abreu, mauricio de almeida.o estudo geográfico da cidade no brasil evolução e avaliação

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  • 198 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    Teses de doutorado

    OOLDENSTEIN, L. (1970). Estudo de um Centro Industrial Satlite: Cubata.BIASI, M. (1972). Tipologia de Stios Urbanos no Vale do Paraba - SP.FRANA, M. C. (1972). Pequenos Centros Paulistas de Funo Religiosa.MOTTA, I. H. H. M. (1972). O Uso da Terra no Municpio de Marllia - SP.FERNANDES, L.L. (1972). O Bairros Rurais no Municpio de Limeira: Estudo Geogrfico.NAKAGAWARA, Y. (1972). As Funes Regionais de Londrina e Sua rea de Influncia.SILVA, A. C. (1975). O Litoral Norte do Estado de So Paulo: Formao de uma Regio Perifrica.VILAA, F. J. M. (1979). Estrutura Territorial da Metrpole Sul-Brasileira: reas Residenciais e Co-

    merciais.CORDEIRO, H. K. (1979). O Centro da Metrpole Paulistana: Expanso Recente.GUIDUGLI, O. S. (1980). A Geografia da Populao Urbana: Aspectos Tericos e o Caso Marlia

    -SP.LEMOS, A. I. G. Um Exemplo de Processo de Mftropoliiao Recente na Periferia da Grande So

    Paulo: O Municpio de Itaquaquecetuba.PERIDES, P. P. (1981). Um Exemplo de Processo de Organizao Territorial: A Sub-regio de Ja

    (1930).RODRIGUES, A. A. B. (1985). guas de So Pedro - Estncia Paulista: Uma Contribuio Geogrfi-

    ca da Recreao.SILVA, J. B. (1987). Movimentos Sociais em Fortaleza: Uma Abordagem Geogrfica,CARLOS, A. F. A. (1987). A (Re)Produao do Espao Urbano: O Caso de Cotia.MIZUBUTI, S. (1987). O Movimento Associativo de Bairro em Niteri - RJ.BARROS, N. C. C. (1987). O Pequeno Comrcio no Interior do Nordeste do Brasil: Estudo sobre o

    Comrcio Ambulante na Cidade de Campina Grande, Estado da Paraba.SEABRA, O. C. L. (1988). Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder. Tiet e Pinheiros: Vulorita-

    o dos Rios e das Vrzeas na Cidade de San Paulo.RODRIGUES, A. M. (1988). Na Procura do Lugar f Encontro de Identidade: Um Estudo do Processo

    de Ocupao Coleliva de Terra para Moradia - Osasco.

    JU

    n v

    13. O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL:EVOLUO E AVALIAOCONTRIBUIO HISTRIA DO PENSAMENTOGEOGRFICO BRASILEIRO*

    Maurcio de Almeida Abreu"

    Introduo

    sempre importante que, a intervalos peridicos de tempo, umacomunidade cientfica reflita criticamente sobre a sua prpria produo.Ao fazer isto, ela no apenas resgata e recupera todo o esforo j em-preendido de construo do conhecimento - valorizando-o portanto -como identifica problemas e prope solues de encaminhamento para ofuturo.

    No qae diz respeito geografia urbana brasileira, esta tarefa jvem sendo realizada h algum tempo, tendo dado origem a diversos tra-balhos (Corra, 1967 e 1978a; Miiller, 1968; Fredrich, 1978; Mamgo-nian, 1978). Por serem historicamente determinados, esses estudos cons-tituem-se hoje verdadeiros depositrios, tanto da produo realizada pe-los gegrafos brasileiros sobre a cidade, como da prpria histria dageografia no pas.

    O objetivo do presente trabalho o de oferecer mais uma contri-buio essa avaliao que os gegrafos urbanos brasileiros efetuam pe-

    * Este trabalho foi realizado com apoio da FINEP e do CNPq. O autor agradece Rosa Ester Rossinipor ter facilitado o acessn a diversos obras que so aqui comentadas, e a Roberto Lobato Corra,pela crtica que realizou a uma verso preliminar do texto.

    ** Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (iiFPJ).

  • 200 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    riodicamente sobre a sua produo. Pretende-se, com este trabalho, res-gatar muito do que j foi abordado em estudos anteriores, e acrescentartambm coisas novas, fruto das discusses mais recentes que vm sendotravadas na geografia.

    Dada a magnitude do objeto que se pretende avaliar (o estudo geo-grfico da cidade), algumas decises tiveram que ser tomadas no sentidode limitar o universo a ser pesquisado. Assim, foram includos na pre-sente pesquisa os seguintes tipos de trabalho:

    1. Trabalhos realizados apenas pelos gegrafos brasileiros. Esto exclu-dos, portanto, tpdos os estudos realizados por outros profissionais, ex-cetuando-se aqueles que foram realizados pelos pioneiros da geografiano Brasil (muitos dos quais no tinham formao especfica nessa dis-ciplina) e os trabalhos que, embora de autoria de no-gegrafos, foramdefendidos em programas de ps-graduao em geografia. Estudos rea-lizados por gegrafos estrangeiros e por outros estudiosos das cidadesesto tambm presentes no texto, j que servem de ponto de refernciapara as discusses que so a levantadas.

    2. Trabalhos que tratam apenas da escala intra-urbana. O objeto de estu-do est limitado aos trabalhos que focalizam a cidade propriamentedita; que tratam da sua organizao interna e dos processos que a de-terminam. Deixamos, assim, para outros a tarefa de analisar a produ-o geogrfica realizada no nvel interurbano e no nvel do processode urbanizao.

    3. Trabalhos que atingiram o domnio pblico. Esto includos nesta ava-liao apenas os trabalhos publicados ou defendidos em programas deps-graduao em geografia. Optou-se por considerar tambm aquelestrabalhos que foram publicados sob a forma de resumo, geralmente in-cludos em anais de congressos. A dificuldade de acesso dos gegra-fos aos meios editoriais notria, razo pela qual muitos dos estudosque so realizados conseguem apenas ser publicados de forma resumi-da, ou ento em veculos de circulao bastante restrita, de difcilacesso. Acreditamos, assim, que os trabalhos publicados sob a formade resumo traduzem um esforo muito maior, que merece ser valoriza-do. Por esta razo, fazem parte desta avaliao.

    A tarefa a que nos propusemos revelou-se, na prtica, muito maiordo que a havamos imaginado inicialmente. Com efeito, a produo rea-lizada pelos gegrafos brasileiros sobre a cidade no apenas antiga,como numerosa e diversificada. Conseqiientemente, tivemos que traba-lhar com um nmero bastante elevado de referncias bibliogrficas, queesto devidamente listadas ao final deste estudo. Resta dizer, para finali-

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 201

    zar, que este trabalho no pretendeu (e nem poderia) cobrir toda a pro-duo realizada pelos gegrafos brasileiros sobre a cidade. Esto inclu-das aqui apenas aquelas fontes s quais foi possvel ter acesso. Acredita-mos entretanto que elas revelam, com bastante clareza, o que tem sidoeste longo e profcuo processo de produo de conhecimento sobre a ci-dade, que agora recuperado, discutido e avaliado.

    13.1 O Pensamento Geogrfico e a Cidade: Primrdios

    Ao analisar a evoluo do pensamento geogrfico mundial aps ainstitucionalizao da geografia como disciplina universitria, por voltade 1870, nota-se, com certo espanto, que a cidade um tema de atenorelativamente recente dos gegrafos. Com efeito, embora Ratzel lhe te-nha dedicado diversos captulos da segunda parte da Anthropogeogra-phie, somente a partir da dcada de 20, quase trinta anos depois doaparecimento dessa obra (Ratzel, 1891), que a cidade passa a ser um ob-jeto sistemtico de investigao da geografia. No Brasil, sero necess-rios ainda mais quinze anos para que o mesmo possa vir a acontecer.

    Ratzel conferiu s cidades um papel importante na evoluo da hu-manidade. Para ele, o conceito fundamental da anlise geogrfica da ci-dade era o de "Lage", "palavra que em portugus corresponde ao mesmotempo posio (isto , localizao segundo as coordenadas geogrfi-cas) e situao, isto , localizao em relao, por exemplo, a outroeiemento ou conjunto de elementos"1. Dentre esses elementos, Ratzelenfatizou principalmente o papel desempenhado pelas vias de comunica-o atravs da histria, chegando mesmo a dizer que a cidade deveriaser estudada a partir de sua situao em relao a essas vias. As grandescidades foram, inclusive, definidas por ele como "uma reunio durvelde homens e de habitaes humanas que cobre uma grande superfcie ese encontra no cruzamento de grandes vias comerciais" (Ratzel, 1903).

    , pois, a partir do conceito de posio/situao que a cidade entrano ternrio geogrfico moderno. Vindo de Ratzel, isto no poderia deixarde ocorrer. Com efeito, esse conceito fundamental em toda a sua obra,especialmente na Politische Geographie, que tem toda a sua quarta partededicada ao tema (Ratzel, 1987). Embora outros grandes autores alemestenham tambm dedicado ateno posio das cidades (Schliitter, 1899;Hettner, 1902), o fato que, a partir da morte de Ratzel, em 1904, o es-

    E. Backheuser, "Os Fatos Fundamentais da Geografia", em Boletim Geogrfico, 2(16):401, 1944.

  • 202 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 203

    tudo das cidades vai transformar-se, deslocando-se do eixo preferencial-mente estratgico e econmico da posio, para caminhar em direo anovos elementos balizadores. Isto j era notado por Febvre em 1922,que acusava os gegrafos alemes de se preocuparem agora excessiva-mente com o estabelecimento dos mais diversos esquemas classificat-rios de cidades2, tarefa que ele considerava importante, mas que no re-fletia "a verdadeira contribuio geogrfica ao estudo do tema" (Febvre,1922).

    E que contribuio seria essa? Para Febvre, era a geografia france-sa que estava contribuindo de forma mais efetiva para a compreenso dacidade. E isto. ela fazia a partir da orientao geral de Vidal de LaBlache, que, segundo ele, "havia colocado e resolvido de uma s vez oproblema geogrfico da cidade" quando escrevera: "La nature prepare lsite et Phomme Porganise pour lui permettre de rpondre ss dsirs e ss besoins"3. Ou seja, o estudo geogrfico das cidades deveria pautar-se principalmente pelas questes referentes ao stio, que se transformavaagora no principal elemento conceituai do estudo urbano. A cidade seria,ento, mais um palco de demonstrao da superioridade da "vontade hu-mana'' sobre o jugo ambiental e, assim contextualizada, passava a fazerparte, tambm, do ternrio principal do debate franco-alemo daquelapoca.

    Dados esses objetivos maiores, no de se estranhar que os traba-lhos franceses de geografia urbana, que Febvre tanto elogiava, tenhamoptado preferencialmente pelo estudo de cidades localizadas em stiosdesfavorveis, como provam os estudos realizados sobre Friburgo(Girardin, 1909-1910), Grenoble (Blanchard, 1911), Lille e Nancy (Blan-chard, 1914-1915), Lausanne (Biermann, 1916), Annecy (Blanchard,1916), Bordeaux (Blanchard, 1917), e sobre Marselha (Blanchard, 1918;Kambert, 919). Como concluso, esses estudos proclamavam, invaria-velmente, as "grandes vitrias humanas" sobre o meio natural4.

