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EXPEDIçãO A CHEGADA DE VENEZUELANOS QUE BUSCAM REFúGIO NO BRASIL E O ACOLHIMENTO NOS ABRIGOS DE RORAIMA fronteira OLHAR NA m junho de 2019, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur) reportava 4 milhões de venezuelanos em busca de refúgio, a maioria em países vizinhos como o Brasil. Só o estado de Roraima registrou 50 mil dos novos pedidos de reconhecimento por refugiados; 63% do total recebido pelo país em 2018. Naquele mês, a equipe de Responsabilidade Social da Globo em parceria com o Acnur, visitou uma série de abrigos na região de Boa Vista (RR) com produtores, jornalistas, fotógrafos e cinegra- fistas dos programas Sem Fronteiras (GloboNews), Conversa com Bial e Mais Você, e deste Caderno. O objetivo foi ver de perto o trâmite da chegada, o caminho até o acolhimento e os primeiros passos na retomada de vida pelos venezuelanos no território brasileiro. Durante três dias, a equipe conheceu os abrigos Rondon 1, 2 e 3, Pintolândia (de maioria indígena) e Tancredo Neves, todos em Boa Vista e com capacidade para acolher de 300 a mil pessoas cada um. O roteiro incluiu uma viagem até Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, a três horas de carro da capital, onde operam o abrigo de passagem BV-8 e o Janokoida, des- tinado a indígenas, em geral das etnias Eñepa e Warao. Na fronteira, a estrutura tem como foco o atendimento emergencial: a rede de profissionais e o Exército brasileiro recebem os venezuelanos, providenciam a documentação necessária e os encaminham para abrigos maiores, com alojamentos preparados para receber quem chega sozinho, casais, crianças ou famílias inteiras. Nesses espaços, são oferecidas refeições diárias, servidas em horários rigidamente estabelecidos. De lá, partem ônibus com destino a diferentes cidades do país, como Manaus, São Pau- lo e Rio de Janeiro. A ideia da chamada “interiorização” é diminuir o impacto do contingente de pessoas no Norte do país e permitir que refugiados e migrantes busquem oportu- nidades de emprego e retomem suas vidas nesses novos locais. Os jornalistas Ricardo Calil e Victor Sá (Conversa com Bial) trazem relatos de refugiados e migrantes venezuelanos recém- chegados ao Brasil; a produtora Joy Ernnany relata o cotidia- no da (até então) pacata cidade de Pacaraima (RR); e o fotógrafo Felipe Fittipaldi compartilha os rostos e as histórias que viu e ouviu com sua câmera na fronteira do país. Abrigo Rondon 3, com capacidade para até mil pessoas, em Boa Vista (RR) 105 104 E

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expedição

a chegada de venezuelanos que buscam refúgio no brasil e o acolhimento nos abrigos de roraima

fronteiraOlhar na

m junho de 2019, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur) reportava 4 milhões de venezuelanos em busca de refúgio, a maioria em países vizinhos como o Brasil. Só o estado de Roraima registrou 50 mil dos

novos pedidos de reconhecimento por refugiados; 63% do total recebido pelo país em 2018.

Naquele mês, a equipe de Responsabilidade Social da Globo em parceria com o Acnur, visitou uma série de abrigos na região de Boa Vista (RR) com produtores, jornalistas, fotógrafos e cinegra-fistas dos programas Sem Fronteiras (GloboNews), Conversa com Bial e Mais Você, e deste Caderno. O objetivo foi ver de perto o trâmite da chegada, o caminho até o acolhimento e os primeiros passos na retomada de vida pelos venezuelanos no território brasileiro.

Durante três dias, a equipe conheceu os abrigos Rondon 1, 2 e 3, Pintolândia (de maioria indígena) e Tancredo Neves, todos em Boa Vista e com capacidade para acolher de 300 a mil pessoas cada um. O roteiro incluiu uma viagem até Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, a três horas de carro da capital, onde operam o abrigo de passagem BV-8 e o Janokoida, des-tinado a indígenas, em geral das etnias Eñepa e Warao.

Na fronteira, a estrutura tem como foco o atendimento emergencial: a rede de profissionais e o Exército brasileiro recebem os venezuelanos, providenciam a documentação necessária e os encaminham para abrigos maiores, com alojamentos preparados para receber quem chega sozinho, casais, crianças ou famílias inteiras.

