dos autistas. A medicina hipocrática apresenta propostas di-ferentes para tratamento destes indivíduos, sejam pela CONTRA-RIA CONTRARIAS CURANTER (Lei dos Contrários - Alopatia) ou pela SIMILIA SIMILIBUS CURANTUR (Lei dos Semelhantes - Homeopatia). Nós, médicos, não podemos nos furtar do conhe-cimento médico reconhecido pelos sistemas médicos dos povos do mundo, suas técnicas, resultados e ciência. O modelo de certas patologias que não se enquadram nas técnicas e conhecimentos atuais nos sugere derivar de outros paradigmas ainda não explo-rados totalmente ou racionalizados da forma ideal, permitindo

um hiato científico injustificável. Desta forma, resolvemos estabelecer uma proposta de ave-riguação da capacidade de alteração do curso dos sintomas cognitivos e motores por uma das técnicas da medicina hipocrática, através da terapêutica homeopática, a ser confirma-da por uma metodologia reconhecidamente segura e compatível como instrumento de qualificação e quantificação na avaliação da interferência desta técnica terapêutica nos pa-cientes ditos no espectro autista.

As hipóteses causais desta alteração do estado de saúde são variadas, e podemos concluir que a origem multifatorial nos guiou frente às inúmeras possibilidades de medi-camentos homeopáticos. À luz da literatura atual, o autismo pode ser desencadeado pela interação de fatores ambientais com as dife-rentes vulnerabilidades apresentadas pelo indivíduo. Os medicamentos homeopáticos podem ser indicados considerando-se estas etiologias. O primeiro ponto de pensamen-to é a possibilidade de durante a gestação e a pré-concepção, a existência de sofrimento psíquico/existencial materno determinando alterações químicas hormonais. Fatores como a presença de doenças auto-imunes, hiperten-são, diabetes materno, obesidade materna, infecção perinatal, uso de antibióticos, uso de paracetamol, uso de antidepressivos na gesta-ção, uso de medicamentos para asma, defici-ência de ácidos graxos essenciais e vitamíni-cos, disbiose materna, alergias alimentares ou intolerâncias, uso de ácido valpróico, vacinas que a mãe usou durante a gestação.

Um segundo ponto é a hipótese de distúr-bios relacionados com conservantes, poluen-tes, retardadores de chama, metais pesados como derivados de mercúrio-timerosal e/ou componentes patológicos das vacinas.

Um terceiro ponto é a introdução de em-balagens e utensílios que liberam BISPHE-NOL A, gerando distúrbios da atenção, hipe-ratividade e agressividade, indicando a perda de neuro-transmissores, segundo conclusões de trabalhos científicos que culminaram na exclusão de objetos plásticos contaminantes das mamadeiras no Japão e EUA.

Um quarto ponto são as recentes pesquisas do Dr. Derrick F. MacFabe que revelou que a administração de PROPIONATO DE CÁL-CIO, conservante usado em farinha de trigo, gerou distúrbios autismo como em cobaias.

Um quinto ponto, são as intolerâncias ou malefícios da dieta como caseína, lactose e glúten, gerando processos inflamatórios in-testinais, que alteram a flora, e geram subpro-dutos “tóxicos” para o organismo.

Um sexto ponto seria a disbiose intestinal, com supercrescimento de bactérias patogê-nicas e consequente aumento da permeabi-lidade intestinal, favorecendo processos in-flamatórios e desenvolvimento de alergias a medicamentos.

Um sétimo ponto, são as conclusões ini-ciais de alteração em exames de ressonância magnética com acúmulo de GLUTAMATO, evidenciando um distúrbio de receptores glu-tamatérgicos, impedindo a neuroplasticidade.

