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DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: LIÇÕES DOS ANOS FHC Fernando Luiz Abrucio 1 O Estado sofreu intensa transformação nas últimas duas décadas em várias partes do mundo. Entre os aspectos mais importantes desse processo, está a descentralização, pela enorme abrangência de países atingidos, pelos impactos que causou na organização estatal e pela mudança que trouxe às relações entre os governos e a sociedade, aumentando a preocupação com a accountability democrática. Tal importância é destacada pelo estudo de Elaine Kamarck. Analisando 123 nações, a autora constatou que a descentralização foi a segunda forma inovadora mais utilizada nos processos de reforma do Estado, aparecendo em 40% dos casos, e tendo sido ultrapassada apenas pela privatização (KAMARCK, 2000). O tema da descentralização também ganha destaque especial porque é, entre os tópicos de reforma do Estado, o que mais questões abarca. Autonomia local, formas de democracia participativa, racionalização da provisão de serviços, maior liberdade e responsabilidade dos gestores públicos, desigualdades regionais, entre os principais, são aspectos que fazem da descentralização um verdadeiro caleidoscópio. Por conta deste caráter, ela deve intrinsecamente lidar, a um só tempo, com as variáveis do desempenho e da democratização da gestão pública. Nos países onde a organização político territorial foi bastante alterada, a descentralização tornou-se ainda mais relevante. O Brasil está entre estes casos. O processo descentralizador, aqui, foi não só intenso e avassalador, como também influenciou a redemocratização do país, o redesenho da rede de proteção social e a reforma do Estado. A análise dos os caminhos da descentralização, portanto, é um ângulo privilegiado para se compreender a história brasileira recente. O objetivo do artigo é estudar a descentralização adotando uma perspectiva diferenciada da maioria da literatura, que explora tal tema pelo ângulo dos governos subnacionais e seus atores. Sem negligenciar este prisma, o foco principal concentra-se na 1 Doutor em Ciência Política pela USP e professor da PUC (SP) e da FGV (SP). 1

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DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL:

LIÇÕES DOS ANOS FHC

Fernando Luiz Abrucio1

O Estado sofreu intensa transformação nas últimas duas décadas em várias partes do

mundo. Entre os aspectos mais importantes desse processo, está a descentralização, pela

enorme abrangência de países atingidos, pelos impactos que causou na organização estatal

e pela mudança que trouxe às relações entre os governos e a sociedade, aumentando a

preocupação com a accountability democrática. Tal importância é destacada pelo estudo de

Elaine Kamarck. Analisando 123 nações, a autora constatou que a descentralização foi a

segunda forma inovadora mais utilizada nos processos de reforma do Estado, aparecendo

em 40% dos casos, e tendo sido ultrapassada apenas pela privatização (KAMARCK, 2000).

O tema da descentralização também ganha destaque especial porque é, entre os

tópicos de reforma do Estado, o que mais questões abarca. Autonomia local, formas de

democracia participativa, racionalização da provisão de serviços, maior liberdade e

responsabilidade dos gestores públicos, desigualdades regionais, entre os principais, são

aspectos que fazem da descentralização um verdadeiro caleidoscópio. Por conta deste

caráter, ela deve intrinsecamente lidar, a um só tempo, com as variáveis do desempenho e

da democratização da gestão pública.

Nos países onde a organização político territorial foi bastante alterada, a

descentralização tornou-se ainda mais relevante. O Brasil está entre estes casos. O processo

descentralizador, aqui, foi não só intenso e avassalador, como também influenciou a

redemocratização do país, o redesenho da rede de proteção social e a reforma do Estado. A

análise dos os caminhos da descentralização, portanto, é um ângulo privilegiado para se

compreender a história brasileira recente.

O objetivo do artigo é estudar a descentralização adotando uma perspectiva

diferenciada da maioria da literatura, que explora tal tema pelo ângulo dos governos

subnacionais e seus atores. Sem negligenciar este prisma, o foco principal concentra-se na

1 Doutor em Ciência Política pela USP e professor da PUC (SP) e da FGV (SP).

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análise do papel do Governo Federal na coordenação federativa ao longo dos dois

mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Em termos metodológicos, a

compreensão da singularidade dos anos FHC passa, primeiro, por uma discussão teórica

formulada a partir da experiência internacional e, em segundo lugar e mais importante, pelo

estudo da trajetória do federalismo e das relações intergovernamentais no Brasil, buscando

compreender quais são os legados deste processo histórico. Este referencial permite

entender a especificidade do governo Fernando Henrique e descobrir quais são as lições

deste período.

Para tanto, o trabalho organiza-se da seguinte forma. Na primeira parte, o fenômeno

da descentralização é definido, buscando compreender sua evolução recente e as suas

implicações no processo de reforma do Estado. Na segunda, o objetivo é mostrar que a

descentralização ganha um sentido bastante peculiar num contexto federativo, uma vez que

a coordenação intergovernamental torna-se peça-chave. A partir desta argumentação, o

processo descentralizador brasileiro é compreendido como um eixo derivado da trajetória

do federalismo. Por esta razão, neste ponto do trabalho, traça-se uma breve história da

Federação, desde suas origens até o ocaso do regime militar.

O entendimento do funcionamento do federalismo brasileiro montado na

redemocratização é feito na quarta parte. As características federativas deste período e a

continuidade de seus efeitos são centrais neste artigo. Na quinta seção, o foco se concentra

nas mudanças realizadas na estrutura básica da Federação a partir do Plano Real. Trata-se

de uma "conjuntura crítica", no sentido formulado por Paul Pierson (2000), na qual a

posição relativa dos atores e os seus recursos foram alterados, levando ao redesenho de

parte do arcabouço institucional. Ainda no bojo desta discussão, é traçado um mapa de

várias ações do Governo Federal no terreno da coordenação federativa.

Destaque é dado, a seguir, ao processo de coordenação federativa nas áreas

financeira e administrativa, que ganharam importância nos anos FHC, no bojo de seu

modelo de reforma do Estado. Depois são analisadas as políticas sociais de Saúde,

Educação e Assistência Social, mostrando os avanços e problemas encontrados sob o

prisma das relações intergovernamentais. E, mais adiante, o artigo trata dos dois principais

fracassos da União no período: as políticas urbanas e de desenvolvimento.

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Além de ressaltar as principais características dos caminhos da descentralização na

Era FHC, a conclusão arrola alguns desafios de coordenação federativa que certamente

serão enfrentados pelo próximo presidente .

I- O Fenômeno da Descentralização

Descentralização é uma palavra muito utilizada nos dias que correm, quase sempre

com um sentido positivo. Só que, no mais das vezes, a quantidade de elogios que recebe é

proporcional à sua imprecisão conceitual. Para tornar mais claro o debate, definimos

descentralização como um processo nitidamente político, circunscrito a um Estado

nacional, que resulta da conquista ou transferência efetiva de poder decisório a governos

subnacionais, os quais adquirem autonomia para escolher seus governantes e legisladores

(1), para comandar diretamente sua administração (2), para elaborar uma legislação

referente às competências que lhes cabem (3) e, por fim, para cuidar de sua estrutura

tributária e financeira (4).

Obviamente que há graus diferenciados de autonomia nas diversas experiências

nacionais, sendo que, geralmente, os governos subnacionais têm maior poderio nas

Federações, por razões que veremos mais adiante. Também existe uma diversidade no que

tange a cada um dos quatro aspectos citados acima, com experiências mais voltadas às

liberdades política e jurídica e outras direcionadas mais firmemente a questões tributárias

ou administrativas. De qualquer modo, tem-se aqui uma definição mínima de

descentralização, no mesmo sentido da delimitação minimalista de democracia, e a partir da

qual é possível compreender melhor o fenômeno.

A definição mínima de descentralização é tanto mais necessária por conta desse

termo designar correntemente outros três fenômenos. Um deles envolve o aspecto

administrativo. Trata-se da delegação de funções de órgãos centrais para agências mais

autônomas, o que na verdade é um processo de desconcentração administrativa, ou ainda

então a horizontalização das estruturas organizacionais públicas, com o repasse de maior

responsabilidade da cúpula aos gerentes e funcionários da ponta. Além dessa

caracterização, a descentralização é igualmente utilizada para denominar a transferência de

atribuições do Estado à iniciativa privada - privatização ou concessão de serviços públicos -

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e do governo para a comunidade ou ONGs. Estes três processos não podem ser

simplesmente equiparados à descentralização no seu sentido estrito, embora possam

conviver com ela ou mesmo serem impulsionados por mudanças políticas

descentralizadoras.

Tentar distinguir claramente tais termos não é uma preocupação nomológica, mas

sim uma precaução contra maneiras indevidas de se manejar os conceitos. Exemplo nesta

linha foi o discurso de Margareth Thatcher e de boa parte do receituário neoliberal da

década de 80, que defendia uma descentralização cujo objetivo era mais limitado.

Significava o repasse de funções para governos locais sem garantir a autonomia e o

financiamento, a desconcentração de atribuições da administração central para agências e,

dentro destas, da cúpula para os gerentes, e ainda a privatização de empresas públicas.

Essas ações buscavam diminuir custos e melhorar o desempenho da gestão pública, só que

propositadamente negligenciavam o cerne de qualquer processo descentralizador: a

democratização do Estado2.

Com base nesta discussão conceitual, pode-se dizer que o processo descentralizador,

no seu sentido essencialmente político, é um fenômeno bastante recente, que ganhou maior

impulso, num maior número de países, somente nas últimas décadas do século XX. Decerto

que há um debate intelectual sobre a questão desde o século XIX, em pensadores tão

distintos como Proudhon e Tocqueville, além de pelo menos uma experiência precursora

em larga escala, que foi o modelo norte-americano. A precocidade dos Estados Unidos é

perceptível na tradição de autonomia local e no conjunto complexo de instituições e

mecanismos de relacionamentos entre os níveis de governo, algo ainda poucas vezes

encontrado.

A formação dos modernos Estados nacionais, na verdade, foi um processo de

centralização do poder e de tentativa de construir uma soberania una e indivisível, nos

termos de Jean Bodin. O objetivo maior era estabelecer a ordem mínima hobbesiana,

concentrando poder numa autoridade que desse conta dos perigos da fragmentação local e

da invasão externa. O Governo Central tornou-se o eixo estruturador de toda a política, com

um poderio praticamente inquestionável.

2 Sobre a descentralização na era Thatcher, ver B. Guy Peters (1992).

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O fortalecimento do poder nacional não foi abrupto, mas sim, uma construção que

durou séculos. Neste longo processo centralizador, a descentralização do poder era

normalmente vista de modo negativo, com a grande exceção da experiência norte-

americana. Com a consolidação das independências na América e com o novo colonialismo

europeu na África e Ásia, ademais, o poderio do Estado nacional transformou-se em arma

fundamental no jogos geopolítico e econômico, especialmente para os que disputavam

mercados no contexto imperialista, entre o final do século XIX e o começo do XX. Mais

adiante, a crise da ideologia do laissez faire e a formulação do pensamento keynesiano, no

bojo da depressão da década de 30, legitimaram o reforço do papel da intervenção estatal

centralizada.

A expansão do Estado atingiu seu auge depois da Segunda Guerra Mundial. O

aumento da intervenção governamental foi estruturado sob três pilares: o keynesiano,

correspondente ao aspecto econômico, o Welfare State, ligado ao social, e o burocrático

weberiano, modelo administrativo que dava suporte às ações dos outros dois pilares. Todos

os três foram engendrados pelo Governo Central. Nos países desenvolvidos, ademais, esta

engenharia institucional foi construída num contexto de ampliação da democracia no plano

nacional. O fato é que, entre 1950 e 1980, era de grande prosperidade do capitalismo (por

alguns chamada de "anos dourados"), o Estado nacional foi o motor do desenvolvimento e,

em alguns casos, da cidadania.

Paradoxalmente, o avanço e o sucesso da intervenção estatal centralizada e da

nacionalização da política no pós Guerra impulsionaram, mais adiante, o processo de

descentralização. Dito de outro modo, a expansão do Welfare State e da democracia, frutos

do período de grande nacionalização da política, favoreceram a constituição de demandas

descentralizadoras.

No caso dos Welfares, cabe assinalar que eles foram instituídos pelos Governos

Centrais, que agiram com maior ênfase a partir da década de 50. No começo, a

administração centralizada geralmente implantava sozinha as políticas de bem estar social,

contudo, ao longo do tempo, ela aumentou as ações de financiamento e/ou as parcerias com

os governos subnacionais. Em outras palavras, a ampliação da oferta de serviços públicos,

por parte do Poder Nacional, redundou na criação de estruturas administrativas no plano

local. Um exemplo neste sentido é o da experiência norte-americana. Conforme John

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Donahue, houve lá uma maior centralização desde os anos 30, mas as burocracias estaduais

foram se aperfeiçoando para receber e utilizar melhor os grants do Governo Federal,

criados desde o período Roosevelt e ampliados ainda mais pelo governo Lyndon Johnson,

por meio do programa Great Society. Este processo, por si só, gerou mais adiante demandas

pelo repasse integral das funções aos estados (DONAHUE, 1997: 12).

O crescimento e a complexificação da estrutura administrativa do sistema de

proteção social resultou em dilemas de eficiência e democratização. No que se refere ao

primeiro aspecto, quanto mais atividades o Governo Central concentrava em suas mãos,

mais perdia o controle sobre o desempenho e a qualidade das políticas. Um bom exemplo

disso era o programa de merenda escolar do Governo Federal brasileiro. Seu alcance e

recursos elevaram-se deveras ao longo do tempo e, até meados da década de 90, a União

comprava os alimentos, muitas vezes trazia-os até Brasília e depois os distribuía para o

restante do país. Daí resultavam os seguintes problemas: os bens em questão eram

perecíveis e muitos estragavam por conta dessa logística centralizadora; os hábitos

alimentícios regionais eram desprezados; e a compra centralizada normalmente aumentava

os custos. Trocando em miúdos, o excesso de centralização levava à ineficiência.

A centralização excessiva muitas vezes provinha das ações da burocracia nacional e

dos políticos, os quais, ao concentrarem os recursos no nível central, fortaleciam seu poder

decisório (burocratas) ou de chantagem perante as bases locais (líderes políticos

clientelistas). A maior democratização do sistema político tem sido o melhor instrumento

contra esta situação. Tal processo democratizador foi inicialmente construído mais por

processos nacionais do que locais, ao contrário do que supõe visões mais românticas. Até

no caso norte-americano, fundado pelo conceito de self-government e onde de fato a

autonomia republicana dos governos locais prosperou em boa parcela do território, a

nacionalização da política foi fundamental para a democratização do sistema, atacando os

focos de corrupção no Sul e em grandes centros urbanos (como Chicago), além de garantir

os direitos civis dos negros.

Em vários países desenvolvidos, a nacionalização do processo democrático ampliou

espaços de participação que, gradativamente, estabeleceram-se nos níveis locais de

governo. Cabe lembrar que o longo caminho da centralização do poder havia sufocado uma

série de demandas por autogoverno regional, e a democratização do pós Guerra permitiu

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colocar em xeque essa estrutura política, embora a transformação do modelo não tenha

ocorrido de uma hora para outra. O caso italiano reflete bem esse fenômeno, pois, como

mostrou Robert Putnam, entre a promulgação da Constituição, em 1948, e o início da

década de 70, ocorreu uma intricada batalha pela autonomia dos governos locais (cf.

PUTNAM, 1996: 35-38).

O modelo centralizador entrou em crise no começo da década de 80. Para tanto,

contribuíram fatores como a internacionalização econômica, que reduziu parcela

significativa do poder de intervenção estatal no plano nacional, especialmente na área

financeira; a crise fiscal dos Governos Centrais, vinculada à perda de dinamismo

econômico que marcara os "anos dourados"; a defesa de reformas inspiradas por uma

concepção minimalista de Estado, iniciada com as vitórias de Thatcher e Reagan; o

fortalecimento de organizações com modus operandi transnacional, como empresas

multinacionais, ONGs, instituições multilaterais, blocos regionais e até máfias

internacionais; a maior demanda por participação no nível local; e o aumento da integração

econômica entre os capitais e os governos subnacionais, processo chamado por alguns

autores de "glocalization" (WATTS, 1994).

Sobre este processo, ficou famosa a frase de Daniel Bell: “the nation-state is

becoming too small for the big problems of life and too big for the small problems of life”

(BELL, 1988).

Em boa medida, o discurso e a prática descentralizadoras derivaram dessa crise do

modelo centralizador de intervenção estatal. No entanto, vale ressalvar que o balanço dos

últimos vinte anos não revela uma redução significativa do tamanho do Estado ou o

esvaziamento do Governo Central. Houve, sim, mudanças na estrutura centralizada

anterior, com novas formas de provisão e atuação do aparato estatal, só que o resultado

disso está levando a repensar o papel do Poder Nacional, em vez de destrui-lo.

Em resumo, os resultados paradoxais da expansão e complexificação do Welfare

State e da nacionalização da democracia, somados aos fatores recentes que enfraqueceram

o Governo Central, pavimentaram o terreno onde a descentralização foi inicialmente

construída. Mais outras quatro causas influenciaram este processo: a urbanização acelerada,

que tornou os problemas locais e seus governos cada vez mais importantes para um maior

número de pessoas; a irrupção de conflitos étnicos, os quais, quando não levaram à

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secessão, demandaram novas relações do Poder Nacional com os grupos regionais, como na

experiência espanhola; o surgimento das democracias de Terceira Onda

(HUNTINGTON,1994), nas quais houve, por diversas vezes, um imbricamento entre a

democratização e o processo de descentralização; e, por fim, a força do discurso político

descentralizador, cada vez mais aceito e proposto em larga escala, inclusive por instituições

multilaterais, como o Banco Mundial, que o defendem como uma das melhores soluções

aos países menos desenvolvidos.

O contexto atual pode ser classificado como uma era de descentralização, dada a

desconcentração sem precedentes do poder político nacional. Os seus primeiros passos

foram dados nos anos 50, mas o grande impulso se deu na década de 70, com a inclusão de

um número crescente de países, num processo ainda hoje em expansão. Entre os

desenvolvidos, houve grandes mudanças na organização territorial em lugares como a

Bélgica (que passou por um processo de federalização nos últimos trinta anos), a Espanha e

a Itália - ambas criadoras de uma estrutura regional ou quase federal (LARSSON,

NOMDEN & PETITEVILLE, 1999: 400). Em todos estes casos, os governos subnacionais

conquistaram uma forte autonomia. Destaca-se, ainda, a consolidação dos federalismos

alemão, australiano e canadense, cada vez mais preocupados em aperfeiçoar seus

mecanismos intergovernamentais para garantir o princípio da subsidiariedade, segundo o

qual as políticas devem ser conduzidas, o máximo possível, pelas autoridades mais

próximas dos cidadãos. É igualmente relevante a influência do viés federativo no debate

acerca da União Européia. Soma-se a tudo isso, de forma inédita e até inesperada, o repasse

de poder ao plano local em duas das nações mais centralizadas da Europa, a Grã-Bretanha e

a França, como assinala Rudolf Hrbek:

"Recentemente, se vislumbram importantes alterações da estrutura territorial na

Grã-Bretanha. Sob o lema da 'devolução', o governo de Westminster transferiu direitos de

autonomia abrangentes, embora diferentes, para a Escócia e o País de Gales. Vários

observadores consideram essa evolução como início de uma profunda mudança da

organização estatal do Reino Unido, que poderia chegar a um 'Estado de Autonomia' ou

ainda uma construção federativa. (....) Na França, considerada há muito tempo exemplo

clássico de um sistema centralizador, também se iniciou uma política de descentralização a

partir de 1982. Sua expressão mais nítida é a criação de regiões com novas entidades

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territoriais, ao lado dos tradicionais municípios e departamentos. Embora a competência e

os recursos à disposição das regiões pareçam modestos, são nítidas as mudanças no

Estado francês, bem como o fato da descentralização já significar mais do que mera

transferência de atribuições administrativas para um nível mais baixo. As regiões

desenvolvem autoconfiança, procuram tomar posições em relação à capital e ao governo

central e, ocasionalmente, já são consideradas atores respeitados num sistema que se

desenvolve passo a passo" (HRBEK, 2001: 111-112).

Nos Estados Unidos, país com maior tradição federativa do mundo, houve uma

renovação do discurso em prol da descentralização. Do "novo federalismo" de Nixon até o

modelo mais recente do devolution powers, aconteceu um repasse de funções aos estados,

que para alguns significou o retorno às "liberdades originais da Federação". Ademais, a

concepção de que os governos subnacionais são "laboratórios de democracia", isto é,

capazes de criar políticas inovadoras quanto mais contato direto tiverem com os cidadãos,

foi um dos principais eixos da política norte-americana na década de 90 (CONLAN, 1998;

OSBORNE & GAEBLER, 1994).

A descentralização também avançou celeremente em outras partes do globo. Num

estudo citado por Marta Arretche, constatou-se que entre 75 países em desenvolvimento

analisados, 63 tinham realizado reformas descentralizadoras (apud ARRETCHE, 1996: 63).

A América Latina destaca-se neste contexto. Nela, são eleitos atualmente 13 mil governos

locais, contra menos de 3 mil no final dos anos 70 (BANCO MUNDIAL, 1997: 112).

Países como Colômbia, Peru e Venezuela aumentaram, em maior ou menor grau, a

autonomia dos governos locais. Federações mais antigas, porém tolhidas em sua liberdade

por décadas de autoritarismo, como o México e a Argentina, reforçaram o poder de suas

províncias ou estados - no caso mexicano, foi do plano subnacional que, em grande medida,

saiu o processo de democratização recente do país (cf. RODRÍGUEZ & WARD, 1995). E o

Brasil não ficou atrás, pois reconstruiu sua estrutura federativa por meio do reforço do

poder das esferas estaduais e municipais, como mostraremos mais adiante.

O fascínio causado pela descentralização baseia-se não apenas na crise do modelo

centralizador e no surgimento de novas realidades, mas também na força política adquirida

por esse conceito, cujo sinal é quase sempre positivo. Agregando uma ampla e heterogênea

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coalizão de interesses, o discurso descentralizador teria suas principais qualidades

associadas à democratização do Poder público e à melhora do desempenho governamental.

Descentralização e democratização do Estado andam juntas no argumento político

desde pelo menos o livro clássico de Alexis de Tocqueville, A Democracia na América.

Processos históricos mais recentes, como a conquista de governos locais pelos comunistas

italianos, na década de 60, ou o crescimento do municipalismo no Brasil nos anos 80, com

seu viés democratizador sendo perceptível em políticas como o Orçamento Participativo,

são dois entre vários dos exemplos que ajudariam a corroborar esse relacionamento

virtuoso.

O pressuposto que orienta essa concepção é o de que a maior proximidade dos

governos em relação aos cidadãos possibilita o aumento da accountability do sistema

político. De fato, o controle sobre os governantes pode ser facilitado pela descentralização,

já que com ela há maior probabilidade de disseminação das informações, de criação de

canais de debates e mesmo de se instituir mecanismos mais efetivos de fiscalização

governamental, para citar três dos elementos básicos do processo de responsabilização

democrática do Estado (PRZEWORSKI, 1998). Formas de democracia semi-direta também

têm muito mais chances de se realizar no plano local.

O aumento da eficiência e da efetividade é citado igualmente como outra qualidade

intrínseca da descentralização. Isto porque a centralização completa das políticas resultaria,

tecnicamente, em maior irracionalidade administrativa, e, politicamente, na criação de

"superagências" monopolistas que dificilmente seriam controláveis, com efeitos não só para

a accountability democrática, como também para o desempenho da ação estatal.

Inversamente, a descentralização, ao aproximar os formuladores dos implementadores, e,

principalmente, estes dois dos cidadãos, melhoraria o fluxo de informações e a

possibilidade de avaliação da qualidade da gestão pública.

Nesta mesma linha de raciocínio, supõe-se que a uniformização subjacente ao

modelo mais centralizador diminuiria os incentivos à inovação, ao passo que a existência de

múltiplos governos seria um estímulo para a busca de novas soluções administrativas, pois

os governantes locais teriam a necessidade, por conta maior da cobrança da população, e a

possibilidade, por conta da maior autonomia decisória, de encontrar saídas criativas e

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vinculadas às peculiaridades de cada circunscrição política. Esta posição é bastante

difundida no debate norte-americano e vem ganhando adeptos em outros países3.

Muitos defendem que pode haver, sob certas condições, uma relação de mão dupla

entre a democratização e busca da eficiência no plano local, tal qual argumentam Abrucio e

Soares:

"Por um lado, a participação e a cobrança da população obrigam os governantes,

muito mais próximos, a melhorar seu desempenho administrativo. Por outro, as condições

para que os cidadãos atuem [democraticamente] de forma mais eficaz estão ligadas à

qualidade da gestão pública, responsável pela informação e pela adequação dos

instrumentos de controle" (ABRUCIO & SOARES, 2001: 28).

A descentralização, no entanto, não tem qualidades intrínsecas e tampouco está

isenta de aspectos negativos. A força política deste discurso e muitos resultados

satisfatórios que daí se originaram nublam os problemas que se colocam, em muitas

ocasiões, para a implantação de um processo descentralizador. Há cinco questões

fundamentais que devem ser equacionadas em qualquer modelo de descentralização: a

constituição de um sólido pacto nacional, o ataque às desigualdades regionais, a criação de

um ambiente contrário à competição predatória entre os entes governamentais, a montagem

de boas estruturas administrativas no plano subnacional e a democratização dos governos

locais.

A primeira se refere à relação dos governos locais com a nação. Uma fragmentação

excessiva pode levar à guerra civil, à desorganização econômica ou à secessão. É claro que

esta última pode ser até desejável em certas circunstancias, nas quais grupos étnicos foram

sufocados pelo Governo Central e/ou por uma etnia dominante. Não obstante, o

fortalecimento de uma série de nacionalismos desde a segunda metade da década de 80 tem

grandes chances de produzir países com frágeis condições de sobrevivência - e, neste caso,

os vetores da globalização assimétrica na qual vivemos tendem a ser implacáveis,

favorecendo os que mantiveram mais território e população. Talvez tenhamos, na década

que ora se desenvolve ou no mais tardar na próxima, que refletir novamente sobre formas

3 Nos EUA, um dos maiores best sellers da década de 90 foi o livro Reinventando o Governo, que

analisa uma série de exemplos de experiências bem sucedidas no plano subnacional, os quais são classificados como verdadeiros laboratórios de gestão pública (OSBORNE & GAEBLER, 1994). Esta linha argumentativa, entretanto, é bem mais antiga nas literaturas de Ciência Política e Economia produzida nos Estados Unidos, bem como no debate político.

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de organização política do espaço que respondam às demandas econômicas e geopolíticas

de centralização, mas acentuando necessariamente o caráter democratizador desse processo.