    Essa "naturalizao" do estudo geogrfico da cidade se inscreveperfeitamente bem no contexto dos debates da poca. Este no o lugarde se comentar tudo o que se escondia por trs dessa opo, ou seja, oestatuto de cincia naturai que Vidal de La Blache defendia para a geo-grafia, as presses externas vindas de outras disciplinas (que contesta-vam a validade da existncia da geografia como cincia), o significadopoltico-ideolgico do debate franco-alemo etc. O que importa referir

    2. Veja, por exemplo, Hassert 1907; Oberhummer, 1907; Krecher, 1913; Geisler, 1920.3. V. de La Blache, 1898, p. 107.4. Alis, Pierre Deffontaines iria caracterizar mais tarde, e dessa mesma forma, o resultado da luta que

    se Cilabefeccu entre homem e meio ratural no Rio de Janeiro (Deffontaines, 1937).

    que o projeto naturalista foi vitorioso na Frana, e, embora La Blachetenha deixado apenas algumas poucas pginas escritas sobre as cidades5,sua orientao foi decisiva para o delineamento do tipo de estudo urbanoque iria predominar naquele pas e, mais tarde, nos pases que receberi-am a influncia da "escola francesa", dentre eles o Brasil.

    O vis naturalista imposto ao estudo geogrfico das cidades trans-parece claramente nos trabalhos realizados pelos gegrafos france-ses do incio do sculo. Jean Brunhes, por exemplo, em sua La Gogra-phie humaine, de 1910, define a cidade como um dos "fatos da ocupa-o improdutiva do solo", como "uma espcie de organismo vivo aoqual se aplicam os mtodos comparativos das cincias da observao"6.Blanchard, por sua vez, no prefcio de seu livro pioneiro sobre Greno-ble, afirma claramente que "a ideia essencial do estudo que a origem eo desenvolvimento da cidade so explicados pelas condies fsicas doseu stio"7. Assim, no corao mesmo dessa geografia urbana que se ini-ciava, conforme lembra Pinchemel, reinava imponente o conceito de s-tio, com a noo de posio ocupando um nvel subsidirio (Pinchemel,1983.).

    Discpulo fiel de Brunhes, morto em 1930, Pierre Deffontaines trazem sua bagagem, ao chegar ao Brasil em 1934, toda esta opo prefe-rencial pelo natural. Antes de discutir mais detalhadatnente o incio dosestudos de geografia urbana no Brasil, preciso destacar, entretanto, umoutro elemento importante do ambiente da poca, e que tambm afetou,a nosso ver, a opo naturalista pela qual votaram os gegrafos france-ses. Trata-se da necessidade de diferenciar claramente os estudos geogr-ficos daqueles realizados por outros profissionais, principalmente pelossocilogos.

    Com efeito, se a alocuo metodolgica de Vidal de La Blache so-bre as "caractersticas prprias da Geografia" (1913) parece ter dado re-sultado, tranquilizando a disputa com a histria e dando lugar, inclusive,a uma fase de maior integrao entre as duas disciplinas8, o mesmo noacontecia com a sociologia. As polmicas de Vidal de La Blache comDurkheim, na virada do sculo, so bastante conhecidas. Outras influn-cias, entretanto, surgiram a partir de ento e podem ter ameaado a nas-

    5. Compiladas por Emmanuel de Martonne para a publicao post-moriem dos Prncipes de gographiehumaine. (Vidal de La Blache, 1922).

    6. Paris, Alvar,, 1912, pp. 187-188.7. Grenoble. elude de gographie urbaine, Paris, Colin, 1911, p. 5.8. Veja, por exemplo, os ttulos dados por Febvre e per Brunhes e Vallaux a duas de suas grandes

    obras: La Terre et l'volution humaine: Introduction gographique l'histoire (Febvre, 1922) e Latiographie de l'histoire (Brunhes e Vallaux, 192!).

  • 204 05 CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    cente geografia urbana francesa. Maunier, por exemplo, escrevera, em1910, importante estudo sobre a origem e a funo econmica das cida-des. J na dcada de 20, por sua vez, surgiram os estudos sistemticosde ecologia humana da escola de Chicago, que propunham no apenasuma abordagem diferente do estudo urbano (a ser discutida mais adian-te), como apresentavam tambm um modelo geral (e espacial) de cresci-mento das cidades. No nvel de hiptese, podemos argumentar que urgiadiferenciar claramente o estudo geogrfico das cidades dos trabalhos rea-lizados por outros profissionais, o que acabou acontecendo a partir dapromoo da "monografia urbana" como estudo-padro de cidades feitopela geografia. Isto fica mais claro agora, quando passamos a tratar es-pecificamente da introduo da chamada escola francesa no Brasil.

    13.2 A Escola Francesa Chega ao Brasil: A "Geografia Tradicional"

    comum assinalar o ano de 1934, data da criao da USP, como omarco de fundao da moderna geografia brasileira. Com efeito, nesseano que, convidados pelo governo do Estado francs, chegam ao Brasilos mestres que viriam ocupar as ctedras abertas na nascente FFLCH.Dentre eles estava Pierre Deffontaines, que no s participou da funda-o da USP como, no ano seguinte, transferindo-se para o Rio de Janei-ro, emprestou seu prestgio tambm criao da Universidade do Distri-to Federal (UDF), sendo substitudo na USP por Pierre Monbeig.

    Embora seja inegvel que, com a criao dos cursos universitrios,a geografia atingiu um patamar novo em seu processo de desenvolvimen-to no Brasil, fixar o seu nascimento em meados da dcada de 30 acabapor encobrir o importante papel que vinha desempenhando, j h 25anos, aquele que foi o verdadeiro introdutor da chamada escola francesano pas: Carlos Delgado de Carvalho.

    Com efeito, se em 1910, data da publicao de L Brsil meri-dional, que as ideias lablachianas =o introduzidas no Brasil (Delgado deCarvalho, 1910), sero nos 20 ou 25 anos subsequentes que Delgado irtravar uma verdadeira guerra contra o ensino descritivo e enciclopdicoento reinante nas escolas de nvel elementar e mdio do pas. Datamdesse perodo, por exemplo, a sua ao efetiva para mudar o currculodo Colgio Pedro II, no Rio de Janeiro (considerado colgio-padro);suas intervenes em diversas sociedades cientficas, dentre as quais aSociedade de Geografia do Rio de Janeiro (depois Sociedade Brasileirade Geografia); a publicao de compndios escolares, dentre os quais aGeographia do Brasil (Delgado de Carvalho, 1913); e, principalmente, a

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 205

    publicao de sua Methodologia do Ensino Geogrphico, trabalho emque revela estar a par do que de mais recente havia, quela poca, emtermos de teoria e mtodo geogrficos (Delgado de Carvalho, 1925).

    Pode-se afirmar ento, seguindo Vnia Vlach, que a chegada dosmestres franceses em meados da dcada de 30, ao invs de detonar umprocesso inteiramente novo, veio dar impulso a um processo que j sehavia iniciado nas dcadas anteriores e que, tal qual havia ocorrido naAlemanha e na Frana do sculo XIX, teve sua origem nas presses, es-tmulos e demandas provenientes do ensino mdio (Vlach, 1988). Corro-borando essa opinio, assim falava Maria Conceio Vicente de Carva-lho na dcada de 50, em reunio que homenageou a memria de JosVerssimo da Costa Pereira, recentemente falecido:

    Quando pois, a geografia moderna ensaiava os primeiros passos no Brasil pela moe Delgado de Carvalho, e muito antes que os mestres franceses viessem trazer a suaconribuio atravs das faculdades de filosofia, j Verssimo se familiarizara com a obrade um RaUcl, de um Vidal de Ia Blache, de um Penck, de um Marinelli. Da a sua forma-o eciica, no filiada a esta ou aquela escola, mas conhecendo-as todas9 [grifo nosso].

    Se Delgado de Carvalho e outros foram precursores da chamada"geografia moderna" no pas, no h dvida, entretanto, de que foi coma chegada dos mestres franceses que ela realmente se instalou com soli-dez no Brasil. E agora no apenas no nvel do ensino, mas tambm noda pesquisa. Conforme bem atestou Aroldo de Azevedo:

    Criada a Universidade de So Paulo e, com ela, a Faculdade de Filosofia, passou aGeografia a ser ensinada em nvel superior, com o objetivo de formar bons professorespara o magistrio secundrio e pesquisadores para o trabalho no campo.

    Esse trabalho no campo a que se referiu Azevedo sintetiza bem oque seria, de 1934 em diante - e por um bom tempo i - o trabalho geo-grfico par excellence no Brasil. Com efeito, diretamente influenciadapela geografia francesa, j tradicionalmente refratria teorizao, a geo-grafia brasileira fez do trabalho no campo, do coniato direto com a obser-vao, uma atividade no apenas fundamental de pesquisa, como tambmde aprendizado. No seria exagero afirmar que foi no trabalho no campo- e no nas faculdades - que a primeira gerao de gegrafos obteve,verdadeiramente, a sua formao.

    "Verssimo: O Homem, o Frofes*or, o Gegrafo", em Boletim Carioca de Geografia, *(34):42,1955.

  • 206 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    13.2.1 A "geografia moderna" e a cidadeAo se falar especificamente da pesquisa geogrfica urbana, o ponto

    de partida inequvoco de sua realizao no Brasil encontra-se na atuaode Pierre Monbeig na USP e, mais especificamente, em seu trabalho so-bre "O Estudo Geogrfico das Cidades" (Monbeig, 1941b), obra meto-dolgica que viria orientar o pensamento de inmeros gegrafos brasilei-ros por mais de um quartel de sculo.

    Houve, verdade, trabalhos anteriores sobre as cidades brasileirasrealizados por gegrafos. Caio Prado Jnior, por exemplo, no incio desua brilhante carreira, publicou dois artigos sobre a posio da cidade deSo Paulo (Prado Jnior, 1935 e 1941). Deffontaines, por outro lado, es-creveu alguns artigos hoje considerados clssicos a respeito da origemde nossas cidades. Destacam-se aqui o estudo sobre Sorocaba e sua feirade burros (Deffontaines, 1935) e, principalmente, seu longo ensaio sobreas diversas formas de origem dos centros urbanos brasileiros (Deffon-taines, 1938), temtica que no deixar de cativar a ateno do gegrafonas dcadas seguintes, como atestam os trabalhos de Aroldo de Azevedosofaie as vilas e cidades do Brasil colonial (Azevedo, 1954-1955), sobreembries de cidades brasileiras (Azevedo, 1957a), sobre arraiais ecorrutelas (Azevedo, 1957b), alm dos trabalhos de Soares (1958), sobre"a primeira vila portuguesa no Brasil", e de Bernardes (1960a), sobre a"funo defensiva do Rio de Janeiro e seu stio original".

    Houve tambm outros estudos que resultaram de pesquisa de cam-po aqui realizada por gegrafos estrangeiros, dentre os quais podemoscitar A. Haushofer (1925), que estudou Ouro Preto e Belo Horizonte;Otto Quelle (1931), que estudou o Rio de Janeiro; Preston James, querealizou trabalhos sobre Belo Horizonte e Ouro Preto (1932) e sobre Riode Janeiro e So Paulo (1933); e, finalmente, Philippe Arbos, que estu-dou Fetrpolis (1938) quando aqui esteve, em 1937, dando aulas na Es-cola de Economia e Direito da UDF. Isto sem falar do captulo dedicados duas maiores cidades brasileiras por Deffontaines (1939) em sua Geo-grafia Humana no Brasil.

    Apesar da precedncia desses estados sobre o ensaio metodolgicode Pierre Monbeig citado acima, a verdade que eles aqui pouco tive-ram repercusso, j que foram originalmente publicados no exterior e,em alguns casos, em lngua de difcil acesso (alemo). O trabalho deMonbeig, ao contrrio, no s foi publicado no vernculo, como reves-tiu-se de significado ainda maior por ter sido o carro-chefe de uma sriede estudos apresentados discusso no IX Congresso Brasileiro de Geo-gi-afin, reunido em Florianpolis em 1940, sob o patrocnio da Socieda-

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 207

    de de Geografia do Rio de Janeiro (tradicional promotora do evento) edo agora recm-criado CNG.

