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Questão Agrária e Desigualdades II Questão Agrária e Desigualdades II Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA ANO 35 VOLUME 02 EDIÇÃO ESPECIAL MARÇO 2015 ISSN 0102‑1184

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Artigos que analisam a questão agrária brasileira.

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  • QuestoAgrria e

    Desigualdades II

    QuestoAgrria e

    Desigualdades II

    Revista da Associao Brasileira de Reforma Agrria ABRA

    Ano 35 Volume 02 edio eSPeCiAl mARo 2015 iSSn 01021184

  • Revista da Associao Brasileira de Reforma Agrria ABRA

    Ano 35 Volume 02 edio eSPeCiAl mARo 2015 iSSn 01021184

    Questo Agrria e

    Desigualdades II

  • ABRA ASSOCIAO BRASILEIRA DE REFORMA AGRRIA

    A Associao Brasileira de Reforma Agrria uma entidade civil, no governamental, sem fins lucrativos, organizada para ajudar a promover a realizao da reforma agrria no Brasil. Associadamente, integram os objetivos centrais da entidade a luta pela soberania alimentar do pas, a melhoria dos padres de vida dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, a luta por um outro modelo agrcola no Brasil baseado na diversidade biolgica e de cultivos e tecnologias ambientalmente amigveis conectados a um projeto democrtico, soberano e popular para o Brasil.

    DIREtORIA ExECutIvA GEStO 2012/2015

    Presidente:

    Gerson Teixeira

    vicePresidente:

    Snia G. Moraes

    Diretores:

    Guilherme DelgadoJos ParenteJoo Luiz H. de CarvalhoBrancolina FerreiraJos Juliano de CarvalhoManoel P. de AndradeAccio Zuniga Leite

    COnSELhO DELIBERAtIvO

    Osvaldo RussoRaimundo Joo AmorimVicente Almeida Luis C. Pinheiro MachadoClia Anice PortoOsvaldo AlyAlessandra LunasAparecido Bispo de AndradeValria TolentinoLauro MatteiRosa Maria MedeirosPedro Ivan ChristoffoliD. Tomas Balduino (in memorian)Jernimo TreccaniEnaile IadanzaClara EvangelistaFransciso UrbanoCarlyle VilarinhoMarcius Crispim

  • REvIStA REFORMA AGRRIA

    ISSN 01021184

    Ano 35: Volume 02Edio Especial Maro 2015Publicao especial da ABRA

    COnSELhO EDItORIAL

    Newton Narciso Gomes Jr CoordenadorGerson TeixeiraGuilhereme DelgadoBrancolina FerreiraManoel P. de Andrade

    Editores:

    Gerson TeixeiraNewton Narciso Gomes Jr

    Apoio:

    OXFAM

    livre a transcrio de matria original publicada nesta revista, desde que citada a fonte. A ABRA no se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados. Registro e Publicao na Diviso de Censura de Diverses Pblicas do Depto de Polcia Federal, sob n 1.304 p. 209/73 em 24/09/74. Registro sob n 109 no 1 Cartrio de Imveis e Anexos de Campinas, SP.

    Endereo da Revista:

    [email protected]

  • Questo Agrria e

    Desigualdades II

  • Sumrio

    EDItORIAL

    Gerson Teixeira Presidente da ABRA ................................................................9

    EnSAIOS E DEBAtES

    ABERtuRA DO SEMInRIOD. Leonardo Steiner ............................................................................................13Alexandre Conceio .........................................................................................14

    MOvIMEntO SOCIAL POR tERRA, tRABALhO E tERRAD. Guilherme Werlang .......................................................................................17Joo Pedro Stdile ...............................................................................................22Gilberto Carvalho ...............................................................................................32

    AtuALIDADE BRASILEIRA E PERSPECtIvASMarcio Pochmann ...............................................................................................41

    EStADO E AS POLtICAS AGRRIAS RECEntESBernardo Manano .............................................................................................67Marcelo Lavenere ................................................................................................76

    QuEStO AGRRIA E DESIGuALDADESGuilherme Delgado .............................................................................................85Pe. Virglio Uchoa ...............................................................................................90

    CLAMORES SOCIAIS E QuEStES tERRItORIAISAnacleta liderana quilombola ......................................................................97Maria Jlia Mov. Atingidos pela Minerao ............................................. 101Gilberto Vieira CIMI ..................................................................................... 107Rosngela Piovani MMC ............................................................................. 110Wiliam Clementino CONTAG .................................................................... 114Walter MPA ................................................................................................... 118

    POR uMA AGEnDA DE RESIStnCIA CAMPOnESA ABRA ................. 127

  • ABRA REFORMA AGRRIA 9

    Editorial

    Esta uma edio especial da revista da ABRA. Fora dos padres convencionais, a revista apresenta as manifestaes dos painelistas do Seminrio sobre Questo Agrria e Desigualdades, realizado nos dias 10 e 11 de dezembro de 2014. O evento foi uma iniciativa conjunta, ABRA, Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST, e Comisso Brasileira de Justia e Paz CBJP.

    Ainda que submetidos a ajustes gramaticais os textos da Revista mantm a linguagem coloquial das apresentaes para preservarlhes a integridade da mensagem original de cada palestrante.

    O tema do Seminrio foi objeto da pauta do nmero anterior da revista da ABRA, sendo explorado por diversos especialistas. Na presente edio, a revista persiste na abordagem da temtica, desta vez, agregada pelas percepes de lideranas polticas, religiosas e dos trabalhadores rurais, expressas no seminrio.

    O tema em apreo tem merecido a mais elevada prioridade pelas referidas organizaes. E isto no algo fortuito. Reflete uma avaliao comum, consistente, sobre o imperativo de engajamento nos estudos e debates que estimulem as lutas polticas contra as anomalias estruturais que se ampliam no agrrio, nesse perodo de hegemonia do agronegcio, e que conspiram contra o desenvolvimento e a soberania do Brasil, nos distanciando, tambm, de padres socioambientais civilizados.

    Observamos que aps as polticas de fomento produtivo para a agricultura familiar, criadas ou intensificadas a partir de 2003, multiplicaramse debates, estudos e avaliaes sobre os efeitos aparentes dessas polticas. Tais iniciativas so importantes, entretanto, sem o grau de redundncia constatado, que findou relegando para um segundo plano a ateno para as falhas institucionais e as repercusses da cadeia do agronegcio no aprofundamento das sequelas e assimetrias da questo agrria brasileira.

    Nesses termos, a revista da ABRA, em particular, cuja regularidade foi recuperada, tem explorado essa temtica com intensidade.

  • 10 ABRA REFORMA AGRRIA

    A propsito, em parceria com o MST, a ABRA realizou dois eventos no perodo recente sobre a questo agrria, em Braslia e na Escola Florestan Fernandes, em So Paulo.

    Esses eventos serviram de acmulo para a ampliao desse debate por meio Seminrio em apreo com a adeso da CNBB, incluindo a CBJP.

    Tanto o temrio do evento, como o momento da sua realizao, tambm traduziram expectativa de pressionar o novo governo federal (reeleito) por uma agenda de reformas no agrrio, absolutamente ignorada no primeiro mandato. Com o mesmo grau de importncia, o Seminrio visou, tambm, estabelecer um dilogo com as lideranas dos movimentos sociais do campo com o propsito de busca de consenso sobre pontos comuns das lutas populares em torno da agenda estruturante.

    Deve ser destacado que a recente divulgao pela CNBB de uma leitura atualizada da questo agrria brasileira convergente com as interpretaes da ABRA e do MST, junto com as manifestaes do Papa Francisco em defesa da reforma agrria no Brasil, exerceram influncia decisiva na facilitao dos processos de deciso e organizao do seminrio.

    Enfim, essas organizaes agradecem a todas as entidades que participaram do seminrio e assim possibilitando esta edio especial da revista da ABRA. Em especial, agradecemos aos apoios da Oxfam e do Fundo Nacional de Solidariedade.

    Por ltimo, relevante frisar que os contedos dos textos constantes da Revista no foram submetidos apreciao prvia pelos respectivos autores. Isto, para no prejudicar o tempo poltico que julgamos adequado para a publicao da Revista. Contudo, os cuidados adotados na edio final dos textos nos garantem boa margem de segurana quanto aos contedos correspondentes.

    GERSOn tEIxEIRAPresidente da ABRA

    Editorial

  • E n s a i o s eD e b a t e s

    E n s a i o s eD e b a t e s

  • ABRA REFORMA AGRRIA 13

    Abertura do Seminrio

    DOM LEOnARDO StEInERSecretrio-Geral da CNBB

    A reforma agrria uma questo que vem se arrastando desde que os europeus chegaram ao Brasil. No havia necessidade de reforma agrria enquanto os europeus no chegaram, porque os povos indgenas tinham a sua maneira de convivncia, nem sempre tranquila, mas tinham o seu modo de convivncia e tambm o seu modo de distribuio. O problema comeou depois, quando comearam a distribuir as terras, e continua at hoje.

    Eu queria lembrar uma frase do Papa que a reforma agrria um dever moral. Por que um dever moral? O que moral? Na Idade Mdia, quando falavam de moral, era no sentido dos costumes, uma palavra latina mos mo-ris. Costume, como tudo aquilo que tem a ver com as relaes. No apenas as relaes entre ns, seres humanos, mas todas as relaes, tambm com a natureza, eram um dever moral. Ento, quando ns falamos de moral tem a ver especialmente com as relaes.

    Nesse sentido, a fala do Santo Padre foi muito contundente, porque disse que a reforma agrria tem a ver com relaes. As relaes de direito, as relaes que at aquele momento estvamos discutindo e refletindo, sobre a casa, sobre a terra, e tambm sobre o trabalho trabalho, casa e terra tm a ver com relaes, por isso o dever moral.

    Dever no uma imposio; dever uma conduo no sentido de que s fazendo a reforma agrria que ns realmente teremos relaes mais equilibradas e relaes mais fraternas.

    Eu creio que esse seminrio a palavra seminrio quer dizer semeadora, semente que se espalha tem um dever moral. Esse seminrio quer nos ajudar, realmente, a pensarmos a questo da desigualdade, tambm em relao terra, para que todos tenham o seu direito terra, que a terra tambm tenha o seu direito.

  • Ensaios e Debates

    14 ABRA REFORMA AGRRIA

    Ns estamos numa situao extremamente difcil. Quando ns lembramos as regies de So Paulo, Minas e Rio de Janeiro, com essa seca, ns estamos falando em aumentar os reservatrios e no estamos discutindo a questo das fontes, dos rios, das florestas e das matas. No tem entrado essa questo na discusso, so raras as manifestaes nesse sentido. Creio que o nosso seminrio tambm pode nos ajudar nesse sentido. E seria tambm um dever moral discutir essa questo, que tem a ver com terra; terra, como lugar da nossa morada, da nossa habitao.

    Enfim, que este Seminrio oferea bons debates, renove as energias dos movimentos sociais, e encoraje o novo governo a enfrentar as desigualdades da questo agrria brasileira.