Supondo que um país resolva seus dilemas básicos de ordem e haja um sentimento

nacional razoavelmente consolidado, é preciso evitar o crescimento das desigualdades entre

as regiões. Algumas experiências recentes de descentralização não foram acompanhadas

pela criação de políticas redistributivas - ou ao menos compensatórias - para as localidades

mais pobres ou carentes de infra-estrutura, o que contribuiu para acentuar as diferença

socioeconômicas. Nestes casos, a descentralização torna-se, na precisa definição de Remy

Prud’Homme, “na mãe da segregação” (PRUD’HOMME, 1995), uma vez que as

disparidades entre as partes prejudicam o desenvolvimento de muitas delas e, ao fim e ao

cabo, do próprio conjunto, pois há uma piora do desempenho econômico global, um

aumento do conflito distributivo e, no extremo, a luta política assume proporções

preocupantes à ordem nacional. Os impactos desse processo negativo são ainda maiores em

grandes nações marcadas pela desigualdade regional, como a Índia, o Brasil e a Rússia.

Para solucionar este problema, faz-se necessária a atuação coordenadora do Governo

Central, sem a qual não é possível uma descentralização efetiva e justa.

O acirramento dos conflitos entre os níveis de governo é outra questão que pode

prejudicar a descentralização. Em razão de o processo desconcentrador de poder ser

normalmente recente, dois fenômenos aparecem com freqüência. Em uma ponta, muitos

Governos Centrais não têm conseguido lidar com a nova realidade e querem evitar a perda

de autoridade e competências, criando incertezas quanto aos passos seguintes do processo

e mesmo em relação à manutenção dos que já foram dados, tal qual ocorreu na Inglaterra

nos tempos de Thatcher; noutra ponta, a ausência de experiência anterior de autogoverno e

o enfraquecimento do Poder Nacional têm gerado, em certos casos, estímulos à

irresponsabilidade fiscal das unidades subnacionais, como na Argentina, ou a uma disputa

tributária predatória, como na guerra fiscal à brasileira4. O fato é que a fragilidade dos

instrumentos de cooperação e coordenação entre as esferas de poder constitui um grande

obstáculo ao sucesso da descentralização.

4 Para uma visão geral do processo de descentralização, tratando sobretudo das resistências a ele e a

manifestação de comportamentos fiscais irresponsáveis por parte dos governos subnacionais, ver BURKI, PERRY & DILLINGER, 1999.

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É necessário, também, desenvolver as capacidades administrativas e financeiras dos

entes subnacionais para que a descentralização ajude a melhorar o desempenho da gestão

pública. Os possíveis ganhos de eficiência resultantes da desconcentração das atribuições

não são alcançados caso faltem recursos suficientes às administrações locais, ou se estas

deixarem de exercer sua autoridade tributária. O repasse das funções antes centralizadas só

alcança plenamente seus objetivos quando acoplado à existência ou à montagem gradativa

de boas estruturas gerenciais nos níveis inferiores. Obviamente que a grande concentração

de tarefas nas mãos do Governo Central é prejudicial à eficiência, porém, a manutenção de

padrões arcaicos de governança no plano local, além de reduzir a efetividade da ação

estatal, desmoraliza a descentralização, podendo até incentivar propostas demagógicas de

(re)centralização e paternalismo. Logo, a modernização administrativa dos governos

subnacionais é condição sine qua non de um ciclo virtuoso descentralizador.

A relação entre descentralização e democracia não é linear. Ela depende das

condições sociais, econômicas e políticas existentes em determinado país e tempo histórico.

Trata-se, em suma, de uma construção político-institucional. É neste sentido que,

analisando a associação entre democratização e descentralização, Marta Arretche

argumenta:

“A concretização dos ideais democráticos depende menos da escala ou nível de

governo encarregado da gestão das políticas e mais da natureza das instituições que, em

cada nível de governo, devem processar as decisões” (ARRETCHE, 1996: 45).

Em diversos momentos da história, formas oligárquicas predominaram no plano

local. Exemplos: o Brasil da Primeira República, o Sul dos Estados Unidos na primeira

metade do século XX - realidade tão bem descrita por V.O.Key Jr. (1949) -, os governos

subnacionais mexicanos durante o domínio do PRI e, até hoje, a administração das

Províncias mais pobres e suas municipalidades na Argentina. A lista é bem mais extensa,

mas ficamos por aqui. Ora, isto quer dizer que existe uma outra "relação linear", agora entre

descentralização e oligarquia? Esta ilação é tão falsa quanto a primeira. Basta observar a

progressiva democratização de governos subnacionais em várias partes do mundo: em

países federativos (como a Alemanha, os EUA, o Canadá) em Estados Unitários (Itália e

Espanha), além dos grandes avanços ocorridos em nações em desenvolvimento, como o

13

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Brasil e a Índia. A continuidade desse processo vincula-se à construção de certas condições

institucionais, culturais e socioeconômicas.

Para responder a estas cinco questões, é preciso adotar três pressupostos gerais que

balizam qualquer processo de descentralização:

1) A opção não deve ser centralização ou descentralização. O segredo do sucesso

está no relacionamento entre elas. Num extenso e detalhado trabalho que envolveu o estudo

das relações intergovernamentais de todos os países da OCDE, a então presidente dessa

organização, Alice Rivlin, concluiu que:

“Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização. Nós

precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções – descentralizando

algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na

formulação de políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países” (OCDE,

1997: 13).

2) A descentralização envolve um projeto nacional e vários processos ou rodadas de

negociação. Em relação ao primeiro aspecto, cabe ressaltar que não basta criticar os

problemas do antigo modelo centralizador; é fundamental estabelecer uma estratégia

nacional que oriente, minimamente, o processo descentralizador (FIORI, 1995). Assim

sendo, as lideranças políticas e administrativas de todo o país precisam ter em mente o

sentido geral da descentralização. No entanto, este projeto geral é rediscutido e repensado

ao longo do tempo. Ademais, a desconcentração de funções ocorre em diversas áreas, às

vezes muito distintas entre si, por conta da peculiaridade de cada política pública. É por

esta razão que concordamos com o argumento de Maria Hermínia Tavares de Almeida: a

descentralização é um processo composto por várias rodadas (ALMEIDA, 2000: 7), muito

embora o histórico específico das políticas afeta seu destino posterior. Qualquer avaliação

da descentralização em um determinado país, portanto, deve analisar o projeto nacional e os

processos descentralizadores, bem como a relação entre eles.

3) A descentralização exige a construção de capacidades político-institucionais tanto

do Poder Central como dos governos subnacionais. Ambos devem ser preparar

especificamente para este processo. O Governo Central deve habilitar-se para o repasse de

funções e para a coordenação das ações mais gerais, atuando em prol do equilíbrio entre as

regiões, fornecendo auxílio técnico e financeiro aos níveis inferiores e avaliando as

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políticas de cunho nacional. Os entes subnacionais, por sua vez, precisam aprimorar sua

estrutura administrativa e seus mecanismos de accountability democrática. Uma

competência comum é essencial: todas as esferas de poder devem desenvolver instrumentos

e mesmo uma cultura política vinculados às relações intergovernamentais, em particular no

caso do Governo Central, em razão de seu papel necessariamente coordenador.

O caso brasileiro enfrenta todo este universo de questões atinentes à

descentralização. Só que há uma particularidade: o Brasil é uma Federação, característica

que dá um molde especial ao processo descentralizador.

II- Federação e Descentralização: o significado dessa relação

As formas de organização territorial do poder podem ser divididas em quatro tipos:

a Associação de Estados, a Confederação, a Federação e o Estado Unitário. Alguns países

têm adotado características de mais de um modelo, seja porque a era da descentralização

trouxe mais preocupações federativas a nações unitárias, seja porque a temática dos blocos

regionais impulsionou experiências com inspiração confederativa, como a União Européia,

ou que procuram constituir alianças econômicas, como as uniões aduaneiras e áreas de livre

comércio. De qualquer modo, há sim diferenças entre tais categorias, que dizem respeito,

em especial, à maior ou menor concentração/dispersão de poder e soberania entre os entes,

fazendo com que haja organizações territoriais do poder mais centrífugas ou mais

centrípetas. O quadro abaixo configura esta classificação:

QUADRO 1

Quadro 1: Formas Típicas de Organização Político-Territorial do Poder + centrífugo + centrípeto Associação de Confederações Federações Estado Unitário Estados

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Resumidamente, podemos diferenciar cada uma dessas formas de organização

político-territorial do poder5. A Associação de Estados estabelece uma parceria voluntária

entre nações que não perdem sua soberania original e constituem uma cooperação com fins

culturais, políticos e/ou econômicos, sem que isto implique um maior compromisso de

compartilhamento de poder ou centralização decisória. Portanto, são membros que não

abdicam de sua condição de país e, enquanto tais, podem sair dessa organização a qualquer

momento. Ademais, a Associação entre Estados pode ocorrer entre Estados nacionais que

não tenham contiguidade territorial, uma vez que os objetivos podem ser de cooperação

econômica ou de intercâmbio cultural - tal como ocorre no Commonwealth.

A Confederação, por sua vez, é a junção de unidades independentes, que podem ser

Estados nacionais ou não - o início da história dos Estados Unidos representa esta segunda

possibilidade. Busca-se um maior compromisso pelo compartilhamento do poder do que na

Associação entre Estados, mas se evita a criação de um Governo Central. Diferentemente

da Associação entre Estados, a Confederação pressupõe sempre uma contiguidade

territorial.

O que motiva a criação do modelo confederativo é a existência de problemas e

necessidades comuns em uma mesma área territorial. Para tanto, os participantes desse

acordo estabelecem políticas integradas. Contudo, ao contrário da Federação, não é

constituído um Governo Central, embora possa até existir uma estrutura que funcione como

pólo aglutinador da Confederação, porém sem um estatuto de legitimidade por si só. Mais

do que isso, há uma superioridade do arcabouço constitucional de cada um dos membros

sobre o conjunto de regras que orienta essa união. É por esta razão que as principais

decisões válidas para todos os integrantes precisam da aprovação unânime deles ou, então,

certas decisões não são vinculantes a todos os participantes - a questão da moeda comum na

União Européia é tipicamente uma questão confederativa.

O modelo confederativo foi o inicialmente praticado nos Estados Unidos após a

independência, em 1776. Pode-se dizer que hoje a União Européia é o que há de mais

próximo de uma Confederação6. Observando a história das experiências confederativas,

5 Essa conceituação baseia-se em ABRUCIO, 2000. 6 A experiência da União Européia tem características mais próximas da Confederação, porém alguns

de seus membros e ideólogos defendem uma maior federalização de sua estrutura. Propostas como o fortalecimento do Parlamento Europeu, do Direito Comunitário e do Banco Central Europeu, retirando grande parcela do poder macroeconômico dos Estados nacionais, caminham numa linha mais federativa. Contudo, a

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percebe-se uma a baixa capacidade de sobrevivência dessa forma de organização político-

territorial do poder. Nos EUA, durou pouco mais de dez anos, enquanto o caso recente da

Comunidade dos Estados Independentes (CEI), composta pelas partes daquilo que fora a

União Soviética, redundou em maior divisão entre estes povos, levando os analistas a

afirmar que a saída para essa região era manter a Federação Russa e esta fazer Associações

com os demais Estados nacionais (SEROKA, 1994)7.

Como ponto mais centrípeto da escala exposta acima, temos o Estado Unitário, onde

a soberania está toda concentrada no Governo Central e é, por tal motivo, una e indivisível.

O poder dos entes subnacionais deriva da ação voluntária da esfera nacional, que delega

funções e graus de autoridade. Todavia, há variações cada vez maiores na forma como esta

organização territorial se estrutura, sobretudo por conta dos efeitos da era da

descentralização. Países de tradição centralizadora como a França e a Inglaterra, tal qual

mostrado anteriormente, modificaram bastante sua distribuição espacial do poder político

nos últimos vinte anos.

Mesmo com tais mudanças, um aspecto diferencia claramente o Estado unitário das

formas confederativas ou federativas: a distribuição de poder obedece a uma hierarquia e a

uma assimetria entre o Governo Central e as unidades subnacionais. Exemplo: no Reino

Unido, o primeiro-ministro trabalhista, Tony Blair, cumpriu sua promessa de campanha e

criou um Parlamento regional na Escócia. Houve pressões do plano local, mas a decisão

veio do âmbito nacional. Mais importante: a continuidade desse processo de

desconcentração de poder vai depender da aprovação em instâncias do nível central,

sobretudo o Parlamento, o qual é formado exclusivamente por representantes que, embora

capacidade de países pertencentes à essa união de não compartilhar de todas as regras do ordenamento comum, como o Reino Unido repetidamente tem feito, e a ausência de políticas externa e de segurança para todo o bloco constituem enormes obstáculos à federalização da União Européia.

7 Três fatores explicam o fracasso do modelo confederativo. O primeiro é a pouca efetividade dos mecanismos que arbitram os conflitos numa Confederação, dado que o poder vinculante das decisões é mais tênue. Além disso, o processo decisório é bastante intrincado, já que o poder de veto de apenas um membro é muito amplo, e o custo desse veto é baixíssimo para o ente individual, ao passo que o preço pela unanimidade normalmente é bastante alto. E, por fim, o maior problema do modelo confederativo refere-se à proteção diante de inimigos externos ou mesmo de guerras internas. A União Européia não tem até hoje uma política de defesa comum e por isso depende dos Estados Unidos – que resguardam suas ações no “biombo” da OTAN. A importância da questão da segurança pode ser constatada pelo lugar estratégico e pela quantidade de espaço que ocupou em O Federalista: do segundo ao décimo artigo, parte que dá início e prepara o terreno para o restante da argumentação. Foi essa fragilidade do modelo confederativo que convenceu figuras históricas fundamentais para a independência, como George Washington e Benjamin Franklin, a ficarem do lado dos founding fathers norte-americanos na defesa do ideal federativo na Convenção de 1787.

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eleitos em distritos, têm um mandato nacional, não vinculado à proteção dos direitos de tal

ou qual região.

É este o limite da descentralização nos Estados unitários: o poderio dos governos

subnacionais é inferior constitucionalmente ao do Governo Nacional. A ausência de

estruturas capazes de defender especificamente os interesses regionais corrobora isto. Não

há porque construir uma engenharia institucional para defender as unidades subnacionais se

elas não são reconhecidas como portadoras de direitos originários que devem ser

defendidos. Em suma, não são soberanas e a soberania nacional é fruto de um contrato

entre todos os indivíduos da nação, e não de um acordo entre entes territoriais8.

O Estado Federal é uma forma inovadora de se lidar com a organização político

territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial da soberania, e não

piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR, 1987: 37). Hoje há vinte e duas

nações que adotam formalmente o sistema federativo, afora outras, como a Espanha e a

África do Sul, que embora não tenham constitucionalmente este status, na prática

funcionam cada vez mais enquanto tais (WATTS, 1999: 10). Além destas, muitas outras

nações vêm adotando instrumentos federativos para resolver seus problemas

intergovernamentais. Mesmo tendo um pouco mais de 10% dos países utilizando esse

modelo de organização político territorial, o fato é que a importância geopolítica,

econômica e cultural dos que adotam a forma federal é evidente, em todos os cantos do

mundo, dos EUA à Rússia, da Índia à Alemanha, do Canadá à Nigéria, da Suíça à

Argentina, do México ao Brasil, para ficar nos casos mais relevantes.

O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análise de sua natureza,

de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente, toda Federação deriva de uma

situação federalista (BURGESS, 1993). Duas condições conformam este cenário. Uma é a

existência de heterogeneidades que dividem uma determinada nação, de cunho territorial

(grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico, socioeconômico

8 O caso italiano é interessante pois, além de ter aumentado fortemente o poder dos entes locais desde pelo menos a década de 70, define em sua Constituição promulgada no pós Guerra (1948) uma série de instâncias de defesa do interesse das unidades subnacionais. Um exemplo disto é o Senado, composto por 315 parlamentares eleitos pelas Regiões – afora os senadores vitalícios, que são designados pelo presidente, e os ex-presidentes. Outro é a eleição para presidente, na qual participam, além dos membros do Parlamento, delegados das Regiões do país. Apesar da existência destes mecanismos de representação regional, a autoridade nacional é reconhecida constitucionalmente como superior, ao passo que os governos

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(desigualdades regionais), cultural e político (diferenças no processo de formação das elites

dentro de um país e/ou uma forte rivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim

instituído para dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país deste tipo não

constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional manterá a estabilidade

social ou, no limite, a própria nação corre risco de fragmentação9.

Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma prática defensores

da unidade na diversidade, resguardando a autonomia local, mas procurando formas de

manter a integridade territorial num país marcado por heterogeneidades. Trata-se do

princípio filosófico da Federação, na definição de Burgess:

“O gênio da Federação está em sua infinita capacidade de acomodar a competição

e o conflito em torno de diversidades que têm relevância política dentro de um Estado.

Tolerância, respeito, compromisso, barganha e reconhecimento mútuos são suas palavras-

chave, e ‘união’ combinada com ‘autonomia’ é sua marca autêntica” (BURGESS, 1993:

7).

As coexistência destas duas condições é essencial para se montar um pacto

federativo. Mas, o que é uma Federação? Segundo Daniel Elazar,

"O termo 'federal' é derivado do latim foedus, o qual (...) significa pacto. Em

essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas

conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros,

baseada no reconhecimento mútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer

uma unidade especial entre eles" (ELAZAR, 1987: 5).

Em outras palavras, a Federação é um pacto entre unidades territoriais que escolhem

estabelecer uma parceria, conformando uma nação, sem que a soberania seja concentrada

num só ente, como no Estado Unitário, ou então em cada uma das partes, como na

Associação entre Estados e mesmo nas Confederações. A especificidade do Estado Federal,

subnacionais, segundo a lei, participam por uma via concorrente e secundária do exercício da atividade governamental (Cf. SPREAFICO, 1992: 372).

9 Exemplos de heterogeneidade são os mais variados: o Canadá (heterogeneidades lingüísticas), a Índia (diversidades étnicas, lingüísticas e socioeconômicas), Brasil e Argentina (diferenças econômicas regionais e entre as elites políticas locais), para ficar em alguns casos. Ademais, todo país grande tem a questão federalista batendo à sua porta – Estados Unidos, Canadá, Brasil, Índia, Indonésia, Paquistão, Austrália, Rússia e mesmo a China, que embora não seja (ainda) uma Federação, contém uma diversidade de situações sociais misturada com a complexidade geográfica, o que cria um ambiente marcado por heterogeneidades explosivas.

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em termos de distribuição territorial do poder, é o compartilhamento da soberania entre o

Governo Central - chamado de União ou Governo Federal - e os governos subnacionais.

O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos governos e a

interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel

Elazar: self-rule plus shared rule. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que os

níveis intermediários e locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer

processo de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal,

administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da

Federação reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos

pactuantes subnacionais - sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no

Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do

mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-

territorial. Ressalte-se que o Poder Nacional deriva de um acordo entre as partes, ao invés

de constitui-las. Assim, a descentralização em Estados Unitários pode até repassar um

efetivo poder político, mas este processo sempre provém do Centro e não institui direitos de

soberania aos entes subnacionais.

Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para defender seus

interesses e direitos originários, quais sejam, a existência de Cortes constitucionais, que

garantem a integridade contratual do pacto originário; uma Segunda Casa Legislativa

representante dos interesses regionais (Senado ou correlato); a representação

desproporcional dos estados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na

Câmara baixa; e o grande poder de limitar mudanças na Constituição, criando um processo

decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas, e em muitos casos se faz

necessária a aprovação dos Legislativos estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios

básicos da Federação não podem ser emendados em hipótese alguma. Sobre este último

ponto, é interessante notar que no Brasil o federalismo é considerado cláusula pétrea (artigo

60, parágrafo 4), isto é, não pode ser objeto de Emenda constitucional, o que igualmente

acontece na Alemanha, uma vez que o artigo 79, alínea 3 da Lei Fundamental torna a

Federação um princípio inatingível e inalterável. Nos EUA, o contrato federativo

representado pela Constituição cria uma estrutura na qual os estados e a União são

"indestrutíveis".

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Como bem constatou Alfred Stepan, toda Federação restringe o poder da maioria

(demos constraining), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa

igualmente responder à questão da interdependência entre os níveis de governo. A

exacerbação de tendências centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos

do plano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquer experiência

federativa, sob o risco de se enfraquecer a unidade político-territorial ou de torná-la ineficaz

para resolver a "tragédia dos comuns" típica do federalismo, vinculada a problemas de

heterogeneidade. O fato é que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do

tempo caso se estabeleça uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pactuantes e

a interdependência entre eles.

A busca da interdependência é uma tarefa que enfrenta pelo menos cinco desafios: o

caráter matricial das Federações, a dupla cidadania presente no federalismo democrático, o

pluralismo intrínseco a essa forma de organização político-territorial do poder, a

necessidade dos checks and balances entre os níveis de governo e o problema da

coordenação federativa.

Em primeiro lugar, a interdependência federativa não pode ser alcançada pela mera

ação impositiva e piramidal de um Governo Central, tal qual num Estado Unitário, pois

uma Federação supõe uma estrutura mais matricial, sustentada por uma soberania

compartilhada - aliás, como dito antes, é por isso que no federalismo há União (ou o

Governo Federal) e não Governo Central. É claro que as esferas superiores de poder

estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, seja por conta do

auxílio e financiamento às outras unidades governamentais. O Governo Federal tem

prerrogativas específicas para manter o equilíbrio federativo, e os governos intermediários

igualmente detêm forte grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Só que a

singularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre os entes, devido aos

direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua capacidade política de proteger-se.

Em poucas palavras, processos de barganha afetam decisivamente as relações verticais num

sistema federal.

Em segundo lugar, a população de uma democracia federativa possui uma dupla

cidadania: a individual e a territorial, cada qual representada por mecanismos políticos

distintos. Vale ressalvar que, citando novamente Stepan, "em uma Federação democrática

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os cidadãos deve ter identidades políticas duplas, mas complementares" (STEPAN, 1999:

202). Criar uma relação de complementaridade entre os interesses e direitos locais e a

perspectiva nacional é outro desafio que todo Estado Federal deve enfrentar.

As Federações, ademais, são marcadas intrinsecamente pela diversidade e pelo

conflito. A obtenção de padrões de interdependência não pode ser resultado da eliminação

do pluralismo que é subjacente ao modelo federativo. De modo que as parcerias

intergovernamentais não podem ser frutos do domínio de uma instância contra a autonomia

de outra ou das demais. Destacam-se aqui o respeito mútuo e, novamente, o papel da

barganha nas relações entre os níveis de governo.

Desde a invenção do federalismo moderno nos Estados Unidos, esta forma de

organização político-territorial do poder pressupõe a existência de controles mútuos entre

os níveis de governo - trata-se de um dos checks and balances da democracia madisoniana.

O objetivo deste mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para que

nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe com a autonomia dos

demais. Assim sendo, a busca da interdependência numa Federação democrática tem de ser

feita conjuntamente com o controle mútuo.

O desenvolvimento recente dos Estados modernos levou ao crescimento do papel

dos Governos Centrais, especialmente no que se refere à expansão das políticas sociais. No

caso dos sistemas federais, onde vigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um

processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de compartilhamento de

decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o problema da

coordenação das ações de níveis de governo autônomos, aspecto chave para entender a

produção de políticas públicas numa estrutura federativa contemporânea.

Em seu trabalho sobre os Estados de Bem Estar Social em países unitários e

federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo as ações governamentais são

divididas entre unidades políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais

interconexão, por conta da nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira

ou administrativa de governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision making

surge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativos que, por natureza, só

entram neste esquema conjunto se assim o desejarem. Desse modo, a montagem dos

Welfare States nos países federativos é bem mais complexa, envolvendo jogos de

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cooperação e competição, acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O

desafio posto por esta questão foi bem resumido por Pierson:

“No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas

são altamente interdependentes, mas são, de forma freqüente, modestamente coordenadas”

(PIERSON, 1995: 451).

Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as Federações devem,

primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição existentes. Antes que um

mal entendido se estabeleça, partimos da premissa, já enunciada anteriormente, de que o

federalismo é intrinsecamente conflitivo. Concordamos, neste sentido, com Deil Wright,

segundo o qual o conflito não é um estado patológico de uma estrutura federal; mais do que

isso, o autor ressalta que a cooperação e a competição não são pólos opostos de uma escala,

já que a presença do primeiro não significa a ausência do segundo, e vice-versa (WRIGHT,

1997: 27).

Seguindo esta linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das

relações intergovernamentais no federalismo:

"Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergovernamentais

requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e acomodação" (PIERSON,

1995: 458).

Daí toda Federação ter de combinar formas benignas de cooperação e competição.

No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de

instaurar mecanismos de parceria que sejam aprovados pelos entes federativos. O modus

operandi cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como

nas questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de uma jurisdição

(caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais

pobres a realizarem determinadas tarefas; para integrar melhor o conjunto de políticas

públicas compartilhadas, evitando o jogo de empurra entre os entes - como no episódio da

dengue, quando União, estados e municípios procuravam definir o(s) outro(s) como

culpado(s) em relação a esta questão. Ainda é peça-chave no ataque a comportamentos

financeiros predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também na

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distribuição de informação sobre as fórmulas administrativas bem sucedidas, incentivando

o associativismo intergovernamental10.

Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui para elevar a

esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fator fundamental para o equilíbrio

de uma Federação. No entanto, fórmulas cooperativas mal dosadas trazem problemas. Isto

ocorre quando a cooperação confunde-se com a verticalização, resultando mais em

subordinação do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade latino-

americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa a montagem daquilo que

Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap (armadilha da decisão conjunta), bastante

visível no caso alemão, mas que se repete igualmente em outras experiências. Nesta

estrutura, todas as decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuência

de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos de racionalidade

administrativa, tende-se à uniformização das políticas, processo que pode diminuir o

ímpeto inovador dos níveis de governo, enfraquecer os checks and balances

intergovernamentais e dificultar a responsabilização da administração pública.

As Federações requerem determinadas formas de competição entre os níveis de

governo. Primeiro, por conta da importância dos controles mútuos como instrumento contra

a dominância (ou tirania, nos termos de Madison) de um nível de governo sobre os demais.

Além disso, a competição federativa pode favorecer a busca pela inovação e melhor

desempenho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar a performance dos

vários governantes, uma das vantagens de se ter uma multiplicidade de governos. A

concorrência e a independência dos níveis de governo, por fim, tendem a evitar os excessos

contidos na "armadilha da decisão conjunta", bem como o paternalismo e o parasitismo

causados por certa dependência em relação às esferas superiores de poder.

Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O primeiro se

refere ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedade entre as partes, ponto fulcral do

equilíbrio federativo. Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou

10 Neste aspecto, cabe lembrar a experiência dos EUA. O crescimento da intervenção estatal

impulsionado pela Era Roosevelt aconteceu num momento em que as máquinas locais estavam infestadas de clientelismo e corrupção e careciam de capacidades institucionais para realizar a contento políticas públicas mais amplas. Em tal contexto, as associações horizontais entre os níveis de governos tiveram um papel essencial na transformação do federalismo norte-americano, repassando informações sobre como alguns governos subnacionais tinham modificado sua antiga estrutura (ZIMMERMAN, 1996).