    Tratava-se, na verdade, da primeira incurso da nova geografiaacadmica, da geografia das faculdades de filosofia, na seara dos con-gressos cientficos. E essa era uma incurso aguardada com expectativapelos que trabalhavam na Academia. Para eles era fundamental impordefinitivamente no pas a "geografia moderna" e cortar os laos, de umavez por todas, com a geografia enciclopdica que ainda teimava em semanter por aqui. Colaborando tambm nessa direo, o IBGE fez divul-gar com bastante antecedncia o evento, transcrevendo na Revista Brasi-leira de Geogtafia o teor de vrios discursos de adeso ao certame, den-tre os quais figurava um pequeno artigo de autoria de Joo Dias daSilveira, docente de geografia fsica da USP. Esse artigo, originalmentepublicado na Folha da Manh, revela claramente o que representava,para a nova gerao de gegrafos que surgia no Brasil, o congresso a serrealizado em Florianpolis. Dizia Silveira (1940) naquela ocasio:

    Como domnio pblico, est marcada para setembro prximo, a realizao, emFlorianpolis, do Nono Congresso Brasileiro de Geografia [....] Muito embora iniciativascomo essa devam, j de per si, ser elogiadas [...] O Congresso de Florianpolis assumeaspecto particular. Prendem-se-lhe detalhes e questes que o transformam em verdadeirocentro de atrao, que fazem dele uma prova para as elites intelectuais do pas {...] AGeografia, no novidade para os que estudam, evoluiu muito nos ltimos tempos. Atual-mente suas linhas diretrizes, seus mtodos e objetivos fazem dela uma cincia que, se nopode ser chamada de nova, deve ao menos ser considerada como rejuvenescida. Mas, en-tre ns, no faz muito tempo que comeou a ser entendida em suas modernas tendncias.Na realidade a nova Geografia ainda no conquistou todos os centros cultos do pas. Hmuitos que no a conhecem na nova roupagem e que continuam a pratic-la como era fei-to h cem anos atrs. necessrio considerar, porm, que [...] algo j havia sendo feito.J aparece reao animadora [...] Os estudos nas escolas superiores, feitos muitas vezescom a assistncia de mestres vindes de fora, j produziram bastante, muito mais mesmodo que se poderia esperar dadas as dificuldades encontradas. Em Florianpolis, espera-mos, iremos ver quo profundo tem sido esse trabalho das Universidades e como se temalterado a tcnica do ensino da Geografia.

    As expectativas de Silveira foram plenamente preenchidas. Dentreos trabalhos aprovados para publicao nos anais do congresso10, diver-sos eram de alunos de Monbeig, destacando-se a uma srie de mo-nografias urbanas, que aplicavam em contextos espaciais diferentes omtodo proposto pelo mestre francs. So essas monografias - sobreFranca (Ribeiro, 1941); Casa Branca (Pantoja, 1942); Jaboticabal (Ma-tos, 1942), Palmital (Dias, 1944); Poos de Caldas (Ramos, 1944); San-

    10. Listados na Revista Brasileira de Geografia. 5(3):651-666, 1942.

  • 208 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    to Andr (Silva, 1944); e Catanduva (Pantaleo, 1944) - alm de urnatrabalho de Monbeig (1941a) sobre Marlia e de outro sobre Campos,realizado por Peanha (1941) - que inauguram a "geografia moderna"(hoje tradicional) no pas, alando o estudo geogrfico da cidade emnovo e desafiante patamar. Alis, para finalizar esta parte, importantedestacar que, entre as noes discutidas ao final do congresso, figuravauma proveniente da "Seco de Geografia Humana", e que pedia a in-cluso da "Seco de Geografia Urbana" no congresso seguinte. Foiaprovada por unanimidade!

    13.2.2 A monografia urbanaO que era a monografia urbana sugerida por Monbeig em seu arti-

    go pioneiro? Em poucas palavras, pode-se dizer que era o resultado daaplicao do mtodo da geografia regional cidade. Era, na realidade,uma monografia regional, s que a regio, neste caso, era a cidade.

    Assim delineada, o que se poderia esperar ento de uma monogra-fia urbana? Nada menos do que uma sntese urbana. E como fazer estasntese? Da mesma forma como vinham sendo feitas as "snteses regio-nais", ou seja, pela integrao analtica de dados fsicos e humanos,objetivando com isso demonstrar a individualidade do "fato geogrfico"que era a cidade.

    O trabalho de Monbeig , neste sentido, perfeitamente claro e did-tico. O estudo geogrfico das cidades deveria ser o resultado final da su-perao de uma srie de etapas metodolgicas, cada uma direcionada observao e obteno (in locu ou a partir de fontes secundrias) dosdados exigidos para a elaborao de cada segmento da monografia.

    E que segmentos seriam esses? Eles eram basicamente seis: o stio,a posio, a evoluo histrica, a fisionomia e estrutura, as funes ur-banas e o raio de ao da cidade. Antes de coment-los, necessrioalertar, entretanto, para o fato de >.;ue o esquema apresentado porMonbeig nada tinha de original, j que as monografias urbanas vinhamsendo elaboradas na Frana h quase quarenta anos (Vacher, 1904) e se-guiam sempre o mesmo modelo que, alis, j havia sido sistematizadoanteriormente, por Blanchard (1922). Philippe Arbos, por sua vez, aodar uma aula de geografia urbana na UUF, em 1937, tambm havia pro-posto esquema semelhante (Arbos, 1946).

    O que deve ser creditado a Monbeig com justia, neste caso, quefoi ele quem elaborou o primeiro trabalhe metodolgico e didtico sobreo assunto no Brasil (necessidade, talvez, de sua atividade docente numpas sem qualquer tradio acadmica cm geografia), reunindo num ni-

    0 ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 209

    co texto proposies de pesquisas que haviam sido encaminhadas, nosltimos quarenta anos, pelos mais, variados pesquisadores.

    Logo no incio do trabalho, Monbeig credita a Ratzel, Vidal de LaBlache e Brunhes a fonte de sua inspirao. A partir da, entretanto, es-quece esses pioneiros, no ficando claro - como era de se esperar numtexto metodolgico quais foram as fontes inspiradoras de cada uma desuas partes".

    Para Monbcig, a cidade no era apenas "um organismo, mas tam-bm uma forma de ato de posse do solo por um grupo humano". Para secompreender a cidade havia que se estudar, ento, como funcionava esseorganismo e como se efetuou (e ainda se vem efetuando) esse ato deposse. Em outras palavras, era preciso saber "qual este solo?" e "quaisso esses homens?", visando, com isso, a obteno de elementos quedestacassem "o papel da vontade humana no crescimento das cidades"12.

    O estudo deveria comear pela posio e seguir as etapas j consa-gradas pela prtica de pesquisa. No o lugar, aqui, de discutir cada umdos elementos que compunham a monografia urbana. Para um esclareci-mento maior, o leitor deve se dirigir diretamente ao texto de Monbeigque, como j foi dito, claro e didtico. Vale pinar, entretanto, algumaspassagens especficas do trabalho, j que elas so bastante esclarecedo-ras da proposta cientfica da chamada "geografia moderna" (hoje trans-formada em "tradicional").

    Em primeiro lugar, digna de nota a ateno que Monbeig d srepresentaes cartogrficas: "todo trabalho geogrfico supe o estabele-cimento de mapas"13, dizia ele. Cincia emprica pautada na observao,a geografia teria, com efeito, que dar ateno especial sistematizaodas observaes obtidas em campo, razo pela qual Monbeig no cansade alertar para a importncia do mapa, sugerindo a necessidade de ob-teno de carta topogrfica aqui ou de elaborao de um mapa de densi-dades ali. Chama a ateno, sobretudo, para aquelas cartas que, produzi-das pelo prprio pesquisador, revelariam a paisagem invisvel da cidade:mapas de iscronas, de provenincia de alunos, de deslocamento diriosda populao etc. Essas cartas, por sua vez, deveriam ser elaboradas apartir de dados obtidos em "inquritos", elemento fundamenta! da pes-quisa de campo em geografia.

    U. Alis, o descuido (ou pouco caso) com as citaes bibliogrficas uma caracterstica marcante dediversos gegrafos regionais franceses dessa poca, resultando da uma impresso - falsa - de queas discusses por eles elaboradas eram fruto, quase que exclusivo, da genialidade do prprio autor.

    12. Monbeig, "O Estudo Geogrfico das Cidades", em Boletim Geogrfico, /(7):8, 1941.13. Idem, p. 9.

  • 270 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    A representao cartogrfica, considerada como o "melhor meio deesquematizar e dar da realidade uma representao a um tempo exata eeloqiiente"14 deveria entretanto ser judiciosamente considerada pelo ge-grafo. Com efeito, se a vulgarizao do mapa era um fato inconteste en-tre as cincias humanas, j que seu emprego "foi adotado pela sociologiae pela etnografia, sobretudo americana, e os estudos clssicos da escolade Chicago mostram tudo o que era possvel conseguir desse emprego"15,era necessrio, entretanto, que o gegrafo no extrapolasse demasiada-mente as concluses obtidas a partir dele. Assim, ao comentar a necessi-dade de descrever o dinamisno das diversas partes constituintes da cida-de, Monbeig afirma que "pode-se procurar sistematizar a distribuiodos diferentes tipos de bairros, como fizeram os americanos [...] [com][...] a srie de crculos concntricos". No se deve, entretanto, "procurarenquadrar de qualquer modo o caso especial estudado nesta sistematiza-o [...] (a no ser como hiptese) [...] como fio condutor"16.

    Para Monbeig, a cidade, assim como as diversas partes que a cons-tituam, tinha uma "alma" que cabia ao gegrafo descobrir. Por essa ra-zo, no havia lugar no estudo urbano para modelos, para "sistematiza-es". O objetivismo cientfico (da escola de Chicago, por exemplo) de-veria ser rejeitado pela geografia, pois ele levaria necessariamente a sua"desumanzao", j que "ningum acredita ter mostrado o homem,quando este foi contado como um rebanho de gado". Para ele, j eratempo "de fazer uma injeo de Elise Rclus na geografia dos syncli-naux e das estatsticas, como na sociologia que cr exprimir o real porcoloc-lo em equaes"17.

    A passagem acima extremamente significativa, pois revela clara-mente as dimenses terico-metodolgicas da chamada "geografia tradi-cional". Em primeiro lugar, ela enfatiza a opo prioritria peloideogrfico, pelo singular. Assim, as sistematizaes, as posturasnomotticas, deveriam ser evitadas. Se elas j vinham ocorrendo nageomorfologia, era preciso no s estanc-las a, como impedir que che-gassem geografia humana18.

    E quanto sociologia? Por que a constante referncia a ela no arti-go? A resposta a essa pergunta no difcil, mas h elementos que po-dem servir de "pistas" esclarecedoras. Falamos, em primeiro lugar, da

    14. Idem. ibdem.13. Idtm. bidem.16. Idtm, p. 18.17. Ideia, p. 19.18. Note-se que a tentao de percorrer o caminho do neopositivismo j afetava a geografia bem antes

    da chegada da chamada "revoluo quantitativa".

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 211

    antiga rixa com a morfologia social durkheimiana, que fazia com que ogegrafo francs viesse, j h dcadas, contrapondo sistematicamente oesprit gographique aos trabalhos produzidos pela sociologia. Emboraimportante, acreditamos, entretanto, no ser essa a principal razo dosataques de Monbeig sociologia.

    Qual seria ela ento? No nvel de hiptese podemos argumentarque, no final da dcada de 30, a sociologia americana vinha tambm in-fluenciando os jovens universitrios brasileiros, e isso representava umperigo para a ento nascente geografia urbana de base vidalina que esta-va sendo introduzida formalmente na Academia brasileira. Com efeito,desde meados na dcada de 20 uma nova proposta de estudo urbano vi-nha sendo pregada pela chamada escola de ecologia humana, e essa pro-posta ousava inclusive,- como j vimos, utilizar-se de representaescartogrficas! E ela tambm j havia chegado ao Brasil.