Outros mais pontos podem ser citados, mas dentro do conceito da HOMEOPATIA, podemos considerar que existe uma SUS-CEPTIBILIDADE INDIVIDUAL, (ou COLE-TIVA, se considerarmos o aspecto sugestivo de epidemia) a um ou todos estes elementos possivelmente desencadeadores de um dese-quilíbrio do estado de saúde. Portanto, estes possíveis fenômenos causais não são univer-sais, mas a evolução do aumento de casos de espectro autista, num modelo que lembra uma vertente epidêmica pode demonstrar um modelo reacional específico comum a certos grupos, exatamente como o modelo homeo-pático preconiza nas patologias crônicas.

O méTODO hOmEOpÁTICO

A Homeopatia, vertente terapêutica da medicina hipocrática, é baseada na Lei dos Se-melhantes, e foi desenvolvida e estabelecida como ciência pelo médico alemão Samuel F. Hahnemann, tendo sua primeira publicação experimental em 1796, e foi reconhecida como método terapêutico oficial após os significa-tivos resultados na epidemia de cólera que assolou a Europa em 1830 a 1834, com índices de mortalidade mínimos comparados aos mé-todos terapêuticos da época. A Homeopatia é baseada no homem e nas substâncias que possam reproduzir sintomas de ordem geral, local, psíquicos e toxicológicos, e são aplica-das de forma medicamentosa dinamizada

(sistema de diluição e sucussões sucessivas da substân-cia medicinal) para as patologias análogas às experimen-tações (patogenesias). Este sistema terapêutico utiliza as propriedades físicas e químicas das substâncias, e conta com experimentos científicos de ordem básica e clínica, desde sua fundamentação, e sua explicação se aproxima dos conceitos de nanotecnologia, ou frações atômicas das substâncias.

Encontramos medicamentos de origem dos reinos mineral, vegetal e animal, contando com substâncias de-rivadas de produtos orgânicos, de produtos de culturas bacterianas, chamados de bioterápicos (nosódios, sarcó-dios), e substâncias de origem de órgãos animais chama-dos de organoterápicos. Encontramos dados patogené-ticos medicamentosos que tem alto grau de semelhança com nuances e sintomas comuns aos indivíduos autistas: estes medicamentos são utilizados em conjunto ou sós, dependendo da sintomatologia específica. As dinami-zações ou potências, são utilizadas conforme o grau de semelhança entre a patologia e a patogenesia.

Do ponto de vista terapêutico, atuamos no sentido de promover a neuroplasticidade, pois à luz de nossa com-preensão, este desequilíbrio do estado de saúde denomi-nado espectro autista, seria um distúrbio temporário do desenvolvimento cognitivo comportamental e biológico provindos de susceptibilidades a fenômenos ambientais, que interferem nos processos sinápticos gerando um de-senvolvimento neuronal irregular, prevalecendo uma imaturidade de alguns sistemas de processamento, em especial o Processamento Auditivo Central (ocasionando dificuldade na evolução da fala e entendimento), proces-samentos visual, afetivo e sensorial que promovem a per-versão do reconhecimento ambiental, fato essencial para o bom desenvolvimento do sistema nervoso. Encontra-mos no medicamento homeopático esta possibilidade, pois a atuação FISICO / QUÍMICA do medicamento se assemelha ao processamento da comunicação neuronal, que é mediado por atividades químicas e físicas.

Contamos hoje com mais de quinhentos pacientes agrupados como autistas e do espectro autista, cujos resultados positivos em suas evoluções sócio familiares através da maturidade cognitiva comportamental tem facilitado a conclusão que o tratamento homeopático fa-cilita a NEUROPLASTICIDADE, e que os métodos de es-timulação via psicoterapia, fonoaudiologia, terapia ocu-pacional, pedagogia, fisioterapia, musicoterapia e outras têm seus resultados amplificados e abreviados no tempo.*Fábio Bolognani, é médico homeopata, atualmente presidente da Federação Brasileira de Homeopatia e Geórgia Meneses Fonseca é pediatra com ampla experiência em desenvolvimento infantil, puericultura, homeopatia e saúde mental, além de pesquisadora em autismo da Federação Brasileira de Homeopatia.