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socioeconômicos, mais complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do

federalismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evitar uma

disputa desregrada entre os entes.

A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais

particularmente no terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson

(The Price of Federalism,1995) sobre a experiência recente dos governos estaduais norte-

americanos. O autor percebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de

que os cidadãos "votam com os pés"11, ou seja, podem escolher o lugar que otimize melhor

a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diante disso, os estados ficaram entre

duas opções: ou forneciam um cardápio amplo de proteção social, tendo como efeito um

Welfare magnets, isto é, mais pessoas, sobretudo as mais pobres, iriam morar nestes

lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividade

econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam constituir uma

estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com

isso a afluência dos mais pobres àquela região e, novamente em tese, elevando a

competitividade econômica e a oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta

via – é o que Peterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnets e o

race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo a segunda opção, de

modo que o aumento da competição vem acompanhado da redução de políticas de combate

à desigualdade. Em suma, o modelo competitivo levado ao extremo piora a questão

redistributiva.

O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerra fiscal entre

os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e mais isenções às empresas, em

que cada governo subnacional procura oferecer mais do que o outro, geralmente sem se

preocupar com a forma de custear este processo. Ao fim e ao cabo, a resolução financeira

desta questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas gerações,

seja repassando tais custos ao nível federal e, por tabela, à nação como um todo.

A diminuição da solidariedade entre os entes federativos, a menor preocupação com

a eqüidade e a realização de disputas predatórias são defeitos de certos comportamentos

11 Esta visão foi formulada originalmente por Charles Tiebout (1956).

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competitivos no federalismo. Os laços que unem os pactuantes afrouxam-se, colocando a

autonomia individual - especialmente a dos mais fortes - contra a interdependência.

O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação entre competição

e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos.

Recorrendo mais uma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar:

"(...) todo sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolver um equilíbrio

adequado entre cooperação e competição, e entre o governo central e seus componentes"

(ELAZAR, 1993: 193 – grifo meu).

A coordenação federativa, por fim, depende muito do papel dos níveis superiores de

governo frente à descentralização, especialmente da ação do Governo Federal. Por um lado,

porque em vários países os governos subnacionais têm problemas financeiros e

administrativos que dificultam a desconcentração de atribuições. Por outro, porque a União

e outras instâncias federativas precisam arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de

incentivar a atuação conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das

políticas públicas.

Parafraseando o conceito elaborado por Flávio Rezende para analisar reformas

administrativas12, pode-se dizer que a descentralização numa Federação pode padecer de

"falhas seqüenciais". Ou seja, se não houver ações coordenadoras, particularmente da

União mas também dos estados, o processo descentralizador tende a ter piores resultados na

prestação dos serviços públicos. O ponto essencial desta questão é que o Governo Federal

precisa reforçar seu papel coordenador ante estas "falhas seqüenciais", porém não pode

fazê-lo contra os princípios básicos do federalismo, como a autonomia e os direitos

originários dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao

relacionamento intergovernamental e os controles mútuos. A resposta para este dilema, em

síntese, está na criação de redes federativas, e não de hierarquias centralizadoras.

A partir da definição histórico-conceitual de descentralização e de federalismo,

faremos a seguir a análise do caso brasileiro. Sabendo que não há um modelo único de

relações intergovernamentais, pois as Federações são bastante "elásticas" (ELAZAR, 1987:

11), tentaremos entender a singularidade do Brasil. Mais especificamente, após uma

discussão das trajetórias de nossa estrutura federativa, o objetivo primordial é mostrar como

12 Conforme REZENDE, 2002.

26

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o Governo Federal, na Era FHC, lidou com a questão da coordenação entre os níveis de

governo, tendo em conta, principalmente, o tema da descentralização.

III- A trajetória da Federação brasileira: da fundação ao ocaso do regime

militar

"Tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo antes das partes"

(Rui Barbosa)

O objetivo desta seção é analisar brevemente a evolução do federalismo brasileiro

até o golpe de 1964, procurando traçar seus caminhos básicos. Para tanto, partimos da

seguinte hipótese: há dois momentos importantes para a estruturação da nossa estrutura

federativa até a recente democratização do país, o da formação inicial (1) e o da criação e

evolução do chamado Estado varguista (2). Cada um destes episódios estabeleceu aspectos

que influenciam os passos das trajetórias posteriores – ou seja, uma relação de path

dependence (PIERSON, 2000).

A questão federativa teve um papel fundamental na formação do Estado brasileiro.

Antes mesmo de o país tornar-se uma Federação, o conflito entre o Poder Central e as elites

regionais tinha sido um dos pontos cruciais na definição dos parâmetros da construção

nacional. Mesmo tendo alcançado um inegável sucesso em sua conquista ultramarina, a

colonização portuguesa não logrou criar uma centralização político-administrativa capaz de

aglutinar e ordenar a ação dos grupos privados instalados ao longo do território brasileiro

(CARVALHO, 1993:54). O poder público era, no mais das vezes, o domínio das

oligarquias locais, poucas vezes atingidas por medidas centralizadoras e autoritárias da

Metrópole, predominando o modus operandi localista. Nascia aqui um dos ingredientes da

situação federalista brasileiro: o sentimento de autonomia. O outro foi o crescimento da

desigualdade entre as regiões do país ao longo da história.

Nossos pais fundadores sabiam da existência de uma situação federalista no Brasil,

mas temiam que ela gerasse desunião – as duas revoltas pernambucanas, em 1817 e 1824,

eram o retrato desta possibilidade. Como remédio, optou-se pela via do Estado Unitário e

monárquico. Esse arranjo institucional foi escolhido pela elite central em razão de seu

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temor quanto a uma possível repetição aqui da fragmentação territorial ocorrida na América

hispânica. Cabe lembrar que havia quatro vice-reinados na América espanhola, dos quais se

originaram dezessete países. Após as sangrentas lutas do período regencial, conformou-se

um modelo centralizador que vigorou, firmemente, por quase cinqüenta anos13.

O paulatino enfraquecimento de Dom Pedro II, a perda do apoio de importantes

setores políticos desde o final da Guerra do Paraguai e, como pá de cal, a abolição da

escravatura, foram fatores que solaparam as bases políticas do Império. Além destes, a

insatisfação crescente das elites locais com o excesso de centralização teve um peso

histórico muito grande. Os governantes das províncias eram indicados pela cúpula do Poder

central, que normalmente não só escolhia pessoas de outras regiões como estabeleceu uma

alta rotatividade no cargo. Por isso, a luta pelo fim da monarquia respondeu, em grande

medida, mais aos anseios por descentralização de poder do que por uma republicanização

da vida política. Deste modo, a república brasileira não só nasceu colada a um certo ideal

federativo como a ele foi subordinada.

A criação da Federação teve sua inspiração no modelo norte-americano, mas sua

conformação foi bastante diferente. Primeiro porque no momento de constituição do

federalismo brasileiro partiu-se de um Estado Unitário fortemente centralizado para um

modelo descentralizador de poder. A partir desta característica, nossa experiência estaria

mais para o modelo do hold together, em que uma união anterior desconcentra poder, tal

qual a construção federativa da Índia, do que para o do come together, a junção entre partes

antes separadas que distinguiu o protótipo estadunidense, segundo a terminologia utilizada

por Alfred Stepan (1999).

É neste sentido que Rui Barbosa, ao comparar nossa realidade com a norte-

americana, afirmou:

"Não somos uma Federação de povos até ontem separados e reunidos de ontem

para hoje. Pelo contrário, é da União que partimos. Na União nascemos" (apud TORRES,

1961: 22).

13 O longo período centralizador não significou o fim da discussão a respeito de nossa organização

político-territorial do poder. O célebre debate entre Visconde do Uruguai, defensor da centralização política e da descentralização administrativa, e Tavares Bastos, entusiasta do modelo norte-americano, teve um impacto enorme, mostrando que a situação federalista ainda se fazia presente (NUNES FERREIRA, 2000).

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O caso brasileiro, no entanto, também diferencia-se dos modelos de hold together,

os quais buscavam descentralizar poder e concomitantemente fortalecer a unidade nacional,

como também do protótipo norte-americano, porque neste era igualmente essencial a idéia

hamiltoniana de União, isto é, da criação de um nova estrutura que assegurasse a associação

entre as partes. No nascedouro da República Velha, Os líderes locais lutaram pela

Federação para aumentarem seu poderio interno e, sobretudo, para escolher autonomamente

o governador de Estado. Como bem percebeu João Camilo de Oliveira Torres:

"Afinal, federalismo entre nós quer dizer apego ao espírito de autonomia; nos

Estados Unidos, associação de estados para defesa comum. (...) A federação [brasileira]

era o nome, a figura e o rótulo ideológico para esta aspiração concreta e objetiva: a

eleição dos presidentes de província " (TORRES, 1961: 153).

Neste projeto federativo, portanto, só cabia a busca do autogoverno e pouco espaço

sobrava para a interdependência. Isto se agravou por conta da forte assimetria e

hierarquização existente entre os estados, com São Paulo e Minas Gerais detendo um poder

e uma riqueza muitos maiores do que a grande maioria das unidades, o que dificultava o

equilíbrio horizontal na Federação. Além disso, as oligarquias dominavam a política local

na República Velha, enfraquecendo qualquer ideal republicano e democratizador do

sistema político.

O governador de estado tornou-se o centro deste sistema oligárquico, no qual

imperava o unipartidarismo, as eleições irregulares, a fragilidade dos governos locais em

relação à máquina estadual, a ausência de espaço para a oposição, a falta de mecanismos de

fiscalização governamental e uma sociedade basicamente rural e com pouquíssima

autonomia e capacidade para controlar de fato os governantes (LEAL, 1986; LESSA, 1988;

ABRUCIO, 1998). Tratava-se, no Brasil, de um modelo muito distante do republicanismo

proposto pelos founding fathers norte-americanos, de modo que a fundação da Federação

descolou-se aqui do ideal republicano.

O caráter centrífugo (1), o federalismo assimétrico e hierárquico (2) e a

oligarquização do sistema político no plano subnacional, com o respectivo fortalecimento

dos governadores e de suas máquinas estaduais (3), constituem as três características

básicas do modelo federativo brasileiro em seu nascedouro. Esta configuração estruturou

caminhos que influenciaram o desenvolvimento político e econômico posterior. O peso dos

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“caciques regionais”, a desigualdade regional e a criação de um modelo político refratário à

republicanização nos níveis estadual e municipal são as maiores conseqüências do modo

como a Federação foi fundada no Brasil.

O ideário da Revolução de 30 posicionava-se firmemente contra o modelo da

política dos governadores e do federalismo oligárquico. Suas origens, no tocante à temática

político-territorial, estavam na nacionalização do discurso político desde os anos '1920,

principalmente por parte das Forças Armadas, e na crise da aliança do "café com leite",

com o questionamento do predomínio paulista. A partir destas pressões, o varguismo

anunciava-se como um momento disruptivo e fundador de uma nova ordem federativa

brasileira; em resumo, um verdadeiro momento "maquiaveliano" (POCOCK, 1975).

Entretanto, é preciso ressaltar que as mudanças foram gradativas, não rompendo de

imediato e por completo com as bases iniciais da Federação, além de sua evolução não ter

ocorrido de maneira linear e completamente coerente. Soma-se a isso a necessidade de se

constituir um Estado de compromisso (DRAIBE, 1985), a partir do qual vários grupos

conviveram no condomínio do poder.

O modelo varguista transformou o Estado nacional, em especial as estruturas do

Executivo Federal, no articulador de um projeto de desenvolvimento capitalista industrial,

sob a égide da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, e no principal organizador das

demandas sociais, a partir de um tipo de corporativismo (nas relações capital/trabalho) e de

clientelismo (nas relações governantes e governados), os quais serviram como instrumentos

de uma "modernização conservadora". Conformou-se, por esta via, o processo de state and

national building do Brasil moderno. Este modelo estatal perpassou governos e regimes

diferentes. Como bem notou Aspásia Camargo,

“(...) tivemos uma Era de Vargas com Vargas, uma Era de Vargas sem Vargas e,

finalmente, uma Era de Vargas contra Vargas, na medida em que a hostilidade do regime

de 1964 à sua herança populista não os impediu de reeditar estrutura semelhante ao

modelo autoritário que ele havia implantado, com os mesmos objetivos nacional-

desenvolvimentistas” (CAMARGO, 1993: 309).

Como este modelo varguista, alicerce de regimes e períodos distintos e que

sobreviveu algo em torno de cinqüenta anos, afetou e foi afetado pelo federalismo? Há

quatro importantes aspectos que devem ser observados na relação entre o varguismo e o

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federalismo até o golpe de 64: a) a centralização do poder e a consolidação do Estado

nacional (state and national building); b) a nova dinâmica regional do poder; c) as

mudanças ocorridas no período 46-64; d) os padrões de relações intergovernamentais

verticais e horizontais que foram construídos.

A primeira tendência importante foi a da centralização do poder. Pelo lado

econômico deste projeto, a ação centralizada no Executivo Federal procurou sustentar o

desenvolvimento por instrumentos estatais de fomento e atuação direta no mercado, via

empresas públicas. Pelo lado social, procurou constituir gradativamente uma estrutura de

políticas públicas, na maioria sustentadas e executadas pela União. E, por fim, pelo lado

administrativo, criou bolsões de meritocracia a partir do DASP, os quais, apesar de

conviveram com núcleos cartoriais e clientelistas, foram essenciais na modernização do

país.

Estes três aspectos tiveram relações conflituosas com os governos subnacionais e

suas elites. No que tange à intervenção econômica, a atuação direta do Governo Federal foi

crescendo ao longo do período, mas teve em alguns casos de ser compatibilizada com as

estruturas estaduais, o que gerou uma dificuldade de coordenação federativa que pode ser

resumida na seguinte frase: ou se estabeleceu um modelo fragmentado e sem comunicação

entre as esferas de governo – como no caso do setor elétrico – ou a União, de cima para

baixo e geralmente de forma autoritária, montou um modelo vertical e hierárquico de

atuação no plano subnacional. No aspecto social, as primeiras políticas de Welfare, com

algumas exceções, foram não só financiadas pela União mas normalmente por ela

executadas. Na verdade, a temática social presente no varguismo do período de 30 a 64

esteve mais vinculada ao corporativismo e à sua concepção de cidadania regulada do que a

um padrão orgânico de políticas sociais. Mas é na questão político-administrativa que

houve os maiores problemas. Por um lado, porque certo grau de patrimonialismo

permaneceu no plano federal, e, por outro, pois não houve a modernização da estrutura

administrativa dos estados

Utilizando novamente a perspectiva comparada, é interessante analisar o processo

de centralização e construção do state and national building nas Federações brasileira e

norte-americana. Nos EUA, o chamado modelo rooseveltiano aumentou o poder do

Governo Federal de forma democrática, consultando e negociando com os outros Poderes

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(SCHLESINGER, 1958). No caso brasileiro, por sua vez, a centralização do poder ocorreu

em pleno autoritarismo do Estado Novo e, com o fim deste, o período 46-64 foi marcado

pela dificuldade de estabelecer padrões mais cooperativos nas relações intergovernamentais

e entre os Poderes. Ainda no que se refere à experiência estadunidense, lá foram criadas

Comissões Nacionais de Reforma das estruturas político-administrativas dos estados, que

num primeiro momento (década de 30) atingiram o Poder Executivo, para mais adiante

serem implementadas modificações no Legislativo (década de 50) e no Judiciário (década

de 70) (BOWMAN & KEARNEY, 1986). No Brasil, ao contrário, o varguismo não

procurou alterar substancialmente o sistema político-administrativo subnacional. Em vez

disso, a redemocratização de 45 foi construída em parte sob as bases da estrutura

oligárquica dos estados e, noutra parte, com a burocracia federal instituída no Estado Novo

assumindo nichos fundamentais do sistema decisório, em detrimento dos partidos

(CAMPELLO DE SOUZA, 1976).

O modelo varguista também trouxe a questão regional à tona. A crítica ao domínio

da matriz do “café com leite”, em especial à hegemonia paulista, foi o que impulsionou a

proposição de medidas para, em tese, aumentar a igualdade numa Federação fundada sob o

signo da hierarquia e assimetria entre os estados e regiões. Duas proposições se destacaram

neste sentido: a elevação da desproporcionalidade de representação na Câmara Federal, em

proveito dos entes mais pobres e estancando o crescimento das cadeiras parlamentares à

disposição principalmente de São Paulo; e a criação de instrumentos que estabeleceram

formas de transferências de recursos inter-regionais. Na década de 50, com a criação da

Sudene, o discurso em prol dessas políticas fortaleceu-se mais ainda (COHN, 1976).

Um balanço dessas medidas destinadas a aumentar a simetria federativa deve

ressaltar dois pontos. O primeiro é o aumento da multipolaridade da Federação durante a

evolução do Estado varguista, de modo que houve um crescimento do número de estados

médios em termos de poder, dando maior equilíbrio ao jogo federativo (ABRUCIO, 1998).

O segundo ponto, contudo, revela que as políticas de compensação regional, bem como a

distorção representativa, não mudaram a extrema concentração do desenvolvimento

capitalista brasileiro na Região Sudeste e mais especificamente em São Paulo. Ao contrário,

o grande salto econômico verificado da década de 50 até o final da de 70 resultou numa das

Federações mais desiguais do mundo.

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O terceiro aspecto que devemos observar na relação entre o varguismo e o

federalismo são as mudanças ocorridas no período 46-64. A Constituição de 46 restituiu e

ampliou a autonomia e as liberdades dos estados, além de ter dado um raio de poder inédito

aos municípios. Estas modificações não foram realizadas, no entanto, retornando-se ao

padrão da estrutura federativa da Primeira República. A Segunda República inaugurava um

modelo mais equilibrado, já que dava à União a capacidade que lhe faltara no auge da

política dos governadores e, ao mesmo tempo, não reduzia os níveis de governo

subnacionais a meros agentes administrativos, como tinha acontecido no Estado Novo14.

O período 46-64 é marcado pela convivência da nacionalização dos mecanismos de

intervenção estatal com a manutenção da importância da política subnacional para o

sistema de poder. Neste sentido, é certo dizer que houve um processo descentralizador na

passagem do Estado Novo para a Segunda República, mas é errado afirmar que isso se fez

em detrimento do Governo Federal. Isto mostra que a tradicional classificação de sístoles e

diástoles, formulada originalmente por Golbery do Couto e Silva, e segundo a qual o Brasil

viveria ciclos de centralização sucedidos por outros de descentralização e assim por diante,

explica muito pouco as mudanças históricas realizadas na dinâmica intergovernamental do

país. Compartilho aqui da argumentação exposta por Kugelmas & Sola (1999) a respeito do

conceito das sístoles e diástoles:

“A tão sedutora metáfora [das sístoles e diástoles] atribuída ao general Golbery do

Couto e Silva e que tem sua origem no pensamento de Vilfredo Pareto é excessivamente

simplista e pode conduzir a erros. (...) Ficam na sombra alguns aspectos de continuidade

nestes processos que são essenciais para a melhor compreensão da evolução do regime

federativo e da oscilação entre centralização e descentralização. Se há um movimento

pendular, não há simetria neste movimento. Nem o Estado Novo chega a destruir a

estrutura federativa, nem a Constituição de 1946 abala o reforço do governo central e sua

ampliação de atribuições” (KUGELMAS & SOLA: 1999: 64 – grifo meu).

O estudo do impacto do modelo varguista no federalismo completa-se com a análise

das relações intergovernamentais no período. Constata-se primeiramente a criação de uma

Federação mais multipolarizada no plano horizontal, beneficiada pelas políticas regionais e

14 É interessante notar que a literatura comparada sobre federalismo somente classifica o caso

brasileiro como uma Federação a partir da Constituição de 1946, quando são garantidos princípios mais democráticos de convivência intergovernamental. (Cf. ELAZAR, 1987 e WATTS, 1994).

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pela desproporcionalidade congressual, apesar de São Paulo ainda concentrar a maior parte

do desenvolvimento econômico. Tal modificação não será acompanhada de uma

transformação radical dos sistemas políticos dos estados menos desenvolvidos, o que criará

um jogo federativo de barganha e autoproteção entre as elites dos lugares mais ricos com a

dos mais pobres. Em suma, a equação resultante da soma da multipolaridade com a não-

republicanização dos sistemas estaduais gerará, por muitas vezes, uma parceria entre o

moderno e o atraso.

As relações entre a União e os estados também ficaram mais equilibradas, o que

levará o Governo Federal a buscar apoios nas elites regionais para a aplicação de seus

projetos nacionais, especialmente naquelas vinculadas aos estados mais pobres. Como

contrapartida, o Executivo Federal tinha de distribuir verbas e cargos, num processo

bastante fragmentado e marcado pela irracionalidade. Em resumo, conviviam o insulamento

burocrático e o clientelismo, só que a capacidade de conjugar as duas coisas, com um

padrão de governabilidade mínimo, foi sendo minada ao longo do tempo (GEDDES, 1994).

O modelo varguista não resolveu, em suma, dois dilemas básicos que marcaram as

relações intergovernamentais: a dificuldade em estabelecer caminhos institucionais capazes

de compatibilizar as demandas das elites regionais com uma visão nacional dos problemas

do país e o descompasso entre a modernização (ainda que incompleta) das estruturas

estatais do Governo Federal e a permanência de padrões patrimonialistas em quase todos os

estados e municípios. Percebe-se, aqui, a força de alguns elementos presentes na fundação

do federalismo, evidenciando que o varguismo foi um corte sim na estrutura federativa da

Primeira República – sobretudo com o crescimento do poder da União –, mas não teve

capacidade de destruir por completo o antigo modelo, convivendo com ele ou o

modificando em parte, conforme o seu sucesso na negociação com as elites regionais.

O golpe de 64 refletiu num primeiro momento dois fenômenos antinômicos no que

se refere ao federalismo: a força dos poderes estaduais e a reação dos militares, principais

“atores nacionais” durante o varguismo, contra a antiga ordem constitucional, que para eles

reforçara demais a descentralização em detrimento do Governo Federal. Em relação ao

primeiro, constata-se que os governadores dos estados mais importantes - São Paulo, Minas

Gerais e Guanabara - foram decisivos no apoio à derrubada de Goulart, na suposição de as

Forças Armadas seriam um "Poder Moderador" temporário até a nova eleição à Presidência

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da República. Essa ilusão foi dissipada pela paulatina assunção do poder pelos militares,

que foram constituindo um projeto próprio. Um dos expoentes mais fortes do novo regime,

o general Golbery do Couto e Silva, tinha inclusive um diagnóstico claro dos efeitos do

federalismo no período anterior:

"(...) a Constituição de 1946 viria a consagrar os velhos ideais descentralizadores e

autonomistas, com drástico cerceamento do poder executivo em face do legislativo e

redução do poder central da União, o que acabaria, muitos outros fatores contribuindo

largamente, ao mesmo tempo, na quase anomia de 1963-64" (COUTO E SILVA, 1981: 12).

Na verdade, os militares localizavam na Federação a maior fonte de provável

oposição ao regime. Não por acaso a alteração da estrutura federativa era um objetivo

explícito e fundamental da cúpula governante. Buscava-se aumentar a capacidade decisória

do Executivo Federal e evitar a articulação oposicionista da elite civil nos estados,

especialmente a que pertencesse aos quadros dos partidos do período anterior ao golpe de

64. Como bem notou Brasílio Sallum Júnior:

“Dentre os mecanismos que cumpriram o papel de homogeneizar a vontade política

da camada dirigente, a nova forma de Federação, com estados e municípios menos

autônomos em relação à União, desempenhou o papel mais relevante. Muito mais do que o

novo sistema partidário, apesar da atenção muito maior que esse tem recebido da pesquisa

acadêmica” (SALLUM JÚNIOR, 1994: 3).

A ação dos militares para controlar a Federação também foi fruto da consolidação

desse grupo como principal ator nacional, em aliança com a tecnoburocracia federal. O

projeto deles constituiu uma nova combinação entre o varguismo e o autoritarismo. Como

mostrei em outro trabalho:

“O regime autoritário tinha como diretriz básica a maior centralização do poder

político e das decisões econômicas e administrativas na esfera do Governo Federal, e

dentro deste nas mãos do presidente da República. Dessa maneira, o regime militar seguia

o padrão varguista de organização do poder, caracterizado pela hipertrofia do Poder

Executivo Federal e pelo fortalecimento da Presidência da República como o centro

político do sistema, acentuando mais o seu caráter autoritário” (ABRUCIO, 1998: 63).

Este projeto fica claro na estrutura federativa montada pelo regime militar, o

chamado modelo unionista-autoritário (ABRUCIO, 1998). Em linhas gerais, este modelo

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tinha, no plano político, o objetivo de cercear o poder das elites estaduais mediante a

adoção da eleição indireta para o cargo de governador; no âmbito financeiro, várias

mudanças tributárias implementadas entre 1965 e 1968 redundaram numa forte

centralização da receita; e, por fim, no plano administrativo, procurava-se impor um padrão

uniforme e obrigatório às administrações estaduais em termos de políticas públicas. Em

suma, o modelo unionista-autoritário procurava acabar com os contrapesos advindos da

estrutura federativa.

O modelo de relações intergovernamentais no regime militar ficou marcado,

portanto, por uma concepção autoritária e vertical. Nele, havia espaço para uma

"cooperação" de mão única: os governos subnacionais tinham de obedecer e colaborar com

os planos da União. Para tanto, foram utilizados os convênios, que repassavam recursos e

assistência técnica, e uma série de ações conjuntas entre as estatais federais e estaduais,

pois com o Decreto Lei 200 (1967) descentralizou-se à administração indireta a realização

da maioria dos programas de desenvolvimento e de intervenção no setor de infra-estrutura.

Obviamente, caso estados e municípios se recusassem a participar deste jogo, ficariam sem

o bônus das verbas e do apoio burocrático, e estariam alijados do processo de state building

realizado pelo varguismo em seu período militar. Antonio Carlos Medeiros define

precisamente este federalismo cooperativo à brasileira:

“As relações entre estados e municípios com o governo central eram análogas a de

um cliente com um banqueiro: o último está sempre em uma posição de poder. Parceria

não é um conceito adequado para descrevê-las” (MEDEIROS, 1986: 175).

O efeito desse modelo autoritário e verticalizado de relações intergovernamentais é

ainda mais profundo caso levemos em conta o papel do regime militar nas áreas econômica

e social. Na primeira, especialmente na gestão de Ernesto Geisel, houve um

aprofundamento do nacional-desenvolvimentismo, por intermédio das estratégias de

substituição de importações e de expansão das estatais. Como mostra José Luiz Fiori:

“Até os anos 30, o Brasil dispunha de apenas 14 empresas estatais. Entre 1930 e

1954, na Era Vargas, o Estado gerou 15 novas empresas; nos cinco anos de governo

Kubitschek, 23; com Goulart foram criadas 33; e durante os 20 anos de regime militar,

302” (FIORI, 1995: 58).