    ALExAnDRE COnCEIOMembro da Direo Nacional do MST

    Este o segundo seminrio que ns do MST realizamos em parceria com a ABRA. Realizamos um encontro no ano passado, quando debatemos muito sobre a questo agrria, focando na reforma agrria. Nesse sentido, ns constitumos um coletivo de participao muito forte de todas as organizaes do campo que fazem a luta pela reforma agrria, ou que trabalham diretamente com os pequenos agricultores, ribeirinhos, pescadores, meeiros, indgenas, que estavam presentes no primeiro seminrio.

    E o grande desafio deste segundo seminrio discutir de forma mais aprofundada esse tema que to atual e importante, que a questo agrria; debater, justamente, o uso e a posse do territrio. Essa a essncia da questo agrria e a essncia do nosso seminrio: o uso e a posse dos nossos territrios, que esto sendo devastados por uma agricultura implementada pelo agronegcio e pelas transnacionais, que tem, inclusive, apoio da bancada federal ruralista, tem apoio do Congresso Nacional, do Poder Judicirio, que conivente com esse modelo, e tem o apoio da mdia. E tambm conta com certos apoios no governo federal.

  • Abertura do Seminrio

    ABRA REFORMA AGRRIA 15

    O uso e a posse do territrio determinam muitas coisas em nossas vidas. Determinam a nossa cultura, aquilo que vamos plantar e colher, nos alimentar. Ento, este seminrio ir tratar da questo agrria, no sentido de que a gente possa tambm vincullo ao tem da justia e da democracia.

    O tema da reforma agrria, alm de ser um tema de justia, tambm um tema da democracia. Uma democracia, hoje, que est sequestrada pelas empresas, que compram a maioria dos parlamentares, que compram as campanhas polticas. E por isso ns tambm lutamos por uma democracia, para isso preciso que possamos fazer, de fato, um grande debate neste pas, um grande mutiro, com o tema da reforma agrria, mas tambm com o tema da reforma poltica, um plebiscito popular que possa fazer grandes reformas estruturantes neste pas.

    Neste seminrio ns do MST tambm queremos compartilhar aquilo que ns discutimos e debatemos em nosso congresso nacional, no ano de 2014, que a reforma agrria popular. Muitos intelectuais da academia, vendidos e comprados pelas grandes empresas, dizem que a reforma agrria est fora da pauta, mas ns dizemos que a reforma agrria no s est na pauta, como urgente e necessria, para que possamos democratizar e ter justia neste pas. Para que possamos por fim ao latifndio, que perverso, mas por fim ao latifndio com a clareza e a certeza de que necessrio democratizar a terra, produzir alimentos saudveis. Que possam alimentar o homem do campo e, principalmente, o homem da cidade, para que possamos ter, de fato, uma democracia no uso e na posse do nosso territrio.

    Uma das premissas fundamentais da reforma agrria popular que a luta pela terra e pela reforma agrria no uma tarefa s dos camponeses. Tanto no que o Santo Padre, l, em Roma, disse que era uma questo moral, uma questo de justia, ter nenhum agricultor sem terra.

    Portanto, a partir dessa fala do Papa, a partir dos acmulos que vimos acontecer durante anos, sobre o tema da questo agrria e da reforma agrria, que ns queremos realizar este seminrio para debater o tema. E, principalmente, colocar a reforma agrria na pauta dos movimentos, da Igreja e da Academia, mas tambm do Poder Judicirio, do Parlamento e, principalmente, do Poder Executivo, que, nos ltimos quatro anos, foi um dos piores governos do ponto de vista da desapropriao e democratizao do acesso terra.

  • ABRA REFORMA AGRRIA 17

    Movimento social por terra, trabalho e teto

    DOM GuILhERME WERLAnGCNBB

    Gostaria de iniciar com uma frase bblica, do Livro do xodo, no captulo terceiro, onde Deus diz para Moiss, diante da sara ardente: Eu vi a aflio do meu povo; eu ouvi o seu grito e eu desci para libert-lo.

    Trs verbos: eu vi a aflio, eu ouvi o clamor, o grito, e eu desci para libertar. E, depois disso, Deus fica mansinho, mansinho, e diz para Moiss:

    Vai! Vai e liberta meu povo.

    Com medo ou sem medo, ele teve de ir. E no foi sozinho, levou o irmo junto.

    Bem, eu penso que ns, aqui, somos esse Moiss; homens e mulheres. Ns nos sentimos convocados a partir do Deus da vida; Deus que vida. E olhando a questo agrria no Brasil, ns olhamos, muitas vezes, mais violncia e mais morte do que esperana e vida.

    Ento, ns devemos ter conscincia de que ns, que estamos aqui, no estamos em nosso nome, ns estamos em nome de milhes e milhes de brasileiros e brasileiras. Sejam eles agricultores, e agricultoras, sejam eles indgenas, quilombolas, ribeirinhos. Mas ns estamos em nome de outros e a a responsabilidade que nos cabe, de ver a aflio, de ouvir o grito e de buscar a libertao.

    A questo agrria, durante a ltima campanha poltica, tanto em nvel nacional quanto nos nossos estados, ficou praticamente desconhecida, ela no apareceu com evidncia, como uma questo chave que ela . Tanto para os candidatos a governo federal quanto para os candidatos nos respectivos estados. Da a urgncia deste seminrio, porque se no apareceu entre as pautas

  • Ensaios e Debates

    18 ABRA REFORMA AGRRIA

    principais dos candidatos, certamente, tambm no o ser agora, quando iniciar esse novo governo.

    A Conferncia dos Bispos promoveu um debate entre os candidatos Presidncia da Repblica e, por sorteio, coube a mim fazer uma pergunta, e caiu exatamente para a Dilma. Foi transmitida na cadeia das TVs catlicas. E eu dizia que ns, Igreja, reconhecemos os avanos sociais na ltima dcada, ou um pouco mais do que na ltima dcada. Mas a desigualdade social permanece muito, muito, muito grande. E eu perguntava na poca, se eleita, o que ela faria de primeira medida mais urgente para definitivamente superar a desigualdade social no Brasil, que uma vergonha no Brasil e diante das naes. Sermos o quinto, sexto ou stimo PIB mundial e termos a misria e a pobreza, que ainda persistem.

    Bem, ela apontou o que j foi feito, isso ns j havamos reconhecido, que houve melhoras, com certeza. Mas o que ns queremos? O que ns esperamos de concreto para superar definitivamente essa desigualdade e podermos, de fato, ser reconhecido como um pas justo diante das naes?

    A questo agrria no Brasil to antiga quanto a chegada dos portugueses. Houve alguns pequenos ensaios nesses quinhentos anos, mas em nenhum momento a questo agrria foi resolvida no Brasil. O modelo da questo agrria persiste desde as capitanias hereditrias. Ganha novos nomes, ganha novos desenhos, mas a concentrao na terra est no DNA, de antes de o Brasil ter o nome Brasil. E, por isso, ela no uma questo perifrica, e no pode ser discutida sem aprofundar a questo. Ela tem razes muito profundas e no basta fazer pequenos remendos, h que se fazer uma reforma mais radical e profunda, inverter o modelo.

    No podemos pensar a reforma agrria desconectada, desvinculada da questo do modelo econmico desenvolvimentista que, infelizmente, no s do Brasil. Ns temos de olhar essa questo em conjunto. Que modelo econmico ns temos e, a partir desse modelo econmico, entender os avanos, os retrocessos, as resistncias sobre a questo agrria.

    A questo agrria imoral. E uma das causas principais da violncia, da injustia e das mortes em relao aos pobres da terra os indgenas, os quilombolas, os ribeirinhos, os pescadores e tantos outros pobres da terra.

  • Movimento social por terra, trabalho e teto

    ABRA REFORMA AGRRIA 19

    Ser lder de algum movimento que tem a ver com a questo agrria ter quase seu nome na lista de quem pode estar marcado, e colocar um preo. Ento, a questo agrria tem de ir muito mais fundo.

    Eu vejo, ao menos nesse ltimo sculo que passou, que a terra no Brasil no para os brasileiros produzirem para o Brasil, uma produo para exportao. Ns temos um modelo de commodities que to antigo quanto os portugueses que mandavam o ouro e a prata para fora, s que hoje isso se d numa escala muito maior, e muito mais depredatria.

    Assim eu tambm penso que no podemos desvincular a questo da terra da questo da minerao. Porque a minerao incide sobre reservas, sobre aqferos, nascentes. Tiram o que querem e depois vo embora, deixando apenas a ferida da natureza e a ferida social.

    Em novembro de 2014 ns realizamos a CNBB junto com outros organismos um seminrio latinoamericano, com a presena de treze pases, sobre a questo da minerao. E a minerao tem tudo a ver com a questo agrria. A questo agrria no apenas para o pequeno produtor produzir o alimento. Tudo que atinge a terra e quem mora na terra tem de ser visto por ns.

    Eu gostaria de perguntar e ns devemos nos perguntar, a partir deste seminrio, embora possa trazer alguns constrangimentos , a partir daquilo que a gente ouve falar na imprensa, das tendncias dos possveis nomes para assumir o Ministrio da Agricultura, ou o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, que perspectivas os pequenos podem ter?

    No sou eu quem nomeia os ministros, no sei quais sero temos de esperar , mas a partir daquilo que est sendo falado, e a partir daquilo que defendido por esses nomes, que futuro ns podemos esperar? Esta uma questo que dar muito pano para manga.

    Eu gostaria de terminar a minha fala lembrando que hoje ns celebramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos. E, com certeza, um dos direitos principais do ser humano o direito terra. Seja ele no solo urbano, ou seja ele na questo agrria. Mas o direito terra, como o direito gua, no podem ser concesses so direitos do ser humano.

  • Ensaios e Debates

    20 ABRA REFORMA AGRRIA

    Ento, ns devemos olhar a questo agrria como um direito, especialmente nesse Dia Internacional dos Direitos Humanos. Ningum de ns consegue viver no espao. Sem terra no h vida, sem terra no existe pessoa.

    Podemos olhar a nossa luta pela terra como uma das lutas principais pelos direitos humanos, um direito que negado para quem no tem dinheiro; um direito que negado para quem pobre. Direito humano deve ser humano, portanto igual para todos. Hoje, se voc no tiver dinheiro, voc no ter gua. Voc vai morrer de sede, porque se pegar ser preso por ter roubado.

    Termino dizendo que a questo agrria na igreja, de conhecimento de todos os senhores e senhoras, antiga. No incio dos anos 80 foi feito um documento da CNBB sobre a questo agrria. A gente chama de documento azul, quando ele oficialmente aceito como documento. Agora, na 52 Assembleia Geral dos Bispos, realizada em maio de 2014 em Aparecida, ns voltamos aprovar um novo documento: A Igreja e a questo agrria brasileira no incio do sculo XXI. Esse documento est longe de ser aquilo que ns gostaramos, mas tambm dentro da Igreja ns temos, muitas vezes, dificuldades de fazer passar as coisas. Foi o que ns conseguimos negociar, mas eu penso que ele est bastante bom, bastante amplo.

    Se ele no tivesse sido aprovado no ano passado, com certeza sairia agora, depois do encontro do Papa com os movimentos sociais, e seria mais proftico ainda. Mas, mesmo assim, ele aborda as questes principais da terra e do ser humano do direito do ser humano.