    13.2.3 Geografia humana ou ecologia humana?

    H indcios que apontam para um elemento da disputa terico-me-todolgica na discusso que se realiza sobre a cidade nos meios univer-sitrios brasileiros (sobretudo paulistas) por volta de 1940. De um lado,Monbeig (ligado USP) defende a monografia urbana. De outro, a eco-logia humana tenta penetrar no pas, propondo uma abordagem nova,processual. Seu grande arauto era Donald Pierson, que, desde fins de1939, tambm estava em So Paulo e, tal qual Monbeig, tambm estava"treinando jovens pesquisadores", s que na Escola Livre de Sociologiae Poltica (Pierson, 1948).

    Ou seja, por volta de 1940, poca em que Monbeig escreve seu fa-moso artigo, o estudo da cidade vinha sendo defendido a partir de duasvertentes distintas. De um lado, o mestre francs preconizava o estudode base ideogrfica. Por seu lado, Pierson defendia a ecologia humana,"campo s vezes erroneamente confundido com outros campos afins masbastante diferentes, especialmente a Geografia Humana e a Ar.tropogeo-grafia" (Pierson, 1948).

    Havia entretanto razes para essa confuso. E isso se devia princi-palmente ao fato de que "o desenvolvimento deste novo campo tem sido,na sua maior parte, emprico" (Pierson, 1948, p. 10, grifado no original).Ou seja, campo ainda em formao, a ecologia humana vinhc acumulan-do conhecimentos da mesma forma que a geografia o fazia: pelo traba-lho de campo. A proposta ecolgica, entretanto, no era a mesma dageografia. Se na concepo de Pierson a cidade tambm era um organis-

  • 2/2 OS 'CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    mo, "um produto natural que surge da interao de foras naturais"19 -uma definio que embutia o mesmo vis naturalista daquela usada nageografia humana -, o mtodo que ele apresentava para seu estudo eraradicalmente oposto.

    Para Pierson, j que a cidade era um "ser natural", ela, por defini-o, poderia ser estudada segundo o mtodo das cincias da natureza einvestigada com o objetivo da busca de suas leis. Dizia ele:

    Se a cidade um fenmeno natural - uma "coisa", em linguagem cientfica - sa-bemos que est sujeita a mudana ordenada. [...] O que a princpio talvez parea um ema-ranhado confuso de elementos desconexos pode se tornar cada vez mais inteligvel. [...]Para o socilogo a cidade uma "coisa dinmica" [...] Seu objetivo descobrir as leis deseu crescimento, descobrir o que comum, genrico, uniforme em todas as cidades, des-prezando, por enquanto, o que particular e nico20.

    A proposta de Pierson no contemplava, entretanto, o estudo domeio natural e nem buscava a "alma" da cidade. Conforme ele afirmava:

    A Ecologia Humana [...] estuda as relaes que existem, no diretamente entre omeio fsico e o homem, seja a influncia deste sobre aquele, ou daquele sobre este, e simas relaes entre os prprios homens, na medida em que estas relaes so por sua vezinfluenciadas pelo Habitai. Por outras palavras, o interesse principal da Geografia Huma-na e da Antropogeog-afia a localizao espacial, enquanto que o da Ecologia Humana o processo**.

    Duas propostas cientficas, duas propostas antagnicas. De umlado, a busca do peculiar e do nico; de outro, a procura do geral, douniforme. H indcios de que Pierson foi ouvido pelos gegrafos. Suaspropostas esto transcritas inclusive no Boletim Geogrfico, cujo redatoro apresenta como "um eminente socilogo americano, que vem desenvol-vendo eficiente atuao nos meios universitrios pelo desenvolvimentodas pesquisas sociolgicas em nosso pas [e que] estuda a cidade sob oprisma social". Essas propostas eram, ademais, bastante atraentes, princi-palmente para o estudo dos "aspectos humanos" das cidades, e exata-mente ao abord-los que Monbeig d suas estocadas escola de ecologiahumana.

    Temas tais como "relaes entre os prprios homens" e "processosocial" no eram, para Monbeig, de interesse da geografia humana. Emseu artigo pioneiro, por pelo menos duas vezes, sle deixara isto bem cla-

    19. Pierson, "O Estudo da Cidade", em Uuletlm Geogrfico, /(8):51, 1943.20. Idem, pp. 51-52.21. Estudos de Ecologia Humana, So Pauto, Livraria Martins, t. l, p. 12.

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 213

    ro. Ao discutir, por exemplo, o estudo das "pessoas" (no caso, a popula-o), ele afirmara que a populao s tinha interesse na monografia ur-bana enquanto dado mensurvel ou cartografvel. Havia que se discutir aevoluo demogrfica, a composio por idade e sexo, a distribuio dasdensidades, a tormao dos bairros. Poder-se-ia tambm "colocar emmapa a Geografia das profisses e das classes sociais: zona dos oper-rios de fbricas, dos trabalhadores de estrada de ferro, dos burguesesabastados e da classe mdia". Entretanto, para ele, esses eram "fatos so-ciais que o gegrafo no sabe e no precisa estudar"22 [grifo nosso].

    Numa outra passagem, ao falar da funo bancria, Monbeig res-saltou a importncia do "dinheiro", que reconhecia ser a mola-mestra dacidade. Dizia ele: "falar dos homens e de suas casas bom, mas se seesquece o dinheiro, nada se disse e apenas se mostraram corpos iner-tes". Com essa frase, ele pretendia realar a importncia do capital fi-nanceiro no crescimento das cidades da zona pioneira paulista, mas, jul-gando estar saindo dos limites de um trabalho geogrfico, logo cortou adiscusso desta forma: "Dir-se- que nos afastamos [com esta discusso]demasiado do meio natural [,..]"23.

    Enfim, a proposta da ecologia humana era demasiadamente contra-ditria para o modelo de geografia que se implantava no Brasil no finalda dcada de 30. Por isso, apesar de atraente, ela foi desconsiderada pe-los gegrafos. Quando os termos da equao se inverteram quarentaanos mais tarde, quando a busca do geral e do constante passou a tomaro lugar do particular e do nico, ela foi entretanto resgatada do esqueci-mento e fez a sua estreia na geografia urbana brasileira. Sobre isso fala-remos adiante.

    Concluindo esta parte, inegvel que o mtodo sugerido porMonbeig no apenas se afirmou na geografia brasileira, como teve tam-bm uni papel orientador fundamental na evoluo subsequente dos estu-dos urbanos no pas. a partir dele, baseado nele, que a monografia ur-bana se vai generalizar como o estudo-padro de geografia urbana noBrasil. Mas isso s ocorrer de forma mais sistemtica a partir da dca-da de 50, e sob a gide da AGB. Antes de passarmos a esta discusso, necessrio que sejamos capazes de recuperar, um pouco mais, os estudosque resultaram dessa fase inicial de estabelecimento da geografia univer-sitria no pas.

    22. Monbeig (1941b), op. cit., p. 17.23. Idern, p. 23.

  • JIJ OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    13,2.4 Os outros estudos urbanos da dcada de 40

    Ainda comentando a produo da dcada de 40, preciso falar doaparecimento de uma srie de trabalhos que, embora seguindo o mtodoinonbcigiano, no se estruturaram necessariamente como "monografias",isto , no deram ateno igual a todas as fases de anlise propostaspolo mestre. So estudos que privilegiaram a funo (Carvalho, 1944b;MtlHcr, 1952) ou que, por analisarem pequenos ncleos urbanos (e mes-mo vilas), acabaram direcionando-se para o modelo conceituai do "gne-ro de vida". Esto neste grupo, por exemplo, os trabalhos de Valverde(1S>44) sobre Pirapora e Lapa; de Azevedo (1946) sobre Juazeiro eIVirolina; de Peluso Jnior (1948, 1952a) sobre vilas no Estado de SantaCatarina; de Miller (1949a) sobre a vila de Icapara, no litoral sul paulis-ta; e de Silva (1949) sobre Atibaia. Destaque especial merece ser dado,entretanto, ao estudo de Peluso Jnior (1952b) sobre Lajes, apresentadono X Congresso Brasileiro de Geografia (Rio de Janeiro, 1944). Trata-setle um estudo de flego, bastante original, difcil de ser enquadrado emclassificaes.

    H que se referir ainda, nessa poca, ao aparecimento de algunstrabalhos que, por sua abrangncia, constituem verdadeiros pontos de re-ferncia. Trata-se do surgimento das primeiras monografias regionaisbrasileiras, que inauguram no pas a tradition vidalienne. So trabalhosbelssimos que dedicam um captulo (estruturado como monografia) anlise do principal centro urbano da regio estudada. Incluem-se aquias teses de doutorado de Maria Conteio Vicente de Carvalho (1944a),Santos e a Geografia Humana do Litoral Paulista (a primeira tese degeografia defendida no pas), e de Jos Ribeiro de Arajo Filho (1950),.. Haixada do Rio Itanham.

    Por outro lado, como toda regra tem exceo, e como a histria dopensamento geogrfico no Brasil est cheia de temticas e de indivduosprecursores, tambm nessa dcada de 40 que Aroldo de Azevedo reali- suas primeiras pesquisas urbanas. Estas, iniciadas com dois trabalhosmodestos sobre Goinia (Azevedo, 1941) e Salvador (Azevedo, 1942),logo se deslpcaram para a temtica metodolgica (Azevedo, 1943a) epara o estudo dos "subrbios" da capital paulista (Azevedo, 1943b e1044), culminando, finalmente, na publicao de sua tese de concurso ctedra de geografia do Brasil da USP, que analisou os "subrbios orien-tais de So Paulo" (Azevedo, 1945a).

    Este ltimo estudo constituiu-se em trabalho verdadeiramente ino-vador, j que no se restringiu anlise fechada, isto , centrada em simesma, de apenas uma cidade (como era praxe na monografia urbana),mas tratou de urna srie de ncleos urbanos que no poderiam ser enten-

    , O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 215

    didos apenas em funo ;de suas caractersticas peculiares, visto que jestavam sofrendo, os efeitos do crescimento acelerado da capital paulista.Enfim, um estudo que, dentro das limitaes tericas da poca, j fazia aligao do local (no caso, a periferia urbana) com uma totalidade maior(a dinmica da grande cidade), antecipando-se assim discusso da te-mtica das reas metropolitanas, que s vingaria na geografia urbanabrasileira a partir de meados da dcada de 50.

    nessa dcada de 50, tambm, que a monografia urbana vai "ex-plodir" no ternrio geogrfico. E isso tem muito que ver com a mudanados estatutos da AGB, ocorrida em 1945, e com o incio de suas reuniesanuais. Isto discutiremos agora.

    75.2.5 A AGB: seu papel na produo do conhecimento geogrficobrasileiro (1946-1970).

    Fundada "naquele j remoto ms de setembro do ano de 1934 naresidncia do eminente professor Pierre Deffontaines, na capital paulis-ta", como no cansar de lembrar Aroldo de Azevedo em suas alocuess assembleias gerais (vide, por exemplo, Azevedo. 1953-1954), a verda-de que, de incio, como bem lembra Pierre Monbeig, "a despeito deseu nome, no conseguiu a Associao dos Gegrafos Brasileiros esten-der sua atividade alm das fronteiras do Estado de So Paulo"24. E mes-mo dentro dessas fronteiras, manter viva a associao nesses primeirosanos foi tarefa quase impossvel, mas bem desempenhada por Monbeig.Como lembra novamente Aroldo de Azevedo:

    Recordamo-nos bem nitidamente dessa fase "herica" da AGB, quando suas reuni-es no contavam com mais de quatro ou cinco pessoas [...] No entanto, Monbeig conse-guiu mant-Ia de p, fazendo reunies bi-mensais, em que temas resultantes de pesquisaseram expostos e discutidos25.

    Foi realmente uma fase desbravadora. nela que surge, publicadapela AGB, a primeira revista "moderna" de geografia do Brasil, que, noobtendo "o necessrio apoio material", foi posteriormente transformada"num boletim mais modesto, mas sempre estritamente cientfico"26.