Nesses espaços, são oferecidas refeições diárias, servidas em horários rigidamente estabelecidos. De lá, partem ônibus com destino a diferentes cidades do país, como Manaus, São Pau-lo e Rio de Janeiro. A ideia da chamada “interiorização” é diminuir o impacto do contingente de pessoas no Norte do país e permitir que refugiados e migrantes busquem oportu-nidades de emprego e retomem suas vidas nesses novos locais.

Os jornalistas Ricardo Calil e Victor Sá (Conversa com Bial) trazem relatos de refugiados e migrantes venezuelanos recém-chegados ao Brasil; a produtora Joy Ernnany relata o cotidia-no da (até então) pacata cidade de Pacaraima (RR); e o fotógrafo Felipe Fittipaldi compartilha os rostos e as histórias que viu e ouviu com sua câmera na fronteira do país.

abrigo rondon 3, com capacidade para até mil pessoas, em boa vista (rr)

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que hugo Chávez ainda está vivo, escondido e com o rosto alterado por plásticas, em algum lugar da argentina. Me pediu para anotar seu nome,

“para quando a verdade vier à tona, você lembrar de quem te contou primeiro”. ao lado, dois rapazes riam discretamente. O papel onde escrevi seu nome se dissolveu com a água da chuva.nossa presença, quatro homens vestindo capas de chuva coloridas, chamava atenção. Éramos abordados com pedidos de esmola, mas a maioria buscava informações, pensando que éramos da operação. O clima era de desamparo. a rodoviária virou uma espécie de ponto de encontro para os recém-

-chegados. Muitos que não conseguem uma vaga no abrigo acabam se instalando por ali mesmo, na rua. atrás da rodoviária existe um alojamento

“O tempo aqui é outro”, disse Aline pelo telefone quando marcávamos o horário de nosso primeiro encontro. “Aqui, nós trabalhamos quase sem parar. Estou há quatro meses, mas parecem anos. É tudo muito intenso. Mesmo. Vocês vão entender quando chegarem aqui.” Aline Maccari é uma das mais de mil pessoas que trabalham na Operação Acolhida. Ela integra o time do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. O Acnur, as Forças Armadas, a sociedade civil e o governo brasileiro são os responsáveis pela operação que recebe atualmente uma média de 550 venezuelanos por dia. A operação, montada em 2018, é a maior do tipo já realizada em solo nacional.

A ação conjunta entre a Globo e o Acnur viabilizou essa expedição para Boa Vista e Pacaraima (fronteira Brasil/Venezuela). Mais Você, Sem Fronteiras (GloboNews) e Conversa com Bial foram os programas convidados. Como cada atração tem a própria linha editorial e inte-resses, nos dividimos. Aline foi a encarregada de nos receber. Nós, a

“equipe do Bial”, tínhamos poucos dias e sabíamos que não seria pos-sível entender, em tão pouco tempo, toda a complexidade daquele fluxo migratório de proporções gigantescas. Mas poderíamos ouvir algumas histórias dos verdadeiros protagonistas daquela tragédia, as pessoas. Foi o que fizemos.

onde as pessoas podem pernoitar e deixar seus pertences, mas não há vagas para todos. Uma fila indicava um pronto atendimento emergencial, muitas mulheres grávidas e com filhos buscavam algum medicamento.Esse cartão de visitas impressionou. Muitas histórias tristes, a maioria envolvendo famílias separadas. Todos falavam sobre os que tiveram de deixar para trás e sobre a insegurança em relação ao futuro. apesar das incertezas, todos com quem conversei foram unânimes: não pretendiam voltar tão cedo.