    E gostaria tambm de dizer que, quando o documento verde, ele considerado como documento de estudo e pode receber emendas e melhorias. a primeira vez que a Igreja Catlica, no Brasil, aprova um documento, ainda que em estudo, sobre a questo dos quilombolas, a quem a nao brasileira deve tanto.

    Ento, esse documento ainda est em estudo para melhoramento, podendo receber contribuies. Na CNBB a Comisso 8 que a Comisso das Pastorais Sociais a responsvel por agregar novas contribuies ao documento.

    Mas ao lado destes avanos, ns tambm precisamos reconhecer que o conservadorismo da igreja uma grande questo, que tambm estamos refletindo dentro da CNBB. Hoje, 70% a 80% das vocaes masculinas e femininas da

  • Movimento social por terra, trabalho e teto

    ABRA REFORMA AGRRIA 21

    Igreja vm dos movimentos neoconservadores. E, de fato, ns precisamos incidir muito na questo da formao.

    Ento, ns estamos iniciando um processo em nossos seminrios de refletir esses documentos. E isso no se faz por decreto, tem de ser uma construo.

    O documento da questo agrria, por exemplo, ns levamos quatro anos e meio para construir. Cada palavra tem um peso importante.

    Afora isso, na base, se voc olhar seminrios ou conventos de freiras da linha tradicional sobram vocaes. Mas vocaes na linha que estamos falando aqui voc no acha nem caando com So Pedro. Est difcil, porque a mentalidade de uma Igreja, que foi acumulada durante trinta anos. E ns precisamos, a partir do Papa, de fato, comear a refazer isso.

    Ento, internamente na CNBB, investimos na formao. E, alm disto, eu penso que o papel de vocs, leigos e leigas, seja nas igrejas catlicas ou evanglicas, muito importante. preciso que vocs tentem incidir nas bases, que no desistam da Igreja, pois essa no a primeira crise por que ela passa. Houve outras, muito mais profundas e graves. Mas quando o leigo e a leiga dialogam com fraternidade e com justia possvel avanar.

    Ento, eu agradeo a todos, agradeo aos organizadores. Agradeo o apoio do Fundo Nacional de Solidariedade, que fruto da Campanha da Fraternidade da qual a Igreja faz parte. Que ns tenhamos um timo seminrio.

  • Ensaios e Debates

    22 ABRA REFORMA AGRRIA

    JOO PEDRO StDILECoordenao Nacional do MST

    O meu papel aqui compartilhar com vocs o que ns temos debatido no MST e, de certa forma, tambm na Via Campesina e em outros espaos da classe trabalhadora do campo.

    Ns vivemos um perodo histrico muito difcil e complexo da luta de classes no campo, o que torna a luta pela reforma agrria muito difcil.

    Primeiro, porque h a disputa de dois projetos, o projeto do capital dos capitalistas e o projeto da classe trabalhadora. E essa disputa de projeto extrapola a disputa pela propriedade da terra, da qual era a marca principal da reforma agrria e continua sendo. Porm ela agora se ampliou, porque o capital est disputando no s a propriedade da terra, mas est disputando a propriedade da natureza, dos minrios, da gua, da biodiversidade, das sementes, do que produzir.

    Em torno de 85% da agricultura brasileira produz commodities, cinco produtos que no tm nada a ver com a cesta bsica do povo brasileiro, portanto no tem vnculo com as necessidades do nosso povo.

    Segundo, porque h uma hegemonia do projeto do capital na sociedade. E essa hegemonia eles nos impuseram pela fora de quem tm o poder econmico.

    Eu vivo citando por a que o oramento da Bungue, a maior empresa agrcola americana que atua no Brasil maior que todo o oramento do MDA, da Embrapa, do Ministrio da Agricultura e do IBAMA juntos. Ou seja, o Pedro Parente tem mais fora do que a Esplanada dos Ministrios, em sua atuao concreta, l no campo. Pedro Parente o presidente que eles colocaram como preposto na multinacional Bungue. No por nada que escolheram ele, inclusive, como exministro do Fernando Henrique.

    Eles tm hegemonia no Poder Judicirio. Os juzes no Brasil fazem o que querem; a sociedade no tem controle nenhum. No Mato Grosso do Sul h

  • Movimento social por terra, trabalho e teto

    ABRA REFORMA AGRRIA 23

    juiz que deixa liminar assinada em branco e o fazendeiro preenche a data e o local em que haver o despejo seja quilombola, ndio ou semterra. Isso uma vergonha!

    Mas isso demonstra o grau de controle que os capitalistas tm do Poder Judicirio. E na mdia, ento, no d para ligar o rdio.

    E agora, a ltima hegemonia deles: esto atuando em nossas escolas do ensino fundamental, com cartilha, ensinando as crianas a usarem veneno. Mas isso um suicdio generalizado. E ningum diz nada.

    Agora um juiz no Paran teve a coragem de aceitar uma liminar nossa e proibiu a cartilha do agronegcio para as crianas. Que, no fundo, era tornar mais aceitvel o uso de agrotxico desde criancinha.

    Tem hegemonia no Congresso e tem hegemonia nos partidos, inclusive de esquerda. O PT apoia o agronegcio, o PCdoB apoia o agronegcio. Olhem, eles emprestaram o Aldo Rebelo para ser portavoz do agronegcio no Cdigo Florestal. Mas isso uma vergonha. Eu se fosse do PCdoB pedia demisso na hora. Mas como hoje ser comunista no ttulo e na prtica no muda nada, vale qualquer coisa.

    Se o agronegcio j compra at comunista, imaginem os outros? Mas eu no estou aqui para falar mal dos primos do PCdoB, a questo sobre o grau de hegemonia e sobre este contexto to adverso.

    A classe trabalhadora est em refluxo como classe. A ltima greve geral ns fizemos em 1988. Ns no conseguimos mais, como classe, atuar na luta poltica. E isso, ento, tira a fora da classe para fazer esse embate poltico de projeto. Porque agora luta de projeto, no mais resolver problema.

    E, nesse contexto, ento, ns chegamos a uma situao em que aquela reforma agrria clssica, de realmente democratizar a propriedade da terra, garantir terra para quem nela trabalha que era, digamos, a bandeira simblica da reforma agrria clssica est inviabilizada no Brasil. Porque a reforma agrria clssica, de apenas democratizar a propriedade da terra, sempre dependeu, para sua viabilidade em todo o mundo, de uma aliana tcita entre a burguesia industrial que precisava dos camponeses integrados na agroindstria e os camponeses.

  • Ensaios e Debates

    24 ABRA REFORMA AGRRIA

    E a burguesia industrial somente fez reforma agrria em todos os pases quando ela implementou um projeto de desenvolvimento nacional e, portanto, industrial. Aqui no Brasil no, a burguesia nacional como nos advertiu Florestan Fernandes no tem um projeto de nao. E, portanto, me permitam: esto se lixando para o Brasil e os seus problemas.

    No que os camponeses no querem mais repartir a terra, porque a reforma agrria clssica s se viabiliza se a classe burguesa industrial tambm tiver interesse. Como eles no tm interesse, ns, apenas com a fora dos camponeses, no conseguimos implementar a reforma agrria clssica. Ento, ela est inviabilizada historicamente.

    Diante disso, s vivel numa perspectiva histrica atual, uma reforma agrria do tipo popular. Uma reforma agrria que interesse ao povo brasileiro. No s aos camponeses e tampouco a burguesia industrial porque esta nunca teve interesse.

    Ento, uma reforma agrria popular agora implica colocarmos outros paradigmas em disputa, no s a propriedade da terra, mas o paradigma da defesa da biodiversidade, da semente, da agroindstria. Porque no possvel somente produzirmos alimentos para as grandes cidades, sem que os camponeses sejam proprietrios das agroindstrias. Da educao, da agroecologia, que h vinte anos nem se falava.

    Ento, h outros componentes paradigmticos que compem um programa de reforma agrria popular. No entanto, essa reforma agrria, historicamente em outros pases, tambm s pde ser realizada quando houve um processo de mudana poltica que levou a um governo popular. O que no o caso do Brasil. No caso brasileiro, ns temos um governo de composio de classes que no teve capacidade poltica nem de resolver os problemas emergentes do campo.

    Ento, este o pior dos mundos, porque ns nem podemos fazer a reforma agrria clssica, nem temos fora para fazer a reforma agrria popular. E o governo no tem coragem nem para resolver os problemas dirios, digamos; problemas de direitos humanos, eu diria, de sobrevivncia da populao que est no campo.

    Bem, ento este o cenrio mais estrutural. Agora eu queria falar um pouco sobre a correlao de foras, sobre o posicionamento dos atores em relao

  • Movimento social por terra, trabalho e teto

    ABRA REFORMA AGRRIA 25

    reforma agrria. Primeiro, em relao ao capital, naquilo que todos comungamos: que o projeto do capital, para o Brasil e para o mundo o agronegcio, como modelo de organizao da produo e do campo.

    O agronegcio continua em ofensiva. E eles esto priorizando expandir a fronteira agrcola para o famoso mapito, mais o oeste da Bahia; eles esto priorizando as commodities, e esto priorizando o modelo tecnolgico deles que baseado em sementes transgnicas e agrotxicos. E eles vo expandindo essa fora deles.

    Porm, para no cometermos nenhum suicdio, como parte dessa correlao de foras, o que pode nos animar que o projeto e o modelo proposto para o capital tm enormes contradies intrnsecas a ele. Como nos advertiu o velho Marx no captulo da dialtica: para cada ao haver uma contradio.

    E o modelo do agronegcio j est evidenciando muito as contradies, para a sociedade brasileira e no mais apenas para os camponeses. Porque no modelo anterior a contradio fundamental era apenas o latifundirio e o campons. E essa contradio se resolvia no enfrentamento direto com as ocupaes de terra. E a quem tinha mais fora ganhava ou perdia a terra.

    Agora no; agora, as contradies do modelo do capital se expem para a sociedade.

    Ento, esse processo violento de concentrao da propriedade da terra nas mos dos capitalistas est gerando contradies nos municpios, porque gera desemprego; porque o dono da terra no mora no municpio, como era o latifundirio mora no Rio de Janeiro ou So Paulo.

    Vocs sabiam que 80% dos proprietrios de terra acima de mil hectares, no Mato Grosso, moram na cidade de So Paulo? Isso significa que a riqueza produzida no Mato Grosso vai para um banco em So Paulo, portanto no desenvolve coisa nenhuma l na regio. E isso gera uma contradio com a regio.

    Como j disse, 85% da agricultura brasileira produz commodities, basicamente quatro produtos que nada tm a ver com a cesta bsica. Isso comea a gerar contradies. Porque o sujeito mora no interior de Gois e o tomate tem de vir de So Paulo, o repolho tambm, todo mundo comea a se perguntar: tem alguma coisa errada aqui.

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    Se ns no conseguimos nem mais criar galinhas, quando a Sadia tem de mandar os caminhes carregados de frango para Belm, para Boa Vista, tem alguma coisa de errado.