69ENSAIOS & DIÁLOGOS

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ALImEnTAçãO E nUTRIçãO

Estratégico para a saúde pública e para a economia, o debate sobre a regulação de alimentos e bebidas tornou-se uma das principais arenas

da contemporaneidade, provocando mudan-ças no comportamento, na qualidade de vida e no fazer científico em Saúde Coletiva

Está no prato. Mas também na cabeça, na boca e no bolso. A crescente consciência da di-mensão da alimentação na vida cultural das sociedades ocidentais, a escala global da pro-dução de alimentos e as evidências científicas que relacionam o consumo de ingredientes, nutrientes e alimentos às doenças crônicas não transmissíveis coloca o tema da regulação de alimentos e bebidas como um dos princi-pais debates do mundo contemporâneo.

Quase que diariamente, sites, jornais, emissoras de rádio e tevê publicam e repercu-tem notícias sobre o assunto. Nessas discus-sões têm cadeiras cativas sanitaristas; empre-sários; advogados e pesquisadores; além de órgãos governamentais, associações de classe, de consumidores e científicas– cada qual re-

que na prática as empresas não demonstrem o mesmo esforço para alcançar os resultados esperados. Ao seu modo, as diversas organi-zações da sociedade civil nem sempre concor-dam entre si, pois são movidas por agendas próprias, compondo assim uma infinidade de sabores agridoces em um mundo ainda muito acostumado a encarar o debate social como uma luta do amargo contra o doce, para ficar-mos na seara das metáforas gastronômicas.

A partir de três notícias divulgadas nos primeiros meses deste 2016, este artigo-re-portagem tenta montar um painel do atual debate sobrea regulação de alimentos e be-bidas da maneira mais democrática possível, apresentando como diferentes estratégias de regulação- e as defesas por parte de seus ato-res - vão, ao final das contas, incidir sobre o tema da liberdade versus autoridade.

Identificadas as fontes prioritárias, as en-trevistas foram realizadas por e-mail. O prazo para retorno foi prorrogado, totalizando 13 dias para as devolutivas, encaminhadas tam-bém por escrito. Não houve retorno dos ór-gãos estatais ligados ao Ministério da Saúde:

da uma grande campanha que travaram por quase cinco anos com políticos e empresários para a aprovação da medida.

Segundo a imprensa inglesa, as indústrias serão cobradas de acordo com o volume pro-duzido ou importado, com taxação sobre as bebidas que apresentarem açúcar acima de cinco gramas em cem mililitros (5g/100ml). O objetivo é forçar que as empresas reduzam as quantidades de açúcar no prazo de dois anos. A estimativa de arrecadação está calcu-lada em 520 milhões de libras por ano, valor que será investido em programas de estímulo às práticas esportivas na rede pública de en-sino. Foram excluídos da cobrança as bebidas à base de leite e os sucos naturais integrais de pequenos produtores. Em que pese seu perfil conservador, compromissado com o empresariado nacional, Osbourne utilizou os argumentos da Saúde Pública - e não os da economia, para anunciar a medida. O chan-celer destacou que crianças de cinco anos têm consumido quantidades de açúcar próximas à metade de seus pesos, provocando uma gera-ção inteira de crianças britânicas com excesso de peso.

qUEm REgULA qUEm nO mERCADO gLObAL DE ALImEnTOs?

POR bRunO c. dias

presentativo de um determinado quinhão da sociedade.

O embate atravessa o campo das ideias e a seara da imprensa para desaguar em ações e estratégias nas esferas políticas, jurídicas e econômicas, resultando em acordos de co-operação técnica, projetos de lei e políticas públicas. São mecanismos espinhosos, como taxação; regulação da composição nutricional de produtos; regulação publicitária; de am-bientes, autorregulação.

Para a opinião pública, acende-se uma luz vermelha que expressa a confusão de vozes, autoridades e discursos que não fecham: ora o direito à escolha é excessivamente regulado, ora fica-se com a impressão de que as políti-cas existentes até o momento não estão surtin-do o efeito necessário na proteção de saúde.