primeiro dia, tarde. abrigo rondon 3O caos da rodoviária deu lugar a uma paisagem mais organizada. as famílias já alojadas desfrutavam de alguma rotina. no lugar de

desespero e insegurança, fomos recebidos por sorrisos. Tivemos um anfitrião inusitado. Moisés Flores, de 10 anos, cujo sonho é ser repórter, assumiu a tarefa de apresentar o local. Com um microfone de brinquedo e uma câmera de papelão, recrutou seu amigo, Marco herrera, para ser seu cinegrafista. Embarcamos na onda, e eles apresentaram seus locais favoritos: o parquinho do lado de fora do alojamento, o campo de vôlei e a tenda onde a mãe de Marco, pedagoga, dá aula aos pequenos. Conhecemos também uma barbearia a céu aberto. Um jovem cortava o cabelo de alguns senhores em uma cadeira improvisada ao som de reggaeton. Uma senhora vendia café por 50 centavos o copo. Em volta dela, pessoas conversavam, como se ali fosse uma pracinha de interior.

primeiro dia, manhã. rodoviária de boa vistaDemos uma volta para reconhecimento local. a ideia era conhecermos alguns pontos, uma prévia antes de gravarmos. a chuva atrapalhou um pouco nossos planos, mas pudemos conhecer a rodoviária de Boa Vista.Um senhor de cabelos brancos chamou minha atenção pelo contraste entre seu semblante cansado e sua agilidade em cima de uma bicicleta. Ele vendia “geladinhos” para as crianças por r$ 1 e maços de cigarros para os adultos por r$ 10. Com a desculpa de puxar conversa, comprei um maço de uma marca que nunca tinha visto antes. Ele contou que desde o primeiro dia em que chegou ao Brasil trabalha com esse tipo de comércio. Muito falante, pinta de bom vendedor. Entre outras coisas, me jurou

entre o que ficou para trás da fronteira e as incertezas em relação ao futuro, jornalista capta relatos de venezuelanos recém-chegados por ViCTOr Sá, jornalista e pesquisador de conteúdo do programa Conversa com Bial

Histórias partidas

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venezuelanos chegam ao abrigo temporário de pacaraima (rr) e podem, depois, seguir de ônibus para boa vista

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nossa presença parecia bem- -vinda, exceto por um homem que me chamou de canto: “O que vocês esperam encontrar de diferente aqui? Somos pessoas iguais a vocês. Vocês, jornalistas, pensam que vão encontrar coisas exóticas, mas somos iguais a qualquer pessoa. nosso país está passando por um momento difícil. apenas isso”. Conversamos. a animosidade inicial logo deu lugar à vontade de ser escutado. Contou que era escritor e estava registrando os últimos anos em um diário, que me mostrou, mas não quis gravar entrevista.São mais de mil pessoas morando provisoriamente no rondon 3. Elas esperam a oportunidade de serem interiorizadas para alguma cidade do país e, enfim, recomeçarem suas vidas. Muitas crianças brincam por todo canto

e camuflam a triste realidade. Percebi que, sempre que uma sensação de conforto surgia, uma nova situação rompia aquela momentânea ilusão.Depois de guardar os equipamentos e me despedir, ouvi meu nome gritado. Marco, o “cinegrafista”, veio correndo, se atirou em meus braços e perguntou: “Você vai voltar amanhã?”.

segundo dia, pacaraima. fronteira com a venezuela

“Onde os primeiros passos dessa dura e penosa jornada se iniciam. Onde o desespero e a esperança se encontram.” Foi mais ou menos como aline definiu. Pacaraima, pequeno município no extremo norte do país, é a porta de entrada para os venezuelanos. aline explicou que “em tese, a fuga para a Colômbia talvez fosse mais fácil, por causa do idioma e da

proximidade geográfica. Mas aqui no Brasil a resposta que eles encontram é muito mais estruturada”. logo após a fronteira, o Posto de recepção e identificação (Pri) e o Posto de Triagem (PTriG) são os responsáveis por iniciar o processo de retirada de carteira de trabalho e CPF. Os documentos ficam prontos em, no máximo, uma semana. Durante esse tempo, as pessoas esperam no BV-8, um alojamento similar aos abrigos de Boa Vista.Uma tenda enorme, com um ar condicionado congelante e ares meio sci-fi, chama atenção. lá, um pronto atendimento cuida das emergências médicas. O médico do Exército explicou que é normal as pessoas chegarem fracas e subnutridas. a travessia não costuma ser fácil. Santa helena, a cidade venezuelana mais próxima de Pacaraima, fica

a 15 km de distância. Muitas vezes esse trajeto é feito a pé, sob sol forte e clima seco. “É comum chegarem com pés e joelhos machucados.” as vacinas exigidas pela legislação brasileira também são dadas ali.

terceiro dia, alojamento tancredo neves, boa vistairmã Clara Santos, missionária da OnG Fraternidade, contou sobre o abrigo Tancredo neves:

“É destinado aos casais e homens sozinhos. Muitos homens deixaram suas famílias na Venezuela e vieram na frente. Temos também pessoas da comunidade lGBT. Diferentemente dos demais abrigos, aqui não há crianças. Por isso, pensei que seria um abrigo triste”. Essa impressão mudou no dia em que Carlos rodríguez e outros amigos pediram para realizar um “show de calouros” no local.