    Assim como as contradies do desequilbrio ambiental que eles esto provocando e que apareceu de forma clara agora, em So Paulo, com a seca, com a falta de gua, que est diretamente relacionada com o monocultivo da cana. So Paulo tem seis milhes de hectares de cana. Voc anda de Campinas a Araatuba e s cana. Voc no v nem gente. E voc pensa que isso no ter reao? Claro que sim, est a, apareceu. Uma seca desgraada. Assim como o desmatamento da Amaznia que, est provado cientificamente, tem relao com essa seca.

    Ento, as contradies comeam a aparecer. A contradio do agrotxico, que nos impe uma pena de 500 mil novos casos de cncer por ano denunciado pelo Instituto Nacional do Cncer. As pessoas comeam a se dar conta.

    Ento, os agrotxicos tambm esto gerando contradies e isso vai nos levar eu creio , a um processo de maior conscincia da perversidade, da inviabilidade do modelo do capital para o campo e da necessidade de criarmos uma fora social, que extrapole os camponeses porque os camponeses no conseguem mais fazer a reforma agrria com suas prprias foras. A ltima foi feita na revoluo mexicana, pelos camponeses. De l para c, mais nenhuma foi feita pelos camponeses.

    Creio ser central como ao poltica nos focarmos nas contradies do modelo do capital, que aqui j comeam a se evidenciar. Alguns tm um foco aqui ou ali, mas creio que podemos ter o entendimento comum de que o agronegcio tem contradies gravssimas no agrotxico ento a que temos de bater neles. Eles tm contradies no meio ambiente, com consequncias no clima; eles tm contradies na minerao.

    Vocs viram o que a Anglo fez em Minas Gerais, no porto de Au? Bilhes de litros de gua por dia, e ningum diz nada. E o rgo do Meio Ambiente deve ter dado a licena ambiental. gua potvel carregando minrio para o mar todos os dias, e fica por isso mesmo. Esse mineroduto um absurdo que precisa ser impedido.

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    O tema do trabalho tambm uma contradio. O Dieese da Contag revelou esses dias que nos ltimos anos o agronegcio eliminou cinco milhes de postos de trabalho no meio rural, de assalariados. A nossa sorte que jovem nenhum quer mais ser empregado do agronegcio; o que uma contradio. Eles no oferecem futuro para jovens, e ns temos de aproveitar isso, jogar os jovens contra eles.

    Bem, sigo. Do ponto de vista da classe trabalhadora, ns temos muitos problemas. Ns conseguimos construir uma unidade programtica, naquele encontro unitrio de agosto do ano passado, mas no conseguimos fazer aes de massa conjunta. E sem aes de massa conjunta, no enfrentamos o capital, ficamos apenas no discurso. Estamos ainda muito iludidos com polticas setoriais que no afetam a estrutura da propriedade da terra, da gua, das sementes, dos agrotxicos.

    Ns denunciamos os agrotxicos, mas no temos a coragem de ir l e fechar fbricas, como fazem os indianos. No podemos mais admitir que o Brasil seja esse paraso dos venenos estamos consumindo 20% dos venenos de todo o mundo para uma produo que 3% da produo agrcola do mundo.

    Ento, a classe trabalhadora tambm no est conseguindo se colocar como um agente poltico unitrio, que pressiona o capital. O nosso time tambm est fraco. Ns temos clareza do problema, mas no temos tido capacidade de unir as foras para fazer aes de massa que enfrente o capital.

    s vezes, quando a gente fica mais bravo, resolve somente atacar o governo. O governo, nessa partida, o de menos. Talvez dos trs atores seja o mais fraco. At porque o governo de composio. Ento, at que eles se entendam entre si...

    Do nosso campo, o lado de c, temos ainda muitas fragilidades que precisamos resolver.

    Agora falarei um pouco mal do governo Dilma. Do ponto de vista da luta de classes no campo, o pior perodo foi o Collor. E, depois, o perodo com a Dilma. Nunca vi governo to ruim como este.

    Um governo que se fechou na sua autossuficincia, com duas ou trs polticas setoriais do Pronaf, como se ele resolvesse tudo. Cansamos de dizer que Pronaf venda a crdito dos insumos da indstria. isso que usar o Pronaf.

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    E 85% do crdito de Minas para baixo. E me digam, sem provocar ningum: em quem os camponeses, de Minas para baixo, orientados por suas federaes, votaram na ltima eleio? Quem recebeu Pronaf votou em quem? Votaram no Acio, orientados pelas federaes de Minas para baixo.

    Vamos reclamar? No. Como diz a sabedoria, cada um colhe o que planta. Faz dez anos que estamos dizendo que o Pronaf insuficiente para reorganizar a produo agrcola.

    O plano de agroecologia foi um bom plano, do qual participamos. Mas ele no teve operacionalidade prtica, ele s est numa carta de inteno. Estaria melhor se fosse da CNBB. E o papel da CNBB este, orientar e ser doutrina; o papel do governo fazer aes prticas, atuar para mudar a correlao de foras. Ento, as polticas compensatrias, que aparentemente so boas, so insuficientes. No conseguiram se universalizar, como o PAA, como o PNAE, como o prprio PRONERA. Ns ficamos brigando para liberar trinta milhes do PRONERA meu Deus do Cu!

    Quanto o MEC deu para o Sistema S? Um bilho? E ns brigando por trinta milhes, para pr os nossos filhos estudando na universidade, que um direito. E por essa razo que s 1% dos jovens das reas de reforma agrria tm acesso universidade. Por que os outros 99% no tm? Ns vamos oferecer PRONATEC para eles? Quem quiser ser tratorista do agronegcio que v fazer PRONATEC. Mas os nossos filhos querem ser professores, advogados, mdicos, querem ser juiz, querem ser ministro.

    Ento, ns do MST e da Via Campesina, acredito que tambm a CONTAG e a FETRAF, esperamos mudana. E isso que ns vamos dizer para a Dilma. Assim como est no d.

    Ns vamos dizer para a DS (Democracia Socialista): vocs so especialistas em DAS (cargos comissionados), parem de nos encher o saco no MDA e no INCRA. J deu para vocs, doze anos j suficiente para mostrar se tem competncia ou no. Isso ns vamos dizer para a Dilma e vamos dizer para a DS: no d para aguentar desse jeito, mudem de ramo. Assim como est no d.

    Ns queremos mudana na orientao do MDA e do INCRA. E mudana para frente, que foi o que o povo pediu nas eleies; mudanas para melhorar; mudanas que representem o empoderamento do nosso povo.

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    Mas o Governo Dilma est numa encruzilhada. A direita quer pautar para o governo a pauta neoliberal, e mantlo emparedado. E, se puder, provocar o impeachment por qualquer motivo. Ou seja, a direita quer voltar pauta s do capital. E a pauta dos doze anos, do neodesenvolvimentismo, das polticas compensatrias, j se esgotou. Porque o prprio povo quer avanar, o povo quer mudanas mais estruturais.

    Por mais que essas medidas e todos ns estamos de acordo sejam boas, elas so insuficientes, no resolvem os problemas estruturais da nossa sociedade. Ento, o povo quer avanar, e o governo est a no meio.

    Bem, o governo, para avanar, precisa de apoio popular. Ento, uma combinao que ns vamos fazer. Ns no vamos esperar que o governo sozinho faa as mudanas, mas o governo tem de dar sinais. Se o governo nomeia a Ktia de Abreu para o ministrio da agricultura, como que ele quer apoio dos camponeses? Vai procurar na direita.

    Ento, h sinais que o governo tem de dar, e esses sinais so para indicar qual o caminho da encruzilhada em que se encontra. Se ela optar por caminhos equivocados, ainda que simbolicamente, haver uma eroso muito rpida da base social do segundo turno. E ns vamos para uma luta de classes, independentemente do governo.

    A nossa preocupao, que eu penso ter tudo a ver com a poltica e que comeamos a reflexo aqui, que os avanos na reforma agrria vo depender do que o governo fizer na poltica. Portanto, cabe a ns como movimento social do campo, mais do que nunca exigir que o ponto nmero um seja a Reforma Poltica. Para fazer a disputa poltica e ideolgica na sociedade.

    E, ateno, se a direita avanar o sinal e quiser optar pelo impeachment j no primeiro semestre do governo, ns, do movimento do campo, temos que ser os primeiros a nos levantar e construir outra campanha, da legalidade, como fez o Brizola. Mas teremos tambm de fazer o nosso papel: aes de massa que continuem a presso.

    Ns, dos movimentos do campo, temos de criar uma ao unitria e rpida. No podemos esperar porque no s culpa do governo, a nossa tarefa de fazer a formao massiva, ideolgica, sobretudo para os jovens.

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    Eu e Frei Beto fomos derrotados quando, no primeiro mandato do Lula ns defendamos que era preciso que o governo financiasse um processo massivo de formao dos beneficirios do Bolsa Famlia. Perdemos.

    Ns temos de recuperar a formao massiva, ideolgica. E conclamo a juventude, porque ns, de cabelos brancos, j ficamos meio cansados. Ns temos de, no prximo semestre, fazer curso massivo da juventude em cada universidade. Professores universitrios, que so todos meio comunistas, agora a vez de vocs, vamos ensinar comunismo para a juventude. Ou seja, fazer encontros massivos nas universidades, formar cinco, dez mil jovens, para que eles entendam a disputa poltica que est em jogo. Caso contrrio, corremos o risco de quando acordar ser tarde.

    Ento, apesar da complexidade da conjuntura e de uma correlao de foras adversas, que est posta, eu estou gostando do baile. Creio que vamos entrar num perodo de muita disputa, muita tenso, muitos conflitos e na crise e no conflito que haver mudanas.

    Agora, para terminar, como bom cristo, vou puxar o saco da Igreja. Se ns analisarmos a Igreja como um ator importante na luta pela reforma agrria, ao longo de todas as ltimas dcadas, Dom Guilherme, ns tambm nos ressentimos do recuo da Igreja. Que em nossa opinio o culpado Joo Paulo II. No tenho dvidas, ele est no purgatrio, ele no santo. Porque ele construiu mudanas conservadoras na nossa Igreja e isso representou um recuo no trabalho da Igreja nos ltimos vinte a trinta anos.

    Isso afetou os movimentos, porque o campons 110% cristo. E se as referncias religiosas dele recuam, ele no tem nem como reclamar para o bispo, no ? Vai reclamar para quem?

    Ento, ns nos ressentimos desse recuo conservador da Igreja Catlica nas ltimas duas dcadas. E j indiquei o culpado, para no dizer que estou radicalizando.

    Porm, para salvlos, eu penso que a Igreja ainda se recuperou com esse documento de maio do ano passado, quando ela, doutrinariamente, deu um passo frente mais que os partidos, inclusive, sinalizando uma proposta doutrinria clara, contundente, contra o modelo do agronegcio, contra o modelo do capital. Condenando a manipulao genrica dos transgnicos e a propriedade

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    privada das sementes, como ato anticristo; condenando o uso dos agrotxicos e defendendo o direito de todo cidado ter acesso biodiversidade e ao meio ambiente.

    Ento, a Igreja do Brasil, inclusive, eu penso que est na vanguarda, porque ela superou o conservadorismo que permeou o papado do Joo Paulo II em todo o mundo. E por isso eu creio que ela continua sendo uma referncia ns percebemos no dilogo com os outros pases doutrinria para outras conferncias episcopais.

