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EXCELENTÍSSIMO JUIZ DE DIREITO DA __ VARA DA COMARCA DE COXIM –
MS.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO
GROSSO DO SUL, por intermédio dos Promotores de Justiça infra-assinados, vem,
perante Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, inciso III, da Constituição Federal
e nos artigos 1o, I e II, 3o e 21, todos da Lei n.º 7.347/85, e nas provas produzidas nos autos
do inquérito civil da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e nas peças de informação
da Promotoria de Justiça do Consumidor, propor
AÇÃO CIVIL PÚBLICA,
COM PEDIDO DE LIMINAR,
em face do ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, pessoa jurídica de direito público
interno, com sede de governo no Parque dos Poderes, na Capital do Estado, através do seu
representante legal, e em face do MATADOURO ESPERANÇA – Clodoaldo Marques
Vieira - ME, pessoa jurídica privada, CNPJ 01.724.237/001-88, IE 28.323.949-2, com
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sede na Estrada MT 29, Km 01, zona rural, Colônia São Ramão, distrito de Silviolândia,
nesta cidade, representada por seu proprietário Clodoaldo Marques Vieira, pelos motivos
de fato e de direito que passa a expor.
1. DOS FATOS
1.1 Das péssimas condições higiênico – sanitárias.
Instaurou-se na Promotoria de Justiça do Consumidor desta
comarca procedimento de n. 01/2005, o qual fica fazendo parte integrante da presente
ação, com o intuito de apurar notícia de falta de higiene e fiscalização no abate e no
comércio de carnes bovinas no Matadouro Esperança.
Em abril de 2004, esta Promotoria de Justiça do Consumidor
recebeu ofício da Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal de MS –
IAGRO, escritório de Coxim, informando a suspensão das atividades de abate e
processamento de carne bovina do reportado Matadouro, ante as diversas irregularidades
sanitárias constatadas no relatório de supervisão de n. 08/04 (docs. 03/05).
Neste relatório já se constatava inúmeras irregularidades no
requerido, concluindo o médico veterinário responsável pela vistoria:
“ Este estabelecimento encontra-se em péssimas condições de conservação e de higiene, os equipamentos estão quebrados e sem condições de uso. As estruturas (paredes, pisos, instalações) estão comprometidas, inclusive o sistema de tratamento de efluentes.
Essa situação compromete severamente a produção desse estabelecimento, ferindo frontalmente as normas vigentes no que concerne a produção de produtos adequados ao consumo humano (Lei Estadual n. 1232/91 e Decreto Estadual n. 6.450/92)”.
Estando suspensas as atividades do Matadouro, em maio de
2004, fora realizado nova vistoria pelo IAGRO/Coxim, em que se perquiriu sobre a
adequação do estabelecimento às normas sanitárias, a fim de que o mesmo retornasse a
funcionar, no entanto, novamente, a médica veterinária verificou a caótica situação da
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indústria no tocante às condições higiênico-sanitárias (docs. 06/13), esclarecendo com
absoluta clareza a expert:
“Este estabelecimento continua em péssimas condições de conservação e higiene. Presença de sujidade, tanto na estrutura como nos equipamentos e aparatos operacionais de consistência e aspecto que induz a uma suspeita de possibilidade do estabelecimento ter funcionado recentemente durante o período de interdição.
São encontrados:- equipamentos, aparatos e utensílios operacionais de maneira geral
estão danificados, gastos de usos, encardidos, quebrados, alguns não funcionam, muitas arranhaduras e amassados retendo sujidade, forte presença de pontos e áreas de ferrugem m muita umidade e águas acumuladas e gotejamentos pelas superfícies.
- as estruturas (paredes, pisos, instalações, molduras metálicas...) comprometidas por falta de manutenção (presença de quebraduras, trincos, ausência de reboque, mofo áreas de ferrugem várias e outros comprometimentos e higiene (superfícies sujas, encardidas, incrustações de acumulo de sujidade, forte presença de áreas de ferrugem, quebraduras, dilacerações buracos pequenos e médios, trincas e até rachaduras criando espaços).
Essa situação continua comprometendo severamente não só a produção desse estabelecimento, como também produz focos, presença de coleções de água parada, que favorecem a reprodução de moscas e mosquitos, inclusive do transmissor da dengue.
Pode haver o comprometimento da saúde não só do consumidor como também dos próprios trabalhadores do frigorífico, da pequena população de assentados e da população dos distrito de Silviolândia que se encontram próximos ao Frigorífico Esperança. Situação essa que fere as normas vigentes no que concerne a produção de produtos adequados ao consumo humano.
Finalizando, este estabelecimento continua sem condições mínimas de produção adequada e recomendo que continue suspenso de suas atividades, quaisquer que sejam elas.”
Mesmo contendo inúmeras irregularidades consoante relatado
na vistoria acima descrita, para perplexidade desta Promotoria de Justiça, em junho de
2004, o IAGRO de Campo Grande, inexplicavelmente, liberou o funcionamento do
Mataoduro, apresentando um sucinto relatório (doc. 22), comprovando-se o descaso do
próprio órgão FISCALIZADOR.
Neste desiderato, mesmo hodiernamente, tendo conhecimento
da importância das normas sanitárias, as quais são exigidas por todos os países que
exportam nossos produtos, bem com sendo cediço que a inobservância destas normas
pode ocasionar estrondosos prejuízos ao país, como recentemente, ocorreu com os focos de
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febre aftosa em nosso Estado, porém, mesmo assim, nos deparamos com falhas e
ingerências políticas inaceitáveis em órgãos de fiscalização.
Não se contentando com o sucinto relatório apresentado pelo
IAGRO e questionando a isenção e autonomia deste órgão, foi solicitado por esta
Promotoria de Justiça junto ao Conselho Regional de Medicina Veterinária deste Estado
nova vistoria no Matadouro, o qual nos foi encaminhado em setembro de 2004 (docs.
39/49), onde a perita detalhadamente relata as péssimas condições dos currais, “box’ de
atordoamento, área de “vômito”, sala de matança (área de seringa, piso, paredes, teto,
iluminação e ventilação, trilhagem aérea, serras elétricas, esterilizadores, pias, plataformas
de metal, mesas, instalações de água e vapor câmaras frias, salga de couro), área externa,
sala de S.I.E. do estabelecimento, concluindo:
“Pelos fatos apresentados não há atendimento correto das fases do processo tecnológico do abate e rigorosa observância da higiene antes, durante e após os trabalhos, o que são princípios básicos, cujo respeito constitui a garantia da obtenção de um produto mercadologicamente valioso e higienicamente idôneo.
A presença de negligência, imperfeições e imperícia, interferindo direta ou indiretamente na qualidade das carnes, comprometem-nas fatalmente, tornando-as desvalorizadas pela má apresentação ou pela quebra de sua natural resistência à deterioração e o que é mais importante ainda, tornando-as seguramente impróprias para o consumo humano e altamente comprometedoras à saúde pública.
O Matadouro Esperança, anteriormente interditado pelo IAGRO, e que por deliberação deste mesmo órgão fiscalizador, foi liberado para retomar as suas atividades, desde o final do mês de maio, continua sem condições de produção adequada de carnes e miúdos. Embora não tivéssemos presenciado o abate, propriamente dito, é fácil deduzir que não há inspeção, feita por médico veterinário oficial (IAGRO), “ant-mortem” e “post-mortem” dos animais batidos, o que caracteriza ABATE CLANDESTINO (....)”
Assim, depreende-se que mesmo diante das recomendações
feitas quando da primeira vistoria, o estabelecimento foi mantido em funcionamento de
forma completamente inadequada.
Destarte, de posse do citado Laudo de Vistoria realizado pelo
Conselho Regional de Medicina Veterinária deste Estado, foi encaminhado cópia do
mesmo ao IAGRO, exigindo-se que fossem tomadas as medidas legais cabíveis, sob pena
de responsabilidade dos agentes envolvidos.
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Assim, em outubro de 2004, o IAGRO informou esta
Promotoria de Justiça (doc. 50) da suspensão do abate de bovinos no reportado
frigorífico, esclarecendo ainda que somente permitira a abertura deste, após a assinatura
de “Termo de Ajustamento de Conduta” e, após, serem resolvidas todas as pendências
descritas nos relatórios acima citados.
Diante do mencionado relatório, também foi oficiado à
Delegacia de Polícia desta cidade, requisitando a instauração de inquérito policial para
apurar o crime descrito no art. 7º, inciso II da lei 8.137/80 (doc. 65), bem como apurar os
delitos ao meio ambiente previsto na lei 9.605/98 (doc. 69).
Após interdições, suspensões, o requerido acabou por assinar
Termo de Ajustamento de Conduta com o IAGRO, comprometendo-se a cumprir todas as
exigências contidas nos relatórios de vistoria daquele órgão, no prazo avençado entre os
acordantes (doc. 53/55).
Dessa forma, acreditou esta Promotora de Justiça, que, de
fato, o proprietário do Matadouro estaria disposto a adequar seu estabelecimento ao
exigido pela legislação, bem como não efetuaria mais qualquer abate clandestino.
Lego engano.
Malgrado durante a vigência do acordo, o IAGRO não tenha
informado a esta Promotoria de Justiça sobre o cumprimento do termo de ajustamento, em
setembro deste ano (23/09/05), através de informação obtida com o Delegado de Policia
desta cidade, o qual teria atuado em flagrante o proprietário do estabelecimento por estar
realizando abate clandestino (doc. 136/139), bem como ter verificado, não obstante não
seja técnico da área, as péssimas condições de higiene do estabelecimento, sendo mais uma
vez interditado pelo IAGRO.
Entrementes, novamente para assombro nesta Promotoria de
Justiça e inexplicavelmente, em menos de quinze dias, o Matadouro obteve junto ao
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IAGRO autorização para funcionar, frise-se, mesmo sendo preso em flagrante por estar
abatendo clandestinamente e, mesmo, não tendo cumprido as cláusulas do acordo
anteriormente avençado com o IAGRO, este órgão fiscalizador, autorizou o funcionamento
do frigorífico.
Não é demais sublinhar que mais uma vez em um sucinto
relatório (doc. 82), no qual, pasmem-se, a Gerente da Inspeção Sanitária de nosso Estado
afirma que em vistoria técnica o reportado estabelecimento necessita “apenas de algumas
adequações”, no entanto, ao ler o relatório de vistoria, nota-se claramente que o
veterinário afirma que a “a execução dos itens relacionados são imprescindíveis para a
formalização do estabelecimento e produção de produtos adequados ao consumo”, vale
dizer, somente após a realização das obras já determinadas pelo IAGRO, desde o ano
passado, o Matadouro estaria apto a funcionar e, não, imediatamente, como
lamentavelmente “entendeu” a Gerente da Inspeção e de Defesa Sanitária de nosso Estado,
vez que, como deveria saber, tais obras necessitam de tempo para serem efetivadas.
Diante de tais fatos, não podemos deixar de indagar os
“fatores externos” que interferem justamente em um dos principais órgão fiscalizador de
nosso Estado, são fatos como estes que nos fazem entender, frise-se, porque surgem focos
de aftosa em nosso Estado, porque estabelecimentos como o requerido continuam a
funcionar em nosso Estado.
Aliás, é por essa constante falta de isenção e
responsabilidade de órgãos estaduais, que necessitamos socorrer-se ao Judiciário, bem
como uma da razões do Judiciário estar abarrotado de processos.
Retornando aos fatos, mesmo não tendo cumprido o acordo
anteriormente firmado com IAGRO, este, mais uma vez, lamentavelmente, celebrou novo
termo de ajustamento de conduta com o Matadouro, de forma amplamente genérica,
consoante observa das fls. 86/87. Este novo acordo previa exigências que deveriam ser
cumpridas “imediatamente” pelo requerido, vale dizer, não foi fixado prazo, apenas se
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estabeleceu o termo “imediatamente”, certamente para deixar mais a critério subjetivo do
que técnico as exigências solicitadas.
Ciente deste estapafúrdio acordo, esta Promotora solicitou
junto aos servidores do IAGRO de Coxim, que fossem no estabelecimento e certificassem
se a industria teria cumprido as exigências “imediatas”. Como era de se esperar NÃO.
Assim, mesmo tendo a funcionária do IAGRO de Coxim,
informado por duas vezes seus superiores em Campo Grande que o requerido não tinha
cumprido as determinações constantes no ultimo relatório (fls. 94/99), somente no dia 03
de novembro deste ano, o estabelecimento teve suas atividades suspensas pelo IAGRO,
registre-se, após reunião da Gerente deste órgão com a Procuradora de Justiça do Centro de
Apoio ao Consumidor em Campo Grande, a pedido desta Promotora de Justiça.
Mister salientar ainda alguns fatos que ocorreram antes desta
última suspensão. O primeiro que nos causou também estranheza, foi o fato de que
malgrado esta Promotoria de Justiça tenha por diversas vezes telefonado e oficiado ao
IAGRO de Campo Grande solicitando providências no matadouro, nenhum destes pedidos
foi atendido.