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Além do intervencionismo no terreno econômico, o regime militar instituiu de fato o

moderno Welfare State brasileiro, uma vez que houve uma ampliação enorme das diversas

políticas públicas, que atingiram uma parcela crescente de pessoas (DRAIBE, 1996).

Porém, o nosso incipiente Estado de Bem Estar Social era muito menos universalista do

que o padrão europeu e desenvolveu-se num contexto marcado por restrições democráticas.

Entre as suas principais peculiaridades, destacavam-se o alto grau de centralização

financeira, a concentração das principais decisões na burocracia federal, a implementação

de programas que privilegiaram mais os grupos organizados e a classe média ascendente, a

expansão dos serviços sem uma profunda transformação da estrutura administrativa

subnacional que lhe dava suporte, a falta de mecanismos de participação da sociedade no

controle e discussão da elaboração das políticas governamentais e, por fim, a ausência de

estruturas que dessem conta do problema do shared decision making, isto é, de

instrumentos políticos e burocráticos que fizessem a intermediação entre os níveis de

governo.

O modelo unionista-autoritário, contudo, não acabou com os conflitos

intergovernamentais, havendo constantes negociações, concessões e mudanças de rumo que

ocorreram no período. Um aspecto nodal determinou isso: a cúpula governante nunca pôde

prescindir do apoio da elite civil para permanecer no poder e, para tanto, manteve algumas

eleições para determinados cargos, todas com base no plano subnacional. Os efeitos desta

engenharia política ficaram mais claros em 1974, quando o regime perdeu a disputa ao

Senado em vários estados, a primeira grande derrota desde a formação do sistema

bipartidário. Ao aspecto político somaram-se a crise econômica, o aumento das dissensões

na corporação militar e a pressão cada vez maior dos setores urbanos por políticas públicas,

conformado uma situação que resultou em intensas barganhas federativas.

Uma primeira ação neste sentido foi o II PND. Concebido e implantado pelo

presidente Geisel e sua equipe do Ministério do Planejamento, este projeto efetuou ou

induziu investimentos para desconcentrar o desenvolvimento para além da Região Sudeste,

favorecendo a criação de pólos industriais em estados médios, como Rio Grande do Sul e

Bahia, e tendo grande amplitude no setor de infra-estrutura em várias áreas do país. Em

poucas palavras, buscava-se o apoio das elites de regiões menos desenvolvidas, para

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contrabalançar o enfraquecimento político do regime nos grandes centros e nas unidades

estaduais mais fortes, especialmente em São Paulo e, em menor medida, no Rio de Janeiro.

Foram elevadas também as transferências federais obrigatórias e voluntárias para

estados e municípios, além de o Governo Federal ter afrouxado os limites de endividamento

e ampliado as linhas de crédito. Mais do que isso, houve um paulatino restabelecimento da

autonomia financeira que os governos subnacionais praticamente haviam perdido. É neste

ponto que o movimento deixa de ser uma mera barganha e transforma-se em recuo ou

mesmo perda de controle dos governos militares sobre o processo. Em 1978, os governos

estaduais recuperaram a capacidade de definir as alíquotas do então ICM, antes decididas

pelo Senado. Dali para diante, o avanço descentralizador continuou em linha ascendente até

sua consolidação na Constituição de 1988.

O caminho mais difícil para os governos subnacionais passava então pela

recuperação da autonomia política e administrativa. O desenrolar do regime militar foi

solapando a legitimidade do poder da cúpula governante, sobretudo com a diminuição do

ímpeto econômico. Isso se fez presente, primeiramente, na divisão interna ao próprio

partido governista, a Arena. Por várias vezes, ocorreu um conflito entre o que poderíamos

chamar de Arena I, vinculada ao Poder Central e/ou aos governadores escolhidos pelo

Planalto, e a Arena II, constituída por boa parte da elite política governista que se sentia

alijada do poder. Quanto mais o Governo Federal enfraquecia-se no plano econômico e/ou

tentava enfiar “goela abaixo” seus candidatos aos cargos estaduais, mais a Arena II se

fortalecia e reagia, inclusive contrariamente aos interesses do regime. Como se vê, o corte

regional afetou profundamente o projeto do militares (ABRUCIO & SAMUELS, 1997).

Mas a autonomia política e administrativa só poderia ser recuperada com o fim das

eleições indiretas a governador, o que ocorreu na eleição de 1982, fato que mudou a

Federação e, ao mesmo tempo, abriu as portas para a transição democrática.

IV - Redemocratização e o Novo Federalismo Brasileiro

As eleições diretas a governador, em 1982, contribuíram significativamente para o

ocaso do regime militar e de seu modelo unionista-autoritário. Mais do que isso, a vitória

da oposição modificou a história política do país, fazendo com que a transição democrática

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brasileira se iniciasse pelo plano estadual e não por um pleito nacional, tornando nossa

experiência quase única nos processos de Terceira Onda de redemocratização (LINZ &

STEPAN, 1996).

As oposições conquistaram 10 dos então 22 governos estaduais, administrando

estados que representavam 56% das população do país, 75% do PIB e cerca de 75% do

ICM, principal imposto subnacional de então (FERREIRA FILHO, 1983: 181-182). Esse

resultado eleitoral criou aquilo que Juan Linz e Alfred Stepan chamaram de diarquia (LINZ

& STEPAN, 1992: 61-62). Ou seja, havia duas estruturas de poder competindo entre si:

uma era a do Governo Federal, comandada pelos militares, e a outra formada pelos

governadores de estado, principalmente os da oposição, mas não só, porque até os da

situação aproveitaram-se do momento para barganhar e angariar mais recursos e autonomia.

A partir dessa diarquia, os governadores constituíram-se em peças-chave da

redemocratização, atuando em episódios decisivos. Primeiro na campanha das Diretas,

maior movimento de oposição ao regime militar. Neste caso, foi fundamental a ação do

governador paulista, Franco Montoro, somada depois a de outros da oposição. Isto porque o

controle dos recursos dos governos estaduais, dentre os quais estavam o uso de prédios e

transportes públicos e o efetivo da Polícia Militar, garantiram a logística básica para o

sucesso das manifestações (Cf. SALLUM JÚNIOR, 1996: 102; ABRUCIO & SAMUELS,

1997; 155).

Outra influência decisiva dos estados foi na eleição indireta de Tancredo Neves,

então governador de Minas, à Presidência da República. Neste episódio, os governadores

de oposição articularam-se inicialmente entre si e depois com a maioria dos vinculados ao

PDS, a fim de vencer a candidatura oficial de Paulo Maluf. É bom recordar que cada estado

tinha o direito de escolher seis delegados para o Colégio Eleitoral, eleitos pelas

Assembléias Legislativas, todas praticamente controladas pelos governadores. Por isso, o

“voto” dos governadores situacionistas era fundamental, e a articulação de Tancredo

angariou o apoio integral de nove desses doze governadores (DIMENSTEIN et alii, 1985).

A vitória de Tancredo Neves conformou um tipo específico de transição

democrática, que pode ser resumida do seguinte modo;

“(...) a negociação da transição não foi feita só entre os moderados de ambos os

lados, mas também foi articulada e selada por meio de um pacto entre governadores em

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ascensão no cenário político nacional e elites regionais que sempre tiveram influência no

jogo político federativo – Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, e Jorge Bornhaunsen

eram exemplos típicos dessas elites. A transição passou muito mais pela dinâmica da

Federação do que por negociações partidárias definidoras do conteúdo e da forma do

governo que se instalaria. Não por acaso o pacto entre a dissidência do PDS – a Frente

Liberal – com a oposição, iniciado efetivamente em uma reunião no Palácio dos Jaburus

entre Aureliano Chaves e Tancredo Neves, foi apelidado de ‘Acordo Mineiro’"(ABRUCIO,

1998: 101).

O papel dos governadores continuou destacado mesmo depois de completada a

passagem do poder aos civis. Isto se deveu basicamente à evolução institucional do sistema

político brasileiro ao longo da redemocratização. O elemento chave, aqui, foi a

coincidência entre os pleitos estaduais majoritários com todas as eleições proporcionais,

nacionais e estaduais, do período que vai de 1982 até 1994, num total de três disputas sob

esta lógica, ao passo que só houve uma eleição presidencial, e esta foi “solteira”. Ademais,

o "caráter fundador" das eleições a governador, que inauguraram um novo período

competitivo, teve efeito sobre a dinâmica seguinte da transição reforçando um

comportamento mais estadualista na classe política – o contrário (comportamento mais

nacional) teria ocorrido se iniciássemos redemocratização escolhendo o presidente ou uma

Assembléia Constituinte.

Essa coincidência eleitoral, somada à legitimidade e ao poder político dos

governadores, fez com que eles fossem decisivos na elaboração da Constituição, exercendo

grande influência sobre importantes regras que definiram o funcionamento do novo regime

democrático e a organização do Estado, especialmente no que diz respeito à

descentralização tributária e isenções fiscais, distribuição de competências e estruturação

do poder político-administrativo no nível estadual.

Os prefeitos também aumentaram o seu poderio na Federação, numa dimensão

inédita em nossa história. Com a ampliação das eleições municipais, aumentando os cargos

do mercado político brasileiro, e por conta do impacto que as bases locais têm no

comportamento da classe política, em especial a do ramo legislativo, os governantes locais

tornaram-se peças-chave do sistema. Aos prefeitos, ademais, juntaram-se vários atores que

começaram a defender um discurso municipalista. Entre estes, destacavam-se acadêmicos,

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movimentos populares urbanos e, sobretudo, grupos profissionais das diversas áreas de

políticas públicas, tais como saúde, educação, habitação, assistência social e meio

ambiente, para ficar nas principais.

Um novo federalismo estava nascendo no Brasil. Ele foi resultado da união entre

forças descentralizadoras democráticas com grupos regionais tradicionais, que se

aproveitaram do enfraquecimento do Governo Federal num contexto de esgotamento do

modelo varguista e do Estado nacional-desenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto

básico era fortalecer os governos subnacionais e, para uma parte destes atores, democratizar

o plano local. Preocupações com a fragilidade dos instrumentos nacionais de atuação e com

coordenação federativa ficaram em segundo plano.

Dois fenômenos destacam-se neste novo federalismo brasileiro: o estabelecimento

de um amplo processo de descentralização, tanto em termos financeiros e políticos, como

também no que se refere à criação de novas formas de relação entre os governos locais e a

sociedade; e a criação de um modelo predatório e não-cooperativo de relações

intergovernamentais, com predomínio para o componente estadualista. Grupos técnicos e,

em menor medida, políticos alojados no Governo Federal reagiram a este processo,

produzindo também outro componente das relações intergovernamentais nos anos 80' e 90':

a concepção centralizadora tecnocrática, com outra roupagem em relação ao regime militar,

mas com características e defeitos similares.

Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório, visto que ele

teve um impacto enorme também no outro processo (a descentralização). De 1982 a 1994,

vigorou um federalismo estadualista, não-cooperativo e muitas vezes predatório

(ABRUCIO, 1998). Essa reviravolta na Federação brasileira só pôde se efetivar, em

primeiro lugar, porque a União e a própria Presidência da República entraram numa séria

crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise abarcava o modelo de financiamento

estatal do desenvolvimento, o equilíbrio das contas públicas nacionais, a burocracia federal,

enfim, os instrumentos de poder do Executivo Federal.

Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro características do sistema

político também contribuíram para aumentar o poderio dos estados e seus governadores.

São elas:

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a) o sistema ultrapresidencial que vigorou – e em grande medida ainda vigora – nos

estados, o qual fortaleceu sobremaneira os governadores no processo decisório e

praticamente eliminou o controle institucional e social sobre o seu poder (ABRUCIO,

1998);

b) a lógica da carreira política brasileira, cuja reprodução se dá pela lealdade às base

locais e pela obtenção de cargos executivos no plano subnacional ou então aqueles no nível

nacional que possam trazer recursos aos “distritos” dos políticos. Em ambos os casos, o

Executivo estadual é peça fundamental, seja no monitoramento das bases para os

deputados, seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administração pública

federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997);

c) os caciques regionais ocuparam ocupado posição destacada de liderança no

Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes a despeito dos partidos, por

outras, tornando-se grandes proprietários de parcelas dos condomínios partidários. E para

se chegar a tal “posto”, quase sempre era necessário ter ocupado uma governadoria e

continuar sendo influente na gestão do atual governador – melhor que seja o controlando,

como bem mostra a experiência de maior cacique regional do período, Antonio Carlos

Magalhães.

d) Os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrativos que os

fortaleciam no sistema de poder. Os Bancos estaduais, um número considerável de cargos

na administração direta e indireta, o tributo que mais recursos recolhe no país – o ICMS,

que abarca cerca de 30% da arrecadação total – e, até então, um contingente considerável

de empresas estatais em áreas estratégicos, como o setor elétrico.

O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração de um

federalismo estadualista e predatório. Estadualista porque o pêndulo federativo esteve a

favor das unidades estaduais em termos políticos e financeiros. Este aspecto estava

igualmente presente no comportamento atomizado e individualista dos governadores, cujo

fortalecimento não resultou numa coalizão nacional em torno de um projeto de hegemonia

nacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter o status quo. Assim,

cada “barão” estadual se preocupava apenas com a manutenção do poder que a estrutura

federativa lhe proporcionava.

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O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão de competição

não-cooperativa que predominava nas relações dos estados com a União e deles entre si.

Desde o final do regime militar, as relações intergovernamentais verticais tinham sido

marcadas pela capacidade dos estados repassarem seus custos e dívidas ao Governo Federal

e, ainda por cima, não se responsabilizarem por este processo, mesmo quando assinavam

contratos federativos. Caso clássico disso foram os Bancos Estaduais. A partir de 1982, as

instituições financeiras estaduais foram utilizadas pelos governadores como instrumento de

atuação política. Foram criadas verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos

deletérios para a inflação e para o endividamento global. O principal efeito desta relação

predatória era que, como aponta Sérgio Werlang, "todos os bancos estaduais [tinham]

potencial de transferência do déficit fiscal do Estado para a União, não de direito mas de

fato. Dessa forma, a política macroeconômica do Governo Federal passava a depender dos

Governos Estaduais"15.

Não por acaso as dívidas vinculadas aos Bancos estaduais quadruplicaram no

período que vai de 1983 a 1995. Pior: além de não controlá-los, o Governo Federal

regularmente cobria seus déficits, socorrendo os estados com dinheiro que não seria

recuperado. Exemplos disso foram as ajudas às instituições financeiras subnacionais após

as eleições de 1982, 1986 e 1990. Em todas estas vezes, a União, por meio do Banco

Central, intervinha, cobria seus rombos, saneava suas contas e depois os devolvia para os

governadores, sem nenhum prejuízo aos cofres públicos dos estados - e tudo isso era

repassado, em forma de dívida, para toda a nação.

No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório teve lugar na guerra

fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de 1988 e ainda continua vigorosa

nas práticas federativas. O fato é que o estadualismo predatório acabará sendo ele próprio

um dos elementos geradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante.

Este contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização: o intento de

reforçar os governos subnacionais, obtendo-se uma autonomia inédita. A Federação tornou-

se uma cláusula pétrea, e sua extinção ou medidas que alterem profundamente seus

princípios não podem ser objetos de Emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4). Os

estados ganharam maior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação

15 Apud BANCO CENTRAL DO BRASIL, 1992: 181.

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no plano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins),

extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA, 1999: 55). A liberdade

dada às Constituintes estaduais também forneceu um terreno fértil para a independência

federativa.

Pela primeira vez na história brasileira e sem paralelo na experiência internacional,

os municípios transformaram-se em entes federativos, constitucionalmente com o mesmo

status jurídico dos estados e da União16. Hely Lopes Meirelles, um dos maiores

especialistas em Direito Administrativo no Brasil, afirma que a nova Constituição deu ao

município a condição de “entidade estatal, político-administrativa, com personalidade

jurídica, governo próprio e competência normativa” (MEIRELLES, 1993: 116). Não

obstante esta autonomia, os governos locais respeitam uma linha hierárquica quanto à sua

capacidade jurídica – a Lei Orgânica, por exemplo, não pode contrariar frontalmente a

Constituição estadual –, e são, no mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores

de governo no que tange às questões políticas, financeiras e administrativas.

A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medida das conquistas

tributárias, iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983, e consolidadas na Constituição

de 1988, o que faz do Brasil o país em desenvolvimento com maior grau de

descentralização fiscal (SOUZA, 1998: 8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a

maior elevação relativa na participação do bolo tributário, apesar de grande parte deles

depender muito dos recursos econômicos e administrativos das demais esferas de governo.

O fato é que os constituintes reverteram a lógica centralizadora do modelo unionista-

autoritário, e mesmo as recentes alterações que beneficiaram a União não modificaram a

essência descentralizadora das finanças públicas brasileiras.

A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de se democratizar o

plano local. Embora este processo seja desigual na sua distribuição pelo país e tenha um

longo caminho pela frente, ele redundou numa pressão sobre as antigas estruturas

oligárquicas, conformando um fenômeno sem par em nossa história federativa. Daí

surgiram novos atores, como os conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que

não tinham acesso real à competição pelo poder - o crescimento gradativo da esquerda nas

eleições municipais, em particular o PT, demonstra isso. Também surgiram formas

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inovadoras de gestão, como o Orçamento participativo e a Bolsa Escola, para ficar em dois

casos famosos. Tais exemplos nos remetem às idéias norte-americanas do “Laboratório de

Democracia” e do “Reinventando o Governo”17.

As conquistas da descentralização não apagam os problemas dos governos locais

brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocam obstáculos ao bom desempenho

dos municípios do país: a desigualdade de condições econômicas e administrativas; o

discurso do “municipalismo autárquico”; a metropolitanização acelerada; os resquícios

ainda existentes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam a

accountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais.

Desde a fundação da Federação, o Brasil é historicamente marcado por fortes

desigualdades regionais. Em termos comparados, o Brasil está em terceiro lugar na lista dos

países com alto índice de desigualdade regional, numa situação pior do que a da Índia,

protótipo de Federação marcada por disparidades econômicas, e melhor apenas do que,

respectivamente, a Rússia e a China (SHAH, 2000).

É bem verdade que o Brasil vem atacando as desigualdades regionais desde o

período varguista e tais medidas foram ampliadas pela Constituição de 1988, por meio de

transferências tributárias, incentivos fiscais e medidas redistributivas na área social.

Embora tenha havido uma mudança na assimetria federativa existente no momento da

fundação da Federação, estamos bem longe dos ideais que mobilizaram Celso Furtado e

outros homens públicos brasileiros. As duas tabelas a seguir, elaboradas por Clélio

Campolina Diniz (2000), retratam as diferenças inter-regionais sob dois aspectos: o

econômico e o social.

16 Já no seu artigo 1, a Constituição define que “a República Federativa do Brasil, [é] formada pela

união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (...)”. 17 Entre os diversos livros que tratam da temática da inovação municipal no Brasil, podemos citar os

de SPINK & CLEMENTE, 1997; e o de PAULICS, 2000.

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Tabela 1 - Brasil: distribuição regional da área geográfica, PIB e população. 1970-1996

Brasil/Regiões/ Estados

Área* PIB 1970 1996

População** 1996

Rondônia 2,8 0,1 0,8 0,8 Acre 1,8 0,1 0,3 0,2 Amazonas 18,4 0,7 1,3 1,4 Roraima 2,7 -- 0,2 0,1 Pará 14,5 1,2 2,3 3,5 Amapá 1,6 0,1 0,2 0,3 Norte 41,8 2,2 5,1 6,3 Maranhão 3,8 0,9 1,5 3,4 Piauí 3,0 0,4 0,5 1,7 Ceará 1,8 1,5 1,8 4,3 Rio Grande do Norte 0,6 0,6 1,0 1,6 Paraíba 0,7 0,7 0,8 2,2 Pernambuco 1,2 3,0 2,3 4,8 Alagoas 0,3 0,7 0,6 1,7 Sergipe 0,5 0,5 0,8 1,0 Bahia 6,6 3,8 4,5 8,2 Nordeste 18,5 12,1 13,5 28,9 Minas Gerais 6,9 8,3 9,8 10,7 Espírito Santo 0,5 1,2 1,7 1,8 Rio de Janeiro 0,5 16,1 11,4 8,7 São Paulo 2,9 39,4 35,1 21,5 Sudeste 10,8 65,0 58,0 42,7 Paraná 2,4 5,5 5,7 5,8 Santa Catarina 1,1 2,8 3,1 3,1 Rio Grande do Sul 3,2 8,7 7,0 6,2 Sul 6,7 17,0 15,8 15,1 Mato Grosso do Sul 4,2 ---- 1,2 1,2 Mato Grosso 10,4 ---- 1,1 1,4 Goiás 7,6 ---- 2,3 3,3 Distrito Federal - 1,0 2,7 1,1 Centro-Oeste 22,2 3,7 7,3 7,0 Brasil 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: CAMPOLINA DINIZ, 2000: 23 * área total = 8.547.403 km2

** população total = 157.079.573 habitantes

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Tabela 2 Brasil: indicadores de desenvolvimento econômico e social por estados e Regiões. 1970-1996.

Estados/Regiões PIB per capita (US$) 1970 1996

Expectativa de vida ao nascer (anos) 1970 1996

Taxa de Alfabetização*

1970 1996

Rondônia 1.302 6.448 54 67 65 86 Acre 2.025 5.741 53 67 47 70 Amazonas 1.302 5.718 54 68 63 79 Roraima 1.591 6.231 52 66 66 86 Pará 1.736 4.268 54 68 68 79 Amapá 1.157 5.370 55 68 66 85 Tocantins - 1.575 - 67 - 78 Norte 1.302 4.705 54 67 63 79 Maranhão 579 2.158 49 63 41 67 Piauí 434 2.004 49 64 40 66 Ceará 723 2.667 43 65 45 69 Rio Grande do Norte 723 4.083 39 65 46 72 Paraíba 723 2.438 39 63 45 69 Pernambuco 1.157 3.213 41 62 50 74 Alagoas 868 2.496 41 62 39 64 Sergipe 1.013 5.122 45 66 47 75 Bahia 1.013 3.677 49 66 49 76 Nordeste 869 3.085 44 64 46 72 Minas Gerais 1.591 5.968 54 69 66 87 Espírito Santo 1.591 6.251 58 69 67 86 Rio de Janeiro 3.761 8.653 57 67 83 94 São Paulo 4.629 10.536 58 69 81 93 Sudeste 3.472 8.843 57 69 77 91 Paraná 1.736 6.485 58 69 69 88 Santa Catarina 2.025 6.519 61 71 81 93 Rio Grande do Sul 2.749 7.395 65 71 82 93 Sul 2.170 6.865 60 70 77 91 Mato Grosso do Sul - 6.410 - 69 - 88 Mato Grosso 1.447 5.003 58 68 64 88 Goiás 1.157 5.238 55 69 64 87 Distrito Federal 4.051 14.854 54 68 83 94 Centro-Oeste 1.591 7.073 56 69 68 88 Brasil 2.315 6.491 53 68 67 85 Fonte: CAMPOLINA DINIZ, 2000: 25 * pessoas de 15 anos ou mais de idade que podem ler ou escrever

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A disparidade de condições econômicas é reforçada pela existência de um

contingente enorme de municípios pequenos, com baixa capacidade de sobreviver apenas

com recursos próprios. A média por Região é de 75% dos municípios com até 50 mil

habitantes, ao passo que no universo total há 91% dos poderes locais com este contingente

populacional (RESENDE, 2000; ARRETCHE, 2000: 247). Além do mais, argumenta

Marta Arretche:

“O porte populacional dos municípios tem uma relação direta com sua capacidade

de gasto: nos Estados do Nordeste, a receita corrente própria per capita dos municípios

com população inferior a 50 mil habitantes é inferior a R$ 10,00; nos Estados do Sul, esta

cifra é inferior a R$ 53,00 e, nos Estados do Sudeste, inferior a R$ 77,00” (ARRETCHE,

2000: 247).

A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maior sob o ponto

de vista comparado. Segundo estudo realizado por José Roberto Afonso e Érica Araújo

(2000: 48), os governos locais brasileiros estavam em décimo quinto lugar em termos de

base de arrecadação própria num universo de dezenove países. Mas além da fragilidade

financeira, a maior parcela das municipalidades detém uma máquina administrativa

precária - embora o Governo Federal durante os anos FHC tenha atuado para minorar este

problema, como veremos depois. Problemas de capacidade burocrática constituem

elemento que cria uma "falha seqüencial" na descentralização. O sucesso do processo

descentralizador, diante dessa realidade, vai depender muito das ações dos níveis superiores

de governo e do desenho das políticas públicas, os quais devem oferecer auxílio

intergovernamental mas também incentivos para que as próprias gestões locais alterem sua

estrutura. Caso contrário, essa "falha seqüencial" criará uma eterna dependência dos

municípios em relação aos estados e à União.

Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento da

descentralização no Brasil foi prejudicado exatamente pelo discurso que a defendia: a

argumentação em prol da municipalização. Por um lado, a postura municipalista foi

essencial para modificarmos o padrão centralista de produção e implementação de políticas

públicas que vigorou ao longo do período varguista, particularmente no regime militar.

Ademais, foi igualmente a partir dela que diversos avanços democratizadores e novas

posturas em relação à gestão pública surgiram no cenário federativo brasileiro. Porém,

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conformou-se uma ideologia segundo a qual os governos locais poderiam sozinhos resolver

todos os dilemas de ação coletiva colocados às suas populações. Trata-se de um

municipalismo autárquico, como bem definiu certa vez Celso Daniel, ex-prefeito de Santo

André. É interessante reforçar que Celso foi um defensor da bandeira municipalista, além

de um inovador administrativo e um democratizador das relações entre Estado e sociedade,

mas também sabia dos limites do poder local no país.

O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a "prefeiturização",

tornando os prefeitos atores por excelência do jogo local e intergovernamental. Cada qual

defende seu município como uma unidade legítima e separada das demais, o que é uma

miopia em relação aos problemas comuns em termos micro e macroregionais. Numa

hipótese que constata maior perversidade neste fenômeno, o municipalismo autárquico se

transforma numa plataforma de poder e ascensão a lideranças locais.

O quadro institucional favorece o municipalismo autárquico. Primeiro porque não

há incentivos para que os municípios se consorciem, dado que não existe nenhuma figura

jurídica de direito público que dê segurança política para os governos locais que buscam

criar mecanismos de cooperação. Mesmo assim, em algumas áreas os consórcios

desenvolveram-se mais, como em meio ambiente e na saúde, mas ainda numa proporção

insuficiente para a dinâmica dos problemas intermunicipais. Ao invés de uma visão

cooperativa, predomina um jogo no qual os municípios concorrem entre si pelo dinheiro

público de outros níveis de governo, lutam predatoriamente por investimentos privados e,

ainda, muitas vezes repassam custos a outros entes, como é o caso de muitas prefeituras que

compram ambulâncias para que seus moradores utilizem os hospitais de outros municípios,

sem que seja feita uma cotização para pagar as despesas. Neste aspecto, a questão da

coordenação federativa é chave.