    E, finalmente, eu creio que ns vamos ser salvos tambm, do ponto de vista da Igreja falo como cristo , pelo Papa Francisco. O homem revolucionrio, viu? Ele me surpreendeu, porque corajoso, um homem simples, acabou com aquela frescura de ficar beijando anel. O Dom Leonardo no quis comentar, porque no papel dele, mas o meu papel. Ns fizemos uma fila de cem para falar com ele, e dar umas cochichadas. E um ou outro, mais bajulador, j queria se abaixar para beijar o anel, e ele retirava a mo.

    Lembro o tempo em que a mulher, s falava com o Papa se colocasse vu. Nenhuma das nossas mulheres colocou vu. Iam l com dignidade. Isso um negcio que me fez arrepiar, porque ns estvamos acostumados a ver o Papa ficar l, beija a mo, o vu. At a Ruth Cardoso, se lembram?

    Ento, agora ns temos um Papa com dignidade, que se comporta como um ser humano igual aos outros, com simplicidade e corajoso. Porque ele diz e confirma:

    Eu estou do lado dos pobres. E esta a minha misso, ajudar que a Igreja organize os pobres.

    Muito obrigado pela ateno.

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    GILBERtO CARvALhOMinistro da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica

    Como se diz em Londrina, melhor ouvir certas coisas do que ser surdo, no ? Eu quero agradecer muito pelo convite para estar aqui e reencontrar vocs, gente amiga de tanto tempo. E cumprimentar a CNBB, a Comisso de Justia e Paz, o MST, a ABRA, assim como a OXFAM e o Fundo Nacional de Solidariedade, patrocinadores deste seminrio.

    Eu fico muito contente de ver a promoo deste seminrio, porque em momentos de crise a coisa que mais precisamos fazer conversar, abrir o ouvido para o outro, buscar ouvir, sobretudo, o diferente, o contraditrio, para que a gente consiga encontrar caminhos.

    Sempre que a gente ouve o nosso Lula nos ensinou isso de maneira muito forte e prtica diminui a chance de errarmos e aumenta muito a chance de acertarmos.

    Eu queria tambm, fazer uma referncia ao Dia dos Direitos Humanos que hoje. um dia importante para o pas, em que a Comisso da Verdade est apresentando o seu relatrio. uma forma, ainda que moderada, discutvel, mas importante, de o pas, a nao, fazer o reconhecimento das vtimas e apontar aqueles que so responsveis pelas mortes e pela tortura, para que isso nunca mais ocorra.

    Quero aproveitar para tambm apresentar um repdio forte ao comportamento desse Deputado chamado Bolsonaro, que ontem, mais uma vez, mostrou a que veio, praticando contra a Deputada Maria do Rosrio uma grosseria. Espero que a Cmara trate adequadamente, por ferimento ao Decoro Parlamentar, mas eu diria Decoro Humano.

    Tambm quero lembrar de algumas figuras que so os nossos heris, na pessoa de dois integrantes da Igreja. Um o nosso Dom Tomaz Balduino, que nos deixou h pouco tempo. E o outro o Dom Pedro Casaldliga

    Para quem no sabe Dom Pedro teve um filme agora, que a EBC acabou ajudando a patrocinar. Tratase de uma coproduo catalbrasileira, um belssimo

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    documentrio que foi apresentado agora, em So Flix e sbado noite vai ao ar a primeira parte, na EBC, na TV Brasil.

    Eu me lembro deles, mas, naturalmente, me lembro tambm de todos os lutadores dos movimentos do campo, que nesse tempo so os responsveis pelos avanos que temos. Lutadores que continuam na luta, mas tambm os que tombaram tantas mortes tivemos nessa luta pela terra.

    Tudo isso para chegar a essa saudao que o Joo Pedro concluiu a sua fala, Dom Guilherme, da importncia do Papa Francisco. Eu me somo totalmente ao Joo Pedro nessa considerao em relao ao Papa Francisco, como uma espcie de Primavera Nova. interessante, pois justamente quando os nossos grandes inspiradores esto partindo, a chegada do Francisco de enorme proporo.

    Quem viveu como ns vivemos a outra Primavera, das comunidades de base, das pastorais sociais, e sabe o quanto os movimentos de igreja, as comunidades, as pastorais, os seminrios, geraram quadros fundamentais para a construo de todos os movimentos que nos levaram a essa importante vitria no pas. impossvel pensar o prprio MST, o PT e a CUT sem essa presena forte, seja do ponto de vista de quadros gerados, seja do ponto de vista das ideias, das propostas que vieram da militncia evanglica catlica, de todas as igrejas, mas, principalmente, das Comunidades Pastorais Sociais, que fecundaram os nossos projetos, sabe o quanto foi trgico o enquadramento que o Vaticano nos imps. E esse recuo que ns vivemos, o quanto isso contribuiu para o amortecimento das lutas sociais no Brasil.

    E agora ns esperamos essa nova onda, que vai demorar um pouco, pois visvel como, ainda, as dioceses e o Clero brasileiro no entenderam o que o Papa Francisco. A gente observa isso. Porque, da mesma maneira como o enquadramento demorou para nos sufocar, tambm agora esse novo processo vai demorar para chegar base. O que ns, que somos militantes cristos, temos de fazer tentar agilizar esse processo, porque eu creio que ele seja decisivo para a construo do projeto histrico que ns temos no pas.

    Eu queria basear a minha fala tambm nessa anlise, j referida pelo Joo Pedro, do modelo do Estado brasileiro e do modelo de desenvolvimento. Eu vou falar aqui sem ter a preocupao de fazer a defesa de governo. Falo como

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    membro do governo, naturalmente, porque assim fui chamado, mas tambm como militante, porm com muita liberdade.

    Depois de doze anos trabalhando no governo, mais do que nunca fica claro para a gente como o Estado brasileiro foi montado pela elite e para a elite. Como reprodutor do modelo de produo do modelo de acmulo concentrador da riqueza. E olhando em perspectiva histrica para trs, fica bem evidente que o que conseguimos fazer nesse tempo, de maneira eu diria tmida, foi um certo contorcionismo dessa mquina pblica, tentando fazer com que ela produzisse uma coisa, um produto, para o qual ela no foi montada, no foi criada. como voc pegar uma garapeira e querer que ela no produza garapa, que produza suco de laranja, algo assim, se voc enfia a cana.

    O tempo todo, a guerra, dentro de uma correlao de foras adversa no parlamento porque essa histria de base aliada funciona, todos ns sabemos, para algumas coisas, mas para muitas no. No essencial, da luta de classe, evidente que ela no funciona, haja vista as votaes que ns temos, em geral nos projetos que dizem respeito classe trabalhadora.

    Como a prpria cultura do funcionalismo, a prpria cultura do funcionamento dessa mquina est voltada para que, cada vez mais, a elite acumule. E a enorme dificuldade de voc fazer valer os projetos que favorecem as maiorias.

    Quem tiver dvida sobre o que eu estou falando, basta comparecer hoje, depois de doze anos, num guich do Banco do Brasil, da Caixa Econmica ou do BNDES, e vai perceber a enorme dificuldade que a gente tem para fazer funcionar um projeto em funo dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, a enorme facilidade que existe para uma empresa se financiar, conseguir capital, e assim por diante.

    Isso eu falei dos bancos, mas vale para qualquer departamento. Porque a mentalidade, a cultura estabelecida, uma cultura da elite. E, nesses doze anos, talvez, um dos grandes problemas, que ns temos de fazer autocrtica, que no conseguimos fazer uma reforma do Estado. A correlao de foras no seria simples, mas eu creio que poderamos ter avanado mais.

    Quando falo de reforma do Estado, penso, sobretudo, naqueles instrumentos voltados, exatamente, como ferramentas fundamentais para avanarmos em algumas questes. Refirome, portanto, ao Incra, Funai, Conab, entre outros aspectos.

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    Bem, junto com isso, o modelo de desenvolvimento que ns trabalhamos nesse tempo, que, convenhamos, no sofreu da nossa parte nenhuma grande mudana. Em nosso governo, por mais que inovamos, por mais que tivssemos buscado fazer alteraes, o nosso modelo de desenvolvimento segue sendo um modelo de desenvolvimento clssico, da produo, da distribuio e do consumo, que ns encontramos. Ns no introduzimos nenhuma grande mudana.

    Eu sempre dizia, l atrs, que a cabea do Lula era a cabea de um metalrgico alargada. Ou seja, ele cresceu nas dimenses do mundo, cresceu politicamente de forma extraordinria, mas o que quer dizer quando me refiro cabea de metalrgico? a produo de riqueza e a distribuio de riqueza. Toda a nossa luta foi uma luta voltada, sobretudo, nessa perspectiva de distribuir a riqueza. Esse foi o foco, o crescer distribuindo renda, a incluso econmica, sem a introduo de novos elementos culturais e de valores que pudessem alterar o processo tradicional.

    Tanto que ns, embora tivssemos includo milhes de brasileiros e eu convido vocs a nunca subestimarem isso; nunca podemos subestimar o valor desse resultado. A nossa gerao tem de ter orgulho do que realizamos. Mas qual foi o resultado, ns jogamos no consumo milhes e milhes de pessoas sem o mnimo de conscincia crtica, sem o mnimo de inovao e sem uma capacidade de gerar outro modelo, de tal maneira que essa nova gerao que me recuso a chamar de nova classe mdia, mas de novos produtores, novos consumidores acabou ideologicamente presa, em grande parte, ao modelo tradicional.

    Sempre dou o exemplo do companheiro que recebeu o Minha Casa, Minha Vida. Aquele que dos 100% paga apenas 10% do valor da sua casa, mas no tem a informao, nem a conscincia, de que aqueles 90% dinheiro pblico, e s dinheiro pblico colocado para ele porque houve uma mudana na lgica de uso do aparelho de Estado. No na viso simplista de trocar um voto por uma casa, mas na viso de que esse dinheiro aquele que estava parado antes no Banco do Brasil, no BNDES, na Caixa, gerando juros para o especulador. A falta de conscincia de que esse um novo projeto fez com que ele, com muita facilidade, bastando ouvir nas rdios e lendo nos jornais as denncias de corrupo, colocasse a bandeirinha azul na sua casa, e no a bandeira vermelha.

    Esse companheiro ficou presa fcil do velho modelo, por falta de avanarmos na formao poltica dessa conscincia. E por falta de, junto com a sociedade,

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    dialeticamente, termos sido capazes de gerar a discusso sria e profunda de um novo modelo de desenvolvimento, de um novo modelo de produo e de relao com a natureza, de uma nova relao ecolgica, de uma nova relao de distribuio e de um novo padro de consumo. Eu creio que essa uma das questes fundamentais.

    Eu no creio que tenhamos ficado apenas no velho, Joo Pedro. Eu creio que verdade que as medidas foram setoriais, foram tmidas, mas elas tm sementes importantes. Voc mesmo citou, alm do PRONAF, o PAA, como instrumento importante.