Pari passu, não concordando com a vistoria e com o
conseqüente acordo que teria desinterditado o matadouro e não sendo atendido pelo
IAGRO, o Parquet buscou-se através de outras entidades idôneas a realização nova
vistoria do matadouro para comprovar as irregularidades naquele estabelecimento, obtendo
sucesso junto ao órgão federal - Ministério da Agricultura, Pecuária e do Abastecimento –
MAPA deste Estado.
Assim, mediante solicitação do Ministério Público, foi
agendado a perícia com o veterinário do Ministério da Agricultura para o dia 01 de
novembro do corrente ano, sem repassar qualquer informação ao requerido ou ao IAGRO,
neste dia, por volta das 8:00h, comparecemos ao Matadouro e, mais uma vez, para nossa
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surpresa, estavam no local um técnico do IAGRO de Campo Grande realizando justamente
naquele dia perícia no estabelecimento.
Indagado a este servidor sobre quem teria solicitado a perícia,
o mesmo informou que telefonaram do IAGRO para sua residência à noite no dia anterior,
convocando-a para realizar esta perícia, afirmando ainda que quem teria solicitado foi esta
Promotoria de Justiça, no entanto, certamente esqueceram de nos avisar da perícia, ou,
quem sabe, queriam acompanhar a vistoria solicitada por esta Promotora de Justiça junto
ao Ministério da Agricultura.
Pior ainda, ao chegar no Matadouro, não obstante todos os
funcionários estarem no estabelecimento, informou o proprietário que não estava abatendo,
estava de “reformas”, havia começado justamente naquele dia as reformas, no entanto, não
foi visto qualquer pedreiro, pintor ou outro operário que estivesse realizando reformas.
O mais estranho foi mesmo não estando funcionando, o
requerido não dispensou seus funcionários, vez que os mesmos é que estavam realizam as
supostas “reformas” e o restante encontravam-se no estabelecimento, sentados,
conversando.
Nesta última vistoria realizada no começo deste mês pelo
fiscal federal agropecuário Luiz Marcelo Martins Araújo (doc. 168/211), em operação
conjunta organizada pelo Ministério Público, comprova-se novamente que o Matadouro
ainda encontra-se em péssimas condições de higiene, observando-se, no local, a
ausência de requisitos técnicos mínimos que permitam a manipulação de carcaças de
forma higiênica, concluindo que as instalações do Matadouro são irregulares frente às
Leis Federais 1283/50, 5517/68, 5760/71, 7889/89 e ainda a Lei Estadual 1232/91 e
Portaria do Ministério da Agricultura n. 304/96 e Portaria do IAGRO 434/2002, devendo,
por conseguinte, o requerido somente funcionar após devidamente adequado às normas
técnicas vigentes e com inspeção higiênico-sanitária por médico veterinário, na forma das
citadas leis.
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No mencionado relatório foram descritas, de forma
minudente, as diversas deficiências estruturais do matadouro. A precariedade do
estabelecimento foi revelada tanto pela estrutura física do prédio, quanto pela ausência de
equipamentos mínimos imprescindíveis para o adequado exercício das atividades de abate
de animais, ratificando as vistorias e laudos anteriores acostados nestes autos. Entre as
falhas apontadas e, apenas à guisa de exemplo, podem ser citadas:
* o matadouro está situado junto a estrada sem pavimentação, com poeira em abundância junto às
instalações de abate, grande quantidade de insetos;
* as portas não dispõem de sistema que impeça a entre de insetos (foto 29), as janelas dispõem de telas
milimétrica, MAS não dispõem de vidro ou outro dispositivo que permita seu fechamento (fotos 30 e
31), com o intuito de evitar a entrada de água de chuva, poeira – lembrar que as vias de acesso são de
terra e a região apresenta volume de chuvas considerável. A presença de janelas que VEDEM a
comunicação entre o interior da industria e o exterior e conditio sine qua non para o funcionamento de
estabelecimentos de produção de alimentos”.
* o teto, consoante demonstra as fotos 4 e 5, apresentam inúmeros orifícios para a área externa,
possibilitando a entrada de insetos, água da chuva, poeira e outros itens indesejáveis num
estabelecimento que se propõe a produzir alimentos para consumo humano, observou-se ainda a
grande quantidade de teias de aranhas (foto 6), reforçando que os programas de qualidade são falhos,
se e que existem;
* o conteúdo estomacal dos bovinos e jogado a céu aberto, a menos de 30 metros na área de
funcionamento, atraindo um sem numero de moscas, aves, urubus, alem de ocasionar a contaminação
do meio ambiente;
* apesar de estar nublado no dia da perícia, razão pela qual o numero de moscas estava inibida, uma
grande quantidade de larvas de moscas foi verificada, evidenciando, assim, que a presença de moscas e
uma constante;
* as péssimas condições dos equipamentos no estabelecimento – item 4 do reportado laudo -, as serras
esterilizadores, carretilhas/ganchos, plataformas, mesas de inspeção, trilhos, todos exigem constantes
manutenção para serem utilizados, o percebendo-se que não vem ocorrendo ja que apresentam grande
quantidade sujidades, demonstrando que alguns há muito tempo não são limpos, bem como sinais de
ferrugem, inconcebível ao propósito que se destinam, não apresentando portanto a indústria pratica de
higiene pra garantir a qualidade final do produto destina ao consumo (fotos 8 a 17);
* Constatou-se a presença de resíduos de osso e carne no piso e nas plataformas de abate (fotos 24/28).
Perguntado qual a data do ultimo abate, um funcionário informou que desde a ultima sexta feira não
se abatia no estabelecimento. Como a vistoria foi realizado numa terça feira, concluímos, portanto, que
aqueles resíduos estavam ali há, pelo menos quatro dias. Assim fica evidenciado que a empresa
apresenta falhas bastantes grandes no que diz respeito ao aspecto de higiene das instalações. Ainda, a
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grande quantidade de teias de aranha, livre acesso de animais a área da industria, a grande presença de
aves estranhas ao processo produtivo, a quantidade de ferrugem nos equipamentos que entram em contato
direto com os produtos e outros itens acima enunciados nos induzem a acreditar que os mecanismos de
limpeza da industria estão deveras aquém do determinado pelas normas mínimas de higiene.”
No que concerne às instalações de água, como fora
informado pelos peritos, a água deve apresentar, obrigatoriamente, características de
potabilidade especificas, sendo compulsoriamente clorada, como garantia de sua
inocuidade microbiologia, independentemente de sua procedência. O controle da taxa de
cloro na água de abastecimento e atribuição obrigatória e intransferível da inspeção e deve
ser feita, como regra geral, pelo menos de quatro em quatro horas, amostras de exame
devem ser mandadas para o IAGRO a cada dois meses.
No entanto, conforme constatado nos laudos no frigorífico a
água procede de um poço e não passa por nenhum sistema de tratamento, não sendo
clorada, confira-se: “Existe um sistema par cloração da água mas o mesmo esta em uso. Ainda,
o recipiente onde deve ser colocado o cloro par adição na água continha produto desconhecido,
sem identificação, mas cujo odor apresentado não era sugestivo de cloro, produto este que te
odor sui generis.”
Por fim, por tecer minúcias da situação caótica que se
encontra o matadouro, peco vênia para transcrever as conclusões do perito:
“Este estabelecimento, as margens de estrada sem pavimentação e sem
estruturas de vedação nas janelas, que ficam escancaradas e sem portas, expõe as
carnes a toda sorte de contaminantes veiculadas pelo ar.
Os desejos jogados a céu aberto, a falta de higiene nas instalações, os
pedaços de carne no piso da indústria há quatro dias pelo menos, atraem insetos,
roedores e ate mesmos animais peçonhentos.
Da analise das instalações, mesmo sem termos presenciado o abate
propriamente dito, e fácil, deduzir que a inspeção dos animais abatidos não e capaz
de contornar os problemas a que os produtos oriundos deste estabelecimento estão
expostos. Por mais sadio e hígido que seja o animal antes de entrar no
estabelecimento, sua carcaça será contaminada pela sujeira interna e externa das
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instalações ou, quem sabe, pela água, caso esta não tenha sido adequadamente
tratada, como nos sugere o equipamento de tratamento de água que esta quebrado e
sem sinais de uso recente.
A atenção do órgão fiscalizador do estabelecimento – IAGRO, deveria
ser redobrada, com o intuito de evitar que estabelecimento chegasse ao ponto em que
esta. A participação do referido órgão deve ser mais severa. Não nos cabe lembrar
que o papel do mesmo e de FISCALIZAÇÃO e a chancela de um carimbo seu em um
produto destinado ao consumo humano e indicativo, para que o consome de que o
mesmo tem a garantia OFICIAL de qualidade. Entretanto, devido que constatamos
no estabelecimento, nos cabe questionar ate onde o trabalho de fiscalização esta
sendo feito com isenção e autonomia exigidos.
Estabelecimentos destinados a produção de produtos de origem animal
para consumo humano dever ser FISCALIZADOS pelo poder publico, visto ser esta
uma atribuição típica do Estado.
As agressões ao direito do cidadão de receber um produto de qualidade,
que não lhe ofereça riscos sanitários, são evidentes. A atuação do órgão fiscalizador
esta deveras aquém do mínimo exigido pela população que, por vezes, mesmo sem o
saber tem direito a um produto isento de riscos. Este direito, no caso do
estabelecimento ora analisado, esta sendo claramente desrespeitado.
Ao órgão publico fiscalizador cabe a lotação de pessoa adequadamente
treinado, equipado e consciente de suas obrigações. A pratica de contratação de
funcionários por parte da indústria, para cedência ao serviço de inspeção, deve ser
desestimulada, vista o vinculo claro entre o agente fiscalizador e o fiscalizado.
O estabelecimento poderia e deveria estar em melhores condições de
conservação, dada a finalidade nobre a que se destina – produção de alimentos pra
consumo humano. O comprometimento dos agentes envolvidos na produção na
referida industria – quer o poder publico, através do IAGRO e dos órgãos ambientais,
quer a iniciativa privada, e fundamental para a plena garantia dos direitos do
consumidor
A AÇÃO FISCALIZADORA DO AGENTE PUBLICO DEVE ESTAR
PROTEGIDA DE INGERÊNCIAS POLÍTICAS EXTERNAS, QUE NÃO LEVEM
EM CONSIDERAÇÃO, ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE O INTERESSE PUBLICO.
Conclui-se, pelo exposto acima, que TODO E QUALQUER alimento
destinado ao consumo humano produzido no estabelecimento Matadouro Esperança,
por nos periciado E IMPROPRIO PARA O CONSUMO E ALTAMENTE
COMPROMETEDOR PARA A INTEGRIDADE FISICA DA POPULACAO.” (g.n.)
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Vislumbra-se que o laudo foi taxativo ao concluir que o
produto oriundo do estabelecimento comprometer à Saúde Pública. A conclusão do laudo
aponta a inadequação do estabelecimento, aliado à falta de higiene, poderá levar ao
consumo da população um produto sem garantia de qualidade, pois, da maneira como se
encontra, não existe condições higiênico-sanitárias para o abate de carnes para o consumo
humano.
Restou apurado, portanto, através dos documentos que
acompanham a inicial que os abates de bovinos efetuados pelo requerido são feitos de
forma irregular, na maioria das vezes sem a presença de médico veterinário, sem a
complementação dos exames ante mortem e inspeção post mortem, aliado as péssimas
condições de higiene e limpeza, impedindo, assim, a avaliação do estado de saúde dos
animais, colocando as carnes na condição de impróprias para o consumo humano, por
serem potencialmente perigosas à saúde pública, expondo os consumidores desta cidade a
riscos de toxinfecções alimentares e eventuais zoonoses.
De mais a mais, estas irregularidades poderiam estar
solucionadas se o requerido desde a primeira interdição no ano passado tivesse adotado as
reformas solicitadas, no entanto, o mesmo, por descaso e contando com o apoio de
ingerências políticas conseguiu retornar suas atividades.
Muito importa salientar que ainda foi coligido nos autos,
cópia do auto de prisão em flagrante do proprietário do matadouro, ocorrido no dia 23 de
setembro deste ano, quando, conforme acima noticiado, o delegado de polícia recebeu
denúncias de abate clandestino no estabelecimento, comprovando a veracidade das
informações. Neste inquérito, já fora ouvido o auxiliar de inspeção do Matadouro,
Alessandro Ribeiro de Brito (doc. 156/157), o qual sem titubear esclarece as condutas
ilícitas praticadas pelo requerido, corroborando os fatos denunciados desta inicial:
“qu e não e autorizado pelo IAGRO a fazer inspeção sozinho, que sempre deve estar acompanhado por um medico veterinário , que no dia 23/09/05 a carne apreendida nos presentes autos não foi inspecionada por medico veterinário, que foi o depoente quem após o carimbo da carne, que este carimbo estava sob responsabilidade do declarante quando o medico la não estava, sendo que após os
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fatos tratados nestes autos, passaram a recolher após a inspeção, que não sabe a quantidade de vezes, mas eram recorrentes os abates sem a presença dos médicos veterinários, que esclarece que mesmo quando havia a presença de veterinários, após estes irem embora, os donos do matadouro ou seja Clodoaldo e Sr. Wilson, mandavam que fossem abatidas outras vezes, que os abates eram irregulares e sem notas fiscais, que esclarece que era obrigado a carimbar as carnes irregulares sob pena de ser demitido se assim não o fizesse, que sabe que o matadouro já foi fechado uma vez no ano de 2004 porque não atendias as normas do IAGRO, mas depois reabriu sem qualquer regularização”
Corroborando as argumentações de que o requerido não
possui os requisitos mínimos de ordem técnica e legal para seu regular funcionamento,
colocando em risco toda a população desta cidade que consome a carne por ele produzida,
ainda coligimos nos autos perícia realizada por perita nomeada pelo i. Magistrado da 2ª
vara desta comarca, a veterinária Marly Oliveira Carneiro, fiscal federal agropecuário do
Ministério da Agricultura, no autos 011.05.005134-3 (doc. 114/123), já que o requerido
mesmo com todos os laudos e vistorias realizados em seu estabelecimento, os inquéritos
policiais instaurados, sua prisão, ajuizou ação cautelar de antecipação de produção de
provas, a fim de que a carne apreendida no último flagrante não fosse incinerada pelo
IAGRO, por, pasmem, alegar que se encontra própria ao consumo.