Em segundo lugar, a estrutura tributária baseada em transferências

intergovernamentais, não obstante ser essencial numa Federação desigual, não estabelece

no caso brasileiro, ao contrário de outros países federativos, qualquer tipo de estímulo para

aumentar a arrecadação tributária ou então para compartilhar despesas de forma horizontal.

A distribuição dos recursos tornou-se ainda mais irracional com a multiplicação de

municípios, que ganhou força após a promulgação da Constituição de 1988. O impulso para

isso adveio de quatro fatores: a) o recebimento automático de dinheiro provindo do Fundo

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de Participação dos Municípios (FPM) para todo distrito que se emancipar; b) a criação de

novos municípios pode servir ao desejo dos governadores de redesenhar o mapa eleitoral

em regiões cuja competição política seja baixa o suficiente para permitir a entrada de um

novo líder - mais uma demonstração da força do estadualismo; c) a ausência de um nível

intermediário entre o governo estadual e o municipal exacerba o conflito entre os líderes

locais por verbas públicas, tornando irracional os resultados regionais das políticas

(ABRUCIO, 2000: 327-328).

A partir destes fatores, houve uma grande multiplicação de municipalidades no

Brasil, como mostra a tabela abaixo:

Tabela 3 A Multiplicação dos Municípios (1988-1997) 1988 1997 1988 1997 Amapá 5 16 Rio Gde do Norte 152 166 Acre 12 22 Alagoas 97 101 Rondônia 19 52 Sergipe 74 75 Roraima 2 15 Paraíba 171 223 Amazonas 60 62 Pernambuco 168 185 Pará 88 143 Bahia 367 415 Tocantins 83 139 Minas Gerais 722 853 Distrito Federal 1 1 Espírito Santo 58 77 Goiás 184 242 Rio de Janeiro 66 91 Mato Grosso 93 126 São Paulo 572 645 Mato G. do Sul 72 77 Paraná 297 399 Piauí 48 221 Santa Catarina 199 293 Maranhão 136 217 Rio Gde do Sul 273 467 Ceará 170 184 Total 1988 = 4.189 Total/1997 = 5.507 Fontes: ABRUCIO, 1998a: 33.

O processo de multiplicação de municípios tornou-se efetivamente predatório

porque beneficiou mais as pequenas municipalidades, onde há menor população e menos

problemas coletivos, levando-se em conta sua magnitude e complexidade. Por tabela, foram

prejudicados os governos locais de médio para grande porte, com maior população e onde a

demanda por recursos públicos é mais necessária e premente. Ao se observar os resultados

da enorme emancipação de distritos pelo pais, conclui-se o seguinte:

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a) Primeiro, mais da metade dos municípios criados até 2002 tinham até

cinco mil habitantes e mais de 95% tem, no máximo, 20 mil habitantes

(GOMES & MAC DOWELL: 2000). Criou-se um terreno para a fragmentação

do país, ao contrário da tendência internacional. Para dar um exemplo, em 14

dos 15 países da União Européia houve diminuição do número de comunas e

agregação de poderes locais;

b) Os municípios criados têm a menor porcentagem de receita própria

dentro da receita total e são os que têm, disparado, a maior receita per capita

dentro do total (GOMES & MAC DOWELL: 2000).. Assim, a multiplicação de

municípios significou, de um lado, um estímulo a irresponsabilidade fiscal e a

dependência em relação às transferências intergovernamentais e, de outro,

retirou recursos dos maiores para os menores

c) Por fim, a maioria dos municípios criados, além de representarem

uma parcela ínfima da população brasileira, está gastando a maior parte dos

recursos apenas para pagar suas contas mínimas, sendo os que mais gastam com

os três Poderes (GOMES & MAC DOWELL: 2000). Ao invés de significar um

repasse de gastos para a área social, resolvendo melhor os problemas que

estariam sendo prejudicadas pelo município-mãe, o desmembramento

concentrou renda nas mãos da elite política local.

Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi a intensa

metropolitanização do país. Não só houve um crescimento das áreas metropolitanas, em

número de pessoas e de organizações administrativas, como também os problemas sociais

cresceram gigantescamente nestes lugares. No entanto, a estrutura financeira e político-

jurídica instituída pela Constituição de 1988 não favorece o equacionamento desta questão.

No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos constituintes foi por um sistema de

repartição de rendas intergovernamentais com viés fortemente anti-metropolitano

(REZENDE, 2001). No que tange ao segundo ponto, o fato é que as Regiões

Metropolitanas (RMs) enfraqueceram-se institucionalmente em comparação à dimensão

que tinham no regime militar. Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formas

51

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compartilhadas de gestão territorial. É dessa concepção que se originou a explosão dos

problemas dos grandes centros urbanos brasileiros, como veremos mais adiante.

A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de resquícios culturais

e políticos anti-republicanos no plano local. A despeito dos avanços que houve, que foram

muitos se os enxergarmos por uma perspectiva histórica, diversas municipalidades do país

ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é

fundamental para a combinação entre descentralização e democracia. Escândalos como o

dos precatórios e o da "Máfia dos Fiscais", ambos em São Paulo, mostram que nem as

grandes cidades estão imunes - no caso em questão, o órgão montado para fiscalizar o

Poder público, o Tribunal de Contas do Município (TCM), era totalmente controlado pelo

malufismo, num estilo não muito diferente do vigente na política da República Velha. Ao

estudar como vários municípios vêm sendo governados, Joffre Neto (2001) revelou o

domínio do executivismo ou prefeiturização do Poder público, com os vereadores

almejando ser “miniprefeitos” e não legisladores ou fiscalizadores do Poder público, além

de a população entrevistada afirmar que a Câmara Municipal "fazia parte da Prefeitura" e

desejar que os parlamentares atuassem, prioritariamente, em prol de políticas assistenciais.

Uma outra pesquisa, realizada por Lúcia Avelar e Fernão Dias de Lima (2000), constatou

outra face desse problema: os piores resultados no Índice de Desenvolvimento Humano

(IDH) são encontrados nos municípios pequenos e governados pelo modo político

tradicional - neste quesito, destaca-se o PFL.

É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poder local é

continuar na trilha da descentralização. Porém, se não houver reformas das instituições

políticas subnacionais, além de uma mudança da postura da sociedade em relação aos

governantes, cria-se uma nova "falha seqüencial" no processo descentralizador.

No plano intergovernamental, não se constituiu uma coordenação capaz de

potencializar a descentralização ao longo da redemocratização. Na relação dos municípios

com os estados, predominava a lógica de cooptação das elites locais, típica do

ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a

Constituição de 1988, num quadro de indefinição de suas competências e da maneira como

se relacionariam com os outros níveis de governo. Este vazio institucional favoreceu uma

posição "flexível" dos governos estaduais: quando as políticas tinham financiamento da

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União, eles procuravam participar; caso contrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as

atribuições para os governos locais.

O avanço da descentralização encontrou a União numa postura defensiva. Ao perder

recursos tributários na Constituição e se responsabilizar integralmente, num primeiro

momento, pela estabilidade econômica, o Governo Federal procurou transformar a

descentralização num jogo de mero repasse de funções, intitulado à época de “operação

desmonte”. Daí se originam dois problemas. O primeiro é que, dada a desigualdade

federativa, muitas políticas terão de ser necessariamente financiadas, pelo menos em parte,

por recursos federais. Além disso, a coordenação nacional é essencial para induzir, auxiliar

e avaliar a implementação de diversos programas.

Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opinião pública, grande

parcela dos encargos foi sim assumida pelos municípios. Só que isso aconteceu de forma

desorganizada na maioria das políticas - a grande exceção foi a área de Saúde. Ademais, a

inflação crônica tornava mais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção

programada das atribuições por parte dos governos locais. Criou-se, em suma, uma situação

de incerteza, de decisões e transferências de verbas em ritmos inconstantes e de ausência de

mecanismos que garantissem a cooperação e a confiança mútua. Neste sentido, argumenta

Maria Hermínia Tavares de Almeida:

“Sendo a descentralização um processo e não um jogo de uma rodada só, a

confiança em sua continuidade é essencial para que os governos subnacionais se

disponham a entrar no jogo. Em outros termos, a descentralização bem sucedida requer

que o centro[em especial numa situação de grande desigualdade, como a da Federação

brasileira] seja capaz de dar incentivos e garantias críveis de continuidade aos

destinatários da transferência” (TAVARES DE ALMEIDA, 2000a: 7).

Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conformado na

redemocratização: a descentralização depende agora, diversamente do que ocorria regime

centralizador e autoritário, da adesão dos níveis de governo estaduais e municipais. Por

isso, o jogo federativo depende hoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das

esferas superiores de poder, como é natural numa Federação democrática. Em suma, seu

sucesso associa-se à coordenação intergovernamental.

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A falta de uma coordenação do processo descentralizador fez com que ele

dependesse de duas variáveis para ser bem sucedido. A primeira é o desenho específico de

cada política pública. A área em que havia uma estrutura institucional mais adequada à

descentralização era a da Saúde, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), e foi nela em

que houve maior sucesso. No restante das atribuições governamentais, o cenário inicial foi

caótico e sua melhora foi normalmente condicionada à implantação de medidas

coordenadoras no plano geral das políticas, algo que ganhou força em determinados setores

a partir do governo FHC.

A segunda variável relaciona-se à estratégia de indução federativa. Em extensa

análise de quatro áreas de políticas públicas (desenvolvimento urbano, educação,

assistência social e saúde) em seis unidades estaduais, Marta Arretche comprovou que

"devido à debilidade fiscal de uma grande proporção de municípios em cada Estado (...) a

existência e a natureza de estratégias federais e estaduais são um requisito fundamental do

processo de descentralização das políticas sociais" (ARRETCHE, 2000: 247). Por isso, o

sucesso dos programas vincula-se à ação coordenada entre os níveis de governo.

O principal problema da descentralização ao longo da redemocratização foi a

conformação de um federalismo compartimentalizado, em que cada nível de governo

procurava encontrar o seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento

de tarefas e a atuação consorciada. Daí decorre também um jogo de empurra entre as

esferas de governo. O federalismo compartimentalizado é mais perverso no terreno das

políticas públicas, já que numa Federação, como bem mostrou Paul Pierson, o

entrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na produção e gerenciamento de

programas públicos, especialmente na área social. A experiência internacional caminha

neste sentido.

Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coordenação da

descentralização foram atacados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com sucessos

diferenciados, maiores na primeira questão, mais irregulares, na segunda. Mas antes de

analisar as políticas em si, é preciso compreender as condições que permitiram as

mudanças, bem como as que ainda criam obstáculos para a melhoria da coordenação

federativa.

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V - A Era do Real: uma "conjuntura crítica" e um "momento maquiaveliano"

no federalismo brasileiro18

A “era do Real” marca o início da crise do federalismo estadualista, embora não

tenha conseguido eliminar todas suas características predatórias – uma delas, a guerra

fiscal, até aumentou de intensidade. Entende-se aqui o Real de uma forma mais ampla do

que um plano de estabilização: o contexto que o proporcionou e os seus diversos resultados

foram fundamentais para fortalecer o Governo Federal e enfraquecer os governos estaduais,

mudando a dinâmica intergovernamental.

Neste sentido, a “era do Real” nasce antes da promulgação do plano de

estabilização. A partir de 1993, e mais especificamente da indicação do ministro Fernando

Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda, o Governo Federal fortaleceu-se em razão

dos seguintes fatores:

a) O primeiro é a mudança no cenário externo. Depois de uma década em que se

combinaram, perversamente, a redução drástica de empréstimos e refinanciamento externos

com uma enorme transferência líquida de recursos para o estrangeiro (SALLUM JÚNIOR,

1999: 25), a partir de 1991 começa a ocorrer uma reversão deste processo. Entre 1992 e

1997, ocorre o auge do fluxo de capitais para a América Latina. De acordo com dados da

Cepal, somente o montante de investimento estrangeiro direto passa de 10 bilhões de

dólares, em 1990, para 68 bilhões de dólares, em 199719. Soma-se a isso a bem sucedida

renegociação da dívida externa realizada em 1993 e chegamos a uma situação

extremamente favorável ao Executivo Federal no plano internacional, antítese do que fora a

década de 80.

b) Um segundo ponto importante foi a melhora das condições das contas públicas

federais. Aqui, verdade seja dita, a “era do Real” recebeu de bandeja algumas conquistas

dos períodos anteriores, como a modernização orçamentária feita no governo Sarney e o

crescimento das reservas cambiais obtido pelo ministro Marcílio Marques Moreira. Além

disso, desde o governo Itamar Franco houve um aumento progressivo da arrecadação

federal. Diretamente, Fernando Henrique Cardoso, então Ministro da Fazenda, atuou de

18 A análise desta seção baseia-se no desenvolvimento do argumento primeiramente defendido em

Abrucio & Ferreira Costa (1998). 19 Gazeta Mercantil, 9 de fevereiro de 2000, página A-20.

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forma decisiva para a aprovação do Fundo Social de Emergência (FSE), que aumentou os

recursos "livres" da União, constituindo a primeira grande vitória federativa da União no

campo financeiro desde a aprovação da Emenda Passos Porto, em 1983, quando se iniciou

o aprofundamento da descentralização.

Grandes melhoras no plano externo e algumas importantes mudanças para o

equilíbrio interno das contas públicas, eis dois passos importantes para o fortalecimento do

Governo Federal;

c) O impeachment do presidente Collor e a possibilidade da vitória de Lula nas

eleições presidenciais de 1994 levaram a um realinhamento do establishment, em sua

dimensão política, social e econômica. Os principais caciques regionais e os partidos ou

frações partidárias que comandavam, importantes setores empresariais e a maioria dos

meios de comunicação de massas não estavam dispostos a ter de engolir o “sapo barbudo”

nem um novo aventureiro solitário à direita. Havia, então, os primeiros sinais do

fortalecimento do Governo Federal, creditado à atuação de Fernando Henrique, que, aliás,

pouco a pouco se transformava informalmente em “primeiro-ministro” do presidente Itamar

Franco. Com este cacife e sua virtú na montagem da coligação eleitoral, Fernando Henrique

conseguiu formar uma grande aliança, a qual se reforçou com o sucesso do Real.

d) Houve também a consolidação de uma mudança ideológica que há anos estava,

paulatinamente, ganhando força na sociedade brasileira. As pesquisas de opinião em geral e

as feitas junto às elites por Bolívar Lamounier e Amaury de Souza mostraram que um

discurso favorável às reformas do Estado, tomadas de uma maneira genérica, obtiveram

uma aprovação inédita, revertendo o ideário que predominara na década de 80

(LAMOUNIER & SOUZA, 1991; LAMOUNIER & SOUZA, 1995; LAMOUNIER &

SOUZA, 1995 a). Os principais formadores de opinião, a classe média, a mídia e

importantes setores empresariais adotaram a idéia de reformas constitucionais como a

salvação do país, e foi isso que, somado à estabilização monetária, uniu fortemente o

presidente à sociedade no primeiro mandato, dando grande popularidade a Fernando

Henrique;

e) Pela primeira vez desde o início da redemocratização, as eleições presidenciais de

1994 ocorreram concomitantemente ao pleito estadual e à disputa para o Congresso

Nacional. Essa “eleição casada” vinculou os congressistas e o presidente, e mesmo os

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governadores, ao mesmo manto de legitimidade, ao contrário do que ocorrera antes, quando

a Presidência da República era definida num pleito “solteiro” e os parlamentares elegiam-se

tendo como carro-chefe a eleição à governadoria – o que contava a favor da atuação dos

chefes dos Executivos estaduais junto às bancadas de seus estados. Decorreu, daí, um dos

fatores do fortalecimento da Presidência da República vis à vis aos governos estaduais;

f) Ainda no plano eleitoral, não foi apenas o caráter concomitante da eleição que

favoreceu a União no seu relacionamento com os estados. A eleição de 1994 foi marcada

por uma outra peculiaridade: em unidades estaduais estratégicas da Federação, foram

eleitos governadores fiéis ao presidente e cujas vitórias derivaram do apoio ao Plano Real.

Entre estes destacam-se Marcello Alencar (Rio de Janeiro), Eduardo Azeredo (Minas

Gerais), Antonio Britto (Rio Grande do Sul) e mesmo Mário Covas (São Paulo), embora

este tinha maior independência partidária e calibre político. Apesar de ainda existirem

importantes conflitos e FHC ter tido sempre de negociar com os governos estaduais, estes

últimos atuaram bastante afinados com o Palácio do Planalto, concordância federativa que

não era obtida desde o governo Geisel;

g) Por fim, o fortalecimento do Governo Federal completa-se e se estrutura no

estupendo êxito inicial do Plano Real, que conseguiu se sustentar por mais tempo do que

qualquer outro e, ademais, estabeleceu alguns aspectos estruturais bem sucedidos que

provavelmente acompanharão o próximo governo. Sua legitimidade garantiu a eleição e a

reeleição do presidente Fernando Henrique, bem como um grande apoio de importantes

setores da sociedade, dos governadores e da comunidade internacional. Além da

legitimidade, a arquitetura do Plano Real derrubou o aspecto inercial da inflação e, o que é

mais interessante aos nossos propósitos, praticamente liqüidou os mecanismos que os

estados detinham anteriormente para produzir, autônoma e predatoriamente, recursos

financeiros.

A estabilidade monetária foi garantida não apenas pelo instrumento engenhoso da

URV, mas também graças ao novo cenário externo. Foi esse fator que possibilitou a

utilização da chamada âncora cambial como variável chave no combate à inflação. A

“aposta” no fluxo de capital externo como elemento que, simultaneamente, garantiria os

baixos índices inflacionários e fecharia as contas do balanço de conta corrente, foi a tônica

no primeiro mandato. Pode se dizer que se, por um lado, essa aposta foi perigosa pois criou

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uma dependência que por fim levaria à desvalorização do Real em janeiro de 1999 e a um

desastre financeiro que acompanhou o segundo mandato, por outro lado, foi também ela

que estabeleceu uma ameaça exógena constante aos congressistas, já que a cada crise

internacional, desde da do México à da Rússia, o presidente os pressionava a aprovar

reformas para garantir a estabilidade do Real.

O êxito inicial do Plano Real teve grande impacto sobre a descentralização. A

drástica redução da inflação tornou mais estáveis as transferências intergovernamentais,

favorecendo à condução do processo descentralizador. Com isso, a União obteve o

instrumento que lhe faltava para poder barganhar a passagem de encargos e funções de uma

forma mais racional e programada para os governos subnacionais. Foi esta situação que

permitiu a formulação de políticas públicas coordenadas como o Fundef, que analisaremos

adiante.

A "era do Real" teve o significado de uma "conjuntura crítica", isto é, de uma

grande mudança na posição relativa dos atores políticos e sociais em relação aos

instrumentos de poder e às preferências (PIERSON, 2000). A esta modificação na situação

dos agentes somou-se a capacidade do presidente Fernando Henrique de montar e manter

por um bom tempo uma coalizão capaz de fazer alterações na antiga estrutura, segundo os

objetivos determinados por FHC. Neste sentido, trata-se, também, de um "momento

maquiaveliano" (POCOCK,1975), no qual a mudança da "fortuna" (condições objetivas, no

sentido marxista) realiza seu potencial na virtù do condutor da mudança, que cria uma nova

ordem institucional20.

Deste modo, houve uma conjunção entre as alterações situacionais e a capacidade

do presidente Fernando Henrique Cardoso de montar sua estrutura de poder, pelo menos em

seu primeiro mandato. Para tanto, FHC soube combinar habilmente os aspectos

majoritários com os consociativos do sistema político brasileiro. Em termos legislativos, ele

definiu o processo constitucional, com apoio de grande parte da sociedade, como a agenda

prioritária do Congresso Nacional, utilizando-se das Medidas Provisórias para suas tarefas

rotineiras de governo ou para impulsionar o andamento de votações importantes, inclusive

constitucionais, que estavam paradas por conta de vetos na própria base governista.

20 Os conceitos de "conjuntura crítica" e "momento maquiaveliano" foi primeiramente utilizado para

o caso brasileiro por Lourdes Sola & Eduardo Kugelmas (2002) e, depois, por Maria Rita Loureiro & Fernando Luiz Abrucio (2002).

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Mas foi na montagem do governo que o presidente Fernando Henrique teve seu

maior mérito em lidar com as peculiaridades de nosso sistema político. Ele se aproveitou da

legitimidade das urnas e do sucesso do Real não para impor um mandato bonapartista; ao

invés disso, costurou o apoio de partidos e de lideranças de estados importantes, só que

resguardando um espaço maior de poder para algumas agências insuladas – com destaque

para o Ministério da Fazenda – e para técnicos vinculados diretamente à Presidência da

República – aqui, o instrumento utilizado foi o da influência direta na escolha de

Secretários Executivos, segundo cargo na hierarquia ministerial, os quais fizeram o papel

de controladores da delegação presidencial aos ministros escolhidos segundo as variáveis

partidárias e federativas (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999). No presidencialismo de

coalizão brasileiro, o primeiro mandato de FHC foi o mais bem sucedido na montagem

ministerial desde o retorno da democracia.

Ao mesmo tempo em que se fortalecia o Governo Federal, os estados entravam

numa seríssima crise financeira. O estopim disso, sem dúvida alguma, foi o Plano Real. Em

primeiro lugar, porque com o fim da inflação os governos estaduais deixaram de ganhar a

receita provinda do floating, que permitia o adiamento dos pagamentos e o investimento do

dinheiro arrecadado no mercado financeiro, possibilitando assim uma elevação artificial

dos recursos e uma diminuição igualmente artificial de boa parte das despesas dos

governadores. Ao tomarem posse, os novos governadores perceberam a mudança ocorrida

com o fim do floating, como bem resumiu Mário Covas;

“Varia de estado para estado, mas a maioria [dos governadores] se defronta com

este fato: as despesas ainda correm em regime inflacionário e as receitas já atuam em

regime de estabilidade” (PADRÃO & CAETANO, 1997: 23).

O Plano Real produziu outro grande impacto nas finanças estaduais com a elevação

das taxas de juros, que atingiram em cheio as dívidas estaduais, sobretudo no que se refere

aos títulos e dívidas dos Bancos estaduais (SOLA, GARMAN & MARQUES, 1997: 28).

Depois de terem sido o grande instrumento financeiro dos governadores, especialmente na

fase áurea do federalismo estadualista, os Bancos estaduais entraram em verdadeira

bancarrota. Sofreram mais os grandes estados, sendo os casos mais graves o do Banerj e,

principalmente, o do Banespa. Neste último, estava em sua carteira a própria dívida do

Estado de São Paulo, a maior dentre as unidades estaduais.

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A crise dos Bancos estaduais ocorreu também porque eram essas as instituições

financeiras que mais retiravam seus recursos do jogo inflacionário. Com a elevação de suas

dívidas e por vezes do passivo dos estados que estavam em suas carteiras, o fim da inflação

e a reestruturação do sistema financeiro, aumentando a competitividade, o sistema bancário

dos estados praticamente se inviabilizou. Além do mais, o presidente tinha aliados em

importantes estados, os quais não reagiram fortemente à intervenção do Banco Central

como teriam feito os antigos governadores21.

Contou ainda para a crise financeira dos estados a adoção de medidas tributárias

centralizadoras. Primeiro, aumentando-se a participação das Contribuições Sociais no bolo

de recursos do Governo Federal, as quais não entram na partilha constitucional de recursos,

ficando somente nos cofres do Tesouro Nacional. Além disso, a centralização da receita

esteve presente em outra medida importante, já citada, que foi o Fundo Social de

Emergência (FSE). Sua validade seria provisória, mas foi posteriormente prorrogado e

alterado o seu nome para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), mostrando que o Executivo

Federal não precisava mais esconder o verdadeiro propósito desta medida.

Mais do que a alocação em si dos recursos, a aprovação do Fundo Social de

Emergência teve uma importância simbólica reveladora: foi a primeira vez que a União

teve uma vitória tributária contra os estados desde o início da redemocratização. Isso abriu

politicamente as portas para outras alterações federativas no plano tributário, como a Lei

Kandir, que mesmo sendo resultado de uma intensa negociação entre o Executivo Federal e

os governadores, atingiu parcela substantiva do principal tributo estadual, o ICMS, naquilo

que incidia sobre parte considerável das exportações. A tabela abaixo mostra as perdas

iniciais dos estados com a Lei Kandir, bastante substantivas, diga-se de passagem..

21 A respeito do colapso dos Bancos estaduais após o Real, ver o minucioso trabalho de GARMAN,

LEITE & MARQUES, 1998.

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Tabela 4 Perdas dos Estados com a Lei Kandir Estado %perdas* Estado %perdas Acre 0,98 Minas Gerais 10,14 (7) Amazonas 1,55 Espírito Santo 22,01 (3) Pará 34,84 (1) Rio de Janeiro 3,09 Rondônia 3,30 São Paulo 2,73 Amapá 28,46 (2) Paraná 13,03 (5) Roraima 0,74 Santa Catarina 5,32 (10) Tocantins 0,49 Rio Grande do Sul 7,50 Maranhão 15,12 (4) Mato Grosso 10,19 (6) Piauí 1,12 Mato Grosso do Sul 6,14 (9) Ceará 3,78 Goiás 4,03 Rio de Gde. Do Norte

4,06 Distrito Federal 0,08

Paraíba 0,52 Pernambuco 1,87 Alagoas 8,37 (8) Sergipe 0,72 Bahia 4,44 * Perdas proporcionais em relação à arrecadação total de ICMS Fonte: MELO, 1998: 22.

O resultado final destas mudanças no plano tributário foi uma nova recentralização

de receitas. Ainda que o Brasil seja um dos países com maior descentralização fiscal em

comparação aos países em desenvolvimento e mesmo perante as Federações mais

consolidadas do mundo, o movimento concentrador foi de fato considerável, por intermédio

da elevação das receitas advindas das Contribuições Sociais e do represamento de parcela

dos recursos para transferência aos governos subnacionais.

Os efeitos e o esgotamento do modelo predatório constituíram-se também em

elementos decisivos para a crise financeira dos estados. Não se pode, portanto, creditar as

causas do desequilíbrios das contas públicas estaduais apenas às ações e ao fortalecimento

do Governo Federal. Os juros, medidas tributárias centralizadoras, o fim da inflação e a

intervenção nos Bancos estaduais, sem dúvida, foram fundamentais; porém, são os próprios

governos estaduais que têm a maior parcela de culpa em sua atual crise.

61

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As dívidas estaduais e o descalabro criado pelos Bancos estaduais foram

primeiramente obra das próprias elites estaduais. E a despeito do aperto financeiro e da

elevação dos juros, os governos estaduais continuaram a optar pela obtenção de

empréstimos de curto prazo, mesmo sabendo do maior risco dessas operações, fato

devidamente comprovado pelo Relatório da CPI dos Precatórios. Antes da crise, os

governadores não efetuaram esforços relevantes para aumentar suas receitas. Mesmo

havendo uma elevação da arrecadação dos estados de 36,65 % entre 1993 e 1996, também

houve uma elevação, ainda maior proporcionalmente, das despesas (ABRUCIO &

FERREIRA COSTA, 1998: 78-79).