    24. Monbeig, "Assembleia Geral da Associao dos Gegrafos Brasileiros", em Boletim Geusifico,4(38):119, 1946.

    25. "A Geografia em So Paulo e a Sua Evoluo", em Boletim Paulista de Geografia; .'6:52, 1954.26. O autor refere-se revista Geografia, que se publicou em 1935-1936, e ao Boletim da AGB, publi-

    cado de 1941 a 1944 [em Monbeig (1946), op. cit., p. 119].

  • *-t

    216 OS CUrtiffS DA''REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    '', *-; nessa poca-"herica" que surge tambm, no Rio de Janeiro, oCNG: Fundado em 1937,:no bojo da poltica de Vargas de controle cen-tralizado do territrio brasileiro, ele logo passou a contar em seus qua-dros cem a participao de jovens gegrafos egressos da UDP, dandotambm estgio a uma ampla gama de estudantes que ainda estavam emformao nessa universidade, a partir de 1939 denominada Universidadedo Brasil (hoje UFRJ).

    Embora no filiados a uma associao cultural como a AGB, os ge-grafos do Rio tambm passaram a se reunir periodicamente em "tertli-as geogrficas semanais", patrocinadas pelo CNG. Essas tertlias, inicia-das em 1943 e cujas atas esto publicadas no Boletim Geogrfico, cons-tituram importante elemento de agregao da comunidade geogrfica ca-rioca. Realizadas de 1943 a 1947, essas reunies em nada diferiam da-quelas que vinham, a duras penas, acontecendo em So Paulo. Nelas dis-cutiam-se os resultados de pesquisa de campo (em andamento ou j con-cludas), palestravam os grandes mestres etc. Seu sucesso foi enormenessa poca, chegando o nmero de tertlias ao total de 135.

    Atuando separadamente, mas percorrendo caminhos semelhantes,visto que tinham a mesma origem, os grupos de So Paulo e do Rio deJaneiro logo decidiram congregar esforos, surgindo da a ideia de reuni-rem-se periodicamente para discutir, em conjunto, aquilo que j faziamparoquialmente. Delineou-se ento uma vontade maior de ampliar o es-copo da AGB, tornando-a uma associao verdadeiramente digna de seunome. Conforme recorda Monbeig, esse desejo de integrao "foi o que,em 1945, levou a sociedade a passar por completa reforma, que lhe des-se o carter e, sobretudo, lhe assegurasse uma atividade verdadeiramentenacional"27.

    Reformados os estatutos, surgiram ento as "seces regionais" (deincio, apenas as de So Paulo e do Rio de Janeiro), que passaram a sereunir anualmente, sob o patrocnio da AGB-Nacional, em assembleiasgerais. histria dessas assembleias ainda est por ser contada e anali-sada criticamente. O que sabemos delas provm apenas das atas de cadauma (que esto publicadas, mas que so documentos formais) e das ricaslembranas das geraes mais velhas, que delas participaram ativamente,mas cajs recordaes correm o risco de se perderem para sempre, com-prometendo o conhecimento pleno do que foi o processo de construodo pensamento geogrfico brasileiro, caso no sejam transformadas logoem fontes formais de referncia (livros, artigos, gravaes).

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 217

    A recuperao da memria de nossa associao , pois, um desafioque se impe a todos ns, e que precisa ser logo enfrentado. Isto porqueo papel da AGB na formao do pensamento geogrfico brasileiro foi toimportante que, a partir da realizao de suas assembleias gerais, tornou"venerandas" as sociedades de geografia que lhe antecederam, algumasexistentes h bastante tempo.

    E no podia ser de outra forma, j que as propostas que norteavama AGB eram radicalmente diferentes daquelas que orientavam a ao dasantigas sociedades de geografia. Como bem lembrou Aroldo de Azeve-do, ao inaugurar o l- Congresso Brasileiro de Gegrafos (Ribeiro Pre-to, 1954):

    Em um Congresso de Geografia, tomam parte ativa todos quanto nele se inscreve-ram, bastando que se interessem pelo seu sucesso [...]; gelogos ou economistas, matem-ticos ou juristas, militares ou gegrafos profissionais, cirurgies ou historiadores, odonto-logistas ou etngrafos, qumicos ou arquitetos, sumidades em qualquer ramo do saber hu-mano ou simples curiosos, - todos, indubitavelmente, na medida de seus conhecimentosou de sua audcia, podem oferecer sua contribuio [...] O resultado, como era de se es-perar, nem sempre muito lisongeiro e a Geografia deixa de receber, via de regra, o am-bicionado nmero de contribuies realmente valiosas e verdadeiramente geogrficas. Asituao, muitas vezes, torna-se bastante delicada, porque os gegrafos presentes vem-se,com freqlincia, numa difcil encruzilhada: ou fechar os olhos e tapar os ouvidos, deixan-do que tudo seja aprovado, embora em desacordo com a prpria conscincia; ou agir comrelativo rigor, numa tentativa de separar o joio do trigo, o que sempre traz contrariedades,quando no mgoas que ficam. Muito pelo contrrio, no Congresso que hoje inicia osseus trabalhos, so os Gegrafos que tm voz ativa e do a ltima palavra, no podendojamais ser esquecido o ponto de vista, o interesse e a metodologia da Geografia28.

    Com efeito, a partir da 2- Assembleia Geral (Lorena, 1946 - logoaps a reforma dos estatutos), o panorama geogrfico brasileiro haviamudado substancialmente. Reunidos com a finalidade precpua de apre-sentar trabalhos e, principalmente, de realizar pesquisa de campo emconjunto - conforme era esperado de uma "cincia emprica" -, os ge-grafos da AGB logo tornaram suas reunies no apenas estimulantes,como bastante singulares, qualidade que seria sempre reafirmada com odecorrer dos encontros.

    O que era essa singularidade das assembleias gerais da nova AGB?Conforme bem assinalou o seu presidente, ao relatar os resultados dareunio de Lorena:

    Desejvamos evitar o mais possvel, tudo o que h de acadmico no ritual tradicio-nal dos Congressos [...] Nosso intuito era trabalhar, e no fazer discursos; confrontar nos-

    27. Mcnbrij, (1946). op. dl., p. 119. 28. "Saudao aos Congressistas", em Anais da AGB, 8(1):13-14, 1953-1954.

  • 218 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    so ponto de vista, criticar-nos mutuamente para chegarmos a concluses positivas, e so-bretudo, desembaraar-nos dos micrbios da geografia de gabinete, indo junto ao terrenoobjetivo - tal era nosso fim [...].

    Como em todos os Congressos, comearam os trabalhos da Assembleia pela leiturae discusso de algumas comunicaes. Breves e preciosos, desprovidos de "lero-leros"pseudo-cientficos, os trabalhos submetidos Assembleia geral tratavam de aspectos geo-grficos de diferentes regies brasileiras [...] No preciso acentuar o interesse prticoque esses estudos apresentam [...] [mas] A parte mais proveitosa da Assembleia foi certa-mente a das excurses [...] A Assembleia geral dos gegrafos no representou uma simpies formalidade administrativa. A boa vizinhana entre cariocas e paulistas ganhou, cer-tamente, no graas a belas palavras, mas em consequncia de um esforo coletivo depesquisa em comum29.

    Esse comentrio de Pierre Monbeig resume bem, a nosso ver, oque foram - de Lorena em 1946, a Vitria em 1969 - as assembleias ge-rais da AGB: reunies anuais nas quais os gegrafos brasileiros se en-contravam para apresentar comunicaes, trocar experincias e, princi-palmente, fazer trabalhos de campo em conjunto.

    A importancia do trabalho de campo para a geografia, nessa po-ca que hoje chamamos de "geografia tradicional", foi fundamental. E hque se notar que, ao se dar incio prtica de reunies peridicas, essaatividade j havia assumido, h muito, o papel de motor principal dapesquisa geogrfica. Como dizia Aroldo de Azevedo em 1954, aorelembrar os tempos iniciais das faculdades de filosofia de So Paulo edo Rio de Janeiro:

    Os trabalhos de campo, titubeantes a princpio, apareceram depois feitos com me-lhor tcnica e segurana maior. Veio a tomar-se um espetculo comum a realizao de ex-curses geogrficas, didticas e de pesquisa, e no tardou que grupos numerosos de ge-grafos permanecessem dias e semanas a fio, a realizar trabalhos de campo30.

    No de se espantar, pois, que, com a institucionalizao da prti-ca de se fazer trabalho de campo durante as assembleias gerais, essa ati-vidade tenha no s se tornado ainda mais importante, como tambmdefinidora do carter "singular" dessas reunies de gegrafos, razo pelaqual (face impossibilidade de se realizar um trabalho de campo efici-ente com um grande nmero de participantes) as inscries para partici-par das assembleias gerais eram muitas vezes limitadas.

    A partir de Lorena, todas as assembleias gerais da AGB se estrutu-raram em torno do trabalho de campo. E isso foi uma deciso mais doque coerente com a proposta empirista que orientava, ento, a geografia

    29. Monbeig (1946), np. cit.. pp. 120-121.30. Azevedo (1953-1954), op. cit., p. 24.

    O ESTUDO GEOGRFCO DA CIDADE NO BRASIL 219

    brasileira. Era poleie e pelo conhecimento que ele proporcionava a par-tir do contato direto com a paisagem que se poderia chegar, sem "lero-leros", s concluses positivas (isto , baseadas na observao) de quenos falava Monbeig. Ademais, ao se estudar, a cada assembleia, uma re-gio distinta, os gegrafos contribuiriam, por acumulao de conheci-mento de cada parte, para o conhecimento do todo, isto , da "superfcieda Terra", que era o somatrio de todas elas.

    Por essa razo, havia tambm que se preocupar muito com os crit-rios de escolha da sede de cada encontro. Alm dos inevitveis critrioslogsticos (to mais importantes quanto mais nos distanciamos no tem-po), havia que se atentar tambm para o "interesse geogrfico da rea",isto , para a riqueza de paisagens (de preferncia, a reunio deveria serealizar em "reas de contato" de paisagens diferentes) e para a falta (oupara o reduzido nmero) de estudos a respeito do local escolhido. J queo interesse fundamental das reunies era "desembaraar-nos dos micr-bios da geografia de gabinete, indo junto ao terreno objetivo", era prefe-rvel tambm que fosse escolhida como lugar do encontro uma cidade depequenas dimenses, j que a o contato com a paisagem (especialmentea natural) era facilitado, e as tentaes da cidade grande, evitadas.

    Os trabalhos de campo realizados durante as assembleias, no pero-do de 1946-1969, tiveram, ademais, duas outras funes importantes.Por um lado, proporcionaram aos gegrafos mais experientes a oportuni-dade, sempre renovada, de aplicar os saberes j adquiridos e de acumu-lar conhecimentos novos via contato direto com diferentes realidades re-gionais. Por outro lado, proporcionaram tambm queles gegrafos re-cm-sados das faculdades, ou ainda em formao, a oportunidade nos de trabalhar diretamente com os grandes mestres, como de adquirir oknow-how necessrio para fazerem eles tambm, no futuro, seus prpriosvoos.

    Em 1972, ao saudar os congressistas reunidos em Presidente Pru-dente para o / Encontro Nacional de Gegrafos, o primeiro a se realizaraps a nova mudana de estatutos ocorrida em 1970 (que acabou com aprtica do trabalho de campo durante as reunies), Marcos Alegreenfatizou bem este ltimo ponto:

    Vale dizer que essa nova modalidade de reunio veio substituir, nas Assembleiasda AGB, o trabalho de pesquisa que durante muito tempo se fez atravs de grupos que seorganizavam e saam a campo para [...] estudar os variacJc:, aspectos da geografia local eregional. Estudos de vulto realizados e posteriormente pubi iados fornecem cabal demons-trao da importncia que essas atividades tiveram e da imensa contribuio que derampara o progresso da Geografia do Brasil. Mas esses estudos e pesquisas de campo, tradi-cionais na AGB [...] desempenharam ainda um outro relevante papel: contriburam, e mui-to, para a formao de alguns dos maiores nomes da Geografia brasileira j que, nessas

  • 220 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    reunies e grupos, estudantes e jovens licenciados tiveram a oportunidade de trabalhar aolado dos mais experientes e renomados gegrafos no s do pas como no raro, do exte-rior. Foram, portanto, verdadeiras escolas de Geografia31.