Como era de esperar, a perita judicial também condenou a
carne produzida no matadouro, afirmando com muita propriedade e clareza a seguinte
conclusão:
“(...) Considerando que a aprovação para o consumo humano deve
ocorre quando a operação de abate for realizada conforme as normas legais;
Considerando que o auxiliar de Inspeção não tem competência
técnica legal realizar inspeção ante-mortem sem o acompanhamento de um medico
veterinário, conforme Lei 5.517/68 2 Dec n. 64.704/69;
Considerando que algumas patologias só podem ser observadas com
os animais vivos,isto e, inspeção ante-mortem;
Considerando que as carnes e vísceras periciadas não contem mais
todos os elementos como cabeças,gânglios linfáticos, pulmões, intestinos,
extremidades podais, entre outros, necessários para a realização de uma inspeção
pos-mortem;
CONCLUÍMOS QUE AS CARNES E MIÚDOS APREENDIDOS
CONSTANTES DO PRESENTE PROCESSO, SÃO CONSIDERADOS
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IMPRÓPRIOS AO CONSUMO HUMANO NÃO DEVENDO, PORTANTO SER
COMERCIALIZADOS”.
Por derradeiro, como era de esperar, novamente a interdição
do IAGRO foi passageira, mesmo o requerido sendo reincidente e não possuindo as
mínimas condições de higiene para funcionar em menos de quinze dias e
inexplicavelmente voltou a funcionar.
Postas estas sobejas razões, ante os efeitos danosos à saúde
pública em razão do consumo desse material deteriorado, surge, daí, a necessidade da
presente ação civil pública para coibir, de imediato, a continuidade dos abates ali
realizados.
1.2 Das infrações ao meio ambiente.
As irregularidades ambientais referentes ao empreendimento
do réu não são novas nem poucas. Basicamente, são de três ordens: incorreta disposição dos
restos de sangue e outros dejetos, ineficiência do sistema de tratamento de efluentes e
descumprimento das condicionantes da licença de operação.
Antes de adentrar na descrição fática de cada irregularidade,
convém fazer síntese sobre o início das investigações na Promotoria de Justiça do Meio
Ambiente. Com efeito, no âmbito da 2a Promotoria de Justiça foi instaurado Inquérito Civil
n.º 04/93, cujo objeto era apurar o abate clandestino de reses feito neste matadouro, à época
pertencente a Eduardo Gomes de Azevedo.
Desde então, o matadouro deixou de ser clandestino
propriamente dito, porque era fiscalizado pelo IAGRO. Assim, teve vários nomes: Frinorte,
São José, Soberano e, por último, Esperança (Clodoaldo Marques Vieira – ME). Mudam-se
os proprietários e os empreendedores, mas o problema ambiental persiste, conforme se
verificará no presente relato.
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O matadouro em questão encontra-se às margens do Córrego
da Onça e foi autuado pelo IBAMA em 29 de abril de 1992 (f. 5), por funcionar causando
degradação ambiental. Em setembro de 1993, foi elaborado laudo de constatação pelo
Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA/MS), o qual descreveu o precário sistema
de tratamento de efluentes do empreendimento (f. 09).
Em 10 de julho de 1996, foi lavrado relatório de viagem pelo
IAGRO que constatou irregularidades. Referente à área ambiental, faltava destino
apropriado para os restos do digestor que estavam sendo armazenados ao ar livre, a poucos
metros do corpo do estabelecimento, causando odor bastante desagradável em toda a área
adjacente (f. 152). O proprietário foi notificado a regularizar a situação (f. 153). Em 24 de
setembro de 1996, o Iagro detectou que o sangue era jogado a céu aberto, o que causava mau
cheiro, bem como as águas residuais eram destinadas ao corpo d’água próximo sem
qualquer tratamento (f. 160). Em virtude dessas irregularidades, foi o matadouro interditado
(f. 162).
O matadouro foi inúmeras vezes interditado pelo IAGRO,
contudo, mesmo assim o empreendimento voltava a funcionar. Também foram feitos na
Promotoria de Justiça inúmeros termos de ajustamento de conduta, mas nunca eram
satisfatoriamente cumpridos, vez que as promessas de adequação às exigências sanitárias e
ambientais eram desrespeitadas.
Essa digressão fática tem a única finalidade de demonstrar que
esta ação não é uma medida extrema, tomada de inopino pelo órgão ministerial. Ao
contrário, todas as oportunidades que poderiam, e até que não poderiam, foram dadas ao
abatedouro réu.
Como escrito no início, existem irregularidades ambientais de
três ordens. Quanto à destinação inadequada de sangue e outros dejetos, consigne-se que em
18 de agosto de 2004 houve a realização de perícia pelo Conselho Regional de Medicina
Veterinária, o qual comprovou o sério comprometimento do meio ambiente (f. 8 do
mencionado laudo, item 4.4.12), já que o sangue era “jogado no ‘lixão’ da cidade”.
15
Posteriormente, a pedido do Ministério Público, em 1o de
novembro de 2005, mais de um ano depois, nova vistoria foi realizada, dessa vez pelo
Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal – DIPOA, vinculado ao
Ministério da Agricultura, Pecuária e do Abastecimento. Aludido órgão comprovou que o
sangue é cozido e simplesmente atirado no “lixão” municipal, o que causa odores
desagradáveis e, mais que isso, favorece a proliferação de moscas, insetos e roedores. Esses
odores, salientou o perito, pode inclusive ameaçar a camada de ozônio (f. 5 do mencionado
exame, item 6). Ou seja, passaram-se mais de um ano e o problema persistiu.
Esse último exame pericial demonstrou que os efluentes são
separados em duas linhas: linha vermelha para sangue e linha verde para os demais líquidos.
No entanto, observou o perito que o conteúdo estomacal dos bovinos e o destino final do
sobrenadante das lagoas de decantação (material gorduroso e resíduos do processo de
tratamento das lagoas) é jogado a céu aberto, juntamente com o conteúdo ruminal, o que
periclita o meio ambiente, diante da possibilidade de contaminação do lençol freático por
infiltração no solo.
Essas perícias (do CRMV e do DIPOA) vem ao encontro das
verificações que já eram feitas pelo IAGRO desde 1996. Isto é, faz mais praticamente dez
anos que a mesma infração ambiental é sistematicamente reiterada, sem nenhuma
solução concreta nem responsabilização do poluidor.
No que tange à ineficiência do sistema de tratamento de
efluentes, o mesmo exame pericial detectou vazamento considerável em uma das lagoas de
decantação componente do sistema de tratamento de efluentes, o que faz com que fluidos
não submetidos a tratamento adequado sejam despejados diretamente no meio ambiente.
Não bastasse esse vazamento, também a pedido do Ministério
Público, foi realizado exame pericial no estabelecimento comercial, dessa vez a cargo de
biólogas, professoras doutoras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, a fim de
verificar a eficiência do sistema de tratamento de efluentes, cuja colheita de amostras nos
16
pontos referidos no exame foram acompanhados pelo agente ministerial que labuta na 2a
Promotoria de Justiça.
O sistema de tratamento de efluentes do matadouro é composto
por três lagoas de estabilização, com a finalidade de permitir a depuração do efluente antes
que atinja o corpo receptor (Córrego da Onça). A perícia afirmou, categoricamente, que o
efluente originário das lagoas de decantação, em especial da última lagoa, onde foi colhida a
amostra, contém índices inaceitáveis de oxigênio dissolvido, sólidos totais dissolvidos e
condutividade elétrica. O estudo foi categórico: o sistema de tratamento de efluentes do
empreendimento é ineficiente, ou seja, não consegue filtrar as substâncias poluentes do
líquido que é lançado no curso d’água. Isso também confirma o fato que já era
constatado desde 1993, no sentido de que o tratamento de efluentes, antes inexistente,
jamais foi implantado de forma a satisfatoriamente atingir seu afã.
Finalmente, percebe-se que o próprio empresário desrespeitou
as condicionantes da licença ambiental que possuía. O matadouro possuía licença ambiental
de operação para abater 10 cabeças de gado por dia, mas a documentação inclusa
demonstra que eram abatidas mais reses do que o limite permitido. A título exemplificativo,
segundo o mapa de controle de abate, em julho de 2005 foram abatidas 542 reses.
Considerando que o mês de julho tem 31 dias, contados os sábados, domingos e feriados,
mesmo que o matadouro não parasse nenhum dia, deveria abater no máximo 310
reses.
Esse desrespeito às condicionantes da licença de operação
não aconteceu de forma esporádica ou pontual, mas era prática vezeira da empresa, que
sempre teimou em abater mais do que podia, na ganância de auferir lucro, mas
esquecendo-se de seu compromisso com o meio ambiente.
Deveras, são graves as infrações ambientais constatadas, as
quais merecem a imposição de responsabilidade civil ao poluidor, a qual deve ser majorada
pela renitência em cumprir os preceitos ambientais, e ao próprio Estado, diante da
inescusável omissão.
17
2. LEGITIMIDADE AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A presente ação civil pública colima assegurar e defender
direitos difusos dos consumidores e de proteção ao meio ambiente, os quais estão sendo
francamente violados pelos requerido, e está amparada na Lei n.º 7.347/85, denominada
Lei da Ação Civil Pública, promulgada para a proteção dos interesses difusos e que
legitimou o Ministério Público para sua propositura.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o campo de
atuação da ação civil pública foi alargado, com a inclusão dos interesses coletivos,
consoante o disposto no artigo 129, III, da CF, in verbis:
"Art. 129 - ...(...)III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção
do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos."
Mais recentemente, o arcabouço legislativo foi enriquecido
pelo advento do Código de Defesa do Consumidor, que em seu artigo 81 atribuiu ao
Ministério Público a defesa dos interesses difusos e coletivos.
A legitimidade ativa do Ministério Público para o presente
pedido é manifesta, vez que a presente ação coletiva visa a proteção dos interesses da
coletividade de consumidores que adquiriu, consumiu ou se expôs ao consumo de produtos
de origem animal impróprios (por falta de condições higiênico-sanitárias), bem como a
proteção da saúde pública e ao meio ambiente, que aproveita a todos, indistintamente.
Óbvio que o interesse de todos os consumidores deste
município no consumo de produtos não deteriorados e devidamente fiscalizados é interesse
de natureza difusa. Deveras, sendo insuscetíveis de fracionamento, tais interesses figuram,
certamente, dentre os difusos. Sua ofensa ou satisfação dissemina-se por toda a sociedade,
não podendo limitar-se a um ou a algum dos titulares, sem concernir aos demais.
Destinando-se a propiciar melhor qualidade de vida à população, é intuitivo que importam
18
potencialmente a todos (não somente aos que residem na cidade, mas também aos que nela
circunstancialmente transitam).
Trata-se daquele direito “transindividual, de natureza
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de
fato” (art. 81, par. único, I, do Código do Consumidor, combinado com o art. 21 da Lei da
Ação Civil Pública).
Nesse mesmo sentido pode-se citar lição de Ada Pellegrini
Grinover, segundo a qual "O objeto dos interesses difusos (no sentido amplo, que
também engloba os coletivos) é sempre um bem coletivo insuscetível de divisão, sendo
que a satisfação de um interessado implica, necessariamente, a satisfação de todos, ao
mesmo tempo em que a lesão de um indica a lesão de toda a coletividade. (A
problemática dos interesses Difusos, in "A Tutela dos Interesses Difusos", Ed. Max
Limonad - l984, p. 3l).
Portanto, busca-se por meio da presente demanda a proteção
de interesse de natureza difusa, que aproveita a um número indeterminado e indivisível de
pessoas expostas ao perigo da inserção no mercado de produtos impróprios ao consumo, do
que resta inquestionável, pois, a legitimidade do Ministério Público para a propositura
desta ação civil pública.
Outrossim, embora pareça despiciendo, ad cautelam
comentar-se-á sobre a indiscutível legitimidade ad causam do Ministério Público para a
defesa de um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado.