Outro grave problema dos governos estaduais que ajudou a minar suas contas

públicas foi o do excessivo gasto com pessoal. Esse padrão administrativo foi reforçado

pelos estados ao longo da redemocratização, particularmente com a promulgação das

Constituições estaduais. Caso analisemos mais pormenorizadamente o período mais

recente, concentrando-se na comparação União versus estados, fica ainda mais evidente a

elevação dos gastos dos governos estaduais com funcionalismo. Tomando como base

somente as despesas com o pessoal ativo em relação à receita total, constata-se que do

período 1990-1993 para o de 1994-1995 ocorreu uma pequena redução de 18,8% para

17,7% na União ao passo que, em média, os estados elevaram os seus gastos de 46% para

50,2% (BELTRÃO, ABRUCIO & LOUREIRO, 1998: 11).

A aceleração do aumento dos gastos com servidores públicos derivou, em parte, das

regras estabelecidas pelas Constituições estaduais. Guerzoni Filho (1996) mostrou como

vários estados criaram normas que flagrantemente contrariavam a Constituição Federal no

que se refere à concessão de estabilidade. Na Bahia, Rio Grande do Norte, Maranhão e

Ceará foram estabilizados os empregados das empresas públicas e sociedades de economia

mista; em Santa Catarina, tornaram-se estáveis servidores admitidos em caráter transitório,

enquanto no Piauí todos aqueles admitidos até seis meses antes da promulgação da

Constituição estadual, inclusive a título de prestação de serviços, ganharam estabilidade. É

bem verdade que alguns governos estaduais posteriores conseguiram reverter estes

dispositivos constitucionais, mas o custo deste processo já havia se instalado nos montante

de dívidas dos estados (GUERZONI FILHO, 1996: 55). Outros dois fatores também

contribuíam para esta situação: o crescimento das despesas com os Poderes Legislativo e

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Judiciário, além do Tribunal de Contas dos estados, e a existência de categorias

privilegiadas que representam um pequeno contingente da burocracia, mas que abocanham

uma parcela enorme da folha salarial.

Mas o fator principal no aumento dos gastos com pessoal advém da Previdência

pública. A elevação das despesas com inativos tem sido crescente em todos os níveis de

governos, mas de uma forma mais preocupante no âmbito estadual. Este diagnóstico

demorou para ser feito tanto pelos governadores como pela União, com efeitos deletérios

para a reforma do Estado planejada pelo governo Fernando Henrique.

Os governadores que tomaram posse em 1995 receberam ainda um passivo

inesperado: o aumento de gastos com a folha de salários ao apagar das luzes dos antigos

governos. Para dar um exemplo recorrente, no Mato Grosso o governador Dante de

Oliveira constatou que a folha de salários do Executivo havia passado de R$ 27

milhões/mês em 1994 para R$48 milhões/mês em 1995, levando o governo estadual a

gastar 80% da receita do governo com funcionalismo (PADRÃO & CAETANO, 1997: 24).

É bom lembrar que esta mudança ocorreu exatamente quando os estados perderam a

capacidade de manipular o floating vigente no período inflacionário, o qual permitia uma

certa margem de manobra aos governadores

Como se vê, é muito grande a importância dos governos estaduais em impulsionar a

sua própria crise. O resultado não foi só a derrocada financeira, mas também uma grande

deterioração dos serviços públicos. As greves das Polícias Militares talvez tenham sido a

sinalização clara de que ou se fazia uma reforma das máquinas públicas estaduais ou se

entraria num caos social.

O modelo estadualista e predatório enfraqueceu-se sobremaneira com a Presidência

de Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo-se uma "conjuntura crítica" na Federação

brasileira. Mesmo com a corrosão gradativa da coalizão governista no segundo mandato,

não houve uma reviravolta na Federação e, ao contrário, a adoção de um novo modelo

financeiro ganhou força com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com

apoio considerável dos congressistas, da sociedade e dos governantes locais.

Um balanço dos anos FHC mostra que, em parte, ele conseguiu constituir um

"momento maquiaveliano" no jogo federativo, tendo a virtù para criar uma nova ordem; em

outros aspectos, todavia, isso não foi feito, permanecendo o legado do federalismo

63

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desenvolvido durante a redemocratização, e ainda com algumas influências da trajetória

histórica das relações intergovernamentais do país. É por esta ótica que analisaremos a

coordenação federativa no período 1995-2002, procurando entender a especificidade deste

período e suas lições.

VI - A Coordenação Federativa sob FHC: avanços e problemas

O objetivo desta seção é analisar o processo de coordenação federativa nos anos

FHC num plano mais geral e em políticas mais específicas. No caso destas últimas, o

capítulo não tem como finalidade fazer uma avaliação dos resultados dos programas, mas

sim, estudá-los do ponto de vista da descentralização e do papel do Governo Federal nesta

questão.

Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemos destacar sete

mecanismos gerais adotados pelo Governo Federal no plano da descentralização. O

primeira deles se refere ao fato de que o Brasil tinha iniciado o processo descentralizador

antes de estabilizar a economia, o que tornou mais difícil a constituição de jogos mais

coordenados e efetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a inconstância da

transferência das verbas constitui um obstáculo numa Federação desigual como a brasileira

(AFONSO, 1996). Ao reduzir a inflação, houve um impacto positivo para a regularização

dos repasses de recursos aos governos subnacionais. Isto permitiu a abertura de uma nova

rodada de negociação para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas públicas.

Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e os objetivos de

reformulação do Estado. Neste sentido, o Governo Federal procurou, em primeiro lugar,

reduzir todos os focos de criação de déficit público nos governos subnacionais,

especialmente os de cunho predatório - isto é, que repassavam custos para a União. Para

alcançar estas metas fiscais, houve uma atuação conjunta em prol da modernização da

estrutura fazendária em vários estados - com recursos de instituições internacionais - e, no

segundo mandato, a aprovação de uma regra federativa de restrição orçamentária - a Lei de

Responsabilidade Fiscal - e a adoção de medidas de auxílio na área previdenciária.

O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação estatal, ademais,

incluiu a proposição de Programas de Demissão Voluntária aos estados, com financiamento

64

Page 65: Abrucio 12873 Cached

federal. Num sentido mais institucional, o Ministério da Administração e Reforma do

Estado (MARE) procurou ativar o Fórum dos Secretários Estaduais de Administração,

realizando reuniões mais constantes e cujo tema de debate era a modernização das

máquinas públicas - isso durou apenas os primeiros quatro anos do período FHC. Por fim,

destaca-se aqui o processo de privatização das empresas estaduais, no qual o BNDES teve

um papel decisivo.

O repasse de recursos condicionado à participação e fiscalização da sociedade local

foi um terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. De certo modo, houve uma

continuidade da estratégia já prevista pela Constituição de 1988, particularmente na criação

e ampliação do escopo dos Conselhos de Políticas Públicas. Aprofundou-se esta concepção

com a determinação de que certas transferências só seriam recebidas se existissem os

Conselhos da área em questão. Além disso, o Comunidade Solidária optou pela produção

de programas intrinsecamente vinculados à montagem de parcerias entre o Estado e a

sociedade. O caráter democrático da descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a

tônica nesta política.

A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas de Saúde e

Educação, com o PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef (Fundo de Manutenção do

Ensino Fundamental), respectivamente. Os mecanismos coordenadores aqui utilizados

passaram pela combinação de repasse de recursos com o cumprimento de metas

preestabelecidas ou a adoção de programas formulados para todo o território nacional.

Trata-se de um modelo indutivo, mas que transfere verbas segundo metas ou políticas-

padrão estipuladas nacionalmente, procurando assim dar um perfil mais programado e

uniforme à descentralização, sem retirar a autonomia dos governos subnacionais em termos

de gestão pública. No caso do Fundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de

recursos, experiência inédita na Federação brasileira.

A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foram adotadas políticas

de distribuição de renda direta à população. O primeiro deles foi o PETI (Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil), depois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o

Programa Bolsa Escola, ao qual se juntaram o Bolsa Alimentação e o Vale Gás. Buscou-se,

com tais medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticas nacionais, as quais

podem ser realizadas em parceria com outros instrumentos de gestão local, mas com a

65

Page 66: Abrucio 12873 Cached

garantia de uma verba federal padronizada. O pressuposto destas ações é que em problemas

de origem redistributiva, particularmente numa Federação, é necessária a atuação do

Governo Federal para evitar o agravamento das desigualdades.

A este mecanismo redistributivo foi acoplada uma novidade: a tentativa de

coordenar melhor os programas do Governo Federal num só local, com o Projeto Alvorada.

A despeito da importância desta medida, há ainda muita descoordenação e fragmentação no

terreno das políticas sociais, inclusive nas ações de distribuição direta de renda.

A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temática federativa foi

outro mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com tais ações, ficou claro que o

objetivo era fazer uma reforma institucional no federalismo brasileiro, mais do que

implementar políticas de governo, embora o padrão de implementação dessas medidas não

seja completamente coerente, além de responder a pressões políticas diferenciadas dentro

do Executivo Federal. Das 34 Emendas Constitucionais aprovadas de 1995 até junho de

2002, 15 delas afetavam diretamente o pacto federativo. Isto ocorreu nos seguintes terrenos:

a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabilização Fiscal

(FEF) e sua renovação posterior pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), como

também pelas mudanças nas Contribuições Sociais, especialmente aquelas vinculadas à

criação e prorrogação da CPMF. Foi por meio das Contribuições Sociais que a União

aumentou suas receitas, sem precisar reparti-las com os outros níveis de governo. Também

foram feitas modificações constitucionais que atingiram o IPTU, garantindo sua

progressividade, e no ISS, procurando efetuar aqui uma harmonização tributária entre os

municípios;

b) na organização político-administrativa, com a aprovação da "Emenda Jobim"

(Emenda 15), que tornou mais difícil a criação de municípios, com a aprovação de novos

limites de gastos dos Legislativos locais (Emenda 25) e mesmo com a instituição da

reeleição (Emenda 16). Pouco se comentou acerca do impacto federativo da reeleição, mas

o fato é que ela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um grande

impacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, que antes passavam

pela utilização dos Legislativos, sobretudo a Assembléia Legislativa, como trampolim para

postos executivos. Como a tendência é aumentar a estabilidade dos grupos políticos que

estão no Executivo, deverá haver uma maior aposta nos cargos legislativos;

66

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c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatização nas áreas do

gás canalizado e das Telecomunicações, e a reformulação de vários artigos referentes à

Administração Pública (Emenda 19) e à Previdência (Emenda 20), com impacto enorme

sobre a gestão governamental dos estados e municípios. Não por acaso, todas esta medidas

passaram por intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf.

ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998; MELO, 2002).

d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda 14), da chamada "PEC da

Saúde" (Emenda 29) e do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza (Emenda 31), a

qual ajudou a modificar o padrão das políticas de distribuição de renda direta à população,

tal como referido anteriormente. É interessante notar que tais reformulações constitucionais

criam obrigações válidas não só para os próximos presidentes, mas também para os futuros

governantes de estados e municípios.

Além das alterações constitucionais, várias Leis Complementares e ordinárias com

impacto federativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)

e a Lei Kandir, que transformaram regras básicas das finanças públicas. Na verdade, esta

nova legislação reordenou os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando as

condições para que as relações intergovernamentais ganhem um sentido diferente do

constituído na redemocratização, especificamente no que tange à convivência mais

responsável entre os níveis de governo.

A avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda de coordenação

federativa do governo Fernando Henrique. O Ministério da Educação (MEC) constituiu-se

no principal agente dessa mudança, criando sistemas avaliadores que apresentam

regularmente os resultados alcançados por esta política. O mesmo mecanismo também está

sendo desenvolvido em outros ministérios e órgãos públicos, embora num estágio ainda

preliminar.

Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos de ação na

ordem federativa: 1) o combate à inflação e a respectiva regularização dos repasses,

permitindo uma negociação mais estável e planejada com os outros entes; 2) a associação

entre os objetivos da reforma do Estado, como o ajuste fiscal e a modernização

administrativa, e a descentralização; 3) condicionou a transferência de recursos à

participação da sociedade na gestão local; 4) criou formas de coordenação nacional das

67

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políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionais a assumirem encargos,

mediante distribuição de verbas, cumprimento de metas e medidas de punição, também

normalmente vinculadas à questão financeira, além de utilizar instrumentos de

redistribuição horizontal no Fundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à

população, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não se resolve apenas

com ações dos governos locais, dependendo do aporte da União; 6) aprovou um conjunto

enorme de leis e Emendas Constitucionais, institucionalizando as mudanças feitas na

Federação, e assim dando-lhes maior força em relação às pressões conjunturais; 7)

estabeleceu instrumentos de avaliação das políticas realizadas no nível descentralizado,

especialmente na área educacional.

Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo Fernando Henrique também

teve problemas gerais de funcionamento. Entre eles, estão a fragmentação de uma mesma

política em vários órgãos e ministérios, como é o caso do Saneamento básico; a

pulverização das políticas de renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a

falta de uma avaliação consistente na maior parte das áreas decentralizadas; a existência de

poucos ou fracos fóruns intergovernamentais, a partir dos quais as políticas nacionais

poderiam ser melhor controladas e legitimadas; a adoção de uma visão tributária perversa

do ponto de vista federativo, seja pela recentralização de recursos, seja pela negligência em

relação à harmonização tributária do ICMS; a deterioração das políticas regionais, levada às

últimas conseqüências com o fim da Sudam e da Sudene; e o fracasso das políticas urbanas,

afetando setores como Habitação, Saneamento, Segurança Pública e Transportes

Metropolitanos.

Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de algumas políticas de coordenação

federativa efetuadas nos anos FHC. O propósito não é avaliar substantivamente tais ações;

o intuito desta parte do trabalho é entender do papel do Governo Federal em tais questões

ou setores.

1) Reforma do Estado: questões financeiras e administrativas

O tema central da agenda federativa de FHC foi a questão financeiro-fiscal. Suas

ações nortearam-se pelos objetivos de acabar com os mecanismos que os governos

68

Page 69: Abrucio 12873 Cached

subnacionais tinham de repassar custos à União, pela criação de condições para que os

estados conseguissem ajustar suas contas, produzindo superávits - estratégia utilizada

sobretudo no segundo mandato - e pelo programa de privatização da empresas estaduais,

pelo qual procuram, ao mesmo tempo, remodelar setores econômicos segundo o modelo de

Estado defendido por Brasília e obter recursos para quitar dívida pública. Além disso, o

segundo período governamental concentrou-se, movido ainda pela ótica econômica, na

questão previdenciária. Em menor medida, houve a preocupação de modernizar a gestão

das governadorias, em especial no período áureo do Fórum dos Secretários Estaduais de

Administração, quando o ministro Bresser Pereira propôs parcerias mais efetivas entre as

esferas de poder.

No plano financeiro-fiscal, o Governo Federal aproveitou a enorme crise que

assolou os governos estaduais e a legitimidade da "era do Real" para, primeiramente,

reestruturar o sistema bancário estadual. O resultado final apontou para o fim das formas de

repasse de custos ao Banco Central, por meio da extinção, privatização e federalização da

grande maioria dos Bancos estaduais. Se, por um lado, este processo pôs fim a um

mecanismo estrutural de produção de déficit, por outro, ele teve um preço para os cofres da

União, causado por dois fatores: pela dificuldade em resolver a situação do Banespa, que

postergou a resolução dos problemas de todo o sistema, e pela necessidade de se criar um

instrumento financeiro de transição, o Proes (Programa de Incentivo à Redução do Setor

Público Estadual na Atividade Bancária), cujo custo final, em valores de março de 2002, foi

de R$ 70 bilhões (MORA, 2000). Não obstante, este modelo permitiu uma mudança crucial

na lógica das relações intergovernamentais.

O Governo Federal, por meio principalmente do BNDES, também atuou fortemente

no programa de privatizações dos estados. O objetivo, como dito acima, era reestruturar a

ação do Estado em áreas estratégicas e obter recursos para quitar dívida pública. No

primeiro mandato de FHC, foram privatizadas 24 empresas estaduais e em mais 13 houve

venda de participação acionária, o que significou a obtenção de 37% dos quase US$ 70

bilhões movimentados por todas as privatizações e concessões realizadas no período,

excluídas as transferências de dívidas (ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998: 101). Um

balanço de todo o período revela que os estados obtiveram R 38 bilhões de reais com a

venda de suas empresas (MORA, 2002: 51). Segundo Fábio Giambiagi,

69

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"O fato é que a venda de empresas estaduais representou uma fonte de ajuste

primário de 0,45 do PIB entre 1995 e 1998 e de 0,3% do PIB adicionais entre 1998 e 2000.

Trata-se de um benefício inequívoco, especialmente quando se leva em conta a situação de

total descalabro em que muitas dessas empresas se encontravam há alguns anos. Sem

dúvida nenhuma, mesmo que em alguns casos isolados possam ter se verificado problemas

- naturais, pois afinal de contas foram vendidas em torno de duas dezenas de empresas -

pode-se dizer que o setor público ficou menos vulnerável e que o país ficou mais eficiente

do que antes desse processo de privatização estadual começar" (GIAMBIAGI, 2000: A-11).

O êxito financeiro e programático alcançado pelo Executivo Federal nas

privatizações nos estados não respondeu a todos os problemas envolvidos neste tema.

Primeiro porque muitos estados usaram parte das receitas obtidas não para o pagamento de

suas dívidas com a União, mas para gastos correntes. É claro que houve um ganho

importante em termos de abatimento de débito, sem no entanto levar a maioria dos estados

à realização de um verdadeiro ajuste estrutural das contas públicas – os que conseguiram

fazê-lo, como o Ceará, Bahia, São Paulo e Maranhão, precisaram fazer cortes e

racionalização dos gastos, bem como aumentar a receita.

Mais do que isso: a política macroeconômica adotada no primeiro mandato de FHC

dificultou qualquer ajuste provindo apenas dos recursos de privatização. Isto porque o

modelo da sobrevalorização cambial e sua aposta no financiamento por poupança externa

vinculou-se a uma alta taxa de juros que, ao fim e ao cabo, elevava ainda mais a dívida

pública, de modo que os recursos obtidos com a venda das empresas (estaduais e federais)

acabavam, em boa medida, indo "para o ralo". Em termos estruturais, os governadores

teriam feito melhor se utilizassem a receita da privatização para capitalização de Fundos de

Pensão do funcionalismo estadual, com efeitos benéficos maiores no curto e longo prazos.

Mas, naquele momento, os governos estaduais e o Governo Federal, no seu papel de

coordenação federativa, não tinham idéia do impacto estrutural dos gastos previdenciários

às contas públicas subnacionais.

Obviamente que as privatizações são fundamentais para diminuir redes clientelistas

estabelecidas entre as empresas estatais, a classe política e as empresas privadas,

constituindo-se assim num aspecto essencial para mudar a gramática política brasileira

(NUNES, 1997). Ademais, sem as empresas estatais, os estados tendem a não fazer

70

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determinados gastos que levariam ao aumento de seu déficit. Colocados estes aspectos

positivos à mesa, deve-se ter cuidado para não transformar o programa de privatizações em

uma ação a partir da qual o Estado sai dessas esferas econômicas.

E aqui encontra-se o maior problema do programa de privatizações dos estados sob

a coordenação federativa da União: não se propôs, na grande maioria dos casos, um modelo

regulatório consistente para o dia seguinte da reforma do Estado. Do mesmo modo que o

BNDES prestou adequada assessoria financeira para a venda das empresas estaduais,

também seria necessária a ajuda na criação de agências regulatórias - montadas depois em

alguns estados, e com perfis bastantes diferenciados em termos de funções e qualificação22.

Porém, neste aspecto, pesou mais o lado da primeira onda de reformas voltadas para o

mercado, do que o aspecto essencial da segunda rodada de reformas, de criação de novas

instituições estatais voltadas à regulação econômica (BANCO MUNDIAL, 1997). O

interessante é notar que, mesmo no Governo Federal, a constituição de um marco

regulatório obedeceu mais às peculiaridades políticas de cada setor do que a um plano geral

de ação.

A renegociação das dívidas dos estados, por meio da Lei 9.496/97, foi um passo

importante para disciplinar as relações federativas, rompendo com o antigo modelo

predatório. Em primeiro lugar, o acordo contemplou quase a totalidade das unidades

estaduais, evitando-se assim a existência de free riders. No total, ela refinanciou um

montante de R$ 132 bilhões. Segundo, embora os estados reclamem hoje da porcentagem

da receita líquida que têm de disponibilizar, o fato é que receberam um grande subsídio da

União, a partir do qual houve uma redução substantiva das taxas de juros que vinham

pagando antes. Este novo contrato, ademais, é bem diferente dos efetuados ao longo da

redemocratização, particularmente pela sua capacidade de fazer com que seja de fato

cumprido, incluindo a retenção de transferências federais - o único estado que tentou burlar

esta regra, Minas Gerais (na gestão de Itamar Franco), teve verbas bloqueadas e logo a

seguir regularizou seu pagamento. O último aspecto relevante dessa nova legislação diz

respeito às medidas de ajuste fiscal que ela estabeleceu no compromisso que foi firmado

22 Sobre as Agências Regulatórias estaduais, ver o capítulo escrito por Marcus Melo para este livro.

71

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entre as partes da Federação, pontuando uma série de questões que deveriam pautar as

preocupações fiscais e financeiras das governadorias23.

Para equacionar o problema do déficit público e cumprir o contrato de

refinanciamento, três questões estruturais precisam ser resolvidas. A primeira se refere às

despesas com pessoal. No início de 1995, constatou-se um elevado gasto com pessoal nos

estados. À época, das 27 unidades estaduais (contando o Distrito Federal), apenas 6

despendiam menos de 60% da receita líquida com o funcionalismo, sendo que em três delas

(Roraima, Amapá e Tocantins) a maior parte dos servidores ainda era paga pela união, já

que a sua condição de estado é bastante recente. A continuidade deste problema dificultaria

a resolução dos déficits financeiros da Federação.

Por isso, o Governo federal resolver atuar nesta questão, basicamente de duas

maneiras. A primeira, de caráter estrutural e de mais longo prazo, por intermédio da

Reforma Administrativa; e a segunda, vinculada a ações mais imediatas. O auxílio em

algumas áreas técnicas foi importante para melhorar o gerenciamento das folha de

pagamento. No entanto, a medida de maior impacto inicial foram os Planos de Demissão

Voluntária (PDVs). Com financiamento da Caixa Econômica Federal, os PDVs resultaram

na demissão de 100 mil funcionários públicos estaduais, mas tiveram pequeno impacto na

redução de custos, de apenas 4,5% do que se gastava com pessoal ativo - os estados com

maior contingente de servidores, ademais, foram os menos afetados (BELTRÃO,

ABRUCIO & LOUREIRO, 1998).

Foram constatados dois grandes problemas na aplicação dos PDVs. O primeiro é

que os servidores que aderiam a estes programas de dispensas normalmente tinham uma

melhor qualificação profissional, ficando os com menor capacidade gerencial. Além disso,

em muitos estados não havia um mapa preciso do perfil do funcionalismo e, desse modo,

não se sabia exatamente quais eram os gargalos burocráticos. No entanto, faltou aqui uma

ação mais coordenada entre o Governo Federal e as Administrações subnacionais, ao estilo

dos Planos Nacionais de Reforma, realizados nos EUA ao longo do século XX. Isto porque,

23 Conforme mostra o trabalho de Mônica Mora (2002: 22), as questões que os estados deveriam

equacionar para cumprir o contrato de refinanciamento seriam as seguintes: a) dívida em relação à receita líquida real (RLR); b) resultado primário; c) despesas com funcionalismo público; d) arrecadação de receitas próprias e) privatização, permissão ou concessão de serviços públicos; f) reforma administrativa e patrimonial; g) despesas de investimento em relação à RLR.

72

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em razão da maior fragilidade das burocracias estaduais, a União teria um papel

coordenador para resolver esta "falha seqüencial".

A falta de uma coordenação federativa levou a um diagnóstico equivocado quanto

aos gastos com pessoal. O governo FHC insistiu, por boa parte do primeiro mandato, em

um argumento: a resolução do problema se daria com a permissão de dispensa de

funcionários quando um nível de governo gastasse mais do que 60% da receita líquida com

folha de pagamento. Foi esta visão que guiou a ação do Governo federal, embora o próprio

ministro da Administração, Bresser Pereira, dissesse, com razão, que a dispensa por

insuficiência de desempenho fosse mais importante estruturalmente para a reforma do

Estado, em contraposição à visão da equipe econômica, enfim vencedora no jogo político.

Há, no entanto, dois problemas neste diagnóstico. O primeiro deles foi depositar a

responsabilidade toda na conta dos Executivos estaduais. Ao não discriminar os gastos

entre os Poderes, a então Lei Camata colocou para o governador uma tarefa que em parte

ele não pode atuar. Isto porque cresciam, cada vez mais, os gastos com pessoal do

Legislativo e, sobretudo, do Judiciário. Mas o maior erro foi outro: não perceber que o

maior problema do excesso de gastos com pessoal provinha do pagamento de inativos.

Novamente, isto não foi detectado porque faltava uma burocracia competente nos estados e

uma ação coordenadora do Governo Federal para corrigir esta "falha seqüencial" da

descentralização. Somente no final de 1997 é que os governos estaduais e a União se deram

conta da magnitude deste problema. Não só os gastos eram altos como acelerava o

crescimento dessa conta. Na tabela abaixo, relacionamos a despesa com inativos dos

estados no ano 1998.

73

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Tabela 5 -O Peso dos Inativos e Pensionistas dos Três Poderes na folha Mensal dos Estados (1998)

Estado

Gastos com inativos e

pensionistas (em R$ milhões)

Quanto representa da folha (em %)

Comprometimento da receita com o total da folha (em %)

Alagoas 14** 41 76 Amazonas 18 29 56 Bahia 43 28 54 Ceará 17 18 62 Espírito Santo 23 24 90 Goiás 32 33 73 Maranhão 15 28 58 Mato Grosso 12 22 68 Mato Grosso do Sul 10 36 70 Minas Gerais 163 38 74 Pará 20 25 63 Paraíba 17 33 67 Paraná 77 30 74 Pernambuco 35** 33 71 Piauí 9 16 76 Rio de Janeiro 151 40 84 Rio Grande do 15 29 67 Rio Grande do Sul 110 39 85 Santa Catarina 40 31 51 São Paulo 400 33 61 Sergipe 8 20 64 TOTAL MÉDIA

R$ 1,229 bilhão 30% 69% 1. Os ex-territórios de Rondônia, Roraima, Acre e Amapá, o distrito Federal e o estado do

Tocantins estão fora desta relação por terem números inexpressivos de inativos e pensionistas.

** Percentual apenas do Executivo Fonte: “O Estado de São Paulo”, 01/02/1998.

Além de demorarem a detectar este problema, os governos estaduais e o Governo

Federal não constituíram a resposta adequada a ele, que seria a constituição de Fundos

Previdenciários. A dificuldade maior estaria na capitalização de tais Fundos, o que poderia

ter sido feito com os recursos da privatização. Poucos estados trilharam este caminho - a

exceção digna de nota é a Bahia. Sem este instrumento, a maioria se viu obrigada a

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aumentar o valor das contribuições dos ativos e, em alguns casos, cobrar também dos

inativos. Não há problema neste caminho, só que ele pode ser insuficiente.