    13.2.6 A geografia tradicional e a produo de conhecimento sobre acidade (1950 -...)

    Como no poderia deixar de acontecer, dado o que acabou de serdiscutido, as assembleias gerais da AGB tiveram papel bastante impor-tante na estruturao do pensamento geogrfico brasileiro sobre a cidadeno perodo em apreo. Inicialmente esse papel foi direto, fruto da prticado trabalho de campo durante as reunies, que acabaram por consagrar amonografia urbana como estudo-padro dos gegrafos sobre a cidade.Com o passar do tempo, entretanto, essa influncia passou a ser menor,o que pode ser creditado consolidao dos centros de pesquisa em ge-ografia do pas. Nem por isso, contudo, as assembleias gerais deixaramde ser o foro privilegiado para as discusses. Com efeito, foram em al-gumas delas que importantes avanos se realizaram, redirecionando, in-clusive, a pauta da pesquisa geogrfica sobre a cidade no pas.

    A dcada de 50 foi, efetivamente, a da monografia urbana. Elaapareceu sob variadas formas, seja como resultado do trabalho de campoefetuado durante as assembleias gerais, seja por iniciativa prpria depesquisadores isolados (que seguiam, entretanto, o mesmo mtodo mon-beigiano), seja ainda como captulo especfico de estudos regionais.

    No que diz respeito ao primeiro tipo, isto , s monografias urba-nas realizadas a partir das reunies da AGB, h que se mencionar queelas eram um produto intelectual no qual se misturavam o trabalho cole-tivo e a capacidade de sistematizao final de um nico profissional. Oprocesso de sua elaborao, embora variando no detalhe, seguiu semprea mesma seqiincia, to bem descrita por Azevedo ao relatar o que eramas assembleias gerais:

    Discutem-se teses ou comunicaes, bem verdade; porm a principal tarefa con-siste em realizar pesquisas em trabalhos de campo, o que feito atravs de trs ou quatroequipes (cada qual sob a direo de um dos associados), que se dirigem, simultaneamen-te, para reas diferentes dentro do raio de influncia do loca! escolhido como sede da as-sembleia, entregando-se a um trabalho ativo e intenso. Fazem lembrar verdadeiros "co-mandos", pela rapidez de sua aSo e pela rea que conseguem percorrer, graas a uma in-teligente diviso de tarefas. Diariamente, nas primeiras horas da noite, realiza-se a coorenao do material recolhido na pesquisa; ao fim de trs ou quatro dias, retornam as

    3

  • 222 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    (1963) e Caruaru (1964), e dos trabalhos de Perides (1971) sobre DoisCrregos, e de Garms (1977) sobre Paraguau Paulista.

    Estudos regionais com captulo monogrfico urbanoTrata-se, neste caso, de trabalhos tipicamente regionais, mas que

    dedicam uma parte da anlise ao estudo da cidade principal da rea estu-dada. Incluem-se aqui o estudo da regio de Santa Isabel (Ab'Saber,1950-1951); da regio de Corumbata (Petrone, 1951-1952); da Zona doCacau da Bahia (Santos, 1955); da Zona da Mata de Minas Gerais(Valverde, 1958); da regio de So Luis do Paraitinga (Petrone, 1959);da regio do Alto Curso Superior do Tiet (Trico, 1960b); da Baixadado Ribeira (Petrone, 1961); do nordeste potiguar (Valverde et alli,1962); e do noroeste da Mata Pernambucana (Valverde, 1960).

    Este ltimo trabalho merece destaque especial, j que constitui numdos poucos estudos dessa fase que ousaram no seguir a regra monbeigia-na de que temas sociais, como o das relaes de classe, so "coisas que ogegrafo no sabe e no precisa estudar". Ao descrever a cidade de Tim-baba, Valverde d ateno especial misria a reinante, disparidadeentre as classes sociais, utilizando em sua anlise, ainda que timidamente,categorias que s muito mais tarde seriam incorporadas ao ternrio geo-grfico, tais como "exrcito industrial de reserva" e "capital constante".

    Quadro lAS ASSEMBLEIAS GERAIS DA AGB (1945-1969)A O ANO LOCAL

    l* 19452! 19463! 19474! 19485! 1950

    6! 1951

    T- 1952

    8! 1953

    91- 1954

    So PauloLorenaRio de JaneiroGoiniaBulo Horizonte

    Nova Friburgo

    Campina Grande

    Cuiab

    Ribeiro Preto

    TRABALHOS DE CAMPO/MONOGRAFIA URBANA/OBSERVAES

    No houve trabalho de campo. Mudana de estatuto.Excurso Serra da Bocaina.Excurso s Baixadas Litorneas e a Campos.Mato Grosso de Gois e regio do Jaragu.Lagoa Santa, regio do Caraa, Belo Horizonte.Monografias urbanas: Azevedo (1949-1950);Mattos(1949-1950).Mun. Nova Friburgo. Monografia urbana: Bernardes(1950-1951).Brejo Paraibano, Serto de Curema, Campina Grande.Monografias: MQller (1951-1952); Carvalho (1951-1952).Mdio Cuiab, Ch. Guimares. Monografia: Azevedo(1952-1953).N/SE/SW de Ribeiro Preto. Monografia: Frana, Ary(indita).

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 223

    10= 1955 Garanhuns

    11! 195612'- 1957

    20! 196521'- 1966

    23! 196824! 1969

    Rio de JaneiroColatina

    13! 1958 Santa Maria

    14!

    15:

    16'-

    17!

    18!

    19!

    1959

    1960

    1961

    1962

    1963

    1964

    Viosa

    Mossor

    Londrina

    Penedo

    Jequi

    Poos de Caldas

    Rio de JaneiroBlumenau

    22! 1967 Franca

    Montes ClarosVitria

    Catende, Arcoverde, Borborema. Monografia: Azevedo(1954-1955).Reunio administrativa.Linhares, reg. clon, antiga e nova. Monografia: Bernar-des (indita).Mur.. Sta Maria, Depresso do Jacu, reg. So Gabriel.Monografias urbanas: Mattos, Dirceu (inditas); Muller(1962).Viosa, Ponte Nova, Ub. Monografias: Keller (indita);Andrade (1961).rea salineira; Vrzea do Au; regio do Apodi.Monografia urbana: Santos, Milton (indita).Jacarezinho, Maring, Cianorte. Mononografia: Geiger-(indita).Baixo S. Francisco, regies de Arapiraca, Itabaiana.Monografia uruana: Bernardes (indita).Zona cacaueira. Plan. de Maracs; Zona de Conquista.Monografia urbana: Muller (1970).Poos de Caldas, reg. de Andradas. Monografia: Trico(indita).No houve trabalho conjunto. S excurses.Blumenau, regio de Timb. Monografia urbana:Mamigonian (indita).Planalto de Franca. Monografia: Mesquita, Myriam(indita).No houve trabalho de campo conjunto. S excurses.Baixo Rio Doc~, Mdio Itapemirim, Vitria. Monografiaurbana: Keller, E. (indita); estudo da rea de influn-cia: Corra, R. (indito).

    Monografias urbanas parciaisNeste caso esto includos os trabalhos que se dedicam ao estudo

    de uma cidade pelo mtodo monbeigiar.o, inas que no resultam em mo-nografias completas, j que privilegiaram apenas algumas das anlisesque compem a monografia padro. Podemos destacar aqui, em primeirolugar, as anlises realizadas sobre o stio e/ou posio de Sorocaba (San-tos, 1950); de Nazar e Ituber (Santos, 1954-1955 e 1955-1957); doRio de Janeiro (Bernardes, 1957-1958 e Deffontaines, 1959); das cida-des de Pernambuco (Melo, 1958); de Porto Alegre (Ab'Saber, 1965); deBelm (Bernardes, 1974), e de Recife (Lias, 1987).

    Muito mais numerosos, entretanto, so aqueles trabalhos que se de-dicam anlise da origem e evoluo histrica das cidades e/ou dasfunes predominantes, como atestam os estudos sobre So Paulo reali-zados por Canabrava (1949-1950), Monbeig (1954) e Azevedo (1961);

  • 224 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    sobre o Rio de Janeiro, de autoria de Bernardes (1959, 1961a), de Cas-tro (1965a, 1965b), de Pinto (1965), e de Cardoso (1968a); sobre cida-des de origem portuguesa e alem em Santa Catarina, de Peluso Jnior(1953); sobre Garanhuns, de Sette (1956); sobre pequenos centros pau-listas de funo religiosa, de Frana (1972); sobre antigas capitais docaf, de Pazera Jnior (1974); sobre Mossor, de Felipe (1982); sobreguas de So Pedro, de Rodrigues (1985); e, principalmente, sobre oRecife, de autoria de Castro (1948), de Melo (1978) e de Andrade(1979).

    Outra temtica que atraiu a ateno dos gegrafos nesse perodofoi a da anlise da estrutura urbana. Neste caso privilegia-se a descriodas diversas partes que compem o "organismo urbano", no sendo raraa seleo de um desses componentes para que seja objeto de anlisemais detalhada. Alguns trabalhos de peso resultaram desses esforos depesquisa como, por exemplo, o estudo pioneiro de Penteado (1954-1955)sobre a "regio suburbana de So Paulo", embrio de trabalho sobre atemtica das reas metropolitanas; o ensaio de Geiger (1960) sobre a es-trutura urbana do Rio de Janeiro; e o belo estudo de Soares (1965), tam-bm sobre o Rio de Janeiro.

    A temtica do bairro tambm foi seguida em trabalhos menos am-biciosos, destacando-se aqui o estudo metodolgico de Soares (1958) so-bre a conceituao dessa unidade urbana, e os estudos cariocas sobreLaranjeiras (Simes, 1952-1953) e Santa Teresa (Boynard e Soares,1958). At mesmo uma rua foi objeto de anlise, no caso um dos gran-des eixos de circulao da capital paulista: a rua da Consolao (Trico,1958).

    Grandes estudos urbanosO perodo que hoje chamamos de "geografia tradicional" produziu

    tambm alguns trabalhos que, por sua abrangncia e pela riqueza da an-lise emprica, merecem certamente um destaque especial. So trabalhosde flego, fruto de pesquisa exaustiva, que demandaram longos perodosde preparao mas que resultaram em obras que merecem, com justia,um lugar de destaque na histria do pensamento geogrfico sobre a cida-de no Brasil.

    Dois desses trabalhos privilegiaram a anlise da rea central e re-sultaram num minuciosssimo estudo sobre a organizao do centro deSalvador em fins da dcada de 50 (Santos, 1959), e do centro do Riu deJaneiro, aproximadamente dez anos depois (Duarte, 1967a). A temticado bairro, de sua integrao ao conjunto maior que a cidade e de suaestruturao interna tambm resultou num trabalho de grande eavergadu-

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 225

    r, conforme demonstra o estudo de Petrone (1963) sobre Pinheiros, nacapital paulista. A temtica regional, por sua vez, tambm se fez presen-te pelo estudo sobre a Baixada Santista coordenado por Aroldo de Aze-vedo (1965a), que contm anlises monogrficas e funcionais de diver-sos centros urbanos dessa parte do litoral paulista.

    Frutos de teses de doutoramento ou de livre-docncia, riqussimosem contedo e bem mais abrangentes em escopo, merecem destaque tam-bm o estudo monogrfico sobre Belm, de Penteado (1966); a anliseabrangente da estruturao da Grande So Paulo realizada por Langen-buch (1968); o estudo de Miiller (1967) sobre as cidades do Vale do Pa-raba paulista; e os trabalhos de Arajo Filho sobre a funo porturiade Santos (1969) e de Vitria (1974).