O art. 225, caput, da Constituição Federal disciplina que é
dever de toda a sociedade e especialmente do Poder Público defender o meio ambiente, bem
de uso comum do povo, para as presentes e futuras gerações. Em outros vocábulos, mas com
mesma carga semântica está o comando do art. 222, §1o, da Constituição Estadual, ao rezar
19
que incumbe ao Poder Público proteger o meio ambiente, preservar os recursos naturais,
ordenando seu uso e exploração, e resguardar o equilíbrio do sistema ecológico, sem
discriminação de indivíduos ou regiões.
Destarte, como não poderia deixar de ser, as normas
infraconstitucionais que disciplinam a organização do Ministério Público Estadual foram ao
encontro do comando normativo superior. A Lei n.º 8.625/93, em seu art. 25, IV, “a”, dispôs
que era função do Parquet promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção,
prevenção e reparação de danos causados ao meio ambiente, entre outros interesses coletivos
lato sensu. Bem assim, a Lei Complementar Estadual n.º 72/94 reiterou a prescrição legal
mencionada, justamente no art. 26, IV, “a”.
Na mesma esteira, a Lei n.º 7.347/85, no seu art. 1o, I, institui
a Ação Civil Pública como o instrumento processual destinado à guarida do meio
ambiente, prevendo no seu art. 6o o Ministério Público como um de seus legitimados.
Aliás, a respeito dessa legitimidade ad causam, sustenta com precisão ímpar Hugo Nigro
Mazzilli que se trata de legitimação extraordinária, agindo o Parquet na qualidade de
substituto processual, vez que defende interesse alheio em nome próprio, conquanto, como
o próprio autor anota no rodapé, exista a abalizada opinião de Rodolfo de Camargo
Mancuso, para quem a legitimação é anômala de tipo misto, vez que o interesse, sobre
pertencer à coletividade, também é do próprio Ministério Público (in A Defesa dos
Interesses Difusos em Juízo, 14a ed., Ed. Saraiva, 2002, f. 59/60).
Logo, é notória a legitimação para agir, seja pela tutela dos
direitos difusos do consumidor ou do meio ambiente.
3. DO DIREITO
3.1. A proteção à saúde publica dos consumidores.
20
Não é necessário muito conhecimento técnico para
concluirmos que por estar em total desacordo com as normas sanitárias relativas ao abate
de animais, o Matadouro expõe o consumidor ao risco de toxi-infecções alimentares e
zoonoses, comprometendo, de forma preocupante, a saúde pública municipal.
Com efeito e como brilhantemente demonstrou os peritos, o
abate de animais nestas condições importa na inadequação dos produtos ao consumo,
sujeitando a comunidade a consumir carne proveniente de animais abatidos sem qualquer
fiscalização e higiene, sendo que a coletividade pode até mesmo estar consumindo produto
de animais doentes. Evidente assim o prejuízo a interesses difusos, causado pelo requerido,
colocando em risco a saúde de toda a comunidade local.
Assim, é que o artigo 2º da Lei n.º 7.889/89 prevê sanções
administrativas para os estabelecimentos que funcionem em condições inadequadas,
colocando em risco a saúde da população.
No que reporta ao caso em apreço, tem-se que as péssimas
condições em que se encontra o estabelecimento denominado Matadouro Esperança faz
incidir a providência estampada no inciso V do referido dispositivo:
"Art. 2º - Sem prejuízo da responsabilidade penal cabível, a infração à legislação referente aos produtos de origem animal acarretará, isolada ou cumulativamente, as seguintes sanções: (...) V-. Interdição, total ou parcial, do estabelecimento, quando a infração consistir na adulteração ou falsificação habitual do produto ou se verificar mediante inspeção técnica realizada pela autoridade competente, a inexistência de condições higiênico-sanitárias adequadas".
Vislumbra-se, portanto, que a situação fática encontrada
subsume-se no disposto no artigo 2º, VI, da Lei Federal n.º 7.889/89, o qual determina
claramente a interdição do estabelecimento quando a inspeção realizada pelo órgão técnico
concluir que não há as mínimas condições higiênico-sanitárias para as atividades exercidas.
21
No caso do requerido foram realizadas várias vistorias e, a
cada uma delas, observou-se que as condições pioravam, de forma renitente, mesmo após
as recomendações e indicação de melhorias para sua adequação à legislação de regência.
Portanto, a desobediência a normas básicas de higiene na
produção e comercialização de produtos de origem animal é uma constatação irrefutável.
Nesse toar, a legislação pátria determina a proteção da
população não só no âmbito da saúde pública, mas estende seus tentáculos também para o
albergue dos direitos enquanto consumidora dos mesmos produtos.
Dessarte, dos fatos expostos, nota-se que a conduta do
requerido malfere os direitos básicos do consumidor e de saúde pública e os mais
comezinhos princípios que regem as relações de consumo.
O artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor – Lei
8.078/90, assim dispõe:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
O reportado dispositivo legal enfatiza que dentre os direitos
básicos do consumidor esta a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos
provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou
nocivos.
Assim, a ausência de condições mínimas de higiene e a total
desrespeito às normas para o correto abate de animais pelo requerido, traz sérios riscos a
saúde dos consumidores locais, expondo, portanto, ao perigo constante de doenças e os
privando de um de seus direitos sociais.
22
Infere-se ainda do 4º do Código de Defesa do Consumidor as
diretrizes básicas (princípios) da Política Nacional de Relações de Consumo que tem por
objetivo: “(...) o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: ... d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho;”.
Conforme ensina Newton de Lucca os princípios estampados
no artigo 4º do CDC, informam e balizam toda a sistemática de interpretação do CDC: “...
o artigo 4.º mais do que simples regras, estabelece verdadeiros princípios jurídicos. O
reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo é, efetivamente, um
princípio (inciso I). ... De toda a sorte, a par da possível discussão sobre a estrutura das normas
integrantes do CDC, o que me parece importante concluir, por ora, é que os demais artigos do
Código devem ser interpretados em sintonia com estes princípios estampados no art. 4º,
prevalecendo, na hipótese de conflito, o princípio no lugar da regra”.Grifo Nosso - (LUCCA,
de Newton. Direito do Consumidor – Aspectos práticos, perguntas e respostas – Vol.10.
São Paulo: RT,1995, pág.176).
Destarte, os princípios que regulamentam a Política Nacional
de Relações de Consumo dispostos no artigo 4.º, além de informar todo o sistema
consumerista, estabelecem diretrizes para a atuação governamental visando a preservação
do equilíbrio nas relações de consumo, atendendo sempre as necessidades básicas dos
consumidores, entre elas, a saúde.
Trazendo, então, a discussão para o âmbito do caso concreto
em apreço, verifica-se que o requerido viola tais princípios básicos, proporcionando risco à
saúde dos consumidores dos produtos oriundos de seu estabelecimento, ante as más
condições de higiene e falta de estrutura sanitária necessária, gerando ainda com o
desempenho de suas atividades em tais condições, mal estar à população local, visto que
em decorrência da ausência das condições mínimas, gera-se mal cheiro, sem falar na
possibilidade concreta de contaminação do meio ambiente local por força do não
tratamento adequado dos dejetos provenientes do desempenho irregular da apontada
23
atividade, diante do que impõe-se a determinação ao requerido que cesse suas atividades
até efetivamente regularize a sua atividade de acordo com a legislação sanitária e
ambiental.
De mais a mais, próprio Código de Defesa do Consumidor,
em seu o artigo 8.º preleciona:
“Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo, não acarretarão riscos á saúde ou segurança dos consumidores, excetos os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar informações necessárias e adequadas a seu respeito”.
No apontado dispositivo, conforme ensina Eduardo Gabriel
Saad, “abriga-se no caput do artigo, a regra geral de que os produtos e serviços colocados no
mercado, à disposição do consumidor, não lhe devem por em risco a saúde ou segurança...
Observe-se que o dispositivo, alude à risco á saúde ou segurança, o que revela ser a prevenção a
meta fundamental deste código. Para atuar, não aguarda a manifestação do dano de
responsabilidade do fornecedor. Em havendo risco ou probabilidade de o produto ou serviço
serem nocivos á saúde do consumidor ou à sua segurança, o fornecedor é passível de sanções” .
(SAAD, Eduardo Gabriel.Comentários ao Código de defesa do Consumidor. São Paulo:LTR -
2ªEdição – pg.162/163).
Oportuno, ainda, trazer a colação a lição de Antonio Herman
de Vasconcelos que preleciona que a exceção feita pelo artigo 8º “... disciplina a
periculosidade inerente, vale dizer, aquela que é indissociável do produto ou serviço, SEM
SIMILARIDADE COM A PERICULOSIDADE ADQUIRIDA AO LONGO DO PROCESSO DE
CONSUMO” – grifo nosso – (BENJAMIN, A. Herman de. Comentários ao Código de proteção ao
consumidor. São Paulo: Saraiva p. 47), justamente o tipo periculosidade que se apresenta no
caso em comento, a qual deve ser afastada do mercado de consumo, evitando-se, assim, os
riscos concretos de prejuízos à saúde dos consumidores.
Depreende-se ainda do codex consumerista o artigo 18, § 6º,
inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, ao cuidar da responsabilidade do
fornecedor por vício do produto e do serviço, dispõe:
24
"Art. 18.
(...) § 6º - São impróprios ao uso e consumo: (...) II – os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação" (grifei).
O dispositivo vem na esteira do que preleciona o citado artigo
6º, I, ao prescrever que são direitos básicos do consumidor. A primeira seção do capítulo
IV do Código consumerista é destinada justamente às normas de proteção à saúde e à
segurança do consumidor.
Para além disso, o mesmo codex estabelece que a prática
comercial efetivada pelo estabelecimento, colocando no mercado de consumo produtos de
origem animal sem qualquer fiscalização dos órgãos de inspeção sanitária, ou seja, em
"desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação" é
abusiva, conforme se lê claramente no inciso VIII do artigo 39:
"Art. 39 - É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos competentes..." (grifei).
É evidente, portanto, no caso em apreço, a afronta às normas
de proteção à saúde pública e ao consumidor, colocando em risco potencial a saúde de
todos aqueles que tiverem acesso aos produtos gerados no estabelecimento, vez que ao
abater animais para açougue, impróprios ao consumo, o requerido praticou verdadeiro
atentado contra direitos básicos do consumidor, notadamente, a dignidade, a vida e a
saúde, protegidos no artigo 6º da lei de regência.
Diante de toda a normativa vigente, é inaceitável que o
cidadão seja exposto ao consumo de produtos oriundos de estabelecimento que trabalhe
sem as mínimas condições higiênico-sanitárias. Do mesmo modo, é inconcebível e
ofensivo à dignidade a submissão do cidadão a condutas como a do requerido.
25
Mesmo após todas as inspeções realizadas, o requerido nem
sequer esboçou progresso, no sentido de adequar a estrutura do estabelecimento e dos
equipamentos ali utilizados às normas legais. Pelo contrário, persiste na prática abusiva e
danosa dos abates, sem contar com os favores políticos e, com o conseqüente comércio
ilegal de produtos de origem animal, o que demanda a imediata cessação das atividades.
Nesse sentido, colhe-se da jurisprudência:
“DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ABATEDOURO COQUEIRO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES HIGIÊNICO-SANITÁRIAS PARA PERMANECER EM ATIVIDADE. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. ABSTENÇÃO DAS ATIVIDADES DE ABATEDOURO DE ANIMAIS ATÉ QUE O ESTABELECIMENTO SE COADUNE COM AS NORMAS DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA E AO MEIO AMBIENTE. APELO DESPROVIDO. A renitente conduta externada pelo requerido revela desvalor para com as normas de proteção à saúde e aos direitos básicos do consumidor e traduzem alto potencial de ofensividade à ordem pública. Isto porque atinge um número indeterminado de pessoas, de modo difuso, sendo de rigor, em casos que tais, a interdição do estabelecimento. .” (APELAÇÃO CÍVEL 70005762075, RELATOR DES. TÚLIO DE OLIVEIRA MARTINS, 1ª CÂMARA ESPECIAL CÍVEL, JULGADO EM 25/08/03).
É de se destacar também, que a Lei Estadual 1.232/91, o
Decreto Federal n.º 64.704/69 e Portaria do IAGRO, a primeira regulamentando e
obrigando a prévia inspeção sanitária de animais nos matadouros e frigoríficos, o segundo
regulamentando que esta atividade de inspeção e de competência exclusiva de médico
veterinário e, por fim, a portaria do IAGRO que entre os outros artigos, proíbe a entrada
de animais e qualquer dependência de matadouros/frigoríficos sem o prévio conhecimento
do serviço de inspeção estadual.
Assim, não atendendo o aludido abatedouro aos requisitos
mínimos estabelecidos pela legislação federal e estadual (Leis federais 5.517/68, 1.283/50,
5.760/71, 69.502/71, 7.889/89, Decretos 64.704/69, 30.691/52, 73.116/73, 78.713/76,
1.255/62, 1.236/94, 1.812/96, 2.244/97, Lei Estadual 1232/91, Portaria do Ministério da
Agricultura 304/96 e Portaria do IAGRO 434/2002, evidenciando, por si só, sua
precariedade, tornando-se necessária a regularização primeiro para posteriormente lograr-
se o funcionamento.