Ainda que cheios de dúvidas, é fato que os brasileiros estão fazendo escolhas alimentares com maior autonomia. Este afluxo de consci-ência já é percebido nas vendas pela indús-tria, fazendo com que o setor assimileem seu discurso respostas da Saúde Coletiva, mesmo

Mecanismos de regulação, autorregulação e de taxação são objetos de fortes debate na sociedade, confrontando interesses da sociedade a respeito à produção global dos alimentos

estratégico para a saúde pública e para a economia, o debate sobre a regulação de alimentos e bebidas tornou-se uma das principais arenas da contemporaneidade, provocando mudanças no comportamento, na qualidade de vida e no fazer científico em saúde Coletiva

nem da Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (CGAN/MS), nem da Gerência--Geral de Alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (GGALI/Anvisa).

TAxAR OU nãO TAxAR, EIs A qUEsTãO

Quando George Osbourne, chanceler do Tesouro do Reino Unido (equivalente ao nos-so ministro da fazenda), anunciou no Parla-mento inglês a taxação de bebidas açucaradas e refrigerantes como parte do orçamento de 2016 no último 16 de março, figuras emble-máticas como Jamie Oliver e Malcom Clark, coordenador de uma das principais ONGs em defesa da alimentação infantil, festejaram na mídia e nas redes sociais. Estava concluí-

Com a medida, o Reino Unido engros-sa a fila de nações como França, Bulgária e México, que já adotam a taxação das bebidas açucaradas. O tema esteve presente entre os artigos da primeira Ensaios & Diálogos em Saúde Coletiva, lançada em dezembro do ano passado. No artigo El imposto al refresco, a ONG mexicana El Poder del Consumidor tra-ça um panorama de como foi travado o deba-te da taxação naquele país, reconhecido como o maior consumidor de bebidas açucaradas do planeta. No final de 2013, o Congresso lo-cal aprovou a taxação de um (01) peso mexi-cano por litro de bebida à base de água que tenha quaisquer níveis de açúcar. Dados do Instituto Nacional de Salud Publica (INSP) e do Centro de Estudos da População da Uni-

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7372 ENSAIOS & DIÁLOGOS ENSAIOS & DIÁLOGOS

versidade da Carolina do Norte (EUA) apon-taram uma diminuição média de 6% sobre as compras desses produtos. Em termos de consumo per capita, a redução é de 4,2 litros/ano, razão que indica uma redução futura de 183 mil obesos e de menos 400 mil casos de diabetes tipo 2, segundo estimativas do INSP, nos próximos dez anos.

Tanto no México como no Reino Unido as associações da indústria contestaram as res-pectivas decisões de seus parlamentos, como informa a Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas não Alcóolicas (ABIR). Representada pelo seu presidente, Alexandre Kruel Jobim, a entidade questio-na a validade do que nomeou de “impostos da obesidade”, tomando como base estudos realizados pela comissão de comércio da

produtos alimentícios feitos com ingredien-tes ultraprocessados compromete qualquer discurso de promoção da saúde que possa ser adotado pelas entidades da indústria. Para Fabio da Silva Gomes, pesquisador da Unidade Técnica de Alimentação, Nutrição e Câncer do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA/MS) e presi-dente da Associação Mundial de Nutrição em Saúde Pública (WPHNA, sigla em inglês), es-ses produtos são os responsáveis por destruir o paladar e deslocar o consumo dos alimentos realmente necessários de se comer e beber.

Em sua análise, a decisão do Reino Unido joga por terra o argumento de que a taxação compromete a economia de um país. Na opi-nião de Gomes, ao taxar as bebidas açucara-

terminados perfis nutricionais. O tema, no en-tanto, já está na pauta do Comitê Técnico de Obesidade da Câmara Interministerial de Se-gurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), órgão ligado ao Ministério do Desenvolvi-mento Social e do Combate à Fome.