    Para concluir, h que se falar daquela que foi, sem sombra de dvi-da, a obra mais importante de geografia urbana desse perodo. Fruto delongos anos de trabalho, j que foi idealizada em 1948 e s publicadadez anos mais tarde, A Cidade de So Paulo (Azevedo, 1958a), homena-gem da AGB de So Paulo (em associao com o Departamento de Geo-grafia da USP) ao quarto centenrio de fundao da capital paulista, hoje um marco histrico dos estudos utbanos no pas. Esta obra, queteve a coordenao geral de Aroldo de Azevedo, , sem dvida, a maisabrangente "monografia urbana" que j foi realizada no Brasil. Nos qua-tro volumes que a compem, o leitor encontra uma varieHade de ricasanlises - cada uma enfocando uma das temticas-padro do estudo mo-nogrfico - assinadas pela "nata" da geografia paulista de ento. Obrapremiada pela Cmara Brasileira do Livro (CBL), hoje referncia obri-gatria para todos os que estudam a metrpole paulista.

    13.2.7 Sinais de mudana na geografia tradicionalA realizao no Rio de Janeiro, em agosto de 1956, tio XVIII Con-

    gresso Internacional de Geografia representa um marco divisrio impor-tante na histria do pensamento geogrfico brasileiro. Smbolo da "matu-ridade" a que havia chegado nossa disciplina em to pouco tsmpo, comono cansaro de salientar alguns gegrafos, ele no apenas demonstrou acapacidade da comunidade geogrfica brasileira de organizar uma reu-nio infinitamente mais complexa do que as assembleias da AGB, comopropiciou a essa mesma comunidade urna oportunidade mpar de inter-cmbio cientfico.

    Para Nice Lecocq Miiller, o ano de 1956 representa o fim de umaera e o incio de outra. Falando especificamente da geografia urbana, elaconsidera que o XVIIl Congresso Internacional da Unio Geogrfica Inter-

  • 225 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    nacional (UGI) separa, claramente, uma fase de consolidao gradual deconhecimentos (fase de desenvolvimento) de outra poca: a fase da afir-mao. Segundo suas prprias palavras:

    O XVIII Congresso Internacional de Geografia [...] alm de propiciar renovao depontos de vista e de mtodos pelo contato com especialistas estrangeiros, estimulou umasrie de estudos urbanos, quer para serem apresentados ao congresso, quer para serem in-cludos nos vrios livros-guia das excurses realizadas33.

    Nessa mudana de fases esconde-se algo que Miiller no salientade forma explcita, mas que flui claramente de seu discurso: o sentimen-to de autoconfiana que o congresso deu comunidade geogrfica brasi-leira. E isso j pode ser observado na preparao da XII Assembleia Ge-ral da AGB, que, marcada para Gelatina em julho de 1957, pela primeiravez passou a se organizar sob a forma de simpsio, com os participantessendo convocados a reunirem-se na cidade capixaba de forma diferente,isto , para debater e apresentar trabalhos sobre um tema especfico e(para a poca) atual: o "habitat rural no Brasil".

    Apesar da temtica agrria, foi nessa mesma reunio, conformelembram Muller (1968) e Corra (1967, 1989a), que a geografia urbanaatingiu um novo estgio. A partir da iniciativa de Lysia Bernardes, a mo-nografia urbana tradicional das reunies da AGB sofreu modificao im-portante, passando tambm a incluir uma anlise do grau de centralidadeurbana, da determinao da rea de influncia da cidade.

    Se a reunio de Colatina representa um marco dos estudos interur-banos no Brasil, a XIV Assembleia, reunida em Viosa em 1959, teve pa-pel semelhante no que diz respeito temtica intra-urbana. Com efeito,convocados novamente para um simpsio, desta vez dedicado ao estudodo "habitat urbano no Brasil", os gegrafos brasileiros optaram por de-bater ali uma temtica que era to nova quanto a da centralidade urbana,e que era tambm de grande importncia para a poca: a das metrpolese reas metropolitanas. E o fizeram de maneira bastante diversa daquelaque era caracterstica das reunies anteriores.

    Com efeito, ao debruarmo-nos sobre os trabalhos apresentados emViosa, sentimos claramente a mudana. So estudos principalmente decarter metodolgico, que suscitaram, por conseguinte, acirrados debatesconceituais. Observados com os olhos de hoje, esses trabalhos e debatespodem parecer simplrios e at insignificantes. Eles tiveram, entretanto,

    33. "Evoluo e Estado Atual lius Estudos de Geografia Urbana no Brasil", em Simpsio ile r.engraflaUrbana (Buenos Aires, 1966). Rio de Janeiro, IPC,H, 1968, p. 16.

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 227

    um papel fundamental no posterior redirecionamento da pauta da pesqui-sa geogrfica urbana no pas.

    Em Viosa, discutiram-se basicamente questes de mtodo e de ter-minologia, tais como:1. Qual o critrio de definio de metrpole! Seria ele quantitativo,

    como sugeria Aroldo de Azevedo (1958-1959) - ou seja, metrpolesseriam as cidades de mais de cem mil habitantes - ou deveramos op-tar por um critrio funcional, limitando, adernais, esse conceito s ci-dades "cabeas de rede urbana", como sugeria Geiger? (Melo. 1958-1959).

    2. Quais os tipos de metrpole! Houve consenso em que haveria dois ti-pos de metrpole: nacionais e regionais.

    A temtica da organizao interna das cidades tambm foi objetode ampla discusso. E de forma nova! No mais se dava prioridade ao es-tudo estanque das diversas partes da cidade, da fisionomia e funes decada bairro tomado isoladamente, como era tpico da monografia padro.J, ao que parece, sob a influncia do trabalho de Tricart (1954) sobre ohabitat urbano, aos gegrafos importava agora analisar principalmente aestrutura urbana, definida de forma dinmica, a partir das relaes quese estabeleciam entre cada parte da cidade.

    Mas como fazer isto? Se os trabalhos e debates que aconteceramem Viosa indicam claramente a existncia de dvidas, de hesitaes,eles tambm revelam - ainda que timidamente - a tomada de iniciativasnovas, a busca de um pensamento prprio. Para comprovar isso, repro-duzimos abaixo o teor de alguns debates ocorridos naquela reunio:1. Que critrio utilizar para caracterizar um aglomerado como urbano?

    Critrio numrico, administrativo, funcional?2. O que um subrbio! O subrbio no Brasil tem algo que ver com o

    suburb norte-americano e com a banlieue parisiense?3. Qual a distino entre urbano e suburbano!4. Que critrios utilizar para diferenciar as diversas partes da cidade!

    Seriam critrios de fisionomia (de paisagem) e de funo, como de-fendiam Therezinha Soares, Antnio Penteado e Ary Frana? Ou serque um estudo como esse, "do processo de diferenciao das zonasconstitutivas da estrutura urbana [...] [no seria] [...] menos de geo-grafia e mais de ecologia humana", como alertava Mrio Lacerda deMelo (1958-1959)?

    O simpsio encerrou-se com uma grande discusso sobre a necessi-dade de harmonizao da terminologia adotada em geografia urbana.Com efeito, os "subrbios prximos", para Penteado (1958-1959), cor-

  • 228 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    respondiam aos "subrbios perifricos" de Maria Therezinha Soares(1958-1959). E o que aquele denominava de "subrbios remotos", paraesta eram "ncleos pioneiros suburbanos". Tentando chegar a uma con-cluso conciliatria, Bernardes (1958-1959) apresentou um "quadro su-mrio da nomenclatura de zonas urbanas", que deveria servir de basepara a meditao e o aprimoramento futuros34.

    A dcada de 60 viu prosperarem as temticas que foram debatidasno simpsio de Viosa, que passaram a atrair cada vez mais a atenodos gegrafos. Com efeito, num pas que passava por transformaes ra-dicais em sua base econmica, onde as foras de acumulao capitalistaredesenhavam toda a estrutura espacial de fixos e de fluxos, seja poracelerao do processo de formao de reas metropolitanas, seja por re-formulao do padro de relaes interurbanas, seja ainda mediante oredesenho de toda a organizao interna das cidades, no era mais poss-vel e nem relevante concentrar esforos no estudo monogrfico tradicio-nal. Como j visto, as monografias urbanas at continuaram a ser reali-zadas, mas j no expressavam mais o estudo geogrfico padro de cida-de, tanto qae muitas daquelas que foram elaboradas nas assembleias daAGB da dcada de 60 jamais foram publicadas (ver Quadro 1). Alis, apartir dessa dcada a geografia urbana brasileira deixou de ter estudospadro, um sinal evidente de amadurecimento.

    13.2.7.1 Reflexos na produo geogrficaA mudana de ternrio ocorrida no final da dcada de 50, na geo-

    grafia urbana, pode ser claramente verificada pela anlise do que foiproduzido por seus profissionais. Conforme salientado por Corra(1989a) em sua avaliao dos estudos sobre hinterlndias, hierarquias eredes, a mudana de ternrio que afetou a geografia urbana aps a reali-zao do XVIII Congresso Internacional de Geografia refletiu-se princi-palmente na nfase que se passou a dar, a partir de ento, aos estudos decentralidade urbana. Uma anlise dos trabalhos publicados nessa pocaindica que ser tambm a partir dessa vertente que o processo de trans-formao chegar ao estudo intra-urbano, conforme demonstramos agora.

    O grande interesse despertado nos gegrafos brasileiros pelo estudode redes urbanas (a partir da inspirao original de Tricart e deRochefort) levou, de incio, a uma desacelerao no ritmo de produo

    34. Iniciava-se af uma grande discusso sobre a necessidade de harmonizao do vocabulrio de geo-grafia urbana, que se prolongou por toda a dcada de 60 e resultou, inclusive, numa publicao es-pecial, patrocinada pela Comisso de Geografia do Instituto Panamericano de Geografia e Histria(IPGli. l''71).

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 229

    de trabalhos no nvel intra-urban. Isso se deve, por um lado, extremaidentificao desse tipo de estudo com a monografia urbana, agora consi-derada um smbolo de uma fase j superada. Por outro lado, o desafio re-presentado pela nova temtica, um territrio que praticamente ainda esta-va por ser explorado, atuou como foco irresistvel de atrao. Finalmente,a difuso das atividades de planejamento territorial na Europa no perododo ps-guerra, e sua expanso no Brasil no final da dcada de 50, consti-turam-se em fora centrpeta de grande intensidade, completando o pro-cesso de atrao dos gegrafos pela chamada rea urbano-regional35.

    Se Chabot (1948) j dissera antes que "no existe cidade sem re-gio nem regio sem cidade", nunca essa frase teve tanto appeal na geo-grafia brasileira quanto na dcada de 60. A perspectiva de que, a partirda cidade, se poderia intervir no quadro regional, alterando-o, acaboupor dar geografia um sentido de aplicabilidade que nunca tivera antes.Planejamento, geografia ativa, geografia aplicada, geografia voluntria...Eis, agora, as novas dimenses da geografia, que abriam novos horizon-tes aos gegrafos (ver, por exemplo, as discusses realizadas por Carva-lho e Santos [1960] e por Santos [1965]).

    Principais plos de organizao regional, no de se estranhar quetenham sido as metrpoles e suas funes regionais que mais captaram ointeresse dos gegrafos nessa poca. Os trabalhos ento desenvolvidos jforam comentados por Corra (1989a) e no precisam ser novamentediscutidos aqui. O que importante destacar, no entanto, que gradual-mente a ateno dos gegrafos tambm se deslocou para o estudo da or-ganizao interna e da dinmica de estruturao do espao metropolita-no, que se transformou ento em palco de investigao igualmente privi-legiado da geografia.