26
É de bom alvitre frisar que todo estabelecimento comercial
que se propõe a industrializar produtos destinados à alimentação humana deve estar
consciente da sua responsabilidade junto à Saúde Pública e deve procurar tanto no que se
refere às instalações, como no que se refere aos equipamentos, o mais absoluto estado de
conservação, mesmo que isto ocasione parar a industrialização por algum tempo para
reparos, porque o importante é salvaguardar a Saúde Pública.
Destarte, diante dos documentos que instruem a inicial e do
narrado alhures, verifica-se que o estabelecimento do requerido não apresenta condições
ideais sanitárias e de higiene, revelando-se deste conjunto o risco iminente á saúde dos
consumidores que adquirirem a carne abatida, na medida em que poderá ser contaminada
por diversas doenças infecto-contagiosas, não possuindo ainda a mínima infra-estrutura de
instalação para o abate de animais, tendo sido autuado por diversas vezes
administrativamente em razão de tais irregularidades.
3.2 Da imperiosa conservação e preservação do meio ambiente no exercício de
atividade econômica: princípio do desenvolvimento sustentável.
A Carta Ápice estabelece no seu art. 170, caput, prescreve que
a ordem econômica e financeira deste país funda-se na livre iniciativa e tem por azo
assegurar uti universi a existência digna, sob os ditames da justiça social, observados os
princípios que o Poder Constituinte elegeu como relevantes.
O inciso VI deste artigo estabelece que a defesa do meio
ambiente, inclusive com tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, é também postulado do
exercício da atividade econômica e financeira.
Diante do claro comando constitucional, usando a técnica de
hermenêutica constitucional da ponderação de valores, é lídimo arregimentar cultores para a
única interpretação possível: a de que foi instituída no Brasil uma ordem econômica que
27
aceita a livre iniciativa, mas admite a presença do Estado para regular e intervir em pontos
estratégicos e relevantes para o seu próprio desenvolvimento. Sobre essa técnica de
interpretação, não é debalde citar Luís Roberto Barroso (in Interpretação e Aplicação da
Constituição, 5a ed., Ed. Saraiva, pág. 330):
“A denominada ponderação de valores ou ponderação de interesses é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição.”
Em decorrência, extrai-se deste excerto da redação
constitucional o fundamento da adoção pelo legislador magno do princípio do
desenvolvimento sustentável, vigorante em nosso ordenamento jurídico. É o que também
preleciona o insigne Paulo de Bessa Antunes (in Direito Ambiental, 7a ed., Ed. Lumen Juris,
2004, pág. 19), o qual acentua, com muita propriedade, a urgência de inversão de
paradigmas para a auto-preservação da vida, in verbis:
“A concepção do desenvolvimento sustentado tem em vista a tentativa de conciliar a preservação dos recursos ambientais e o desenvolvimento econômico. Pretende-se que, sem o esgotamento desnecessário dos recursos ambientais, haja a possibilidade de garantir uma condição de vida mais digna e humana para milhões e milhões de pessoas, cujas atuais condições de vida são absolutamente inaceitáveis.
Diante daquilo que foi dito acima, fica claro que a efetivação do princípio de proteção ao meio ambiente como princípio econômico implica, obrigatoriamente, a mudança de todo o padrão e do conceito de desenvolvimento econômico. É na busca de tais modificações que temos visto o surgimento de um imenso movimento de massas que se organiza em escala planetária na defesa do meio ambiente e da qualidade de vida.”
Desta forma, é cogente e premente a necessidade de o Poder
Público intervir no matadouro, não como forma de impedir o desenvolvimento econômico,
porém como meio de assegurá-lo com sustentabilidade. E a forma comumente utilizada
pelo Estado para preservar os recursos ambientais, de forma a possibilitar o
ecodesenvolvimento, faz-se pela exigência de licenciamento ambiental para o exercício de
atividades potencialmente poluidoras.
28
3.3 Da necessidade de licenciamento ambiental para a atividade de abate de reses
bovinas.
A Resolução CONAMA n.º 237/97 veio ao anseio do que
propusera a Lei n.º 6.938/81, que previu no art. 9o, IV, o licenciamento e a revisão de
atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
Para a atividade referida nesta inicial, a competência
administrativa para licenciar seria, de qualquer forma, do Estado de Mato Grosso do Sul,
seja pela Lei n.º 6.938/81 ou pela Resolução CONAMA n.º 237/97, art. 5º.
Lobriga-se ser a atividade de abate de reses potencialmente
poluidora, já que gera resíduos, os quais são direcionados ao curso d’água próximo
(Córrego da Onça), podendo causar contaminação tanto do solo como do rio se os
efluentes lançados não tiverem tratamento e destinação adequados. Juridicamente também,
porque foi a atividade prevista na própria Resolução CONAMA n.º 237/97, a qual
enumerou os empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental no seu anexo I.
Dentre os empreendimentos, interessa o item “Indústria de
produtos alimentares e bebidas”, o qual exemplifica com “matadouros, abatedouros,
frigoríficos, charqueadas e derivados de origem animal”. Ou seja, precisa ser licenciada
toda atividade que explore economicamente o abate de animais, seja matadouro,
abatedouro ou frigorífico.
Da mesma sorte, o licenciamento foi exigido pelo Decreto
Estadual n.º 11.204/03, anexo I, X. Transcreve-se o texto do anexo do referido Decreto
Estadual, para clarificar ainda mais :
“Anexo ao Decreto N.º 11.204, de 7 de maio de 2003.Empreendimentos e Atividades sujeitas ao licenciamento ambiental estadual:(...)X - unidades e complexos industriais e agroindustriais, petroquímicos, siderúrgicos, cloroquímicos, destilarias de álcool, usinas de açúcar, hulhas, extração e cultivo de recursos hidróbios;” (grifamos).
29
Destarte, conclui-se que os matadouros necessitam de licença
ambiental para poderem exercer sua atividade econômica.
3.4 Da inobservância do limite de abate diário de reses, uma das condicionantes da
licença de operação.
O matadouro Esperança possuía licença de operação n.º
227/2002, expedida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente em 10 de outubro de
2002 e válida até 10 de outubro de 2006. Somente com a licença de operação pode
funcionar um empreendimento efetiva ou potencialmente poluidor, conforme regra do art.
8o, III, da Resolução CONAMA n.º 237/97, constante do corpo do próprio documento.
O empreendimento estava autorizado a funcionar para
abate de dez cabeças por dia, conforme referida licença. Porém, consoante documentação
de controle expedida pelo IAGRO, o matadouro Esperança, por inúmeras vezes,
desrespeitava a licença de operação que possuía, abatendo mais reses do que o licenciado.
A conduta do empreendedor é criminosa e é tipificada no
art. 60 da Lei de Crimes Ambientais, cuja pena varia de um a seis meses de detenção e/ou
multa, já que descumpriu as condicionantes da licença que possuía, consoante magistério
de Paulo Affonso Leme Machado (in Direito Ambiental Brasileiro, 11a ed., Ed. Malheiros,
2003, pág. 271):
“Essa segunda parte do art. 60 criminaliza o descumprimento do conteúdo da autorização e/ou da licença. Caso contrário, a licença e/ou autorização se converteriam em um mero formalismo, numa proteção fictícia ao meio ambiente” (grifamos).
Apenas se menciona isso para conhecimento, já que a
responsabilidade penal será objeto de investigação policial própria. Mas, a par da
responsabilidade penal e administrativa, é certo que pode haver responsabilização cível em
virtude do descumprimento proposital das condicionantes da licença de operação. Nesse
diapasão, menciona-se o escólio de Marcos Destefenni (in A Responsabilidade Civil
30
Ambiental e as Formas de Reparação do Dano Ambiental, 1a ed., Ed. Bookseller, 2005,
pág. 143):
“Isso implica dizer que para o agente econômico, como o pagamento da indenização, não deverá restar qualquer dos benefícios obtidos com a sua produção ou com a omissão em sua prevenção. Além disso, a esse montante deverá ser acrescido um valor que, efetivamente, desequilibre a relação custo-benefício realizado pela atividade econômica, através de sua racionalidade meio-fim”
Para facilitar a compreensão e a exposição fática, será
analisada a tabela abaixo, que demonstra o número mensal de abates. Alerta-se que
ocorreram infrações ambientais em praticamente todos os meses da tabela, já que,
observados os mapas de abate em anexo, de posse do IAGRO, percebe-se que mesmo
nos meses de pouco movimento, houve abates diários superiores ao limite de 10 reses
por dia, como é o exemplo do mês de maio de 2003, com 61 abates no mês, mas
concentrados em apenas cinco dias. Confira-se a tabela:
PERÍODO (MÊS E ANO) NÚMERO DE RESES ABATIDASJANEIRO/2003 91FEVEREIRO/2003 75*MARÇO/2003 61ABRIL/2003 64MAIO/2003 61JUNHO/2003 68JULHO/2003 84AGOSTO/2003 78SETEMBRO/2003 62OUTUBRO/2003 86NOVEMBRO/2003 69DEZEMBRO/2003 48JANEIRO/2004 61FEVEREIRO/2004 95MARÇO/2004 161ABRIL/2004 94MAIO/2004 Não informadoJUNHO/2004 249JULHO/2004 309AGOSTO/2004 347*SETEMBRO/2004 400*OUTUBRO/2004 INTERDITADONOVEMBRO/2004 593*DEZEMBRO/2004 675*JANEIRO/2005 541*FEVEREIRO/2005 399*MARÇO/2005 410*ABRIL/2005 464*MAIO/2005 542JUNHO/2005 506JULHO/2005 542AGOSTO/2005 488
31
* o total dos abates foi obtido com a soma das reses informadas nos dois totais apresentados, já
que cada total corresponde a período diferente de dias dentro do mesmo mês
Percebe-se, como narrado alhures, que há meses em que a
soma dos bovinos abatidos é maior do que o décuplo do número de dias do mês,
incluindo sábados, domingos e feriados, o que significa que o matadouro, ainda que
funcionasse ininterruptamente no período, sem pausa nos dias de descanso e finais de
semana, extrapolaria a cota permitida na licença.
Outrossim, essa ampliação da capacidade de operação do
estabelecimento comercial demandado sem que estivesse para tanto licenciado
indiscutivelmente reflete no sistema de tratamento de efluentes líquidos oriundos da
atividade industrial agropecuária. Por certo que, se serão abatidas mais reses do que a
quantidade prevista e permitida, aumentará a vazão de efluentes líquidos, os quais serão
destinados ao curso d’água próximo. Isso gera a necessidade de ampliação também do
sistema de tratamento de efluentes, conforme foi detectado no laudo técnico produzido
pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, confeccionado a pedido do Ministério
Público. Extrai-se do corpo do laudo:
“Sendo assim, recomenda-se um melhor planejamento do sistema de tratamento de efluentes, seja aumentado o número de lagoas ou a área das mesmas, o que deve estar de acordo com a vazão de entrada de efluente nas lagoas (BRANCO, 1986), principalmente tendo em vista o aumento do número de abates de 10 para 50 cabeças por dia. Este dimensionamento deve ser estipulado pelo órgão fiscalizador competente”
O desrespeito a uma das condicionantes da licença de
operação gera a possibilidade de interdição ou embargo da obra ou atividade, consoante
art. 72, § 7o, da Lei n.º 9.605/98. Tal possibilidade vem disciplinada também no Decreto n.º
3.179/99, que regulamentou o diploma legislativo, precisamente no art. 2o, §7º. Na omissão
da autoridade administrativa, é lícito ao Judiciário supri-la, o que autoriza a ilação de que o
Estado-Juiz pode diretamente determinar esse embargo ou condenar na obrigação de não-
fazer (não abater mais do que o permitido na licença, com fixação de multa em caso de
descumprimento). A respeito, é útil o magistério de Daniel Roberto Fynk (in Aspectos
Jurídicos do Licenciamento Ambiental, 3a ed., Ed. Forense Universitária, 2004, pág. 87):
32
“A violação ou o descaso da Administração para com os princípios que regem o procedimento de licenciamento ambiental podem e devem ser objeto de análise mais detida do Poder Judiciário. Isso porque, conforme se afirmou, na qualidade de ente destinado à prestação de serviços capazes de satisfazer às necessidades dos indivíduos, a Administração Pública está obrigada a prestar esse serviço público, com continuidade e eficiência. Caso contrário, está sujeita ao controle judicial de seus atos e omissões.”
3.5 Do tratamento ineficiente dos efluentes e da classificação hídrica do Córrego do
Onça.
Conforme foi consignado na síntese fática, o matadouro, que
mudou de nome e de proprietário por várias vezes, jamais possuiu um sistema de
tratamento de efluentes adequado. Em 1993 isso simplesmente não existia. Em 1996 era
ineficiente e as falhas do sistema permaneceram e permanecem até agora.
Para saber se há poluição de um curso d’água, deve-se
primeiro saber qual é a sua classificação hídrica.
A classificação hídrica é atualmente efetuada pela Resolução
n.º 357/2005 do CONAMA, a qual estabeleceu classes para os três tipos de água existentes:
águas doces, águas salinas e águas salobras. O CONAMA pode estabelecer as classes de
águas com base no art. 10 da Lei n.º 9.433/97, que remeteu à legislação ambiental a
classificação dos recursos hídricos; essa competência normativa foi outorgada ao referido
colegiado pela Lei n.º 6.938/81, com espeque no art. 6o, VII, pois compete ao CONAMA
estabelecer critérios, normas e padrões relativos ao controle da qualidade ambiental, com
vista ao uso sustentável dos recursos, especialmente os hídricos.