AUTORREgULAçãO E Os LImITEs DA AçãO COmERCIAL

Dias antes de os ingleses decidirem sobre a necessidade de taxar as bebidas, no Brasil, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu por unanimidade manifestar--se contra a publicidade infantil e a prática da venda casada. A deliberação ocorreu durante o julgamento da ação impetrada pelo Minis-tério Público de São Paulo contra a campanha “É Hora de Shrek”, de 2007, da empresa Pan-durata, detentora da marca Bauducco. A pu-blicidade dirigia-se diretamente às crianças e condicionava o brinde à compra dos produ-tos mais o desembolso de uma quantia em di-nheiro. A votação aconteceu em 10 de março e foi celebrada pelas entidades que atuam em defesa da infância, da saúde e dos direitos dos consumidores por fortalecer a jurisprudência para casos similares.

A necessidade de votações como esta ex-põe os limites da autorregulação. Apesar de o Conselho de Autorregulamentação Publicitá-ria (CONAR) ter, à época, suspendido a ação de marketing da Pandurata, o número de anúncios suspensos é, em média, um quinto dos casos denunciados. Em 2015, foram 241 processos instaurados e 44 filmes e ações de marketing sustadas. A maior parte das de-núncias foi feita pelos consumidores (128) e incidiu sobre produtos alimentícios, seguidos de produtos cosméticos e para saúde, e por bebidas alcóolicas (19,5%; 18,3%; e 16,6%, res-pectivamente). Salta aos olhos o grande o nú-mero de conciliações (53).

Questionada sobre a importância da vo-tação do STJ e seu posicionamento a respeito da matéria, a Associação Brasileira das Indús-trias da Alimentação (ABIA) respondeu que a atual proteção do indivíduo e da família é suficiente no tocante ao tema da publicidade infantil, citando, além da atuação do CONAR, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) como mecanismos legais para a proteção dos diretos da criança.

Nos últimos dias de abril, a assembleia--geral da ABIR lançou um documento com di-retrizes de marketing da Associação, no qual se comprometeu a não fazer quaisquer comu-nicações em veículos que tenham audiência infantil acima de 35% e a suspender ações de marketing em escolas com crianças abaixo de 12 anos. No entanto, uso de personagens pró-prios das marcas e a regulação da venda das bebidas açucaradas diretamente no ambiente escolar, reivindicações das ONGs de defesa à infância, não constam do compromisso.

Adriana Carvalho, diretora jurídica da Aliança pelo Controle do Tabaco e pela Saú-de (ACT+), ressalta a falta de fiscalização e de punição como provas da evidente limitação das políticas de autorregulação. Segundo ela, as regras são discutidas e elaboradas apenas entre as empresas e entidades de classe do setor, sem a participação da sociedade civil, num claro movimento de evitar que a regula-ção venha do Estado.

Em que pese a força dos discursos sobre o excessivo poder estatal e a intromissão em di-tas “liberdades comerciais”, Adriana reforça que a regulação do Estado é imprescindível para equilibrar a força do mercado em rela-ção aos consumidores. Para ela, num mundo-globalizado, as empresas estão cada vez mais concentradas e maiores, o que faz a busca pelo lucro ser travada a qualquer custo, com desrespeitos à infância e à alimentação tradi-cional dos diferentes povos.

Também partidário dessa visão, o IDEC reforça que o funcionamento da autorregula-ção exige uma estrutura de governança muito bem organizada, com monitoramento trans-parente e controle social efetivo para poder verificar efeitos mensuráveis, bem diferente da realidade brasileira. Ana Paula Bortoletto, nutricionista e pesquisadora da área de ali-mentação deste instituto, ressalta que é papel do ente público colocar os interesses da Saúde Pública, que beneficiam toda população, aci-ma dos interesses comerciais de poucas em-presas.