    J nos referimos, h pouco, s discussoes iniciais travadas em1959 em Viosa. Deu-se ali um incio tmido, que foi entretanto ganhan-do momentum a partir da elaborao de uma srie de estudos pioneiros,que abriram caminhos importantes. preciso, agora, que sejamos capa-zes de recuper-los.

    Meropolizao

    A temtica da metropolizao teve em Maria Therezinha de Sega-das Soares uma grande incentivadora e sistematizadora. Sua tese NovaIguau, Absoro de uma Clula Urbana pelo Grande Rio de Janeiro

    35. Note-se, por exemplo, que a XVII Assembleia Geral Ordinria i!c. ACfl, reunida em Penedo (AL) emjulho de 1962, teve como tema centrei "Geografix e Planejamento Regional" e contou com a pre-sena de Celso Funado.

  • 230 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    (Soares, 1962) hoje um clssico da geografia urbana brasileira. delatambm o primeiro trabalho que trata explicitamente da questo das re-as metropolitanas. De fato, em artigo que discute os critrios de delimi-tao dessas unidades territoriais e a possibilidade de sua aplicao aoBrasil (Soares, 1968b), a autora abriu uma trilha importante, posterior-mente ampliada por um grupo de gegrafos do IBGE (Galvo et alli,1969), tambm chamados a refletir sobre o tema, j que esse rgo setransformara, agora, em eixo importante de sustentao do sistema brasi-leiro de planejamento territorial.

    A dcada de 70, por sua vez, assistiu ao desenvolvimento de in-meros trabalhos de carter emprico sobre as formas de integrao demunicpios perifricos ao aglomerado metropolitano. So estudos que,em sua maioria, se estruturam a partir do esquema monogrfico clssi-co, mas cuja anlise j est orientada basicamente para a temtica dasrelaes, dos fluxos. Incluem-se aqui estudos sobre Itabora (Abreu eDiniz, 1970; Mizubuti, 1972); sobre Guaba (Becker, 1971); sobre Ta-pes (Copstein, 1971); sobre Maric (Teixeira e Soares, 1973-1975; Cas-tro, 1974). Destaque especial, entretanto, precisa ser dado srie dedissertaes de mestrado e/ou teses de doutoramento desenvolvidas naUSP sobre o chamado "cinturo caipira" da capital paulista e que versa-ram sobre Cotia (Lemos, 1972); Embu (Oliveira, 1972); o setor metro-politano ocidental de So Paulo (Almeida, 1975); Nazar Paulista (Me-rino, 1976); Barueri (Cavalcanti, 1978); Salespolis (L Bourlegat,1978); Jandira (Cardieri, 1980); Itaquaquecetuba (Lemos, 1980); e Cai-eiras (Pazera Jnior, 1982).

    A maioria orientada por Pasquale Petrone, essas teses e disserta-es cobriram uma grande parte do anel perifrico externo da metrpolepaulista, ou seja, daquele setor que estava ento em processo de integra-o metropolitana. Embora pouco tericos (como, alis, foi toda a pro-duo da geografia tradicional), esses trabalhos so extremamente ricos,no nvel emprico, e constituem hoje fonte de consulta essencial para ou-tros estudos, em especial para aqueles que se propem a repensar o pro-cesso de metiopolizao ocorrido em So Paulo a partir do referencialterico do materialismo histrico.

    Organizao interna da cidade

    A orientao em direo a estudos mais dinmicos que levassemem conta relaes, fluxos e processos (indicando tambm uma influnciamarcante de Pierre George) acabou por se refletir em outras dimensesdo estudo geogrfico da cidade, alterando contedos e estimulandoinvestidas exploratrias.

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 231

    No nvel metodolgico, destacamos a preocupao de Milton San-tos em definir o que seria a cidade nos pases subdesenvolvidos (Santos,1962 e 1965). Partindo da noo de paisagens derivadas de Sorre, o au-tor dedica uma longa reflexo ao assunto: Que fatores seriam comuns atodas as cidades do mundo subdesenvolvido? Que outros as individuali-zariam externa e internamente? Essa temtica tambm interessou MariaTherezinha Soares, que, ao analisar "A Organizao Interna das CidadesBrasileiras segundo Seu Estgio de Desenvolvimento" (Soares, 1968a),numa perspectiva evolucionista, sugeriu um mtodo que classificava osncleos urbanos a partir de critrios formais, paisagsticos, diferencian-do-os segundo uma escala que ia das "formas simples" s "formas degrande complexidade": as metrpoles.

    No nvel emprico, h que ressaltar o aparecimento de alguns tra-balhos que enfocaram temas novos e/ou apresentaram anlises pioneiras. o caso, por exemplo, do estudo de Anna Carvalho (1955-1957) "OCrescimento Recente da Cidade do Salvador", que j detecta o papel queas polticas pblicas de proviso de infra-estrutura urbana vinham tendosobre o mercado de terras (ao concentrar investimentos em "reas nobresde expanso") e alerta para a existncia de um processo perverso deperiferizao dos grupos sociais mais pobres da capital baiana, anteci-pando um debate que s viria a ser desenvolvido plenamente na dcadade 80. So palavras dela:

    Enquanto o setor costeiro passa por uma fase de valorizao (em muitos casos pre-matura e artificial), como que profetizando a futura ocupao pela classe abastada, a parteNorte apresenta o problema oposto. A populao menos favorecida da Cidade vai sendono s cada vez mais proletarizada, como tambm "empurrada" para N-NE, pelo nvel devida do povo, pelas dificuldades de casa e transporte, pela valorizao exagerada de ou-tras reas perifricas ou urbanas36.

    A anlise do que hoje se denomina agentes modeladores do espaotambm tem o seu incio no perodo ora em anlise, com ateno especialsendo dada ao papel da indstria. Ainda na dcada de 50, Santos e Carva-lho (1955-1957) publicam um trabalho pioneiro sobre localizao indus-trial em Salvador, identificando diferentes tipos de rea industrial na cida-de e discutindo critrios de localizao. Essa temtica seria depois reto-mada por Santos (1958) e ampliada por Mamigonian (1960), que chama aateno para o papel desempenhado pela indstria na produo de um es-pao heterogneo, em forma e cm contedo, na cidade de Brusque, e porDavidovich (1966), que chegou mesma concluso ao estudar Jundia.

    36. Anais da AGB, 10(\): 95, 1955-1957.

  • 232 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    Coroando esses esforos iniciais, encontramos outros estudos queanalisam mais profundamente o tema, destacando-se aqui os trabalhos deTurnowski (1967, 1968, 1969) sobre a geografia das indstrias no Riode Janeiro; de Andrade (1979) e de Pontuschka (1979), sobre o impactoda indstria no processo de transformao de dois municpios da perife-ria metropolitana paulista (Diadema e Suzano, respectivamente); e deSampaio (1975), sobre a geografia industrial de Piracicaba. Anterior aesses ltimos, e inovadora quanto temtica e ao mtodo de anlise, atese de doutoramento de Lea Goldenstein (1970) sobre o desenvolvi-mento de "um centro industrial satlite" (no caso, Cubato), outro da-queles grandes estudos que a geografia tradicional produziu e que po-dem ser considerados hoje, com toda justia, como clssicos da nossabibliografia.

    Finalmente; h que se referir aos estudos que abordaram a cidade apartir da tica aos fluxos. Isso ocorreu sob diversas formas e contemploudimenses diferentes, que s foram mais plenamente desenvolvidas emperodos mais recentes.

    A questo da descentralizao das atividades tercirias na cidadefoi inicialmente estudada por Botelho e Cardoso (1960-1962), a partir daaplicao escala intrametropolitana dos mtodos de deteirninao dehinterlndias. Seu estudo sobre o raio de atuao do subcentro carioca deMadureira lanou uma semente frtil que, embora no aproveitada porPegaia (1965) em seu trabalho descritivo sobre a rede bancria da cidadede So Paulo, foi aprofundada mais tarde por Duarte (1974) e por Lan-genbuch (1974). Atualmente, o estudo da descentralizao das atividadestercirias voltou novamente pauta, enfatizando as suas formas mais re-centes (os shopping ceners). Segue, entretanto, orientao terico-meto-dolgica bastante diferente, como ser discutido mais adiante.

    A questo do abastecimento urbano tambm teve seus primeirosestudos desenvolvidos nessa poca, pelo trabalho pioneiro de Mesquita(1959), "Aspectos Geogrficas do Abastecimento do Distrito Federal emGneros Alimentcios de Base", logo seguido pelos estudos de Joviano(1960), Lavareda (1961), Magalhes Filho (1961) e Seabra (1969). O re-batimento intra-urbano e intermetropolitano da questo do abastecimen-to, por sua vez; apareceu no trabalho de Guimares (1968) sobre as fei-ras livres paulistanas; no estudo de Abreu (1969), sobre as funes urba-nas da zona do mercado centrai de So Paulo; e no estudo de Bicalho(1971) sobre transformaes na periferia urbana do Rio de Janeiro. Ain-da hoje essa temtica vem atraindo a ateno do gegrafo, como de-monstram os estudos mais recentes realizados por La Corte (1976) paraSo Paulo, por Lima (1984) para Recife, e por Srvio (1985) para Tere-sina.

    O ESTUDO GEOGRFICO DA CIDADE NO BRASIL 233

    Para concluir esta avaliao da chamada "geografia tradicional",resta dizer que pode ser creditado a Rosa Ester Rossini o mrito de terintroduzido, no ternrio geogrfico urbano, o papel desempenhado pelamudana das relaes de produo no campo. Seu estudo sobre SerraAzul (Rossini, 1971), de carter monogrfico, parece ser o primeiro atratar do impacto causado, na cidade, pelo processo de assalariamento dafora de trabalho rural. Segundo ela, as mudanas que ento ocorriam nocampo paulista estavam dando origem a uma nova classe de habitantesurbanos, que residiam em "vilas pobres na periferia" (o bia-fria).

    13.2.8 O legado da geografia tradicionalA gerao de conhecimentos sobre a cidade brasileira, propiciada

    pela fase de produo cientfica que hoje denominamos de geografia tra-dicional, foi, como j pde ser observado, bastante extensa. E isto seaplica tanto quantidade de trabalhos realizados, quanto qualidade deuma parcela considervel desses. Com efeito, datam desse perodo umasrie de estudos que hoje fazem parte, merecidamente, da galeria dehonra da produo geogrfica nacional.

    O elogio acima proposital. A sucesso de movimentos de reno-vao pela qual passou o pensamento geogrfico brasileiro, a partir dofinal da dcada de 60, resultou, infelizmente, no aparecimento de umasequncia de posturas niilistas em relao produo da geografia tra-dicional, que pretenderam reduzir a zero todo um esforo intelectualde mais de quarenta anos, como se fosse possvel avanar em cinciaa partir do vcuo, isto , da ausncia de uma base anterior. Tais postu-ras, embora minoritrias, acabaram produzindo, entretanto, um efeito-demonstrao considervel, levando ao ostracismo, por algum tempo,todo um esforo realizado por geraes mais velhas de profissionais dageografia no Brasil.

    necessrio, pois, que recuperemos o legado da geografia tradicio-nal, o que no quer dizer que deixemos de apontar suas limitaes. Comefeito, se sua proposta empirista-naturalista parece pertencer hoje apenas histria do pensamento geogrfico, sua rica produo cientfica consti-tui-se ponto de partida fundamental para o avano terico e conceituaida geografia. o caso, por exemplo, de categorias como paisagem, re-gio, territrio e espao, que, recuperados e repensados teoricamente nosltimos anos, voltaram a frequentar o ternrio da disciplina e tm orien-tado o desenvolvimento de estudos empricos de alta qualidade.

    H que se falar, tambm, sobre a variedade de tcnicas de descri-o e de representao que resultaram desse perodo e, especialmente, da

  • 234 OS CAMINHOS DA REFLEXO SOBRE A CIDADE E O URBANO

    riqueza emprica dos trabalhos que foram nele elaborados (Moraes,1980). Esta ltima vem se revelando, inclusive, impre