33
Não precisa ser experto em biologia para saber que as águas do
Córrego do Onça são consideradas águas doce, já que, se fossem salinas ou salobras, seriam
praticamente inviáveis ao consumo humano. De qualquer modo, o laudo pericial produzido
pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul foi categórico em afirmar que as águas
deste curso d’água são do tipo doce.
A referida Resolução, que revogou a pretérita Resolução n.º
20/86, dispôs que o enquadramento dos recursos hídricos seriam feitos de acordo com as
normas e procedimento dos Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos,
consoante art. 38, caput. Todavia, como não existe tal enquadramento ainda, a Resolução
tomou o cuidado de classificar todos os corpos d’água doce como de classe 2, conforme
inteligência do art. 42 da aludida Resolução.
Ainda como disposição final e transitória, o art. 43 da
Resolução outorgou ao órgão ambiental competente para licenciar a atividade a
discricionariedade para dilatar em mais três anos o prazo do empreendedor para adequar-se
às exigências mais rigorosas da atual norma ambiental. A intelecção do dispositivo revela
que a SEMA/IMAP, órgão responsável pelo licenciamento da atividade, poderia, caso
presente o interesse público, prorrogar o prazo do réu para adequar-se ao padrão ambiental
mais rígido estabelecido na nova resolução.
O mesmo não vale na hipótese de a Resolução manter o
mesmo padrão ambiental exigido da revogada Resolução n.º 20/86, pois aí o empreendedor
não terá nenhum prazo para adaptar-se, já que deveria, para realizar sua atividade, estar
dentro dos parâmetros preconizados. E a Resolução CONAMA n.º 357/05 manteve os
mesmos índices de oxigênio dissolvido e de sólidos totais dissolvidos, anteriormente
exigidos pela Resolução n.º 20/86, para os corpos d’água do tipo doce, classe 2, quais
sejam: oxigênio dissolvido não inferior a 5,0 mg.l-1; sólidos totais dissolvidos no valor
máximo de 500,0 mg.l.
Essa assertiva pode ser constatada pela comparação entre as
resoluções, já que o índice para sólidos totais dissolvidos previsto na tabela do art. 4o da
34
Resolução CONAMA n.º 20/86 é o mesmo prescrito no art. 14, II, c/c art. art. 15, caput, da
Resolução CONAMA n.º 357/05; o índice para oxigênio dissolvido (OD) previsto no art.
5o, “f”, da Resolução CONAMA n.º 20/86 é o mesmo previsto no art. 15, VI, da
Resolução CONAMA n.º 357/05.
A pedido do Ministério Público, foram elaborados laudos
periciais pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul para verificar a qualidade das
águas do Córrego do Onça, receptor dos efluentes líquidos do matadouro. Para tanto, as
peritas coletaram amostras em quatro pontos: na saída da última lagoa de tratamento
(ponto 1), a montante da entrada do efluente (ponto 2), na entrada do efluente no córrego
(ponto 3) e a jusante da entrada do efluente (ponto 4). Em relação aos organismos
aquáticos, foram coletadas amostras apenas nos pontos 3 e 4.
Um dos laudos foi realizado sob o prisma da Resolução n.º
20/86 do CONAMA; como essa resolução foi revogada pela Resolução CONAMA n.º
357/2005, outro laudo foi pedido à UEMS pelo Ministério Público, para que se tivesse
parâmetro nos índices exigidos na nova normatização. Observa-se que o matadouro
desobedecia os parâmetros ambientais fixados em ambas as resoluções do CONAMA,
os quais são os mesmos para sólidos dissolvidos e oxigênio dissolvido , como destacado
nos laudos periciais, razão pela qual que não se pode admitir que tenha nenhum lapso de
tempo para adaptação.
Foi exposto na perícia que o sistema de tratamento de
efluentes do matadouro é composto por três lagoas de estabilização, com a finalidade de
permitir a depuração do efluente antes que atinja o corpo receptor (Córrego do Onça). A
perícia afirmou, categoricamente, que o efluente originário das lagoas de decantação,
em especial da última lagoa, onde foi colhida a amostra, contém índices inaceitáveis de
oxigênio dissolvido, sólidos totais dissolvidos e condutividade elétrica. O estudo foi
categórico: o sistema de tratamento de efluentes do empreendimento é ineficiente, ou
seja, não consegue filtrar as substâncias poluentes do líquido que é lançado no curso
d’água.
35
O último laudo comparou os índices obtidos na análise com
os parâmetros exigidos pela Resolução n.º 357/05, que nesses índices repetiu o que
dispunha a Resolução n.º 20/86, in verbis:
“A água proveniente da última lagoa de tratamento (Ponto 1) apresentou valores inaceitáveis para os parâmetros de oxigênio dissolvido (valor obtido: 1,8 mg.1-1; CONAMA/357/05: igual ou superior 5,0 mg.1-1), sólidos totais dissolvidos (valor obtido: 730,0 mg.1-1; CONAMA 357/05: valor máximo: 500,0 mg.1-1) e condutividade elétrica (valor obtido: 1.444,0 µS.cm-1)(...)Portanto, o sistema de tratamento de resíduos do frigorífico não está sendo eficiente no processo de depuração dos efluentes líquidos gerados pela empresa.” (grifamos).
Contribuem para a ineficiência desse sistema de tratamento:
a) o desrespeito às condicionantes da licença de operação, uma vez que, ao abater acima da
capacidade permitida, acaba o matadouro por saturar as lagoas de estabilização, com
aumento não comportado de efluentes direcionados ao corpo receptor; b) falta de limpeza
constante das lagoas, com retirada do material sedimentado em seu fundo. Repete-se, neste
ponto, o laudo pericial referido, transcrevendo-se parte dele já transcrita anteriormente:
“Sendo assim, recomenda-se um melhor planejamento do sistema de tratamento de efluentes, seja aumentado o número de lagoas ou a área das mesmas, o que deve estar de acordo com a vazão de entrada de efluente nas lagoas (BRANCO, 1986), principalmente tendo em vista o aumento do número de abates de 10 para 50 cabeças por dia. Este dimensionamento deve ser estipulado pelo órgão fiscalizador competente.Além disso, mesmo antes do aumento previsto, o proprietário do frigorífico deverá providenciar a retirada do material sedimentado no fundo das lagoas, pois este material acumulado é um dos fatores responsáveis pela ineficiência do processo de depuração do efluente.”
A situação só não é mais grave porque o Córrego do
Onça, por enquanto, está agüentando. A perícia detectou que a depuração de efluentes,
que deveria ser realizada no sistema de tratamento da empresa, acaba ocorrendo no
córrego. Mas isso não elide a responsabilidade do empreendedor, já que deve ser
compelido judicialmente a obrar para que o filtro dos resíduos líquidos tenha a
eficiência adequada, bem como condenado pelo tempo em que não procurou adequar
seu sistema à necessidade empírica.
36
3.6 Da obrigação de redução do índice de condutividade elétrica por força do
princípio da prevenção/precaução.
En passant, Paulo de Bessa Antunes (op. cit., págs. 35-37)
aponta diferenças entre o princípio da prevenção e da precaução. Para o renomado autor,
conquanto haja semelhanças entre os postulados, não se confundem, pois o princípio da
precaução quer evitar intervenções antrópicas na natureza sem que se saiba, com o mínimo
de certeza, se não serão nocivas. Por outro lado, o princípio da prevenção obsta essas
mesmas intervenções cujos impactos ambientais nocivos já são conhecidos
cientificamente.
Por seu turno, Édis Milaré (op. cit., pág. 144) defende que se
utilize sempre a expressão “princípio da prevenção”, porquanto prevenção é vocábulo de
significado semântico mais amplo que precaução, englobando-a. Utilizar-se-á, pois, a
terminologia deste jurisconsulto. E ele define o postulado em argutas palavras, com base
em lições de Ramón Martin Mateo e Fábio Feldmann:
“O princípio da prevenção é basilar em Direito Ambiental, concernindo à prioridade que deve ser dada às medidas que evitem o nascimento de atentados ao ambiente, de modo a reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar a sua qualidade.Tem razão Ramón Martin Mateo quando afirma que os objetivos do Direito Ambiental são fundamentalmente preventivos. Sua atenção está voltada para o momento anterior à da consumação do dano – o do mero risco. Ou seja, diante da pouca valia da simples reparação, sempre incerta e, quando possível, excessivamente onerosa, a prevenção é a melhor, quando não a única, solução. De fato, ‘não podem a humanidade e o próprio Direito contentar-se em reparar e reprimir o dano ambiental. A degradação ambiental, como regra, é irreparável. Como reparar o desaparecimento de uma espécie? Como trazer de volta uma floresta de séculos que sucumbiru sob a violência do corte raso? Como purificar um lençol freático contaminado por agrotóxicos?’. Com efeito, muitos danos ambientais são compensáveis, mas, sob a ótica da ciência e da técnica, irreparáveis.” (grifamos).
O princípio da precaução/prevenção possui imbricação muito
estreita com o princípio do desenvolvimento sustentável, tanto que o fundamento
constitucional é o do art. 225, caput e §1o, V, da Constituição Federal e o fundamento legal
para a prevenção é a Lei n.º 6.938/81, artigos 4o, I e VI, e 9o, III, como lembra o insigne
Paulo Affonso Leme Machado (op. cit., págs. 55-65). Corolário dessa conclusão é a
37
afirmação de que os mesmos fundamentos da Constituição do Estado de Mato Grosso do
Sul são válidos para perceber o substrato preventivo dado à ação do Poder Público como
regra inquebrantável. Particularmente, cabe transcrever o texto da Carta Política Estadual,
art. 222, §2o, II e V:
“Art. 222 (...)§2o (...)II – prevenir e controlar a poluição e seus efeitos;(...)V – prevenir e reprimir a degradação do meio ambiente e promover a responsabilização dos autores de condutas lesivas;” (grifamos).
E mais, as convenções internacionais assinadas pelo Brasil
impõem ao Brasil a adoção do princípio da precaução, como se verifica do Princípio n.º 15
da ECO 92, versado nesse enunciado:
“Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.”
Destarte, cimentada a premissa de que o princípio em
comento possui carga normativa e vigente no país, conclui-se que ele pode ser invocado
para que o Judiciário condene o empreendedor a adaptar a qualidade do efluente que joga
no Córrego do Onça ao nível de condutividade elétrica aceitável pelos padrões científicos
apontados na perícia.
Deveras, o próprio laudo explica que a Resolução do
CONAMA não prefixa controle para o padrão de condutividade elétrica no efluente
recebido por um curso d’água. No entanto, o laudo pericial produzido pela UEMS
demonstra, com embasamento científico, que “corpos de água com valores de
condutividade elétrica acima de 60 µS.cm-1 são considerados hipereutróficos, ou seja,
apresentando alta concentração de nutrientes e, portanto, impróprios para a sobrevivência
da biota aquática, uma vez que esta condição pode implicar redução das concentrações de
oxigênio dissolvido na água.”
38
Portanto, mesmo que não exigido como índice controlável
pela Resolução CONAMA n.º 357/05, deve a empresa adequar sua emissão de efluentes ao
índice de condutividade elétrica que permita a sobrevivência da biota aquática, qual seja,
abaixo de 60 µS.cm-1, como forma de prevenir o meio ambiente, especialmente a biota
aquática do Córrego do Onça, de lesão de difícil ou incerta reparação.
3.6. da poluição causada pela destinação inadequada dos dejetos sólidos e do sangue,
provenientes do matadouro.
Como dantes apurado, desde 1996 já se sabe que a
destinação do resíduos de sangue, do sobrenadante das lagoas e demais dejetos
sólidos, tais como cabeças, chifres etc., era o “lixão” de Coxim, o que atenta contra o
meio ambiente. Afinal, há possibilidade de contaminação do solo, do lençol freático e
de poluição atmostérica, a qual pode eventualmente ser de tal monta que atinja a
camada de ozônio, assim como afeta o bem estar e a saúde da população vizinha ao
empreendimento, diante do insuportável mau cheiro.
O que é inconcebível é que, de lá para cá, nada mudou. Em
setembro de 2004 o CRMV detectou (item 4.4.12 do laudo):
“Por toda a parte, observa-se o comprometimento com o meio ambiente. Existem tambores e sacos plásticos por todos os lados, contendo restos dos animais, como cascos, ossos, chifres, tripas e sangue.O sangue, em especial, que através da canaleta proveniente da área de sangria, fica depositado num tanque de alvenaria junto ao prédio, ali formando um sedimento em constante estado de putrefação, não existindo nenhum sistema de proteção contra insetos e outros animais, como uma tela. Esse material é recolhido mecanicamente por operários e depositado em galões cobertos por plásticos para serem recolhidos e jogados no lixão da cidade. Pode estar havendo contaminação ambiental naquele local, dependendo da forma de destinação final deste subproduto, uma vez que o mesmo é altamente contaminante, pois é um excelente meio de desenvolvimento de bactérias e outros organismos, como larvas de insetos propagadores de zoonoses”.