Em um camarim improvisado, Carlos se transforma em antonella. Outros rapazes, inspirados por divas pop como lady Gaga e Beyoncé, se maquiam cuidadosamente. Uma atmosfera bem-humorada e de certa expectativa. ao som de Crazy in love, antonella, com passos decididos, entra no palco para uma plateia de cerca de 100 pessoas. alguns números cômicos, outros mais dramáticos. Quase todas as canções dubladas são em inglês. novamente, quando o clima era divertido e leve, a realidade veio nos chamar. Depois do show, Carlos, que integrava a seleção venezuelana de judô, contou que teve de abandonar a carreira para fugir da fome. Sua irmã foi obrigada a se prostituir por comida, disse. Com lágrimas nos olhos, falou sobre sua filha de 1 ano. “a mãe dela morreu no parto e hoje quem cuida é

minha mãe. Tudo que estou fazendo aqui é por ela.” O sonho de Carlos é trazer a filha,

“mas não agora, só quando conseguir me estabilizar minimamente para poder dar tudo o que ela merece.”ainda revimos “Carlos antonella” em uma academia de judô. Um amigo do Exército conseguiu o espaço para ele treinar de graça. Carlos atravessa a cidade, duas horas caminhando, para seguir com os treinos. Foi a última pessoa que entrevistamos: “não considero aqui um refúgio. aqui é uma escola. Me sinto mais livre aqui no Brasil. Minha mãe me ensinou que, mesmo que as coisas estejam muito difíceis, sempre temos que encarar com positividade. É assim que sou. É assim que antonella é”. Quatro dias após nosso encontro, ele foi interiorizado para Campina Grande, Paraíba.

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abrigo de pintolândia, em boa vista (rr), recebe exclusivamente indígenas

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A pequena e pacata Pacaraima, cidade roraimense que faz fronteira com a Venezuela, nunca imaginou que um dia seria conhecida como um polo de assistência humanitária. Mas esta virou a realidade da cidade que chegou a receber 1.180 venezuelanos em um só dia. De acordo com a ONU, o agravamento da crise na Venezuela fez com que 4 milhões de pessoas deixassem o país desde 2014. Hoje, em média, 500 pessoas cruzam dia-riamente a nossa fronteira, e muitas querem fazer do Brasil o seu refúgio.

“Saí de Caracas para oferecer uma vida melhor para ela”, conta Karin Martínez, engenheira de sistemas de 39 anos, olhando para a sua filha. Como muitas famílias, elas pegaram um ônibus de Caracas até Puerto Ordaz e, de lá, contrataram um motorista por cerca de US$ 200 – o equivalente a 25 salários mínimos na Venezuela – para cruzar a frontei-ra. Depois de passar pelas bandeiras do Brasil e da Venezuela que sina-lizam a fronteira entre os países, Karin avistou a sinalização da Operação Acolhida. Logo foi encaminhada com outros recém-chegados ao Posto de Recepção e Identificação. É lá que os venezuelanos recebem a permis-são de entrada no país, são vacinados e tiram documentos brasileiros, como o CPF. É também onde eles dão entrada na solicitação de refúgio, que é analisada pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), um pro-cesso demorado: hoje apenas 63 venezuelanos tiveram seu status de re-

fugiado regularizado e cerca de 99 mil aguardam revisão.

A Operação Acolhida tem como ob-jetivo ordenar a fronteira e abrigar e interiorizar os venezuelanos que decidiram recomeçar a vida no Bra-sil. É uma força-tarefa das agências das Nações Unidas com as Forças Armadas e 11 ministérios. O custo para o Estado brasileiro é de cerca de R$ 263 milhões por ano. Por se tratar de uma missão humanitária, nenhum dos 500 militares que in-tegram a operação trabalha armado.