    No verdade que a questo agroecolgica seja apenas um discurso parecido com o da CNBB. Ontem, inclusive, tivemos uma bela cerimnia no Planalto, quando os primeiros dezoito projetos foram assinados, e daqui para frente vo crescer mais.

    H sementes importantes, do ponto de vista da qualificao da agricultura familiar, do ponto de vista de abrir um novo horizonte, na linha do agroecolgico e do orgnico; h sementes importantes dentro do governo, que ns precisamos valorizar e fomentar.

    A criao de programas como o Terra Forte, o Ecoforte e o Cataforte, no caso dos catadores (eu falo dos trs, porque os trs tm a ver com a questo ambiental e com o novo modelo de desenvolvimento) tem de ser muito considerada por ns, porque elas so sementes. Apesar de serem pequenos, verdade, se voc comparar os recursos colocados no agronegcio, em relao a esses programas, de fato, ridculo. Mas ainda assim so sementes.

    Ns encontramos a chave. Dentro daquilo que eu chamei de uma mquina montada para a elite, ns comeamos a encontrar as chaves, juntando, pacientemente, energias do BNDES, do Banco do Brasil, da Fundao Banco do Brasil. E, sempre com a presso dos movimentos, ns conseguimos encontrar chaves, que podem agora ser a abertura de novas e importantes portas. Mas nada disso dispensa esse contnuo processo de presso sobre o governo, que os movimentos precisam continuar fazendo.

    Outro dia algum disse uma coisa que eu considero muita verdade: a presidenta recebe uma presso diria e somos testemunhas disso dos conservadores e da direita. Se no houver presso do outro lado sobre o governo, qual a tendncia? voc se acomodar cada vez mais direita.

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    Ento, esse processo de mobilizao que os movimentos sociais precisam fazer, que os partidos esquerda precisam fazer, ser decisiva no prximo governo.

    Eu queria acentuar muito esse aspecto. Ns estamos num momento, extremamente novo e perigoso no pas, em que ser de direita e ser conservador, que para muitos antes era um constrangimento, agora, para muita gente, comea a ser uma honra. Comea a ser chique e comea a ganhar gosto pelas ruas.

    Os cinco mil de So Paulo, de domingo, pouco, mas muito, ao mesmo tempo. E, frente a esse processo, que mudou o clima no pas, de permanente ataque e de deslegitimao de um governo, comea a ser uma ameaa concreta, para o qual a nica resposta a responsabilizao. Desse ponto de vista, urgente a revitalizao dos partidos que sustentam o governo, esquerda o PT e o PCdoB, mas particularmente o PT. decisivo, nessa hora, que haja, de fato, uma capacidade de renovao, uma capacidade de cortar na carne, uma capacidade de voltar ao processo de politizao, de ligao com as lutas sociais.

    E, ao mesmo tempo, a mobilizao dos movimentos fundamental nessa hora. E a a centralidade da bandeira da reforma poltica. No tenhamos iluso: sem a reforma poltica, sem a presso para que o Supremo termine o julgamento do financiamento empresarial de campanha, o nosso alcance e a nossa capacidade, at de renovar os nossos partidos, muito pequena.

    A palavra da reforma poltica, particularmente, com as questes do fim do financiamento empresarial e a lista partidria, nos termos propostos pela CNBB e pela OAB, mais os 50% de mulheres e homens na lista, so elementos essenciais para que a gente possa ter outro padro de Congresso Nacional. Vocs sabem o que aconteceu nesses ltimos quatro anos, e o que ir acontecer agora, nos prximos quatro anos, com o Congresso ainda mais conservador.

    Dom Guilherme, por causa da desintruso das Terras Indgenas de Mariwatsd e AwGuaj a SecretriaGeral teve um papel para ajudar a fazer a desintruso eu fui chamado trs vezes ao Congresso. Duas na Comisso da Agricultura e uma na Comisso de Fiscalizao. Est aqui o Joo Pedro Stdile que acompanhou. Fiquei seis horas ouvindo xingamentos inacreditveis.

    A vigilncia, a capacidade de mobilizao, o aumento da bancada ruralista nos d muita clareza do que ns estamos falando aqui. Para avanar nas

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    reformas, inclusive para a reforma agrria poder avanar, ns temos de fazer a centralidade, deixar nossas diferenas, fazer a unificao em torno do Projeto de iniciativa popular da Reforma Poltica como primeiro passo para, de fato, fazer uma presso da sociedade e mostrar que ns queremos de fato construir o novo. Mostrar que ns queremos de fato um novo modelo de desenvolvimento, para ento termos de fato um novo modelo de desenvolvimento, para ento termos de fato um governo com correlao de foras suficientes a nos ajudar nesse processo de mudana que precisamos.

    Ns vivemos um momento em que, talvez por sorte ou no sem bem como dizer isso, os exageros da direita e dos conservadores acabam sempre nos ajudando. Na campanha eleitoral, os exageros que eles praticaram fizeram menos por mrito nosso, mas porque eles exageraram pesado que muita gente que estava com as bandeiras empoeiradas, guardadas, acabasse indo para as ruas.

    No temos dvida de que s ganhamos essa eleio porque a militncia foi para a rua e tambm os movimentos sociais, heroicamente. Nunca foi to duro fazer uma campanha como essa. Todo mundo que fez campanha aqui, assim como eu, foi chamado de ladro em algum momento.

    Ento, foi fundamental esse exagero deles, porque provocou esse processo. No fosse isso, insisto, a gente teria perdido essas eleies. E eles estavam to confiantes que, inclusive, celebravam, no comeo da apurao.

    Mas o que aconteceu com isso? H duas questes. A primeira uma pergunta que no quer calar: por que ns corremos tantos riscos? Por que ns, tendo feito um governo com muitos problemas, mas infinitamente melhor do que eles fizeram para as grandes maiorias, corremos esse risco?

    A meu juzo, e no quero ser leviano, alm das dificuldades econmicas que tivemos o pas perdeu o pique do crescimento da economia, por uma conjuntura internacional e por alguns erros nossos tambm. Mas, alm disso, a minha questo que ns abrimos mo do debate poltico e tambm do debate ideolgico.

    Ns no enfrentamos a comunicao, que um elemento fundamental; ns no enfrentamos esse debate com as massas, o processo de formao de massa e o processo do debate nos meios de comunicao, com as regras das comunicaes e tambm com inteligncia de ocupar espaos.

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    Porque assim. E no nem problema da mudana da Lei dos Meios de Comunicao, que se formos votar agora no Congresso, nesta conjuntura, vai piorar. Mas h coisas de fiscalizao do Ministrio das Comunicaes e h questes de tomadas de iniciativas nossas que podem reverter isso.

    Qual foi uma grande dificuldade do governo Dilma? A dificuldade no foi de tentar cuidar dos excludos, mas de dialogar com aqueles que ajudam os excludos a se autonomizarem, a se organizarem com os movimentos, a reforar os movimentos. Ela teve essa dificuldade. Isso eu j disse publicamente e no tem como dizer diferente.

    Mas eu sinto que est mudando. O prprio fato que ela comeou agora, antes de encerrar o mandato, a chamar o movimento sindical. E muito importante nessa hora que haja uma transparncia muito grande; que essas coisas que foram ditas aqui sejam ditas a ela com muita clareza. importante fazer ela entender que, alm da governabilidade parlamentar, a governabilidade social fundamental para fazer os avanos, decisivo nesse momento. Eu estou apostando muito nesses dilogos muito mais de vocs do que de ns que estamos l dentro. Vocs tm uma audincia muito maior junto a ela do quem est l dentro.

    Se ns avanamos bastante no Brasil em relao questo da fome foi porque ela foi colocada como centro da poltica. A questo da reforma agrria tem de deixar de ser lateral para se transformar tambm no centro da poltica.

    Da tambm importante uma nova viso da presidenta sobre a reforma agrria, porque a viso que at agora ela tem a viso da velha reforma agrria e da tragdia de muitos assentamentos feitos sem cuidado.

    muito duro, depois de doze anos, chegar aqui e ter de reconhecer, estando no governo, que, de fato, a reforma agrria no avanou como podia avanar; que a questo dos pescadores uma tragdia e que avana um processo de privatizao das guas. E isso um governo popular no pode fazer. A questo dos minrios, tambm. Ns temos de romper.

    E, para concluir, quero dar dois exemplos. Diferentemente do Lula, a Dilma foi quem comeou a avanar na questo do lucro dos grandes capitais. Porque at o Governo Lula, ns no tocamos. Voc pode notar.

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    Leia a imprensa brasileira at 2012 e depois. O que aconteceu em 2012? Ela atacou o spred bancrio e os juros. Eles nunca mais perdoaram ela e os colunistas econmicos comearam a fazer terrorismo. E a questo das eltricas, no fazer o leilo e prorrogar as concesses.

    Eles no perdoaram isso, porque ela comeou a mexer no lucro, e comeou a controlar as concesses e as taxas de lucro. Foi da em diante o divrcio da burguesia com a Dilma.

    Portanto, ela, apoiada, acompanhada por ns, tem condies de avanar. Eu aposto muito nisso.

    Quero concluir parabenizando o pessoal do MAB, aqui presente. Quando se falou da infraestrutura, esses meninos do MAB fizeram com vocs, do MST, e os companheiros dos sindicatos de eletricitrios e petroleiros, uma questo muito importante, que a plataforma de energia popular camponesa. Eu creio que vocs esto tocando numa questo fundamental, de repensar a nossa matriz. E ai tambm eu vejo uma caminho enorme de possibilidades de avanos.

    Quero terminar dizendo para o Dom Guilherme que a questo da Igreja, e falo com cristo, a gente tem sempre de ter muita esperana. Eu, quando moleque de doze anos, estava no seminrio e desfilei em Londrina apoiando a Revoluo de 1964 fiz parte da marcha da famlia. Depois, ainda no seminrio, fui expulso da Escola de Teologia, porque havia feito opo por morar na favela e fazer o trabalho na fbrica.

    Mas tambm, essa Igreja inspirada por Pedro Casaldliga, por Felipe Ledeus, beneditinos de Curitiba, e tantos, foi a Igreja que me deu foras at hoje e fonte de espiritualidade para continuar na luta. E o Papa Francisco, agora, surge como nova esperana. Ento, sempre assim.

    Deus tem sido grande e suscitado, ao longo do tempo, profetas vo fazendo denncias, fazendo a renovao. Por isso, a gente continua tambm na luta e na esperana de que a Igreja seja, de fato, um caminho e uma fonte de inspirao permanente para ns.

    Obrigado!

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    MRCIO POChMAnnProfessor e Pesquisador da UNICAMP

    Ol a todos, o nosso abrao fraterno, solidrio, agradecendo a cada um e cada uma pela presena e participao, pela oportunidade de travarmos aqui um dilogo, que, certamente, no se d entre aquilo que se reproduz em sala de aula, entre o professor que sabe e os alunos que no sabem. Pelo contrrio, eu aqui, possivelmente, estou numa posio inferior, especialmente quando o objeto da reflexo o tema agrrio no Brasil.

    Eu no sou estudioso do tema, tenho acompanhado, evidentemente, mas gostaria de trazer aqui elementos de reflexo num plano mais amplo, em que, obviamente, se encontra localizada a temtica agrria.