Ao invés de procurar corrigir as falhas, o matadouro teimou
em reiterá-las, talvez na crença de que nunca seria punido por isso. Tanto é que em 1o de
39
novembro de 2005 o DIPOA constatou que as infrações ambientais persistem.
Transcreve-se o laudo (f. 5/6 da perícia invocada):
“O sangue é cozido e ‘jogado’ no lixão municipal, numa clara afronta ambiental, pois, ao desprezar o sangue em ambiente inadequado – ‘lixão’ público – deixa-o exposto a toda sorte de destino – material para proliferação de moscas e outros insetos, roedores, e outras pragas urbanas. Ainda, devido à quantidade de material orgânico presente no sangue ser bastante alta, instala-se um processo fermentativo que, além de produzir gases que emanam odores desagradáveis à população, são altamente prejudiciais ao meio ambiente, por ameaçarem, inclusive, a camada de ozônio. (...)Destino do conteúdo estomacal: os bovinos têm uma capacidade estomacal bastante elevada. Estima-se que apenas os resíduos ruminais somem aproximadamente 30 a 50 quilogramas. No estabelecimento em análise, todo este conteúdo é jogado a céu aberto, a menos de 30 metros da área de funcionamento, atraindo um sem número de moscas e aves – urubus, além de possibilitar a contaminação do meio ambiente, pela infiltração de líquidos no solo, expondo à contaminação, inclusive, do lençol freático – Fotos 19, 20, 21, 22 e 23;Destino final do sobrenadante das lagoas de decantação: o sobrenadante das lagoas de decantação deve ser retirado periodicamente, para permitir que os processos de tratamento dos líquidos da indústria ocorram. O sobrenadante, na indústria em análise, composto basicamente por material gorduroso e resíduos do processo de tratamento das lagoas é jogado a céu aberto, juntamente com o conteúdo ruminal, em local próximo ao prédio do abate, colocando em risco a integridade ambiental, dada a possibilidade de contaminação do lençol freático por infiltração no solo – Fotos 19, 20, 21, 22, 23.” (grifamos).
A infiltração no solo, além de poluí-lo, pode eventualmente
atingir lençóis freáticos ou mesmo aqüíferos, ou seja, contaminando a água subterrânea.
Vale até a enumeração de Vladimir Passos de Freitas feita no artigo Sistema Jurídico
Brasileiro de Controle da Poluição às Águas Subterrâneas, o qual aponta expressamente
que a destinação inapropriada de resíduos industriais de matadouros tem esse condão (in
Ed. Plenum, CD de Gestão Pública, setembro de 2005).
“É verdade que as águas subterrâneas estão mais protegidas da poluição que as de rios e lagos. Todavia, elas vêm sendo atingidas cada vez com maior intensidade. São os depósitos irregulares de lixo, usinas de açúcar, destilarias de álcool, curtumes, matadouros, frigoríficos, vazamento em oleodutos, aterros, lixões, insumos agrícolas, fossas sépticas, negligência no encaminhamento de óleo dos postos de gasolina, cemitérios, hipótese esta bem lembrada por Édis Milaré,(14) e outras tantas formas. Ora, se a tendência é a população servir-se das águas subterrâneas e não das superficiais, fácil é ver que delas é preciso cuidar com atenção. É oportuna a advertência de Humberto José Albuquerque de que ‘muitos poços estão poluindo lençóis subterrâneos. E estes demoram
40
alguns milhares de anos para serem despoluídos. Os mananciais não são como os rios, que em 15 a 20 dias se renovam". (grifamos).
O legislador, através da Lei n.º 6.938/81, art. 3o, “a”, definiu
poluição como a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que
direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da
população. Destarte, a interpretação autêntica permite a inferência de que houve poluição
na destinação imprópria dos dejetos e do sangue, no mínimo pela ameaça à qualidade
ambiental do solo e das águas subterrâneas onde os dejetos foram alocados. Outrossim, por
força do dano causado à saúde e bem estar da população, presente à medida que se
verificou o mau cheiro desagradável e risco de propagação de microorganismos
patogênicos nos dejetos sem a ideal deposição.
A destinação adequada desses dejetos deve ser definida pelo
órgão ambiental estatal, diante do comando normativo da Resolução CONAMA n.º 06/88,
previsto no art. 1o e 2o, IV. Conforme esses mandamentos legislativos, deveria ser
informado ao órgão ambiental pelo empreendedor a forma de geração, característica e
destinação final dos resíduos da indústria do matadouro.
Potencialmente a licença ambiental de operação previa
expressamente que o matadouro deveria apresentar, após 30 dias da expedição da licença,
o plano de automonitoramento, mas a indústria ré nunca apresentou tal documentação.
Certamente seria nesse plano que seria informado sobre a geração, característica e
destinação final dos resíduos industriais do matadouro, porém, a conduta do empreendedor,
diante dos dados levantados nos laudos periciais mencionados, gera necessariamente sua
responsabilidade civil pela poluição causada.
3.7 Da responsabilidade objetiva do poluidor.
A Lei n.º 6.938/81, a qual instituiu a Política Nacional do
meio ambiente, conceitua no seu art. 3o o meio ambiente, a poluição e o poluidor. Quanto a
este último, útil é a transcrição da interpretação autêntica do legislador:
41
“Art. 3o – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:(...)IV – Poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;”
Não há dúvida que a requerida seja poluidora, vez que
provocou diretamente a emissão de níveis de ruído em desconformidade com o patamar
aceito pela NBR 10.151, de forma que a pressão sonora emitida pelos geradores da usina
causaram mal estar e desconforto dos vizinhos, além de prejuízos econômicos.
Qual o tipo de responsabilidade para indenizar pelo dano
ambiental? A mesma lei dá a resposta: objetiva. É a feliz redação do art. 14, §1o, da Lei n.º
6.938/81, in verbis:
“Art. 14 – Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não-cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:(...)§1o- Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente de dolo ou culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.”
Portanto, não se discute dolo ou culpa, apenas conduta e nexo
causal. Sobre a recepção pela Constituição dessa regra, colaciona-se ementa de acórdão da
Primeira Turma do STJ no Recurso Especial n.º 467.212, publicado no DJU em
15/12/2003, pág. 193:
“ADMINISTRATIVO. DANO AMBIENTAL. SANÇÃO ADMINISTRATIVA. IMPOSIÇÃO DE MULTA. AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. DERRAMAMENTO DE ÓLEO DE EMBARCAÇÃO ESTRANGEIRA CONTRATADA PELA PETROBRÁS. COMPETÊNCIA DOS ÓRGÃOS ESTADUAIS DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE PARA IMPOR SANÇÕES. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. LEGITIMIDADE DA EXAÇÃO.1."(...)O meio ambiente, ecologicamente equilibrado, é direito de todos, protegido pela própria Constituição Federal, cujo art. 225 o considera "bem de uso comum do provo e essencial à sadia qualidade de vida". (...) Além das medidas protetivas e preservativas previstas no § 1º, incs. I-VII do art. 225 da
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Constituição Federal, em seu § 3º ela trata da responsabilidade penal, administrativa e civil dos causadores de dano ao meio ambiente, ao dispor: "As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados". Neste ponto a Constituição recepcionou o já citado art. 14, § 1º da Lei n. 6.938/81, que estabeleceu responsabilidade objetiva para os causadores de dano ao meio ambiente, nos seguintes termos: "sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade." " [grifos nossos] (Sergio Cavalieri Filho, in "Programa de Responsabilidade Civil")2. As penalidades da Lei n.° 6.938/81 incidem sem prejuízo de outras previstas na legislação federal, estadual ou municipal (art. 14, caput) e somente podem ser aplicadas por órgão federal de proteção ao meio ambiente quando omissa a autoridade estadual ou municipal (art. 14, § 2°). A ratio do dispositivo está em que aofensa ao meio ambiente pode ser bifronte atingindo as diversas punidades da federação.3. À Capitania dos Portos, consoante o disposto no § 4°, do art. 14, da Lei n.° 6.938/81, então vigente à época do evento, competia aplicar outras penalidades, previstas na Lei n.° 5.357/67, às embarcações estrangeiras ou nacionais que ocasionassem derramamento de óleo em águas brasileiras.4. A competência da Capitania dos Portos não exclui, mas complementa, a legitimidade fiscalizatória e sancionadora dos órgãos estaduais de proteção ao meio ambiente.5. Para fins da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, art 3º, qualifica-se como poluidor a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.6.Sob essa ótica, o fretador de embarcação que causa dano objetivo ao meio ambiente é responsável pelo mesmo, sem prejuízo de preservar o seu direito regressivo e em demanda infensa à administração, inter partes, discutir a culpa e o regresso pelo evento.7. O poluidor (responsável direto ou indireto), por seu turno, com base na mesma legislação, art. 14 - "sem obstar a aplicação das penalidades administrativas" é obrigado, "independentemente da existência de culpa", a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, "afetados por sua atividade".8. Merecem tratamento diverso os danos ambientais provocados por embarcação de bandeira estrangeira contratada por empresa nacional cuja atividade, ainda que de forma indireta, seja a causadora do derramamento de óleo, daqueles danos perpetrados por navio estrangeiro a serviço de empresa estrangeira, quando então resta irretorquível a aplicação do art. 2°, do Decreto n.° 83.540/79.9.De toda sorte, em ambos os casos há garantia de regresso, porquanto, mesmo na responsabilidade objetiva, o imputado, após suportar o impacto indenizatório não está inibido de regredir contra o culpado.10. In casu, discute-se tão-somente a aplicação da multa, vedada a incursão na questão da responsabilidade fática por força da Súmula 07/STJ.11. Recurso especial improvido.”
Pelos danos constatados na perícia ao meio ambiente
(tratamento inadequado de efluentes, deposição de resíduos em locais impróprios e mesmo
pelo desrespeito à licença de operação), oriundos do nexo causal da atividade nociva ao
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meio ambiente, deve o empreendedor ser responsabilizado na esfera cível, apreciando o
elemento subjetivo de forma objetiva, com base também na doutrina do risco integral da
atividade.
3.8 Da responsabilidade do Estado por omissão na polícia administrativa do meio
ambiente
Abriu-se esse tópico na finalidade de enfrentar ponto
importante da eventual lide, quiçá já subentendida pelo Juízo. Conquanto tenha a indústria
contribuído para a degradação ambiental, o Estado de Mato Grosso do Sul também possui
parcela de responsabilidade, a qual merece enfoque distinto, inclusive pelo prisma
constitucional, art. 37, §6o, da CF.
Se o Estado procurasse exercer seu poder de polícia na área
ambiental, certamente não se chegaria ao intolerável descaso constatado com os recursos
naturais. Anotam com precisão Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e
Nelson Nery, citados por Marcos Destefenni (A Responsabilidade Civil Ambiental e as
Formas de Reparação do Dano Ambiental, 1a ed., Ed. Bookseller, 2005, pág. 162):
“O Poder Público sempre poderá figurar no pólo passivo de qualquer demanda dirigida à reparação de bem coletivo violado: se ele não for responsável por ter causado diretamente o dano, por intermédio de um de seus agentes, o será ao menos solidariamente, por omissão no dever que é só seu de fiscalizar e impedir que tais danos aconteçam.”
In casu, a responsabilidade por omissão do Estado agiganta-
se, haja vista que o Estado sabia que estava o meio ambiente em risco de poluição.
Explica-se: ao conceder a licença de operação, o Estado de Mato Grosso do Sul impôs que
o empreendedor apresentasse um plano de automonitoramento, referido em item anterior
desta vestibular, e laudos trimestrais de análise da qualidade de efluente líquido emitido
pelo sistema.
Os dados que constariam desses dois documentos, os quais
nunca foram apresentados pelo matadouro nem exigidos pelo Estado, eram de vital
importância para que se fiscalizasse o cumprimento das condicionantes da licença de
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operação, a eficiência do sistema de tratamento de efluentes, a destinação dos outros
resíduos. Assim, poderia o ente público determinar as providências necessárias tão logo
surgissem irregularidades, ou mesmo embargar ou suspender, total ou parcialmente, a
atividade, por meio de polícia administrativa.
Mas o Estado jamais exigiu esses estudos de uma
atividade poluidora a qual era de sua ciência estar sendo desenvolvida, tanto que
licenciou o empreendimento. Não era, pois, clandestino.
Além disso, o IAGRO, autarquia estadual, realizava o
controle pelos mapas de abate. Tanto que sabia, desde 2003, qual a quantidade de
abates realizados no empreendimento no mês.
Era dever do IAGRO repassar essas informações à SEMA e,
se isso não foi feito, ou se foi e nada foi feito, foi descaso dos entes públicos envolvidos,
de modo que a responsabilidade do Estado é notória, pois sabia que a licença de
operação estava sendo descumprida.