Mesmo tendo adquirido poder no pêndulo federativo no primeiro mandato, a União

não se preparou adequadamente para atuar como agente coordenador no plano

intergovernamental. Deveria haver orientação e capacitação da burocracia federal para

recolher informações dos governos subnacionais ou então, numa via mais pertinente com o

federalismo, precisaria auxiliar os estados e municípios na criação de capacidades

institucionais. Em vez disso, o primeiro governo FHC procurou "vender" uma receita de

reforma do Estado sem estabelecer uma rede entre as burocracias de ambas as esferas de

poder.

Houve neste caso um grande avanço no segundo mandato. O Ministério da

Previdência e Assistência Social assumiu uma importante função coordenadora e atuou

decisivamente na assessoria e indução dos estados e municípios. O resultado é que mais e

mais governos subnacionais estão constituindo Fundos Previdenciários, com cálculos

atuariais mais precisos, só que a tarefa teria sido mais fácil, repito, se o dinheiro da

privatização fosse usado na capitalização deste sistemas. O aprendizado federativo também

foi constatado na definição de gastos com pessoal e nos instrumentos de controle com a

promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em maio de 2000.

Como tal assunto é tratado em outro capítulo deste volume24, faço quatro

comentários breves. O primeiro é que a LRF definiu melhor os mecanismos de restrição

orçamentária, responsabilizando mais claramente todos os Poderes. Adicionalmente, suas

regras estabeleceram instrumentos de enforcement mais efetivos, que dificultam uma

postura contrária à nova regulamentação, por conta das penalidades. E, ainda, o Governo

Federal exerceu um papel coordenador ativo por intermédio do BNDES, que assessorou

governos locais, disseminou as noções básicas da LRF por todo o país e deu incentivos

para a modernização da máquina administrativa dos governos subnacionais, com vistas a

cumprir os requisitos fiscais básicos. Talvez esta tenha sido uma das experiências mais bem

sucedidas de coordenação federativa nos anos FHC. Falta, no entanto, a criação de um

fórum de discussão entre os vários níveis de governo, tal como estabelecido no artigo 67 da

LRF, que estipula a instituição de um Conselho de Gestão Fiscal. O governo FHC não se

24 Ver capítulo 8, escrito por Maria Rita Loureiro e Fernando Luiz Abrucio.

75

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mobilizou politicamente para regulamentar tal Conselho, causando prejuízo para a

democratização da Federação. No fundo, prevalece aqui a visão da equipe econômica, que

supõe, seguindo certas versões do federalismo fiscal, que deve haver uma hierarquização

entre os entes governamentais, com o Governo Federal - que neste caso poderia se chamar

Governo Central - comandando linearmente as finanças públicas. Nada mais distante da

soberania compartilhada que marca o federalismo.

A segunda questão estrutural diz respeito às ações em prol da reforma

administrativa estadual. A melhor atuação conjunta foi a modernização das receitas

estaduais. Desta vez, o ângulo financeiro esteve alicerçado em reformas institucionais,

dando um fôlego maior ao ajuste fiscal, pois é o aprimoramento da burocracia que

sedimenta transformações profundas. Não por acaso os estados que tiveram maior êxito

foram os que realizaram as maiores transformações no modus operandi da administração

pública, como no Estado de São Paulo, por meio dos instrumentos de governo eletrônico,

de racionalização da máquina e de gestão voltada ao atendimento do cidadão.

O maior problema neste quesito foi a descontinuidade da política realizada junto ao

Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, conduzida pelo então Ministério da

Reforma do Estado (Mare). No primeiro mandato, o ministro Bresser Pereira conseguiu

levar toda a discussão da reforma do Estado, com conceitos vinculados à economia, à

eficiência, à efetividade e à democratização dos serviços públicos para o plano subnacional.

Experiências bem sucedidas e problemas de difícil solução eram compartilhados,

estabelecendo aí um tipo de associativismo intergovernamental. O resultado recorrente foi o

aperfeiçoamento da estrutura de informação dos governos estaduais, e num menor número

de casos, ocorreu a implantação de políticas públicas extremamente inovadoras.

Infelizmente, no segundo período ocorreu um refluxo enorme dessa atividade, com o

Governo Federal abandonando um importante papel de coordenação federativa.

Em termos estruturais, por fim, a melhora das condições fiscais de longo prazo tem

a ver com duas outras variáveis: a realização de reformas institucionais e a construção de

um novo modelo de desenvolvimento. No primeiro aspecto, é importante que sejam

realizadas mudanças no relacionamento entre a sociedade e o Estado e das instituições

políticas subnacionais, especialmente do Tribunal de Contas e do Judiciário, para aumentar

76

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a accountability democrática. Além disso, a burocracia dos níveis subnacionais precisa ser

continuamente aperfeiçoada.

A construção de um novo modelo de desenvolvimento que melhore a situação dos

estados depende basicamente de ações nacionais. Por um lado, é preciso atacar as

desigualdades regionais, que impedem a obtenção de resultados satisfatórios em várias

partes do país. Por outro, a guerra fiscal não pode mais continuar, pois ela cria déficits

futuros aos governos estaduais e, efetivamente, não resolve o problema do

desenvolvimento; ao invés disso, acirra o conflito horizontal entre as unidades federativas.

Os governos estaduais têm obtido resultados fiscais positivos seguidos desde 1999 e

a LRF vem sendo um instrumento importante para pressioná-los nesta direção. E mais: dos

4,13% do PIB de superávit primário obtidos até outubro de 2002, 1% ou um quarto deste

esforço advém das unidades subnacionais. Antes que se dê a questão por resolvida, é bom

lembrar o tamanho do rombo: em dezembro de 2002, a dívida dos estados alcançou a cifra

de R$ 250 bilhões25. O que se conseguiu até agora foi às custas de uma redução brutal dos

investimentos, afora vários estados estarem, novamente, caminhando para uma crise

financeira. De modo que a resolução federativa desta questão passa sim pela continuidade

da trilha aberta pela Lei de Responsabilidade Fiscal, com a ativação de um fórum

federativo que a gerencie mais democraticamente, mas também depende de reformas

estruturais - criação ou fortalecimento dos Fundos Previdenciários, modernização das

burocracia estaduais, democratização das instituições políticas subnacionais e novo modelo

de desenvolvimento - para as quais o fiscalismo reinante nos anos FHC deu pouca atenção.

2) Coordenação Federativa na Área Social: alguns exemplos

A área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeada no espaço

deste capítulo. Por esta razão, escolhemos três de suas políticas, analisando como se deu a

relação entre descentralização e coordenação federativa, sem fazer uma avaliação

substantiva dos resultados alcançados.

A Saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaque no quadro

federativo desde a Constituição de 1988. O modelo de descentralização proposto fora

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construído por muitos anos de lutas contra a centralização dos programas e da gestão dos

recursos, com destaque para a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que

constituíram, junto com lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que alguns

denominam de "Partido da Saúde" - ao qual hoje se somam a burocracia setorial e diversos

políticos, muitos com origem na área. Na década de 80, o debate se acirrou, obrigando a

mudanças paulatinas da postura do Ministério da Saúde e na própria legislação, cujo marco

foi a criação do SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, em 1987),

“principal instrumento de descentralização operacional, administrativa e financeira dos

programas de saúde entre 1987 e 1989” (MEDICI, 1996: 306).

O SUDS tinha como objetivo a descentralização de recursos físicos, humanos e

financeiros da máquina previdenciária para os estados, a fim de racionalizar a gestão e o

uso dos recursos, e a reestruturação dos órgãos federais responsáveis pela gestão de

serviços de saúde, que deveriam passar a se concentrar no planejamento, na coordenação,

no controle e na avaliação das ações de toda a rede. No entanto, também o SUDS não

demonstrou ser uma política eficaz no processo de descentralização – cuja conclusão

dependia da transferência dos serviços de saúde para os municípios. Os gestores estaduais,

que saíram fortalecidos pelo repasse dos recursos e poder, comandaram o processo

descentralizador segundo uma lógica baseada em interesses político-clientelistas

(ABRUCIO & COSTA, 1999).

A reforma deste setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e o

estabelecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicos são a

universalidade, a integralidade e a igualdade de assistência garantidas a todos os brasileiros;

preconizava ainda a descentralização da gestão do sistema e a participação da comunidade.

As Leis Orgânicas da Saúde 8080 e 8142, por sua vez, foram os instrumentos legais mais

importantes para o avanço desse processo descentralizador, uma vez que regulamentavam o

SUS26. Destaca-se, ainda, a criação de vários mecanismos colegiados de gestão,

envolvendo todos os níveis de governo, que têm uma efetividade grande comparada à

presente nas outras políticas públicas. Ademais, seu sentido era fortemente municipalista.

25 Dados retirados de artigo de Ricardo Amaral, intitulado "O novo perfil fiscal dos governadores".

Valor Econômico, 10/12/2002, página A7. 26 A primeira regula os princípios constitucionais correspondentes à saúde; a segunda vincula

descentralização à municipalização e dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais.

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Na década de 90, surgiram também as NOBs (Normas Operativas Básicas), as quais

representaram um esforço de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos

estados e municípios, além da criação de instrumentos de fiscalização e avaliação das

políticas de saúde. Elas tentavam definir, com a maior clareza possível, os custos e

benefícios resultantes do cumprimentos ou não das regras e critérios de repasse de recursos

(principalmente no que se refere às condições necessárias e suficientes ao repasse de

recursos financeiros entre União, estados e municípios), prestação de contas e

acompanhamentos das ações de saúde (ABRUCIO & COSTA, 1999). Três foram as NOBs

elaboradas nos anos '90: a 91, a 93 e a 96.

A palavra-chave do modelo instaurado pela NOB-96 é a responsabilização de cada

instância de governo. O desempenho dos papéis que cabem aos gestores concretiza-se

mediante um conjunto de responsabilidades bem detalhadas na NOB-96. A NOB-96 define

como imprescindível a cooperação técnica e financeira dos poderes públicos estadual e

federal, com responsabilidade conjunta na gestão do SUS. Seu objetivo principal é

“promover e consolidar o pleno exercício, por parte do poder público municipal e do

Distrito Federal, da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes” (MS, 1996;

apud ABRUCIO, 2000). O sistema municipal de saúde – SUS-municipal – é concebido

como um subsistema do SUS e composto pelo conjunto de estabelecimentos, organizados

em rede regionalizada e hierarquizada.

A NOB 96 estabelece que os gestores federal e estadual são os promotores da

harmonização, modernização e integração do SUS. Essa tarefa acontece, especialmente, na

Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no âmbito estadual, e na Comissão Intergestores

Tripartite (CIT) no âmbito nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas

não cria incentivos financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999). A NOB-96

também simplifica o processo de responsabilização pela política, reduzindo a duas as

categorias de gestão municipal e estadual: gestão plena da atenção básica e gestão plena do

sistema municipal. Os estados, por sua vez, podem habilitar-se às condições avançada do

sistema estadual e plena do sistema estadual (MS, 1996).

A quase totalidade dos municípios brasileiros encontra-se habilitada segundo uma

das condições de gestão definidas na NOB 96. Entretanto, conforme afirmam Costa, Silva

& Ribeiro (1999:46) em avaliação recente do processo de descentralização do sistema de

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saúde no Brasil, “ao contrário do que se tem verificado para os municípios, ainda é pouco

significativa a adesão dos estados ao novo papel que lhes foi reservado no SUS”. Segundo

os autores, o processo de habilitação dos estados é retardatário e desigual devido às

“dificuldades dos estados em definirem um papel claro na estrutura do sistema público de

saúde brasileiro, dominada ainda, na década de 90, pelas demandas e orientações localistas”

(idem:. 48).

Foi neste contexto de maior consistência da descentralização que o governo FHC

estabeleceu suas políticas de Saúde. Os problemas iniciais estavam vinculados mais à

regularidade dos repasses e à garantia de fonte seguras e permanentes de recursos. Com a

resolução destes, a partir do fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos

"carimbados" à Saúde, a descentralização se aprofundou ainda mais. Dados de Sol Garson e

Érica Araújo (2001) demonstram o impacto da ação federal nesta política. Entre 1995 e

1999, sem contabilizar as transferências, os gastos dos níveis de governo eram de 58% para

a União, 16% para os estados e 26% aos municípios; após contabilizarmos as

transferências, as cifras mudam substancialmente: 23% para a União, 25% para os estados e

52% aos municípios. Além disso, segundo dados de dezembro de 2001, 99% dos

municípios estavam habilitados a uma das condições de gestão, sendo 89% em gestão Plena

da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão Plena do Sistema Municipal (MELO, 2002: 4).

Para o que importa a este trabalho, a descentralização esteve presente em quatro

questões. A primeiro se refere ao fortalecimento dos Conselhos. Apesar de ser bastante

representativo, muitos criticam tanto seu caráter corporativo como sua

"governamentalização", isto é, a força dos representantes de governos em detrimento dos

usuários, especialmente tendo em conta os problemas de organização nos municípios

menores, mais pobres e/ou com baixo capital social. A discussão permanece e, quanto mais

a intervenção na Saúde aproximar-se dos cidadãos, a tendência é a contínua democratização

e o debate sobre melhoras formas de accountability. Os anos FHC permaneceram nesta

trilha aberta pela Constituição de 1988, apostando aqui acertadamente no incrementalismo.

Outro aspecto importante diz respeito ao fortalecimento das atividades

intrinsecamente nacionais. A primeira delas é a organização administrativa do Ministério da

Saúde, que se reforçou com a melhoria dos sistemas de informação, em especial o

DATASUS. Houve também uma reorganização administrativa, com aperfeiçoamento de

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pessoal e constituição de duas Agências Reguladoras essenciais: a Agência Nacional de

Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Cabe

reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à capacidade burocrática do

Governo Federal.

A política de Saúde do governo FHC adotou iniciativas para reforçar as funções

redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões mais pobres e menos populosas

(RIBEIRO & COSTA, 1999). A principal medida neste sentido foi a criação, em dezembro

de 1997, do Piso de Atenção Básica (PAB). Ao mesmo tempo em que procura reduzir as

desigualdades de recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização,

pois somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos.

O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeira destina-se à

atenção básica da saúde e garante a transferência automática, fundo a fundo, de um mínimo

de R$ 10 por habitante/ano para todos os municípios brasileiros. A idéia é reduzir as

desigualdades existentes entre as municipalidades, uma vez que aquelas com maior

“capacidade produtiva” tendiam a receber mais recursos, ao passo que as pequenas, com

rede incipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde, pouco recebiam. A parte variável do

PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nos anos FHC. Sua distribuição de

recursos só ocorre se os governos locais aderirem aos programas nacionais definidos como

prioritários. Além disso, para receber tais recursos é preciso passar por todo o sistema de

Conselhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos.

São seis os programas nacionais incluídos no PAB variável: Saúde da

Família/Agentes Comunitários de Saúde, Saúde Bucal, Assistência Financeira Básica,

Combate às Carências Nutricionais, Combate a Endemias e Vigilância Sanitária. A

característica básica destas políticas é a ênfase na prevenção e não na cura, lema histórico

do movimento sanitarista O município pode aderir a quantos quiser, e recebe os recursos de

acordo com o estipulado em cada programa. Tais ações governamentais, ademais,

envolvem capacitação dos gestores locais e a avaliação dos resultados, seja pelo sistema

federal, seja pelo controle social ligado aos mecanismos de accountability intrínsecos ao

SUS. Os resultados têm sido bastante satisfatórios no que se refere à adesão e,

consequentemente, ao número de pessoas atingidas. No caso do Programa de Agentes

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Comunitários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30% na população

coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002: 517).

A quarta medida foi a aprovação da chamada "PEC da Saúde" (Emenda

Constitucional 29), que determinou a elevação gradativa da porcentagem de recursos

destinados a esta área nos três níveis de governo. Com isso, o problema que o governo

Fernando Henrique encontrou no início do seu primeiro mandato de instabilidade nos

gastos com Saúde foi, em boa medida, resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação,

pois ele "engessa" mais o Orçamento e os próprios governantes, que devem subordinar sua

agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos constitucionais. Talvez tivéssemos de

combinar melhor as regras intertemporais que orientam a ação dos entes federativos com

mecanismos de negociação contínua de metas e resultados - e neste sentido, o Fundef está

mais adequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez que tem metas e prazo

para se esgotar, ao mesmo tempo que ultrapassa o período de mais de um governante.

Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à Saúde. A

coordenação intergovernamental, a despeito da força integradora do SUS e do "Partido da

Saúde", vez ou outra revela sua fragilidade, como ficou bem claro no episódio da dengue,

em que a briga dos governantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual ou

federal. A maior lacuna desse sistema é a indefinição do papel das unidades estaduais.

Neste tópico, o Governo Federal precisa criar formas de indução à participação e à

cooperação da mesma maneira que o PAB o fez em relação aos municípios.

O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de consórcios entre os

municípios, como forma de melhorar a prestação do serviço segundo problemas que são

regionais e/ou porque a maioria dos governos locais não tem condições de resolver todos os

seus problemas nesta área. Documento do Ministério, de 1997, assim defende o modelo dos

consórcios:

“A implantação e a operacionalização de serviços de saúde que contemplem

integralmente as demandas de uma população representam, para a maioria dos

municípios, encargos superiores à sua capacidade financeira. A manutenção de um

hospital, por mais básico que seja, requer equipamentos, um quadro permanente de

profissionais e despesas de custeio que significam gastar, anualmente, o que foi investido

na construção e em equipamentos. A necessidade de melhoria na infra-estrutura, a

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contratação de recursos humanos especializados e a aquisição de equipamentos, para

oferecer serviços de saúde em todos os níveis de atenção implicam montante significativo

de recursos que, quase sempre, não chegam a ser plenamente utilizados por apenas um

município, gerando aumento de custos operacionais e impossibilitando, por outro lado, o

investimento em ações básicas de promoção e proteção. Assim, a prestação de serviços de

forma regionalizada pelos consórcios evita a sobrecarga do município na construção de

novas unidades, na aquisição de equipamentos de custos elevados e na contratação de

recursos humanos especializados” (ABRUCIO, 2000).

O fato é que a Saúde é uma das áreas com maior número de consórcios. Em 2000,

havia 141 consórcios de saúde, em 13 estados, 1.168 municípios e abrangendo uma

população de 25.362.735 habitantes, segundo estudo da Organização Pan-americana de

Saúde e do Ministério da Saúde. Trata-se de um dado impressionante comparado ao que

acontece nas outras políticas públicas Porém, os mesmos números mostravam que no bloco

das municipalidades que têm entre 10 mil a 20 mil pessoas a porcentagem de consórcios era

de 23,5%, enquanto no estrato que vai de 20 mil a 50 mi, o contingente atingido era de 12,4

%. Além do mais, nenhuma capital tinha consórcio, o que é um absurdo sabendo que as

Regiões Metropolitanas sofrem freqüentemente do problema do "carona" - habitantes da

cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais e não pagam nada por isso.

Este retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de indução à criação

dos consórcios, na mesma linha do PAB. Só que neste caso há um problema estrutural,

revelado anteriormente: o federalismo compartimentalizado, o municipalismo autárquico e

a fragilidade jurídica deste instrumento dificultam a adesão à essa união intermunicipal.

Na área de educação, duas políticas se destacaram nos anos FHC como formas de

coordenação federativa. A primeira é a criação de um sistema amplo de avaliação dos

Ensinos Fundamental e Médio. Como tais políticas estão majoritariamente nas mãos dos

governos subnacionais, cabendo à União papel suplementar, uma maneira de garantir a

qualidade nacional é avaliar os resultados obtidos e, a partir disso, propor medidas que

possam minorar os problemas. A questão da evasão escolar, por exemplo foi bem resolvida

graças à articulação federativa entre os níveis de governo, baseada na conjunção entre

avaliação e propostas de solução - no caso, envolvendo capacitação e recursos

orçamentários.

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A política impulsionada pelo governo Fernando Henrique que mais se aproximou de

um modelo de coordenação federativa foi o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do

Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso

Nacional em 1997, o Fundef obriga os governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes

da receita de impostos e transferências na educação, sendo que não menos de 60% deverão

ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua implantação, em nível nacional, iniciou-se em

1o de janeiro de 1998.

Dos recursos do Fundef, pelo menos 60% devem ser aplicados na remuneração dos

profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no Ensino Fundamental

público - incluem-se aqui professores (inclusive os leigos) e os profissionais que exercem

atividades de suporte pedagógico, tais como direção, administração, planejamento,

inspeção, supervisão e orientação educacional. Ademais, são colocadas metas que balizam

a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar que os estados, o Distrito Federal e os

municípios devem dispor de um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério, que

regulamente as condições e o processo de movimentação na carreira, estabelecendo a

evolução funcional (por categorias, níveis, classes), adicionais, incentivos e gratificações

devidos, além dos correspondentes critérios e escalas de evolução de remuneração.

O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculados na respectiva

rede de ensino. Com isso, a distribuição de recursos obedece a um critério mais justo,

vinculado à real assunção de encargos. Ocorre aqui uma melhor adequação entre

transferências e atribuições, algo fundamental numa Federação, especialmente a nossa, em

que a desigualdade e a politização dos critérios foram regularmente empecilhos à

efetividade das políticas.

O objetivo do Governo Federal com o Fundef foi corrigir a má distribuição de

recursos entre as diversas Regiões e dentro dos próprios estados, diminuindo as

desigualdades presentes na rede pública de ensino. Trata-se neste sentido de uma política

vertical e horizontal de redistribuição de recursos, o que a faz única no federalismo

brasileiro.

Para assegurar o seu cumprimento, a lei exige a criação dos Conselhos de

Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em cada esfera de governo, que

têm por atribuição acompanhar e controlar a repartição, a transferência e a aplicação dos

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recursos do Fundo. O Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do

Fundef deve ser composto de, pelo menos, quatro membros, representando a Secretaria

Municipal de Educação ou órgão equivalente; dos professores e diretores das escolas

públicas de ensino fundamental; dos pais de alunos; e dos servidores das escolas públicas

de ensino fundamental. No caso do município contar com o Conselho Municipal de

Educação, representantes deste órgão também deverão fazer parte do Conselho Municipal

de Acompanhamento e Controle Social do Fundef.

Em comparação à Saúde, na qual o papel do Governo Federal sempre foi muito

forte, a ação da União na Educação foi prejudicada pela forma confusa e movediça de

distribuição de responsabilidades e competências neste setor. De acordo com um dos

responsáveis pela reforma da educação fundamental no Estado de Minas Gerais:

"No caso da educação básica, temos uma torre de Babel protegida sob o conceito

politicamente conveniente de "regime de colaboração". Segundo esse conceito, as três

instâncias podem operar (ou não) redes de ensino; podem financiar (ou não) a educação; e

podem escolher onde desejam (ou não desejam) atuar. Resultado: não existe uma instância

do poder público que seja responsável (e responsabilizável) pela oferta (ou não) de ensino

fundamental. Cada instância faz o que pode e o que quer, supostamente em regime de

colaboração." (OLIVEIRA, 1998).

Nesta "torre de Babel", o Governo Federal cumpria as tarefas mais variadas, em

todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionar a contento seus esforços para o

Ensino Fundamental. Desse modo, seu comprometimento era mais voluntarista ou

discricionário do que fruto de um plano ou sistemática de cooperação federativa na área

educacional. Isto apesar da Constituição definir expressamente a missão da União: esta

deve promover prioritariamente a universalização e a eqüidade no ensino público,

incentivando, financiando e fornecendo assistência técnica a estados e municípios. O

Fundef conseguiu reorganizar com sucesso a ação federal.

Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de alunos

matriculados como da municipalização do Ensino Fundamental, tarefas que não avançavam

satisfatoriamente no período anterior. Em 1996, antes da implantação do Fundo, 63% das

matrículas estavam na rede estadual, enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano

depois de iniciado este programa, já houve uma reversão significativa: 51% dos alunos

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pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal. Outro dado revelador da mudança: em

1998 os governos municipais detinham 38,2% das verbas do Fundef e, em 2000, passaram

a reter 43,2% (GARSON & ARAÚJO, 2001: 2-3).

Em resumo, o Fundef foi bem sucedido no que se refere à questão federativa por ter

melhorado a redistribuição de recursos (em termos verticais e horizontais), aumentado a

esperança por simetria entre os níveis de governo, além de impulsionar uma

municipalização mais planejada e a colaboração intergovernamental. Contudo, existem três

dilemas federativos não equacionados. O primeiro é o da fragilidade do controle,

perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de corrupção em vários estados. Para

tanto, é necessário estabelecer formas articuladas de fiscalização institucional entre o TCU,

os Tribunais de Contas do plano subnacional, o Conselho vinculado à política e o Poder

Legislativo.

A falta de interligação entre o Fundef e o sistema de mais geral de avaliação escolar,

o SAEB, constitui outro problema federativo, uma vez que, sem uma comunicação

adequada entre estes programas, fica mais difícil para União planejar e supervisionar a

implementação descentralizada do Ensino Fundamental. O Fundef, por fim, não foi

montado sob um aparato institucional capaz de discutir e revisar sua implantação tal qual há

na área de Saúde, onde a rede federativa é mais forte e legitimadora. Em termos

democráticos, é essa rede que permite a continuidade e as alterações da política ao longo do

tempo.

Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacam-se duas ações na

área de Assistência Social com impactos federativos importantes. A Comunidade Solidária

constituiu-se numa experiência inovadora no que se refere à articulação com a sociedade

local. Criou uma novo modelo de parceria junto à comunidade, às empresas, aos governos

locais e ao Terceiro Setor. Programas como o Universidade Solidária e o Alfabetização

Solidária, o estabelecimento de redes de voluntários, entre outros, aprofundaram uma

característica já prevista na Constituição de 1988 e implantada pelos governos municipais

mais progressistas do país, qual seja, a execução de políticas com participação ativa da

população. Esta concepção visa a atacar o clientelismo local e, embora não acabe com ele,

torna-se uma educação para a cidadania.

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A distribuição direta de renda à população foi outro movimento central desta área.

Iniciado com o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), passando pelo mal

definido Programa de renda Mínima até chegar ao Bolsa Escola, o governo FHC gastou

sete anos de seu mandato para construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na

verdade, ao longo deste aprendizado, percebeu-se - conscientemente ou não - que

problemas redistributivos numa Federação, como já apontaram Paul Peterson (1995) e Paul

Pierson (1995), só podem ser resolvidos com a intervenção ativa de políticas nacionais. A

maior novidade em termos substantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a certos

objetivos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasão escolar, o que,

por sua vez, derivou da transferência de experiências subnacionais ao Governo Federal.

Aconteceu aqui uma das qualidades do modelo competitivo de federalismo: a noção de

governos rivais como uma forma incentivadora da inovação.