    Eu creio que ns estamos vivendo, de maneira geral, no Brasil, embora no seja uma especificidade brasileira, um processo profundo de alienao; alienao do ponto de vista da tomada de conhecimento e, sobretudo, de decises.

    Essa alienao, em nosso modo de ver, resulta de duas razes principais. A primeira est diretamente relacionada ao predomnio do curtoprazismo que domina hoje as anlises, as interpretaes, a formao da opinio se que podemos dizer assim.

    A anlise de curtoprazismo uma exigncia dos mercados especulativos. Estamos falando do mercado burstil, do mercado financeiro, que, obviamente, est prisioneiro do curto prazo, das aplicaes das aes, dos derivativos. Ento, so decises de curto prazo e por isso fundamental essas interpretaes de elevadores vamos dizer assim: subiu, desceu, a bolsa de valores ontem, a ao da Petrobras, a aplicao no fundo tal; o crescimento das instituies de aplicao de recursos dos ricos. Enfim, a sociedade est, na verdade, prisioneira da viso do curtoprazismo, que uma herana do neoliberalismo.

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    Quem no jovem vai lembrar, quando tivemos xito na luta pela redemocratizao do pas, ningum fazia uma reunio sem uma anlise de conjuntura. E hoje a anlise de conjuntura virou uma coisa superficial, de menos importncia. Quando, na verdade, ela a chave para voc olhar a posio dos atores, para onde vo os movimentos, qual a tendncia. Isso fundamental para a tomada de deciso.

    Mas, infelizmente, as decises so cada vez mais burocrticas, olhando os interesses de curto prazo; e , infelizmente, o resultado da predominncia dos mercados financeiros, que da natureza da dinmica do capitalismo que temos hoje, um capitalismo dominado por um regime de acumulao financeira.

    Obviamente, no precisamos seguir essa perspectiva, mas, infelizmente, a perspectiva dominante, que nos leva a uma profunda alienao, porque somos prisioneiros do curtssimo prazo. No que o curto prazo no seja importante, mas ele no suficiente.

    A segunda razo a explicar, em meu modo de ver, a alienao sobre o papel do indivduo na histria, a capacidade de ns mudarmos pelas prprias mos, pela nossa fora, a realidade que ns temos, vem derivado, na verdade, da pssima contribuio que as universidades e instituies de pesquisa vm fazendo. Porque so, hoje e cada vez mais, uma produo associada ao predomnio do pensamento psmoderno.

    O que o psmodernismo? , na verdade, o aprofundamento dos estudos dos especialistas, das especializaes. Ns sabemos hoje, cada vez mais de quase nada. Eu sou especialista de olho direito, certo? E o olho esquerdo? No tenho a menor ideia, mas do olho direito eu estou sabendo.

    Ento, as universidades e instituies de pesquisa produzem, cada vez mais, estudos sobre a mulher. Perfeito. Mas a mulher no tem classe? De que classe social ela ? O problema da violncia da mulher atinge a todas as mulheres? Certamente. Mas, obviamente, nas mulheres trabalhadoras a presso da violncia muito maior do que na mulher burguesa, na mulher capitalista.

    A questo racial, no mesmo sentido; os velhos, os jovens. Ou seja, ns temos uma proliferao de estudos das partes. O que inegavelmente tem a sua importncia; no quero negar sua importncia. Mas essa importncia est reduzida

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    pelo fato de que hoje voc sabe das partes, mas no consegue somar o todo; voc no tem a viso do todo, voc tem uma viso muito fragmentada das coisas.

    Na verdade, o que ns temos a complexificao das coisas, h uma complexidade, uma coisa est vinculada outra. E ns estamos perdendo essa capacidade. O Brasil, infelizmente, hoje, no conta com intelectuais, gente com essa capacidade de olhar o todo. E ns estamos limitados, cada vez mais s partes.

    No jogo de deciso, no jogo poltico, da correlao de foras, leva mais importncia quem tem condies de ver o todo, e no as partes.

    Ento, em meu modo de ver, de incio, eu diria que essa alienao nos perturba e, ao nos perturbar, nos fragmenta.

    Eu me lembro de ter participado, nos anos 90, de uma reunio da OEA, que fez uma discusso sobre os movimentos sociais na Amrica Latina, com muita gente. O difcil l foi tirar um documento, porque cada documento tinha de conter uma palavra chave dos movimentos fragmentados. No foi possvel criar um documento com um todo. Isso para a gente considerar a perspectiva que temos hoje, que uma perspectiva de alienao crescente.

    E essa alienao nos impede de tomar decises e construir uma agenda de convergncias, porque estamos presos, muitas vezes, s agendas fragmentadas. E o melhor, do ponto de vista da correlao de foras, a agenda da fragmentao. Quem quer dominar, fragmenta o outro lado.

    Mas eu queria, na verdade, trazer aqui como reflexo uma perspectiva nesse sentido mais amplo. Estou longe de oferecer aqui uma viso totalizante, estou tambm prisioneiro da alienao a qual ns todos vivemos. Mas eu queria trazer quatro questes que me parecem ser questes que nos conectam com a conjuntura, com a atualidade do Brasil, mas, fundamentalmente, com o amanh.

    E quais so essas questes que eu quero trazer para vocs? A questo da democracia, a questo do reposicionamento do Brasil no capitalismo mundial, a questo da reconfigurao do atual capitalismo brasileiro, que herdeiro das grandes corporaes que se constituram a partir da segunda metade dos anos 50. O jogo que ns estamos vivendo hoje o jogo pelo qual o Brasil

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    constri as grandes corporaes e se mostra incapaz de conviver com ela, de no ser dominado.

    E a quarta questo a questo territorial, que eu queria desenvolver aqui. So esses os pontos que eu imagino trazer alguns elementos de reflexo sobre eles.

    Primeiro, a questo da democracia. Todos sabemos que no somos um pas de tradio democrtica. A nossa cultura uma cultura autoritria. Ns temos mais de quinhentos anos de histria e o pas est completando agora 48 anos de experincia democrtica. E esse perodo que se iniciou em 1985 o perodo mais longo dessa experincia democrtica.

    Na verdade, a nossa trajetria uma trajetria de enorme autoritarismo, da incapacidade de construir convergncias pela democracia. Digo isso porque no acredito que o que ns tivemos antes da dcada de 30 possa se assemelhar democracia, uma vez que ns tnhamos eleies, na Repblica Velha, que herdou do Imprio um sistema eleitoral extremamente viciado, em que votavam apenas e to somente homens ricos, homens com propriedades; mulheres, ricas ou no, no votavam; homens pobres no votavam e homens analfabetos, mesmo ricos, no votavam.

    Ento, at 1930, na verdade, a participao no processo eleitoral envolvia alguma coisa em torno de 3% da populao. Portanto, a poltica no era assunto da populao, porque a poltica expressava os interesses dos muito ricos; e homens.

    Obviamente, a partir da dcada de 30 que a gente comea a caminhar rumo democracia, mas uma democracia que foi interrompida pelo Estado Novo, de 1937 a 1945; e a ditadura militar, de 1964 a 1985. E at 1985, considerando o perodo de 1945 a 1964, um perodo reconhecido como democrtico mas uma democracia muito limitada, pelo fato que no havia liberdade para todos os partidos que quisessem porventura se organizar; o caso do PCB inegvel nesse sentido, porque foi, em 1945, colocado na ilegalidade.

    Vivamos recorrentemente sob a tenso de golpes de estado e os analfabetos no podiam votar. E os analfabetos constituam a maior parte da populao. Os analfabetos s comeam a poder votar a partir de 1985.

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    Ento, uma democracia nesse sentido limitada. E esse perodo de 1985 para c, na verdade, nos permitiu construir uma experincia indita, uma experincia importante, inegavelmente, em que na primeira vez, a agenda dos despossudos, se ns quisermos, dos pobres, etc., comeou a se fazer presente na agenda poltica, na Constituio de 1988.

    Mas eu quero chamar a ateno para o fato de que, em meu modo de ver, a democracia insuficiente da maneira como se apresenta hoje. Por que insuficiente? Porque uma democracia sustentada num regime de representao constitudo pelos prprios ditadores. Ns temos um regime de representao enviesado, um regime de representao que, de maneira geral, no permite haver uma sintonia entre o perfil da populao e os nossos representados.

    O setor agrrio. Ns temos hoje 40 mil proprietrios rurais que dominam 50% das terras do pas, e elegeram este ano 240 representantes. um poder desproporcional para 40 mil produtores rurais.

    De outro lado, temos 4,5 milhes de trabalhadores na agricultura familiar, que elegeram nove representantes. Ento, esse um vis enorme do ponto de vista da representao.

    Mas no apenas o tema agrrio. Peguemos, por exemplo, do ponto de vista da ocupao dos nossos representantes no Congresso, ns temos, do ponto de vista da estrutura ocupacional, que os empresrios representam 4% das ocupaes. Quase 40% dos nossos deputados federais so empresrios.

    Ns temos 51% da populao composta de mulheres. Quantas so as representantes no Legislativo? No chega a dez. Os negros, 52% da populao se declaram negros, mas quantos so os nossos representantes?

    Ento, h uma deformidade no sistema democrtico e no podemos estar satisfeitos com ele. O que no significa que no queremos mudalo, do ponto de vista do que representa a democracia para um pas como o nosso, mas, evidentemente, ele precisa ser aperfeioado e aprofundado. No possvel continuarmos num sistema poltico base do sistema econmico.

    Segundo uma instituio que produziu um estudo sobre o Congresso Nacional com base nas eleies de 2010, e com as informaes declaradas oficialmente no Tribunal Superior Eleitoral, de todos os candidatos a deputados federais, os

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    que se elegeram gastaram em mdia R$ 4 milhes. J os candidatos a deputados federais que no se elegeram gastaram em mdia R$ 100 mil. E R$ 4 milhes no , em mdia, a remunerao que esses deputados federais tero em quatro anos. Ento, alguma coisa est confusa.

    Esse sistema eleitoral no permite mais haver candidaturas com viabilidade popular. Ento, precisamos repensar. A questo da democracia est em jogo, do ponto de vista do seu aprofundamento, do seu aperfeioamento.

    Mas, talvez, mais grave do que aperfeioar, o problema, a meu modo de ver, que est em choque a sua sustentao. Ns teremos um golpe no semestre que vem, ou no outro? Este um tema. E no alarme, reconhecimento do que est acontecendo.

    Por quanto tempo o PSDB e os partidos que o apoiam defendero a democracia? Isso no nenhuma novidade, porque tambm a UDN e o PSD, constitudos em 1945, tambm eram democrticos. Eles defendiam a democracia. Mas h um momento em que eles no conseguem chegar ao poder pelo voto, ento a democracia vai se inviabilizando, no muito perfeita.

    No estamos aqui, obviamente, imaginando que talvez v haver um golpe militar, at porque os quartis so de outra natureza hoje em dia. Mas um golpe l Paraguai, quem sabe? Ou um golpe hondurenho?