“No meu país não há pessoas uni-formizadas que tenham educação. Lá, eles nos insultam, nos tratam mal”, declara Karin.

Após passarem o dia inteiro regu-larizando a entrada, Karin e sua filha, exaustas, são levadas para um dos dois abrigos de Pacaraima, onde aguardam a transferência para Boa Vista. “Muito obrigada, Brasil!”, exclama a mãe, emocionada.

Estimativas da Operação Acolhida indicam que dos 168 mil venezue-lanos que estão no Brasil, 60 mil vivem em Roraima. Deles, 6,5 mil estão em abrigos temporários man-tidos pela Operação Acolhida. No entanto, 1,3 mil vivem em ocupa-ções irregulares e 1,5 mil se encon-tram em situação de rua. Em Boa Vista, onde há cerca de 32 mil ve-nezuelanos, é longa a fila de espe-ra para entrar nos 11 abrigos – que operam em sua capacidade máxima.

Felipe Mejías, de 43 anos, está no Brasil há quase um ano com sua esposa, filhos e neto aguardando a interiorização. Atualmente no abri-go Rondon 2, em Boa Vista, ele es-pera chegar até a capital do Paraná, onde a família de sua irmã já se es-tabeleceu. “Eu quis tirar a minha família da Venezuela, e isso já con-segui. Agora preciso continuar ba-talhando. Quero ser caminhoneiro e comprar uma casa no Brasil”, re-vela ele. “Somos gratos por receber

dos 168 mil venezuelanos que vivem hoje no brasil, 60 mil estão em roraima. pacaraima é a principal porta de entrada

abrigo rondon 3, o maior de boa vista (rr), tem estrutura para acolher famílias inteiras e por mais tempo que os demais

Ritos da passagem

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ajuda, mas nós, venezuelanos, somos acostumados a comprar as coisas com o nosso próprio dinheiro.”

Até o momento, 7 mil venezuela-nos já foram deslocados para ou-tros estados brasileiros por meio do Programa de Interiorização, do governo federal. O objetivo é re-duzir o impacto da chegada de refugiados e migrantes em Rorai-ma, identificando outros locais de acolhida no país. Há, ainda, uma base de dados que mapeia vagas de trabalho e identifica perfis de refugiados adequados para elas.

“Já fizemos 923 interiorizações por vagas de emprego e esses vene-zuelanos estão hoje trabalhando bem e integrados com a socieda-de brasileira”, explica o coronel Alexandre Carvalhaes, responsá-vel pela Célula de Interiorização da Operação Acolhida.

Enquanto a maioria dos venezue-lanos que chegam a Roraima dese-

ja ser deslocada para outros estados do país, há também quem não pos-sa ficar muito longe da fronteira. É o caso de María Celeste Gutiérrez, de 34 anos, que se estabeleceu com o marido e três filhos em Pacaraima em 2016, deixando sua mãe e uma avó doente na Venezuela. “A gente não compra só 1 quilo de arroz para a nossa casa, compramos 2 – para guardar um e enviar o outro para a Venezuela. Por mais dinheiro que a gente mande, eles não têm o sufi-ciente para as necessidades de lá”, explica ela, que trabalha como as-sistente do Centro Pastoral para Migrantes de Pacaraima. Apesar de já estar integrada à sociedade ro-raimense, com amigos, emprego estável e laços afetivos, María Ce-leste sonha em voltar para casa.

“Mas, quando penso nos meus filhos, sei que aqui no Brasil eles terão opor-tunidades, e na Venezuela não.”

por JOy Ernanny, jornalista e produtora de documentários da GloboNews

o programa sem fronteiras sobre a expedição foi exibido no dia 20 de junho de 2019. veja mais em app.cadernosglobo.com.br.

Quando uma pessoa chega à situação extrema de ser obrigada a deixar às pressas o seu país e buscar refúgio em outro, carregando o mínimo possí-vel de sua vida pregressa, quais pertences ela faz questão de levar consigo?

Movida por essa inquietação, uma equipe do Conversa com Bial, da Globo, abordou em junho passado dezenas de venezuelanos com mo-radia provisória no abrigo Rondon 3, em Boa Vista, Roraima.