A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprovação do Fundo

de Combate e Erradicação da Pobreza e o percentual de municípios atingidos é

impressionante: 99,7%. Além disso, a partir de 2001, esta distribuição de renda direta à

população foi coordenada melhor pelo Projeto Alvorada, o qual também estabeleceu uma

focalização melhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo de

utilização do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios. O Programa

Bolsa Escola federal, ademais, estabeleceu mecanismos interessantes para direcionar

melhor o processo de descentralização. Segundo Elaine Lício (2002), foram três estes

mecanismos:

"a) A suspensão dos repasses do FPM no caso de cadastramento fraudulento por

parte do município;

b) a institucionalização do controle social via obrigatoriedade de um Conselho

Municipal, já existente ou criado para este fim, composto por pelo menos 50% de

representantes da sociedade civil, cuja atribuição é acompanhar a implementação do

programa;

c) a vinculação do recebimento do cadastramento das famílias pelo MEC à sua

respectiva aprovação pelo Conselho Municipal" (LÍCIO, 2002: 122).

Apesar da melhora na coordenação e focalização dessas políticas ao final de seu

período governamental, paradoxalmente o presidente Fernando Henrique também permitiu

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a proliferação de "Bolsas" ou "Vales" por vários Ministérios, de modo que mais programas

dividiram o bolo, muitas vezes com ausência de comunicação entre eles, o que pode levar

ao desperdício e à dificuldade de se avaliar os resultados. É preciso ressaltar que já há

fragmentação demais nas políticas sociais, fato que cria competições predatórias na

implementação e na coordenação do Governo Federal.

3) Retumbantes Fracassos: as políticas urbanas e de desenvolvimento

Várias ações do governo Fernando Henrique poderiam ser criticadas sob o prisma

federativo, mas duas delas precisam ser comentadas por conta do enorme impacto que têm.

A primeira diz respeito às políticas de desenvolvimento, analisadas pelo viés do

federalismo. Por esta via, uma das áreas mais problemáticas é a do ataque às disparidades

regionais. Decerto que alguns avanços foram feitos aqui, como as reformas da infra-

estrutura voltada ao turismo no Nordeste - particularmente nos aeroportos -, as ações de

reformas agrária nas localidades mais pobres, a distribuição dos recursos da previdência

rural, que beneficiam fortemente a população idosa do interior nordestino e, sobretudo, as

ações do Avança Brasil, particularmente no Norte e Centro Oeste. Todavia, a estrutura

institucional federal montada para tratar desse problemas foi bastante débil. O Ministério da

Integração Regional constituiu-se, apenas, num lugar para o fisiologismo político da pior

espécie, afora ter tido uma grande instabilidade no seu comando, com trocas freqüentes,

muitas delas derivadas de algum escândalo.

Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimento regional, a

Sudam e a Sudene. O presidente Fernando Henrique Cardoso poderá dizer que foi ele quem

desvelou toda uma estrutura profunda, construída por décadas, de corrupção. É óbvio que

esta obra deve ser creditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensa

participação da imprensa e das instituições de controle, em particular aqui o Ministério

Público Federal. Mas o fato cabal é que o governo FHC não teve um projeto claro de

desenvolvimento regional. Ao contrário, desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa,

fragmentou políticas para esta área e não propôs uma alternativa ao modelo anterior. Faltou

um planejamento estratégico para os lugares menos desenvolvidas do país, que foram

atingidos positivamente pelas macropolíticas sociais nos setores previdenciário,

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educacional, de saúde e assistência social e por medidas ad hoc, porém não se discutiu e

nem foram tomadas medidas para reposicionar as Regiões Nordeste e Norte, em especial,

no campo do desenvolvimento econômico.

Em poucas palavras, as políticas sociais dos anos FHC reduziram desigualdades,

mas não houve a construção de instrumentos para alavancar o desenvolvimento regional,

tornando tais Regiões dependentes dos recursos federais sem que se tenha uma perspectiva

de melhora endógena desses lugares. Cabe relembrar que o federalismo depende, para seu

bom funcionamento, de medidas que aumentem a esperança quanto à simetria entre os

entes. Ações nacionais redistributivas são bem vindas, só que conjuntamente e com maior

prioridade de longo prazo deve-se estabelecer um planejamento estratégico e se construir

instituições capazes de mudar o perfil da economia local. Para isso, é preciso repensar a

Sudam e a Sudene, e não extingui-las, além de definir o que estas Regiões podem fazer para

nutrir seu próprio desenvolvimento.

Os anos FHC não tiveram uma estratégia de desenvolvimento nacional que,

especificamente, organizasse a dinâmica federativa. Isto é, não constituíram formas mais

pactuadas de relacionamento econômico entre os estados, as partir das quais se pudesse ter

maior integração e cooperação na busca dos objetivos. É claro que numa Federação, como

argumentado na segunda parte do capítulo, formas competitivas podem trazer estímulos

para o melhor desempenho das unidades subnacionais, inclusive do ponto de vista

econômico. No entanto, no governo Fernando Henrique prevaleceram jogos federativos

horizontais (interestaduais e intermunicipais) de competição predatória, nos quais o

Governo Federal teve sua responsabilidade, por ausência, anuência ou mesmo com algumas

ações diretas.

O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa da era FHC em termos

de estratégia de desenvolvimento econômico. Sem dúvida, há fatores que fogem da alçada

da União, como o comportamento estadualista das governadorias e os elementos da crise

financeira dos estados causados pelos próprios, resultantes do uso indiscriminado dos

instrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o que os levou a procurar atrair

empresas para angariar empregos e impostos futuros. Nesta mesma linha, inclui-se a

dinâmica dos capitais internacionais, que têm, em várias partes do mundo, atuado para

incentivar um verdadeiro leilão entre os governos - especialmente os subnacionais - com o

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objetivo de melhorar "o clima de negócios" (sic). Em tal leilão, o aspecto tributário vem

ganhando importância. Para não ficar numa visão reducionista, basta lembrar que nos EUA

também cresceu, nos últimos vinte anos, a batalha interjurisdicional por investimentos.

Entre 1991 e 1995, 56 mil empresas moveram-se de um estado para outro em território

norte-americano, envolvendo algo em torno de 1 milhão de empregos. Mas para que não se

tenha uma percepção benigna desse processo, vale citar a frase do senador Charles Horn, de

Ohio:

"A competição interestadual [nos Estados Unidos] é um jogo de soma-zero sem

nenhuma criação de riqueza" (DONAHUE, 1997: 106).

O jogo predatório da guerra fiscal teve efeitos piores no Brasil porque não havia, até

a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), instrumentos de restrição

orçamentária forte nos governos subnacionais. Assim, possíveis déficits poderiam ser

repassados para o Governo Federal - e parcela da dívida estadual de R$ 250 bilhões adveio

disso - ou então para gerações futuras. Calcula-se que há um passivo de mais de R$ 20

bilhões resultante da disputa fiscal - o que levou alguns governos estaduais a proporem a

constituição de um fundo federal para ressarcir àqueles que deram incentivos fiscais,

medida que chegou a ser aprovada pelo Confaz em maio de 2000 (Valor Econômico, 22 de

maio de 2002: A-3).

Os resultados econômicos da guerra fiscal, ademais, são comprovadamente inócuos.

Isto porque a adoção dessas medidas não tem alterado a redistribuição regional dos recursos

e, como mostrou o estudo de Sérgio Ferreira (2000), do BNDES, dos sete estados que mais

utilizaram os instrumentos de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná,

Espírito Santo, Goiás, Bahia, Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na sua

participação no PIB nacional entre 1985 e 199827.

Fica a pergunta: como o Governo Federal poderia ter atuado nesta questão?

Primeiro, realizando políticas de desenvolvimento, a partir de decisões que sejam tomadas

em fóruns nacionais, em nome da transparência, da justiça redistributiva e da igualdade

entre os pactuantes. E, em segundo lugar, faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma

27 Os resultados dos estados que utilizaram intensamente a guerra fiscal foram os seguintes: Goiás

teve um decréscimo de 2% para 1,9%; no Rio Grande do Sul houve uma queda de 7,9% para 7%; na Bahia, de 5,1% para 4,1%; em Pernambuco, de 2,5% para 2,3%; no Paraná, de 6,3% para 5,8%; no Espírito Santo, de 1,7% para 1,5%; e, a grande exceção, o Ceará, teve um crescimento de 1,6% para 1,8%. (FERREIRA, 2000: 6).

90

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tributária. Sempre se poderá dizer que há muitos interesses em jogo e por isso não é fácil

realizar tal reforma. Porém, os anos FHC foram pródigos na aprovação de medidas no

campo federativo tão difíceis quanto às alterações na estrutura tributária. Mais do que isso,

o custo de não se fazer esta modificação é muito alto para o equilíbrio horizontal entre os

estados e, consequentemente, para toda a Federação. Partindo da hipótese de que a reforma

tributária seja quase impossível de ser realizada, o papel do presidente Fernando Henrique

deveria ter sido o de colocar no debate público este problema e condená-lo. Em vez disso,

concedeu empréstimo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, numa batalha

entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano em razão da pressão do

grande cacique regional, Antonio Carlos Magalhães. Neste caso, FHC perdeu para o legado

oligárquico e patrimonialista do federalismo brasileiro.

A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausência de políticas urbanas. É bem

verdade que desde o governo Sarney elas não são prioritárias e na era Collor houve um

desmantelamento daquilo que havia. Mas o fato é que o Brasil dos anos '90 assistiu a um

processo de metropolitanização dos problemas, com a elevação do desemprego urbano, a

piora no sistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da desigualdade e da

pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo do que o vivido no meio rural) e o

aumento da violência nas periferias - não é por acaso o sucesso do filme Cidade de Deus.

Tudo isso ganha esta visibilidade porque 82% da população brasileira vive em áreas

urbanas e um pouco mais de 50% mora nas Regiões Metropolitanas tradicionais, nas recém

instituídas e naquelas áreas em processo acelerado de metropolitanização. Como bem notou

Regina Pacheco:

"As metrópoles brasileiras constituem hoje um dos grandes desafios à

governabilidade do país. Concentrando população, riqueza, demandas sociais, influindo

na formação da opinião pública nacional, conectando-se com cidades globais, as

metrópoles são também um imenso patrimônio coletivo a demandar políticas de

revitalização e revalorização, cujo sucesso depende de novas formas de governo e gestão"

(PACHECO, 1995: 91).

O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo momento em que

não há políticas ou instituições capazes de dar conta desta questão. Primeiro em razão do

fortalecimento da concepção autárquica de municipalismo, como descrito anteriormente.

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Isto é, os governos locais têm poucos incentivos à cooperação e atuam geralmente de forma

individualizada. Só que em áreas metropolitanizadas, em particular, os problemas de ação

coletiva são intermunicipais por natureza, de modo que é necessária a ação conjunta

(ABRUCIO & SOARES, 2001). Infelizmente, não existe ainda esta consciência na maioria

dos atores políticos locais28.

Além disso, a Constituição de 1988 foi movida por uma concepção

descentralizadora municipalista, por um modelo federativo compartimentalizado e por uma

aversão ao centralismo, justificável pelo impacto negativo que teve o "unionismo-

autoritário" desenvolvido pelo regime militar. Quando os problemas não podem ser

resolvidos sozinhos pelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisam

também da intervenção ativa de uma política nacional, o desenho institucional e a cultura

política federalista predominante não têm respostas adequadas.

O resultado disso fica claro no modelo de Região Metropolitana (RM) que foi

concebido na Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foram esvaziadas e sua

conformação legal, transferida para os estados, os quais, conforme trabalho realizado por

Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000), não priorizaram esta questão no seu desenho

político-administrativo. Sem uma instância metropolitana e/ou formas que levem à

formação de colegiados metropolitanos - com os municípios envolvidos, mais os governos

estadual e federal, além da sociedade civil local -, será muito difícil resolver os dilemas dos

grandes centros urbanos.

Uma ação nacional passaria pela revisão da legislação sobre as Regiões

Metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O Governo Federal não tratou

deste assunto nos anos FHC. Para além da questão mais geral, o fato é que a União não

constituiu políticas adequadas para a grande maioria dos problemas metropolitanos. Isto

fica claro ao observarmos o desenho institucional do Executivo Federal em relação a esta

temática. Primeiro, repassou tal preocupação à Secretária de Políticas Urbanas, fraca

institucionalmente e politicamente, sendo destinada para obter apoios clientelistas no

Congresso Nacional. Soma-se a isso o fato de que a maioria das políticas urbanas se dividia

28 Como apontam Sérgio Azevedo e Virgínia Guia, "a inexistência de uma consciência

metropolitana em boa parte dos municípios que fazem parte dessas regiões. Prevalece , ainda, entre muitos prefeitos e vereadores uma visão tradicional de cunho essencialmente local, que, muitas vezes, dificulta ou se opõe à visão regional" (AZEVEDO & GUIA, 2000: 530).

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por vários Ministérios - só o Saneamento estava presente em sete deles, mais a Secretária

de Políticas Urbanas. A fragmentação excessiva inviabiliza atingir resultados satisfatórias.

É interessante notar que no período Fernando Henrique foi aprovada uma legislação

importante sobre este tema, o Estatuto da Cidade, discutido no Congresso por mais de uma

década. No entanto, afora esta Lei ter uma visão excessivamente municipalista, com os

defeitos provindos desse exagero autárquico, ela não teve impactos significativos na agenda

do Governo Federal, até porque foi aprovada no apagar das luzes do governo FHC (10 de

julho de 2001).

As principais políticas de cunho urbano-metropolitano fracassaram. Poderíamos

citar a Segurança Pública, na qual o Governo Federal descobriu tarde seu papel, reduzido

ao financiamento dos estados, quando deveria atuar em rede na coordenação das Polícias.

No caso do Saneamento, houve um problema regulatório, com a crise das empresas do setor

e a errática (e equivocada) trajetória de privatização, e, em termos de investimento, embora

tenham se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer mais no momento seguinte

por conta das restrições do acordo com o FMI. Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica

Federal, principal financiadora de infra-estrutura urbana, não firmou nenhum contrato de

financiamento na área de Saneamento entre 1999 e 2000 (MELO, 2002: 8).

Aí está um dos grandes problemas da atuação federal em políticas urbanas: a crise

dos mecanismos de crédito, fundamentais para alguns destes programas. Em especial, a

área de Habitação foi bastante prejudicada, sobretudo no que tange ao público de baixa

renda, e só não houve um colapso maior porque os governos subnacionais também

investem na construção de moradias populares, embora numa proporção insuficiente para o

tamanho do déficit do setor. Seria preciso, neste caso, resolver o problema estrutural do

financiamento nacional e estabelecer uma rede intergovernamental para potencializar os

gastos das três esferas de governo.

Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências e atribuições dos

três níveis de governo, a coordenação federativa teria que passar, como foi feito na Saúde e

com o Fundef, pela elaboração de políticas federais indutoras, a partir das quais os

governos subnacionais fossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e

resultados. Além disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticas públicas tem

sido maior conquanto consigam potencializar suas características intersetoriais, como

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ocorre no Bolsa Escola, por exemplo. Isso é válido para vários setores do desenvolvimento

urbano, em particular o Saneamento, que poderia se articular mais com a Saúde,

fortalecendo os programas desta área (MELO, 2002: 25).

O presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem de um mandato a

outro, que sua política urbana ia de mal a pior. Por isso cogitou de criar um Ministério

específico e forte para esta área, mas não teve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a

pena citar a descrição de Caco de Paula a respeito deste processo:

"Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardoso chegou a

anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano, uma superpasta que

contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de recursos da Caixa

Econômica Federal e que, com acordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater

os grandes déficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicos em

urbanismo como por empresários do setor imobiliário esse 'Ministério da Moradia' - ou

'Ministério da Cidade' - passou a ser visto como uma possibilidade de, finalmente, o

governo enfeixar as políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como

já acontecera outras vezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo de

muitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados do Palácio do

Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrez ministerial para o seu segundo

mandato, Fernando Henrique Cardoso abandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado

desde o fim dos governos militares, de fazer da questão urbana a grande prioridade da

ação federal, novamente, ficou para o futuro" (PAULA, 2002: 419).

A lição fica para o próximo governo: um Ministério das Cidades é prioridade neste

país com grandes problemas metropolitanos, fragilidade e fragmentação nas políticas

urbanas e uma articulação intergovernamental incipiente.

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VII - Conclusão: Lições e Desafios

Os anos FHC foram marcados por grandes mudanças, orientadas normalmente pelo

eixo da reforma do Estado. Em boa parte de suas ações, o presidente Fernando Henrique

Cardoso poderia adotar como sua a concepção expressa por Aspásia Camargo, citada

abaixo:

“A Federação é a coluna vertebral que pode ou não dar consistência e viabilidade

ao conjunto de reformas econômicas sociais e políticas que o Brasil pretende realizar”

(CAMARGO, 1994: 93).

Neste sentido, um balanço do período Fernando Henrique ressaltaria,

primeiramente, as transformações positivas que conseguiu realizar. A partir da "conjuntura

crítica" conformada sob a "era do Real", o governo FHC foi maquiaveliano ao destruir

praticamente todas os mecanismos predatórios presentes no estadualismo que vigorou na

redemocratização. O fim dos Bancos estaduais e de outras "torneirinhas" dos governadores

- a última foi a dos precatórios, ainda usada durante os primeiros anos FHC -, a

renegociação da dívida dos estados e, sobretudo, a aprovação da Lei de Responsabilidade

Fiscal foram modificações profundas no federalismo. A criação de uma ordem

intergovernamental mais responsável, pelo menos do ponto de vista financeiro, também

esteve presente na aprovação da "Emenda Jobim", que dificultou a proliferação de

municípios, na mudança da legislação acerca do endividamento subnacional, efetivada pelo

Senado e pelo Banco Central, e na modernização da estrutura fazendária na União e nos

estados (além de algumas capitais). O maior ganho é a criação de uma cultura de

responsabilidade fiscal que vai além da própria legislação.

O Governo Federal teve ações bem sucedidas também no campo da coordenação

administrativa. A experiência da parceria MARE/Fórum dos Secretários Estaduais de

Administração foi uma inovação que juntou colaboração vertical com estímulos ao

associativismo intergovernamental. O erro foi ter paralisado este processo, embora ela

tenha germinado um modelo de relacionamento entre os entes que se repetiu no segundo

mandato no campo previdenciário, exatamente aquele em que tinha havido um fracasso

retumbante de coordenação federativa. O BNDES é outra instituição que se destacou muito

no auxílio e indução de políticas públicas para os estados e municípios, além de ter criado

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uma base de dados excepcional em seu site, com o chamado Banco Federativo. Aliás, a

melhora do tratamento da informação no Executivo Federal ajuda tanto na sua atividade

coordenadora como também na obtenção de dados pelos outras esferas de poder. Aqui, os

Ministérios da Saúde, da Fazenda, da Previdência, da Educação, do Planejamento e a

própria Presidência da República merecem elogios.

Na descentralização de políticas sociais, o governo FHC apresentou alguns

resultados bastante satisfatórios. Alguns vieram de uma prática incremental, ou seja, de

continuar o que já estava no caminho certo, aperfeiçoando certos aspectos, como é o caso

dos Conselhos de Políticas Públicas e do modelo do SUS. Alvissareira foi a aposta num

novo relacionamento entre Estado e sociedade no plano local, algo que estava inscrito na

Constituição, mas que ganhou mais vida em determinadas áreas, entre as quais citaríamos

aquelas associadas ao Comunidade Solidária. Infelizmente, neste tópico, o Governo Federal

fracassou na implementação das Organizações Sociais, que poderiam ter sido um outro

meio de reformular a relação entre os serviços públicos e os cidadãos.

A criação de mecanismos de coordenativa federativa na Saúde, com o PAB, e na

Educação, com o Fundef, foi a maior novidade no campo das relações intergovernamentais.

Em ambos há instrumentos indutores, seja pela via do financiamento seja pelo controle

social, os quais fortaleceram uma descentralização orientada por resultados padronizados

nacionalmente e que não desvirtuam o caráter autônomo dos governos subnacionais. Entre

os dois, o mais sofisticado é o Fundef, uma vez que prevê redistribuição horizontal entre os

entes, a única em nossa Federação; metas quantitativas e qualitativas; e, ademais, ao

estipular um prazo de validade para além do período FHC, consegue responder, ao mesmo

tempo, aos desafios da lógica do Estado - regras mais estáveis para além das intempéries

conjunturais - e da lógica do governo, já que não engessará a gestão de todos os próximos

presidentes, o que obrigaria, a cada mudança democrática de governante, a realização de

reformas constitucionais, defeito estrutural de nosso sistema político.

Políticas nacionais de combate à pobreza mais articuladas com propósitos

intersetoriais, voltadas à emancipação dos cidadãos (renda mais educação) e mais focadas

constituem outro avanço do período. Pena que tenham se consolidado nos dois últimos anos

de governo, algo absurdo para um presidente cujo partido intitula-se social-democrata. Os

programas estratégicos de investimento contidos no PPA também tiveram um efeito

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importante em algumas Regiões do país, mormente no Centro-Oeste. De resto, há outros

sucessos federativos dispersos em decisões ad hoc ou sem uma maior importância e

visibilidade no conjunto do governo.

Os erros e as insuficiências do governo Fernando Henrique no front federativo

decorrem de questões mais estruturais presentes na trajetória do federalismo brasileiro e de

opções governamentais equivocadas. No que se refere ao primeiro aspecto, a fragilidade

republicana dos níveis subnacionais, presente desde a fundação da Federação, vem se

modificando, mas ainda constitui obstáculo às ações do Governo Federal. Tanto melhor

seria se o presidente FHC e sua coalizão percebessem o quanto a reforma do sistema

político, em especial das instituições responsáveis pela accountability do plano local, é

essencial para o sucesso de qualquer governante que assume o posto nacional. Não se pode

negar, por outro lado, que houve avanços nos costumes políticos, afinal dois dos maiores

caciques regionais brasileiros, ACM e Jáder Barbalho, perderam seus mandatos num

processo inimaginável a alguns anos. Mas voltaram novamente para Brasília, porque o

republicanismo é uma obra ainda em construção nos estados e municípios.

Outros três legados federativos que influenciaram negativamente os anos FHC

advêm da redemocratização. O primeiro é o federalismo compartimentalizado, em que cada

nível de governo é uma "caixinha" separada da outra. A busca pela autonomia

governamental depois do centralismo autoritário explica em parte este processo, mas a

lógica da competição política à brasileira é igualmente um elemento que ressalta essa

divisão estanque do poder. Por vezes, este obstáculo foi ultrapassado, normalmente pela

mudança no desenho das políticas públicas, mas sua superação vai depender da

conscientização da gravidade desse problema por parte da sociedade brasileira. A trajetória

da redemocratização nos legou, também, uma concepção autárquica do municipalismo, que

precisa ser modificada. Aqui, a ação da União e dos estados para incentivar uma visão

consorciada são fundamentais, porém a alteração deste quadro talvez só ocorra com novas

regras, como a refundação do conceito de Região Metropolitana. Por fim, o estadualismo

predatório persistiu na guerra fiscal. Este aspecto é anterior e mais profundo do que o

projeto do presidente Fernando Henrique, mas ele poderia ter ao menos levado mais adiante

a discussão sobre a reforma tributária no Congresso Nacional e na sociedade

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O governo FHC não avançou em certas áreas federativas por seus próprios

equívocos. Um deles foi a predominância exacerbada do fiscalismo, que prejudicou uma

visão mais acurada do processo de reforma do Estado nos governos estaduais. Além disso,

os comandantes de Brasília erraram em alguns diagnósticos porque não estabeleceram uma

rede federativa mais forte com as Administrações subnacionais - é o velho vício do

insulamento. O exemplo mais gritante, aqui, é o do problema dos inativos nos estados. Se

tivessem detectado mais cedo a fonte verdadeira do desequilíbrio das conta públicas

estaduais, poderiam ter utilizado melhor os recursos de privatização para capitalizar Fundos

de pensão. Como a história é sempre melhor compreendida depois dos fatos, é preciso

elogiar os técnicos do Ministério da Previdência que, no segundo mandato, tentaram

corrigir, com competência, os erros cometidos antes.

A fragmentação das políticas sociais foi outro problema do período FHC. Não

obstante algumas ações coordenadoras ao final do período, como o Projeto Alvorada, o

balanço geral revela um alto grau de dispersão em determinadas áreas, como o Saneamento

Básico. Mas os maiores erros aconteceram nas políticas de desenvolvimento e urbanas. Nas

primeiras, faltou ao país políticas nacionais para aumentar a simetria federativa. Já as ações

para a questão urbano-metropolitana foram as mais mal sucedidas destes oito anos. Ao

próximo governo fica a lição de que a Segurança Pública, o Saneamento, a Habitação, o

Transporte das grandes cidades e certos temas ambientais precisam, urgentemente, de

programas federais devidamente articulados com os outros níveis de governo, como deve

ocorrer numa Federação democrática.

Para concluir, coloco quatro desafios para o próximo governo29. O primeiro é

aprofundar a análise sobre o que ocorreu nos anos FHC, preservando a memória

administrativa do período, que foi bastante rico em inovações de políticas públicas, mas

também aprendendo com os erros, porque eles costumam se repetir mais do que se imagina.

Além disso, seria interessante conhecer mais a experiência de descentralização de outras

Federações, num trabalho de benchmarking, não para copiar, e sim para descobrir caminhos

que possam servir de inspiração.

Um segundo desafio está na articulação maior entre a os funcionários públicos

federais e os subnacionais, em todos os níveis de gerência. Isso facilitaria o processo de

29 Esta parte final, referente aos desafios, é baseada em Abrucio, 2002.

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coordenação das políticas descentralizadas. Os servidores das carreiras estratégicas da

União, em especial, deveriam ter um estágio de pelo menos três meses em algum município

do Brasil, para conhecer melhor nossa realidade.

O ataque ao modelo compartimentalizado de federalismo é o terceiro desafio. Para

tanto, é preciso incentivar a ações consorciadas no plano local; recriar, com mais

mecanismos de poder, as Regiões Metropolitanas; reconstruir a Sudam e a Sudene, para

atuar sobre o problema do desenvolvimento regional e reforçar a solidariedade federativa;

repensar os fóruns de debates e negociação federativos, como o Confaz e o Conselho de

Gestão Fiscal, e instituir novos instrumentos neste sentido, como uma Agência de Estudos e

Debate Federativo, nos moldes da ACIR norte-americana. É preciso, ademais, encontrar um

maior equilíbrio entre cooperação e competição em nossa Federação, para nos livrarmos

dos legados negativos da trajetória de nosso federalismo.

Por fim, o grande desafio do próximo governo é aumentar a capacidade de

coordenação do Governo Federal ante o processo de descentralização. Medidas para tanto

deverão ser tomadas em cada política específica e, fundamentalmente, precisa ser criada

uma forma de coordenar as ações entre todos os programas que tenham interseção, para

evitar o desperdício ou mesmo a competição predatória por recursos públicos.

Enfrentar estes quatro desafios é lutar contra a visão dicotômica que contrapõe

centralização à descentralização. É descobrir que o Governo Federal tem um papel

essencial no processo descentralizador e não é seu inimigo.

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