    Ento, a questo da democracia, para ns, muito importante ser considerada, porque ela est em jogo. E o momento, evidentemente, no de retrao, de avanar no sentido de demonstrar a sua ineficincia. preciso aprofundar a democracia. Avanamos na democracia meramente representativa e, ao que os dados indicam, ela no representa muito bem. E h uma campanha inegvel de descrdito da poltica tambm, infelizmente, a poltica no tem dado bons exemplos.

    Mas, de toda maneira, este um ponto central, porque h um realinhamento internacional da direita, que fez presses enormes nas eleies. Talvez no tenhamos a dimenso da importncia do resultado eleitoral ocorrido no Brasil, porque a queda deste governo implicaria, obviamente, consequncias internacionais inegveis. Especialmente porque estamos olhando a experincia da esquerda, sobretudo a europeia, a aplicar um programa da direita. Esperamos que seja uma experincia s europeia.

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    Ento, se voc olha o discurso de nossos opositores, tem o mesmo discurso do Capriles, na Venezuela, tem o mesmo discurso do Macri na Argentina. H uma articulao.

    Este um tema que no podemos deixar de lado, pois um tema da maior importncia em relao democracia num pas com baixssima tradio democrtica, em que aqueles que seriam os maiores beneficiados pelo que a democracia permitiu alcanar hoje esto andando de lado.

    O segundo ponto que eu quero trazer aqui em relao ao reposicionamento do Brasil no capitalismo em mudana. Ns somos um pas subdesenvolvido, sempre fomos. Por qu? Porque o capitalismo um sistema de dimenso global, um sistema em que o desenvolvimento ocorre de forma desigual. Mas essa desigualdade combinada. A gente pode olhar qualquer relatrio de dimenso internacional e sempre vai dar l que um pas cresceu mais, outro cresceu menos. No um crescimento equnime, so crescimentos desiguais. Essa desigualdade no desenvolvimento est diretamente relacionada posio de cada um dos pases em relao ao centro dinmico. O capitalismo um sistema que tem um centro dinmico, tem uma locomotiva que puxa ele. Para ser essa locomotiva necessrio ter trs caractersticas fundamentais. A primeira, para ser locomotiva, para ser o centro dinmico no capitalismo, tem de ter moeda de curso internacional. No apenas uma moeda internacional, mas uma moeda de curso internacional; uma moeda que sirva de unidade de troca, de unidade de reserva de valor, de unidade de compra no espao nacional e fora do espao nacional.

    Ns nunca tivemos moeda de curso internacional, tivemos um tempo em que nem moeda tnhamos; hoje temos moeda. Para quem teve a oportunidade de sair fora do Brasil sabe que sempre bom levar uma moeda nossa, a gente fica olhando ali a ona pintada, mas mais para matar a saudade do que para servir para alguma coisa l fora.

    Ento, no somos um pas que tem moeda de curso internacional. Mas essa uma caracterstica. A segunda caracterstica que para voc ser do centro dinmico, ser da locomotiva que puxa o capitalismo, voc tem de ter, alm da moeda, foras armadas. Infelizmente, o Brasil no tem foras armadas de nome. Claro, tem a Aeronutica, a Marinha, o Exrcito, mas ns estamos, evidentemente, longe. A comear pelo fato de que no temos nem a capacidade

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    de fazer a segurana de nossas fronteiras. Ns somos o segundo pas maior do mundo em fronteira seca, com dez pases. E, infelizmente, em nossas fronteiras entra e sai quem quiser e a hora que quiser.

    Somos o maior pas com fronteira martima com o Oceano Atlntico, e no temos submarino de propulso nuclear. E as nossas riquezas esto em grande parte, pelo menos agora com o prsal, no mar.

    At estamos tentando reconstituir um sistema de defesa, fizemos uma boa articulao na compra desses avies supersnicos, que vo trazer tecnologia compartilhada, temos uma boa articulao com a China e a ndia na guerra ciberntica, estamos continuando articular com a Frana para, de fato, construir o submarino de propulso nuclear. Uma articulao interessante com a Rssia na aquisio dos antiareos. Enfim, estamos montando, mas temos muito que fazer. No pode a nossa Marinha ficar praticamente no Rio de Janeiro, quando, na verdade, somos um pas que tem uma quantidade enorme de rios.

    E os nossos exrcitos esto basicamente no centro das cidades. Ento, temos de pensar outra forma.

    Ento, no temos, em meu modo de ver, foras armadas digna de nome, especialmente num ambiente de guerra ciberntica, com o caso que estamos vivendo hoje. Como vocs sabem, hoje o estratgico informao. E ns no temos autonomia nenhuma nas informaes. Imagino que uma parte deste evento tenha sido feito via Internet, ento os Estados Unidos souberam antes do destinatrio.

    Ns temos seis grandes empresas que dominam a informao no mundo, todas elas norteamericanas. Os chineses esto querendo montar um negcio, esto conseguindo em parte, os russos tambm, mas longe disso. E a guerra hoje ciberntica, a guerra da informao.

    E no somos um pas que hoje tem capacidade de produo e difuso tecnolgica. No que no tenhamos ilhas de excelncia at mesmo a Petrobras, por meio da explorao do petrleo na camada do prsal, a Embrapa, se quisermos, a Embraer. Mas so ilhas. Isso no uma coisa que domina o pas.

    At avanamos nesses ltimos anos em relao produo e difuso do conhecimento pelas instituies de pesquisa, universidades, etc., que fazem

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    estudos indexados. Mas, infelizmente, isso a cresceu descolado de patentes, que seria o indicativo que ns temos capacidade de produo e difuso do conhecimento vinculado ao setor produtivo. Ento, infelizmente, ns no temos essas trs caractersticas, portanto somos um pas dependente dessa estrutura.

    Mas h dois fatos novos que eu gostaria aqui de compartilhar em relao ao reposicionamento do Brasil no mundo. O primeiro diz respeito ao fato de que toda vez que h uma tenso, uma turbulncia naquela locomotiva que puxa, abre espao para alguns vages se posicionarem. uma turbulncia. como se o capitalismo fosse uma espcie de rio e os pases fossem um peixe. Os peixes podem ir para l e para c, vo para a frente e para trs, mas eles esto condicionados margem do rio.

    No entanto, quando h cheias, vazes, as guas ultrapassam as margens e h alguns rios que se formam a partir dali. H peixes que aproveitam aquela oportunidade. Ento, nas crises, nas turbulncias do centro dinmico, o Brasil se reposiciona no mundo aproveitou para se reposicionar, pelo menos, nas duas experincias de crises traumticas que tivemos no capitalismo, como de 1873 a 1896 e de 1929 a 1939.

    E, em nosso modo de ver, estamos hoje com uma turbulncia na cabine da locomotiva. Os Estados Unidos esto vivendo uma crise de grande proporo. E com dimenses internacionais.

    Aqui ns criticamos que a economia brasileira tem uma taxa de investimento ao redor de 17% do PIB, o que muito baixo, no h dvida quanto a isso. No entanto, nos Estados Unidos a taxa de investimento est a 9% do PIB. Eles esto com problemas serssimos no apenas na desigualdade, na pobreza, empregos muito precrios que esto gerando empregos e servios de US$ 22 mil/ano, que um emprego compatvel s pessoas poderem usar o tal de stamp foods, o nosso carto alimentao, o Bolsa Famlia. Eles tm hoje o maior programa do mundo de transferncia de renda, ultrapassaram em muito o Bolsa Famlia brasileiro. E esses empregos so empregos Walmart, Mac Donalds, etc.

    Isso no d futuro nenhum para aquele pas; um pas traumtico, porque est com problemas srios na sua infraestrutura. Washington vive com problemas de apago de energia eltrica. E agora, vocs esto acompanhando, os conflitos na sociedade. claro, uma sociedade rica, tem muita gordura para queimar, mas h o mesmo sinal que a Inglaterra teve no sc. XIX.

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    E, paralelamente, ns temos a uma reorganizao da sia, especialmente da China. Ento, a crise do capitalismo, vem neste momento em que o velho perdeu a capacidade de dar conta, mas o novo no est suficientemente maduro para assumir essa funo. Ento, existe essa tenso. E, nessa tenso, em nosso modo de ver, o Brasil est se reposicionando no mundo. A leitura que eu tenho que o Brasil se reposiciona no mundo, como fez na dcada de 1980.

    Essa questo de data muito complicada, mas s para dar uma referncia. Na dcada de 1980, ns construmos uma nova maioria poltica, depois de mais de cem anos de regresso econmica e social que o Brasil viveu, segundo Celso Furtado, uma vez que interrompido, esgotado o ciclo do ouro. Foram cem anos a ver navios.

    Mas foi ali que a articulao, na segunda metade do sc. XIX, quando a aristocracia do caf com leite se organiza e se apresenta como uma maioria moderna. E moderna em que sentido? Antiescravista. O fim da escravido. Uma maioria que estabelece um novo regime de governo, abandona o Imprio, estabelece o presidencialismo, a Repblica; uma maioria que fez uma reforma eleitoral em 1881, construiu uma nova Constituio de 1891. Para aquela poca, ela era relativamente avanada. Tinha abolicionistas. Gente progressista como os abolicionistas, que tinham a viso de que era necessrio dar um passo alm da sociedade agrria, com Ruy Barbosa, por exemplo. A tentativa do Ministro Ruy Barbosa de iniciar a coisa industrial.

    Ento, foi um momento de reposicionamento. O Brasil saiu daquela draga que vinha vivendo, se organiza como pas exportador de bens primrios, verdade, mas d um salto e constri algumas bases na estrutura produtiva para o nascimento das primeiras indstrias.

    O segundo momento a crise de 1829 a 1939. O capitalismo sai de crise com a Guerra. Mas aquele momento da dcada de 30 foi chave para o Brasil. O Brasil se reposicionou no mundo, construiu uma nova maioria poltica. bvio que era uma maioria poltica construda com os derrotados da poltica velha. Quem eram os derrotados da poltica velha, de 1889 a 1930? Os derrotados foram os trabalhadores da dcada de 10, na greve; os derrotados foram os tenentes; os derrotados foram os artistas da Semana de Arte Moderna de 1922.

    Getlio, que era um homem do campo, um estancieiro, como se dizia, teve a capacidade de reunir os derrotados e construir uma fora alternativa crise do

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    modelo de exportao primrio exportador. Ainda que Jlio Prestes, na campanha de 30, dizia que, na crise do caf, a laranja o superaria. Dando a imagem de que deveramos continuar naquele projeto de sociedade arcaico.

    Getlio e sua maioria ganha, mas no tem capacidade poltica de conduzir o pas sozinho, sem fazer uma aliana com os proprietrios rurais, a aristocracia, caf com leite. Porque teve 1932, uma guerra civil. So Paulo no aceita.

    So Paulo faz duas condies para ingressar no barco do Getlio. Quais so elas? A primeira a seguinte, o moderno, que era a indstria que eles achavam horrorosas, frias dcimo terceiro para os trabalhadores. Isso era horroroso para a aristocracia cafeicultora.

    Getlio, voc quer fazer isso a, voc quer fazer modernidade? Tudo bem, voc vai fazer l na cidade, no me mexe no campo. Se mexer no campo, a vai ter tiroteio.

    E Getlio aceita. Ou seja, estava dada, a partir dali, a incapacidad