O acordo de cooperação técnica entre ABIA e o Ministério da Saúde para a redução do sódio, assinado em 2007, é outro marco apontado pelas empresas defensoras da es-tratégia da autorregulação. Perguntada sobre o atual estágio dessa ação, a representante da indústria alimentícia ressalta a meta de retirar

ALImEnTAçãO E nUTRIçãO

a falta de transparência dos dados apresentados pelas

associações da indústria, o tímido estabelecimento de metas e a

ausência de penalidades para as empresas que não cumprirem o

acordo evidenciam a fragilidade da autorregulação

União Europeia. Segundo o executivo, o rela-tório citado não aponta melhora significativa na saúde pública, mas sim um aumento dos preços de demais alimentos; substituição das bebidas por outras categorias de composição nutricional similar sem incidência de impos-tos; redução de empregos e encerramento de negócios. Afirmou ainda que foram fechadas cerca de 30 mil pequenas lojas no México. Per-guntado como a entidade reagiria caso uma lei parecida venha a ser aprovada em solo na-cional, Kruel Jobim reforçou o posicionamen-to contrário da ABIR.

Já para um segmento dos nutricionistas, a própria existência e comercialização dos

das, produtos alternativos, como os da pro-dução agroecológica, serão necessariamente valorizados, possibilitando que a população amplie seu leque de opções frente ao sistema hegemônico, redescobrindo os alimentos in natura e as formas de prepará-los.

No Brasil, ainda não houve provocação de forma incisiva ao Ministério da Fazenda e a demais órgãos públicos para a criação de im-postos ou de taxas sobre bebidas açucaradas. No último levantamento de projetos de lei sobre Alimentação e Nutrição realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), não há nenhuma proposta parecida, apenas de isenções fiscais a produtos com de-

Com a taxação de bebidas açucaradas, o Reino Unido engrossa

a fila de nações como França, Bulgária e México,

que já adotam a medida

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práticas esportivas e mudanças no estilo de vida, a estratégia é mostrar à sociedade o “compromisso com a saúde” como forma de compensação dos malefícios de seus produtos.

Carlos Monteiro acredita não haver contradição entre ações regulatórias e ações de promoção em essência. Na sua visão, as ações regulatórias no campo da alimentação promovem o com-portamento saudável na medida em que “empurram” as pessoas na direção de escolhas mais saudáveis. Já as medidas de promo-ção, quando feitas adequadamente por meio de ações de informa-ção e de motivação, empoderam as pessoas para pressionarem os governos na direção de ações regulatórias. Ele frisa que há quem acredite unicamente nas ações regulatórias como suficientes para reverter a deterioração nos padrões de alimentação, visão com a qual ele não compartilha.

A força das operações promovidas pelo marketing industrial, marcado por campanhas publicitárias que abusam de falsas in-formações e pela criação de demandas alimentares e nutricionais inexistentes são destacadas por Gomes como elementos mais do que suficientes para o reforço das políticas regulatórias. Ele acredita que a academia deve valorizar investigações e pesquisas que persigam os resultados das políticas de regulação, podendo, assim, revelar impactos sistêmicos que tais práticas ou suas au-sências possam provocar sobre as diversas abordagens dentro

28 mil toneladas deste ingrediente até 2020, anunciada como parte do esforço para atingir a marca de dois miligramas (2mg) de con-sumo diário do mineral como recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O mesmo comunicado registra que, segundo os dois primeiros Termos de Compromisso já monitorados, foram retiradas 7.652 toneladas de sódio dos alimentos processados, cerca de 27% meta estabelecida, faltando quatro anos para o vencimento do atual acordo. A ABIA argumenta também que a segunda etapa mo-nitorada obteve adesão de 95% das indústrias a ela associadas. No entanto, não apresentou detalhamento das reduções por empresa.

A falta de transparência dos dados apre-sentados pelas associações da indústria, o tí-mido estabelecimento de metas e a ausência de penalidades para as empresas que não cumprirem o acordo evidenciam ainda mais a fragilidade desse modelo de regulação são as principais críticas apontadas pelo Idec no estudo Redução de Sódio em Alimentos: Uma análise dos acordos voluntários no Brasil, pu-blicado em 2014.