A doutrina moderna demonstra que a responsabilidade do
Estado, mesmo que o ato ilícito seja de terceiro, é solidária, por culpa in vigilando ou in
omittendo, como ensina Nelson de Freitas Porfírio Júnior, lembrando posição de Toshio
Mukai (in Responsabilidade do Estado em face do Dano Ambiental, Ed. Malheiros, 2002,
pág. 72). Veja-se acórdão bastante elucidativo da Quarta Turma do Tribunal Regional
Federal da 2a Região, em Agravo de Instrumento n.º 104.105, publicado no DJU no dia
18/09/2003, pág. 167:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO —AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL – CONSTRUÇÃO DE BARRAGEM NO RIO ITAÚNAS – DEFERIMENTO DE LIMINAR PARA PARALISAÇÃO IMEDIATA DA OBRA – MULTA DIÁRIA POR DESCUMPRIMENTO – IMPOSIÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL – INTERESSE DA UNIÃO FEDERAL – VALOR RAZOÁVEL DA MULTA APLICADA – APRESENTAÇÃO DE ESTUDO IMPACTO DE AMBIENTAL ANTES DO INÍCIO DA OBRA – RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AMBIENTAL.1. O legislador ordinário na Lei 7.347/85 (Ação Civil Pública) em seu art. 2º não fixou, de modo expresso, a competência da justiça estadual, como fez o
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constituinte na parte final do art. 109, §3º. Assim, tendo o juiz federal também competência territorial e funcional sobre o local de qualquer dano, não pode ser excluída a competência da justiça federal.2. Desnecessidade de intimação da empresa agravante para que comprove documentalmente a quem pertence o rio Itaúnas, tendo-se em conta o documento de fls. 114/181, onde se afirma que “a bacia do rio Itaúnas está localizada na região localizada ao norte do estado do Espírito Santo, nordeste de Minas Gerais e sul da Bahia”3. Valor razoável da multa: R$100.000,00 (cem mil reais) ao dia, por descumprimento da liminar, em função de ser vultuoso o empreendimento – aproximadamente R$10.500.000,00 (dez mil e quinhentos reais)-, conforme cópia do contrato juntado às fls. 49/52.4. A apresentação de estudo ambiental não é suficiente a garantir a proteção do meio ambiente e a sua regularidade, posto que no Parecer Técnico (documento de fls. 491/494) posteriormente elaborado, foram constatados riscos de impactos ambientais.5. A obrigação de reparação do dano ambiental é objetiva (baseada no risco integral), solidária e imprescritível.6. Havendo relação direita ou indireta entre o dano ambiental e a atividade do poluidor deve ser este considerado sujeito passivo de eventual responsabilidade civil ambiental, sendo também irrelevante a licitude da atividade, pois na ação civil pública ambiental não se discute, necessariamente, a legalidade do ato.7. Agravo não provido.” (grifamos).
4. DO PEDIDO LIMINAR.
Como ensinam os modernos processualistas, o processo é
instrumento de pacificação social, devendo proporcionar tudo aquilo que o autor receberia
não fosse a pretensão resistida do réu.
Ou no dizer do Grande Mestre Cândido Rangel Dinamarco,
em sua magistral obra "A Instrumentalidade do Processo": "a função jurisdicional e a
legislação estão ligadas pela unidade do escopo fundamental de ambas: a paz social."
( "in" ob. cit. p. 159 - 3ª edição -Malheiros Editores).
Emerge da situação fática que a tutela liminar é a única hábil
e capaz a evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação.
A liminar que ora se pleiteia vem prevista no artigo 12, Lei n°
7.347/85: “Poderá o Juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em
decisão sujeita a agravo”, e ainda no parágrafo 3o do artigo 84 do Código de Defesa do
Consumidor: “sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de
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ineficácia da provimento final, e licito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após
justificação previa, citado o réu.”
Ambos os requisitos reclamados para a concessão da liminar
estão presentes, a saber: o fumus boni iuris e o periculum in mora.
No que tange ao primeiro pressuposto, pelos documentos
constantes das cópias de peças dos procedimentos que instruem esta petição inicial, bem
como pela abordagem exaustiva que se fez nesta peça processual, percebe-se que existe
não só a aparência do bom direito, mas sim prova inequívoca dos fatos aqui articulados,
inclusive com vistorias e exames periciais.
O requerido deveria promover a adequação do Matadouro às
exigências de ordem técnica e legal, o que até o presente momento não ocorreu, em virtude
da inércia dos órgãos fiscalizadores (IAGRO e SEMA). Não há dúvida de que a ação e a
omissão dos requeridos violam o direito líquido e certo de toda uma comunidade de
consumir produtos de origem animal em condições satisfatórias de higiene e sanidade,
asseguradas mediante prévia inspeção sanitária, produzidos sem risco de agressão ao meio
ambiente.
Quanto ao segundo requisito, isto é, o risco de dano
irreparável ou de difícil reparação em caso de demora na prestação jurisdicional, restou
igualmente demonstrado.
Como ensina Betina Rizzato Lara, em sua obra "Liminares no
Processo Civil": "a primeira característica da liminar é a urgência, pois visa solucionar
o problema da demora na finalização do processo."( in op. cit. p. 200 - Editora Revista
dos Tribunais).
Com efeito, os técnicos responsáveis pela elaboração dos
laudos que constataram as irregularidades no Matadouro Esperança asseveraram que a
manipulação de carnes em tal estabelecimento, da forma como ocorre, representa sérios
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riscos a saúde pública, uma vez que tais mercadorias são lançadas no comércio sem
qualquer inspeção higiênico-sanitária, deixando o consumidor vulnerável ao contágio de
uma gama infinitas de patologias causadas pela inadequação de condições sanitárias, como
distúrbios gástricos e infecções bacteriológicas a cistocercose e tuberculose.
Ademais, a conduta do requerido em, mesmo após ter sido
instaurado inquérito policial e ter sido interditado seu estabelecimento, continuar abatendo
clandestinamente, alem de diariamente descumprir licença ambiental, já demonstra, de
plano, a má-fé e o descaso para com os direitos que ora se procuram albergar.
Esses fatos associados à sensível piora nas condições do
estabelecimento tornam óbvio o perigo de danos ainda maiores à saúde da população.
Pela seara ambiental, é certo que o exercício da atividade do
matadouro, sem a correta adequação às normas ambientais reproduzidas, acarreta não só o
risco de dano ambiental, como possibilita a efetiva poluição do Córrego do Onça, do solo
onde é destinado os demais dejetos e das águas subterrâneas e lençóis freáticos existentes,
conhecidos ou que ainda poderão ser descobertos.
Pertinente é o magistério de José Carlos Barbosa Moreira, ao
se referir à tutela preventiva dos interesses coletivos ou difusos:
"Se a Justiça civil tem aí um papel a desempenhar, ele será necessariamente o de prover no sentido de prevenir ofensas a tais interesses, ou pelo menos de fazê-las cessar o mais depressa possível e evitar-lhes a repetição; nunca o de simplesmente oferecer aos interessados o pífio consolo de uma indenização que de modo nenhum os compensaria adequadamente do prejuízo acaso sofrido, insuscetível de medir-se com o metro da pecúnia". ( "in" Temas de Direito Processual, Saraiva, 1988, p. 24).
Tal situação não pode prevalecer. Ante o iminente risco à
saúde pública e ao meio ambiente provocado pela irregular atividade do aludido
Matadouro, é de se suspender suas atividades, até que se ajuste às exigências técnicas e
legais.
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Esta providência não pode e não deve aguardar o julgamento
final do feito, sob pena do provimento jurisdicional tornar-se imprestável diante de uma
situação consumada de dano irreparável e de difícil reparação.
Pelo exposto, torna-se mister requerer a Vossa Excelência,
com abrigo no artigo 12, da Lei n° 7.347/85, que seja determinado LIMINARMENTE ao
Matadouro Esperança o cumprimento da seguinte OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER:
Que seja o requerido compelido, imediatamente, a
suspender quaisquer de suas atividades relacionada ao abate e à comercialização de
gado no Matadouro, até que haja adequação às normas legais e técnicas vigentes,
mediante comprovação nos autos, expedindo-se mandado judicial para esse fim,
lacrando-se estabelecimento por Oficial de Justiça, lavrando-se o auto respectivo, até que,
em caráter definitivo, ao final da presente ação, promova o estabelecimento as reformas e
adequações físicas, além das posturas sanitárias e ambientais necessárias à garantia da
saúde pública, pela cabal ausência de risco na comercialização do produto em todas as suas
formas, tudo a ser atestado por final e definitiva perícia dos Órgãos responsáveis.
Devendo-se, inclusive, lacrar seus equipamentos e aparelhos,
tendo em vista que nas constantes interdições do IAGRO, em inequívoca má-fé,
continuava realizando o abate clandestino.
Nos termos do artigo 11, da Lei n° 7.347/85, requer-se a pena
de multa diária, em valor equivalente a 20 (vinte) salários mínimos, por dia, pelo
descumprimento da obrigação de não fazer, a ser revertido ao Fundo Estadual de Direitos
Difusos, sem prejuízo de caracterização de crime de desobediência.
Requer-se, outrossim, seja oficiado aos órgãos abaixo
relacionados para que fiscalizem o cumprimento da medida liminar concedida, realizando
vistorias no estabelecimento com o envio ao Juízo de relatórios mensais das
fiscalizações empreendidas:
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a) às Polícias Civil e Militar desta comarca;
b) ao IAGRO – Agencia Estadual de Defesa Sanitária e Animal e Vegetal de MS - no
Escritório Regional em Coxim;
c) Vigilância Sanitária desta cidade,
d) Secretaria de Estado de Meio Ambiente, pelo setor técnico competente e habilitado para
tanto;
e) Polícia Ambiental;
5. DOS PEDIDOS.
Ante ao exposto, requer o Ministério Público Estadual:
1- A concessão de liminar, inaudita et altera pars (art. 12 da
Lei 7347/85), determinando-se a interdição do Matadouro Esperança, intimando-se o
requerido para que, imediatamente, abstenha-se de proceder ao abate de animais nesse
estabelecimento, sob as penas da lei e fixação de multa diária, a ser revertida pro rata ao
Fundo Estadual de Direitos Difusos e Fundo Estadual do Consumidor;
2- A citação dos requeridos, na pessoa de seus representantes
legais, para contestarem a ação, no prazo legal, sob pena de revelia e confissão,
prosseguindo-se o feito até final sentença;
3. a procedência da ação, condenando-se o Matadouro
Esperança no pagamento das custas, emolumentos e outros encargos, com base no artigo
18, da Lei n° 7.347/85, bem como ao cumprimento da seguinte OBRIGAÇÃO DE NÃO
FAZER:
Paralisação de qualquer atividade no mencionando Matadouro até que suas
instalações e suas atividades se ajustem às normas técnicas e legais pertinentes,
comprovadas nos autos;
E da seguinte OBRIGAÇAO DE FAZER:
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Promover a adequação das instalações e das atividades do Matadouro às exigências
técnicas e legais, sob a supervisão do Ministério da Agricultura e Pecuária e do
Abastecimento e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e do Instituto de Meio
Ambiente (IMAP), em especial: a) dotar o matadouro com os equipamentos e infra-
estrutura higiênico-sanitários exigidos por lei, b) exigir sempre os documentos de
procedência do animal a ser abatido, c) exigir a presença efetiva do médico-veterinário
para inspeção ante e pós-morte do animal abatido, d) limpar constantemente as lagoas de
decantação do sistema de efluentes, e) dar destinação adequada ao sangue, dejetos e
demais resíduos oriundos desta indústria, f) apresentar ao IMAP o plano de
automonitoramento e laudos trimestrais de controle de efluente, consoante estipulado na
licença de operação, g) consertar o vazamento de uma das lagoas de decantação do sistema
de tratamento de efluentes e adequá-las à vazão dos resíduos líquidos.
4 - a fixação de multa diária em caso de descumprimento da
liminar ou da sentença de mérito, sem prejuízo do crime de desobediência, a qual deverá
ser arbitrada em montante considerável;
5 – condenar os réus na obrigação de indenizar pelos danos
causados ao meio ambiente: o Matadouro, por descumprir as condicionantes da licença de
operação, e o Estado de Mato Grosso do Sul por omitir-se em fiscalizar o empreendedor,
mesmo sabendo que ele degradava o meio ambiente, sendo a responsabilidade nessa
indenização solidária, que deverá ser revertida ao a ser revertida pro rata ao Fundo
Estadual de Direitos Difusos e Fundo Estadual do Consumidor;
6 - a publicação de edital no órgão oficial, a fim de que os
interessados possam intervir no feito como litisconsortes, conforme dispõe o art. 94 do
CDC;
7 - a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e
outros encargos, nos temos do artigo 18, da Lei n° 7.347/85;
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8 – A condenação dos réus nas verbas da sucumbência desta
ação, inclusive honorários advocatícios, que deverão reverter ao Fundo Especial de Apoio
ao Desenvolvimento do Ministério Público – FEADMP/MS;
Protesta pela produção de todas as provas admitidas em
direito, em especial vistorias, perícias, inspeções judiciais, documentos, oitiva de
testemunhas e depoimento pessoal do proprietário do matadouro réu.
Dá-se à causa o valor de R$ 200.000,00.
Pede deferimento.
Coxim - MS, 24 de novembro de 2005.
Camila Augusta Mota Calarge Luiz Antônio Freitas de Almeida
Promotora de Justiça do Consumidor Promotor de Justiça do Meio Ambiente
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