A princípio, os refugiados estranhavam a pergunta. A primeira respos-ta de vários foi: “Meus filhos”. Parecia um ruído de comunicação, mas logo ficou claro que trazê-los era uma vitória pessoal que precisava ser afirmada. Muitos refugiados tiveram de deixar os filhos com parentes na Venezuela, até juntar o dinheiro para bancar sua viagem ao Brasil. Outra resposta comum era: “Vim apenas com a roupa do corpo”. A ideia de trazer qualquer coisa a mais soava como uma extravagância.

Aos poucos, porém, alguns começaram a revelar seus pertences de estimação – ponto de partida para que eles contassem suas histórias pessoais. A maioria dos objetos lembrados misturava valor sentimen-tal e utilidade econômica. Funcionavam, ao mesmo tempo, como uma maneira de recordar o passado e de ajudar no futuro.

dulce Dulce González, costureira, tirou do próprio cabelo uma agulha de crochê antiga, feita de um metal já oxidado, com cerca de duas décadas de uso. Em seguida, retirou de um saco delicados sapatinhos infantis de crochê que ela fazia na Venezuela. Contou que pretendia voltar a fazê-los para vender no Brasil, assim que conseguisse dinheiro para comprar as linhas e outros materiais. “Foi minha mãe quem me ensinou a costurar. Usar essa agulha é uma maneira de ter minha velha por perto e ajudar a criar minha filha e minhas netas.”

laila laila Carrillo, professora e confeiteira, trouxe uma forma de bolo de metal, dada por uma amiga, “quase uma irmã”. Mostrou também uma batedeira e formas variadas para fazer

bombons e outros doces. Ela conta que é da segunda geração de refugiados. Seu pai veio da Palestina para a Venezuela, fugido da guerra. Diferentemente de Dulce, laila conseguiu começar a trabalhar no Brasil. Uma igreja cedeu a cozinha, laila faz lá seus doces e os vende no abrigo. Também ganhou o primeiro lugar num concurso de empreendedores com sua receita especial de alfajores. “Meu sonho agora é ter uma loja de doces, trazer o resto da minha família e aprender português.”

richard O barbeiro richard Jesús rodríguez também já conseguiu ganhar algum dinheiro com seu objeto preferido: uma máquina para aparar cabelos. Ele trouxe também outros apetrechos da profissão: tesoura, navalha, secador etc. Desde que chegou

ao abrigo, richard oferece seus serviços aos refugiados. São cinco a seis cabelos cortados por dia. richard apareceu para conversar de muletas. Ele perdeu a perna esquerda num acidente de carro, um ano antes. indagado como sua vida mudou de lá para cá, ele respondeu com convicção: “O acidente não me afetou em nada. levo a minha vida igual. Sou um guerreiro”. Questionado por que não escolheu as muletas como objeto mais importante, ele foi categórico novamente: “a máquina de cabelo é tão importante quanto as muletas. Ela também me ajuda a seguir adiante”.

lérida nem todos os refugiados apareceram com objetos

utilitários. lerida Pérez, que vendia comida nas ruas, veio protegida pelas pulseiras e colares da santería, religião de origem africana como o nosso candomblé. Ela cita os santos representados nos colares: Oxum, iemanjá, Xangô, Obatalá, Oyá, Orula. “Eles me protegeram na vinda ao Brasil. Pedi para nunca dormir na rua. E encontrei abrigo desde o primeiro dia aqui. agora vou pedir para trazer meus filhos e meu marido, que ficaram na Venezuela.”

dianaO objeto mais singelo foi trazido por Diana Estanga: um cachorro de pelúcia batizado de Fofo. “Foi minha avó quem me deu. não consigo dormir se não for abraçada com ele. Talvez seja saudade da minha infância”, diz a contadora de 18 anos.

refugiados venezuelanos revelam quais são os objetos mais importantes que trouxeram para o brasil. por riCarDO Calil, jornalista, roteirista do Conversa com Bial e codiretor do documentário Uma noite em 67

Carrego comigo

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trazer a família é uma grande vitória para boa parte dos refugiados. nesta página, os pertences de laila, dulce, richard, lérida e diana

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