Na opinião de Carlos Monteiro, profes-sor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e co-ordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemio-lógicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP), a autorregulação nas fórmulas e composições tende a ter pouco impacto na minoração dos problemas de saúde pelo consumo desses ali-mentos. As mudanças nas composições são condicionadaspara que não haja ameaça à margem de lucro da indústria, reformulando produtos sem que haja acréscimo nos custos de produção e nem redução da competitivi-dade com outros similares.

pOLÍTICAs pÚbLICAs E pRODUçãO CIEnTÍFICA nA DIspUTA DE CORAçõEs E mEnTEs

Monteiro é um dos autores da nova versão do Modelo de Perfil Nutricional da Organiza-ção Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), lançado em 18 de fevereiro deste ano. Ele des-taca que objetivo do documento é apoiar os Estados-membros do organismo a abraçarem medidas regulatórias que desestimulem o

consumo de produtos alimentícios não saudáveis, estabelecendo parâmetros para uma fácil distinção dos produtos que excedem os teores máximos recomendados pela OMS.

Evidências cientificas provenientes de 24 pesquisas de variados países ratificadas pela OMS serviram de base para o novo modelo, que relacionam teores de nutrientes na dieta à morbidade e mor-talidade por doenças crônicas de grande relevância para a Saúde Publica, como obesidade, doenças cardiovasculares e cânceres associados à dieta. Dentre as vantagens da proposta sobre outros modelos existentes, Monteiro destacou sua simplicidade, sendo único para todo e qualquer alimento processado ou ultraproces-sado, incluindo bebidas e alimentos sólidos. Para evitar confusões e más interpretações, alimentos in natura, minimamente processa-dos e ingredientes culinários foram retirados da versão final.

Comumente, tais documentos, assim como políticas públicas e demais produções científicas baseados em evidências indepen-dentes, são severamente atacados pelas indústrias, que promovem verdadeiras batalhas no espaço da opinião pública, evidenciando determinados estudos em detrimento de outros. Fabio Gomes, da WPHNA, acredita que as implicações do debate sobre a regulação tornam-se cada vez mais claras na comunidade científica interna-cional. Para ele, ainda que alguns pesquisadores se dobrem aos interesses privados e corporativos e publiquem resultados envie-sados que favorecem as empresas que os financiam, várias organi-zações científicas e de profissionais da saúde têm se desvinculado da indústria de refrigerantes e de outros produtos ultraprocessa-dos, buscando formas de proteger sua independência e reputação.

Outra estratégia cada vez mais evidente é a utilização do dis-curso da promoção da saúde como mote principal das empresas em suas práticas de comunicação, tanto nas campanhas de mas-sa como em ações institucionais. Ao estimular hábitos como as

do campo da Alimentação e Nutrição e para além dele, incluindo disciplinas como Econo-mia, Agricultura, Meio Ambiente, Direito e Comunicação.

Em meio a tantas visões, opiniões e discur-sos sobre o peso e papel das estratégias de re-gulação e de promoção e seus efeitos nas esco-lhas da sociedade, é impossível não retornar ao título e se (nos) perguntar: Quem regula quem no mercado global de alimentos? Quan-do as respostas dadas a essa e outras pergun-tas, como Liberdade de quem?;Autoritarismo de quem? deixam de repetir e ecoar automa-ticamente o senso comum, percebe-se que a zona cinzenta em torno desse debate começa a se dissipar.

Valorizar investigações e pesquisas que persigam os resultados das políticas de regulação podem revelar os impactos sistêmicos que tais práticas ou suas ausências possam provocar sobre as diversas abordagens dentro da alimentação e Nutrição e outros campos do conhecimento

ALImEnTAçãO E nUTRIçãO

Para pesquisadores, instrumentos de regulação possibilitam que a população amplie seu leque de opções frente ao sistema hegemônico, redescobrindo os alimentos in natura e as formas de prepará-los

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